Acessibilidade / Reportar erro

O clientelismo como gramática política universal

RESENHAS E CRÍTICAS BIBLIOGRÁFICAS

O clientelismo como gramática política universal

Paulo M. D'avila Filho1 1 Doutor em Ciência Política (IUPERJ), professor, pesquisador e coordenador da área de Ciência Política do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio.

BAHIA, Luiz Henrique Nunes.

O poder do clientelismo: raízes e fundamentos da troca política.

Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

No livro de Luiz Henrique Nunes Bahia, O poder do clientelismo: raízes e fundamentos da troca política, podemos encontrar uma preciosa revisão do conceito de clientelismo, tão caro às Ciências Sociais e tema sempre recorrente na agenda pública brasileira. Uma leitura que chega em boa hora, somando esforços a uma tendência ainda inicial de repensar as percepções e interpretações correntes sobre um fenômeno que possui abrangente tradição na produção nacional.

O debate em torno do clientelismo é recorrente na literatura brasileira. Uma determinada percepção de que seríamos um país atrasado com relação às conquistas de liberdade e igualdade, alicerces de uma ordem exitosa nos modernos países industriais, sugere essa chave de interpretação das mazelas nacionais. Ocorre, a partir dessa perspectiva, estreita associação entre formas clientelistas de dominação e o fenômeno do atraso. Essa identificação acaba por desagregar o valor heurístico do conceito, ao subsumi-lo a um conjunto de denominações correlatas, porém não idênticas, de domínio tradicional. Marcas de nossa tradição do pensamento social que ressoam na literatura internacional sobre o Brasil.

Podemos identificar, ao menos, duas formas clássicas com que nosso pensamento social e político interpretou a gênese dos grandes males nacionais: uma opera com o eixo explicativo do patrimonialismo, seja ele uma herança ou não de nossa colonização; outra com o mandonismo, epicentro de nossa falta de integração social. Duas leituras que organizam nosso pensamento político desde o século passado e perpassam nossa tradição intelectual, ainda marcantes, embora com novas roupagens, em produções acadêmicas mais recentes. Estas vão configurar um campo profundamente enraizado em nossa cultura. Eixos que imprimem um certo olhar sobre o fenômeno do clientelismo, identificando-o com o atraso.

A redução das possibilidades de interpretação do fenômeno do clientelismo ao mandonismo e ao patrimonialismo cria alguns problemas para a reflexão em torno do conceito, ao identificá-lo com formas pré-modernas de dominação política - assim, tenderia a desaparecer com a modernização da sociedade. Desse modo, todo o problema é visto como partindo de uma fórmula dicotômica: clientelismo/atraso - universalismo/moderno. Cidadania e clientelismo são, assim, termos antitéticos, e o primeiro tende a suplantar o segundo, na medida em que a sociedade se moderniza. Esse é o substrato do argumento que confina o clientelismo ao atraso, só podendo ser interpretado como elemento residual ou estático. Tal perspectiva dificulta a interpretação dos novos formatos que o fenômeno vem assumindo. É justamente nesse ponto que Bahia realiza uma ruptura com algumas interpretações correntes, tanto na academia quanto nas percepções comumente veiculadas a respeito das práticas clientelistas. Reside aí um dos grandes méritos de seu livro.

Algumas importantes contribuições para o desenvolvimento do entendimento das formas clientelistas já haviam sido realizadas desde o trabalho clássico de Victor Nunes Leal, Coronelismo enxada e voto (1945), passando por José Murilo de Carvalho, Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual (1977) e Eli Diniz, Voto e máquina política: patronagem e clientelismo no Rio de Janeiro (1978), entre outros. Bahia se destaca por enfrentar diretamente um ponto fundamental, ao afirmar o caráter endógeno do clientelismo a toda organização social, contrariando sua interpretação como fenômeno estático ou residual, imprimindo ao debate consistência teórica e precisão conceitual, a partir de um conjunto de referências inovadoras na literatura sobre o tema no Brasil. Se um "pecado" pode ser apontado em sua notável análise, é a ausência de um capítulo sistematizando a produção nacional sobre o tema. Mais proveitoso do que lamentar ausências, contudo, é acompanhar a riqueza da discussão sugerida em seu livro.

Ao falarmos no caráter elástico que deve assumir o conceito de clientelismo, de modo a dar conta de um fenômeno recorrente em diferentes contextos políticos e institucionais, o problema a ser enfrentado é sua caracterização de forma mais precisa, de modo a encontrar os conteúdos substantivos que lhe garantem a permanência. Essa é a tarefa a que se propõe o trabalho de Bahia. Conduzindo sua narrativa de forma precisa, bem equipado, ancorado em farta literatura, no domínio das teorias da rational choice e dos modelos da teoria dos jogos, particularmente o de Edgewort Box, em interação com o teorema de Bayes, Bahia empreende um grande esforço de articulação teórico-conceitual.

