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Os escolhidos da técnica: a difícil arte de ser "viável"

RESENHAS E CRÍTICAS BIBLIOGRÁFICAS

Os escolhidos da técnica: a difícil arte de ser "viável"

Edlaine de Campos Gomes

Doutora em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ); pós–doutoranda do Centro de Estudos da Metrópole (CEM–CEBRAP). Endereço eletrônico: edlaineg@gmail.com

MENEZES, Rachel Aisengart.

Difíceis decisões: etnografia de um Centro de Tratamento Intensivo.

Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.

O paciente ideal, além de "viável", "responsivo", "anônimo" e "cooperativo", é o indivíduo que por suas características sociais e atributos pessoais, é suficientemente próximo da equipe de modo a causar certa empatia, possibilitadora de motivar seus cuidados, e suficientemente distante para não produzir na equipe uma identificação maior. (p. 73).

Este trecho está localizado no último capítulo do livro. Quando se chega nesta etapa da leitura, está–se quase sem fôlego.

Deparamo–nos o tempo todo com aquilo que não desejamos pensar: a possibilidade de em algum momento da vida passar pela experiência de um CTI; ou, em última instância, morrer. A autora torna públicas experiências críticas específicas de uma unidade hospitalar cercada de estigmas e liminaridade, sobretudo destacando as percepções daqueles que atuam diretamente no atendimento aos pacientes. O CTI, os profissionais das equipes, os pacientes, os profissionais externos e a pesquisadora compõem um cenário revelador das complexas relações sociais que envolvem as decisões sobre vida e morte no campo da medicina. É sobre o papel e as percepções dos profissionais intensivistas que a autora empreende seu trabalho etnográfico.

A autora enuncia o impacto do tema escolhido diante de seus pares. O risco de contaminação física era a principal preocupação daqueles que serviram de primeiros contatos para a entrada em campo: tabu de uma sociedade altamente medicalizada. O singular interesse de pesquisa da autora contrasta com essa percepção. Lidar/pesquisar situações dramáticas é uma barreira, seja para médicos, seja para antropólogos. Afinal, afastar–se dos doentes e dos moribundos é a tônica da sociedade moderna. Etnografar é o ofício do antropólogo, requer sensibilidade e, na maioria das vezes, enfrentar desafios. Os temas passíveis de estudo na perspectiva da antropologia das sociedades complexas são múltiplos. Abordar o complexo processo de decisões institucionalizadas acerca da vida e da morte por meio de observação participante mostra que os desafios se ampliam para a Antropologia na sociedade contemporânea.

Rachel Menezes apresenta, em sua análise, a complexa construção de identidade de uma especialidade médica – em fase de discussão à época da etnografia –, demarcação de fronteiras e status entre médicos e demais especialidades e pacientes, mas também ratifica a importância da pesquisa etnográfica. Identifica que, mesmo compartilhando da mesma categoria profissional – é médica e antropóloga –, as supostas facilidades de inserção em campo quase desaparecem pela própria ambigüidade de sua posição. Estava tão próxima, era tão "familiar", que para alguns era vista como uma avaliadora da técnica. A pesquisadora é vista dentro do contexto do CTI como alguém perigoso e também liminar. Pode ser a observadora, a avaliadora ou controladora das ações. "É o FBI", disse um dos observados.

Para o leigo, Centro de Tratamento Intensivo significa, em tensão, a emergência da morte e a esperança na possibilidade de se manter vivo. Para os intensivistas, é o local onde a morte é combatida e vencida pela técnica. Lugar apartado do mundo externo. Lugar de virtuosos: profissionais e pacientes. Os profissionais são ultra–especializados, dependentes da máquina e, paradoxalmente, de seus pacientes. O exercício da profissão é desgastante e condicionado à existência de instituição hospitalar. Outra característica significativa é o aparato tecnológico necessário ao exercício dos profissionais, sem o qual não seria possível o cuidado especializado do chamado "tratamento intensivo", assim como foi concebido originalmente.

São no máximo sete "doentes extremamente graves" os que podem ser atendidos no CTI analisado. É espantoso deparar–se com tal informação. É a liminaridade na liminaridade. Equipes completas, um "engarrafamento" de profissionais (médicos, estudantes de medicina, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas, estudantes de fisioterapia, psicóloga, nutricionista, assistente social, entre outros), que se desdobram a cuidar daqueles que preconizam possuir "possibilidades terapêuticas". Seres "viáveis", quase extra–humanos, que além de "doentes" tornam–se co–responsáveis pela eficiência do cuidado intensivo. A luta é contra a liminaridade do paciente; pretende–se investir na vida, e não se deparar com a morte, por isto escolhe–se o viável.

O CTI é um lugar de passagem, visto antes como locus de purificação/vida do que como de morte. Aquilo que combatem é, ao mesmo tempo, o que expõe sua fragilidade: a morte de um de seus "escolhidos". Neste caso, a morte é sempre considerada um fracasso, frustração maior do mundo medicalizado. A persistência de alguns pacientes também mostra os limites do poder e do conhecimento técnico. São os highlanders, aqueles que sobrevivem mesmo após a resolução de interromper os procedimentos intensivos para salvá–los.

O estado do indivíduo recebido para tratamento intensivo é ambíguo. Tem que estar em "estado grave", mas não tão grave a ponto de pôr em risco as certezas médicas, ou desperdiçar os meios médicos materiais e humanos. Após serem aceitos por "mérito", os escolhidos passam por avaliações físicas, psicológicas, comportamentais e morais. São alvos do cuidado e da eficácia da tecnologia que cerca o tratamento intensivo. São também objetos de estudo. A gravidade de sua situação infere maior interesse nos procedimentos e acompanhamento das decisões a serem tomadas. O risco e o trabalhar no limite são o cenário da dinâmica ensino–aprendizagem.

O próprio espaço utilizado para edificar a "equação competência–cuidado" possui atributos e estigmas específicos. O tempo é abolido para o paciente que é controlado e está sob constante vigilância. Perde–se a noção tanto de um como de outro O espaço é organizado para que as equipes possam ter o controle quase absoluto sobre os pacientes e procedimentos necessários ao cuidado eficiente. Afinal, o "viável" está em risco. O ritmo é intenso. Profissionais e pacientes convivem neste lugar liminar. Localizar–se no último andar do hospital traz uma carga simbólica expressiva ao CTI. A especialidade, seus representantes humanos e tecnológicos representam o "topo", o "supra–sumo", o