Em seu percurso, a abordagem da teoria da troca constitui a forma de interpretar o jogo da política em seu sentido mais geral, da ordem pública e da aspiração ao poder, e no processo mais restrito que se refere ao processo decisório da organização política. A troca política se diferenciaria das trocas tanto sociais, em seu sentido mais geral, quanto das econômicas em particular, na medida em que não constitui trocas tão inespecíficas quanto as primeiras, nem tão específicas quanto as segundas. O problema da simetria ou assimetria nas trocas, elemento fundamental para a definição conceitual da troca política em geral e da clientelista, em particular, é uma preocupação central do autor. A gênese grega, os clássicos contratualistas, Hobbes, Locke e Rousseau, assim como os representantes da ilustração escocesa, Hume e Smith, passando por Althusius até Hayek, são mobilizados a partir desse prisma. Neles estarão presentes diferentes teorias acerca dos fundamentos da "boa ordem", da justiça e dos governos. Todas elas, no entanto, estão se referindo a processos de macrotroca política. Esse processo permitirá o funcionamento das sociedades. A troca econômica não será possível, no sentido macro, sem um mínimo de garantia fornecida pela troca política. A característica fundamental a toda organização será a produção de hierarquias e assimetrias de poder, presentes no seio da troca política. As outras formas de troca serão autorizadas por uma hierarquia de poder legitimada por leis, consensos, costumes.

A assimetria é, portanto, um fator endógeno à troca política e por conseguinte a toda organização social. O clientelismo será caracterizado como um tipo de troca política assimétrica, marcado por uma série de especificidades que precisam ser observadas, se quisermos encontrar uma definição satisfatória de clientelismo, ainda que necessariamente elástica. Dessa forma, partindo de uma teoria da troca política como possuidora de traços particulares com relação às trocas sociais ou econômicas, sendo um deles o caráter assimétrico nela embutido, Bahia encara o clientelismo como uma forma singular de relações políticas assimétricas e procura delimitar seus traços distintivos. Supondo que toda organização conserva em seu interior algum nível de hierarquia, e sendo organização e hierarquia elementos constitutivos de qualquer formação social, assim como a assimetria seu corolário, o clientelismo deixa de ser um fenômeno residual, típico de sociedades ditas atrasadas. Toda a sociedade precisa organizar a distribuição do poder político-patrimonial. A propriedade, seja ela privada ou pública, por ser principalmente excludente, precisa organizar-se em forma de poder patrimonial excludente, segundo um modelo hierárquico qualquer, e é aí que proliferam as potencialidades do clientelismo, ou seja, da relação patronus-cliente.

Evitando a conhecida armadilha que nos aprisiona à dispersão das infinitas variáveis, observadas ou supostas, do fazer humano, ou ao enquadramento inevitavelmente sintético e arbitrário, porém intangível, das abstrações teóricas, Bahia procura organizar alguns marcos que auxiliem no entendimento das trocas clientelistas. Uma significativa literatura internacional será mobilizada pelo autor, que pretende descortinar quais seriam os traços específicos do fenômeno clientelista que resistem ao tempo, apesar de seus formatos distintos. Bahia recorre a um conjunto de trabalhos, procurando identificar os aspectos recorrentemente descritos ou interpretados como constituintes das características fundamentais do fenômeno.

A literatura mais recente tem em comum o entendimento de que o fenômeno do clientelismo encontra-se presente, ou melhor, é endógeno à organização e ao fenômeno do poder. O que se troca é apoio político e lealdade por benefícios patrimoniais, máquina política por compromisso. Em todas as sociedades, a autoridade pública legítima se organiza em bases patrimoniais. Em linguagem weberiana, a disputa pelo poder é a disputa pelos instrumentos da autoridade pública, seus monopólios legítimos da força e da justiça, bem como pela organização da distribuição político-patrimonial. A associação entre partidos e governo, a disputa plebiscitária, o controle do Estado, a partir de sua expansão econômica e o crescimento de seu papel social, aumentam o volume de recursos disponíveis e sublinham a extensão possível do clientelismo. No mundo competitivo das democracias partidárias, a disputa por cliente torna-se ainda maior.

Mas dissertar sobre o caráter assimétrico e hierárquico que marca a organização da ordem pública e, por conseguinte, o próprio clientelismo, derivando daí seu caráter intrínseco a toda as estruturas de poder político, embora nos permita construir um olhar alternativo sobre o fenômeno, ainda nos diz pouco, não nos informa sobre os conteúdos específicos que encerra. Possivelmente, tal caracterização, em função da multiplicidade de formas que assume, exige que orientemos nosso olhar para o movimento dos atores em cena, para jogos de troca específicos.

A seguir o autor analisa a literatura que versa sobre os novos formatos adquiridos pelas relações clientelistas, sobretudo no cenário norte-americano. As democracias representativas contemporâneas, mesmo as consideradas mais avançadas, enfrentam o problema das trocas políticas assimétricas/clientelistas. A assimetria e a privatização do público, assim como oligopolização e oligarquização das organizações, constituem tendências ou traços característicos mais fortes ou mais fracos da ordem social e a ação política conterá sempre aspectos da troca clientelista. A forma tradicional de clientelismo vai dando lugar a um clientelismo organizacional, cujas características se afastam um pouco dos traços originais, mas mantém a essência do fenômeno: operar nos espaços não regulados da sociedade organizada, tanto entre organizações quanto dentro das mesmas.

A análise realizada por Bahia sugere que alguns traços comuns podem ser encontrados nas relações clientelistas, a despeito de sua variedade temporal ou espacial. Assim, as trocas políticas poderão ser classificadas como "trocas políticas assimétrico-clientelistas" e possuirão algumas características, das quais destaco: 1) assimetria: acesso restrito aos centros de poder e controle desigual sobre recursos, materiais ou simbólicos; 2) uma hierarquia vertical, não formal, particular e difusa; 3) onde não há canais institucionais autônomos e garantidos por lei de acesso aos recursos; 4) espaços não formalizados pela lei, onde a estrutura formal da sociedade é fraca e incapaz de fornecer, de modo estável e constante, bens e serviços, principalmente aos níveis mais baixos da população; 5) demandas fragmentadas; 6) trocas entre os atores, seja recíproca e mutuamente benéficas.

Partindo desses elementos, é possível sustentar que o clientelismo é um fenômeno relacionado ao acesso e à exclusão de bens e serviços não regulados diretamente pela ordem jurídica e pelos valores de mercado. Os mecanismos que fazem parte da troca política assimétrica/clientelista ocupam espaços vazios, onde não há garantias legais, não constituem direitos, mas são tolerados nas relações sociais. Espaços que não são ocupados pelos dispositivos constitucionais, pelo conjunto legal formado pelo direito positivo.

Ainda que tenha procurado desagregar o binômio clientelismo/atraso, Bahia não extrai daí nenhum sentido valorativo. Não pretende fazer algum juízo ético-moral em torno do tema, mas entendê-lo como estratégia política racional de atores sociais, organizados dentro ou fora do aparelho de Estado. Sendo assim, o entendimento do impacto do fenômeno no tecido social e na ordem pública ganha outros contornos. Um corolário do fenômeno clientelista é sua externalidade negativa, identificada na apropriação privada de recursos públicos, o que exige a diferenciação conceitual entre bens clientelísticos e bens públicos efetuada pelo autor mais adiante. O ponto central é que tipo de externalidades essa estratégia pode produzir se levada a cabo, sobretudo no que diz respeito à distribuição dos benefícios públicos.

Outra questão que dessa afirmação advém é saber se é possível eliminar ou reduzir as externalidades negativas. Esse é o tema de seu último capítulo, uma verdadeira agenda de estudos, momento em que o leitor poderá sentir a sensação de que autor parece ficar nos devendo uma discussão mais consistente e/ou alentadora. Entre outros aspectos, seus "mecanismos de controle das externalidades políticas negativas" não consideram instrumentos de accountability, mecanismo de governance ou empowerment, ou mesmo formatos de participação política semidireta (os chamados controles democráticos) em processos decisórios, além das instituições de representação político-partidária, como alternativas para a redução das externalidades negativas das relações assimétrico-clientelistas.

Retomar, entretanto, o tema do clientelismo e compreender seus mecanismos e metamorfoses, a partir de um perspectiva infensa aos preconceitos comumente vinculados às práticas clientelistas, bem como ao idealismo que acompanha o debate que se segue às noções estáticas e/ou residuais, é importante passo para uma reflexão em torno das possibilidades de redução das externalidades negativas produzidas pelas trocas clientelistas seu corolário, a apropriação privada dos recursos públicos.

NOTAS

  • 1
    Doutor em Ciência Política (IUPERJ), professor, pesquisador e coordenador da área de Ciência Política do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2003
    PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro - UERJ, Rua São Francisco Xavier, 524 - sala 6013-E- Maracanã. 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: (21) 2334-0504 - ramal 268, Web: https://www.ims.uerj.br/publicacoes/physis/ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: publicacoes@ims.uerj.br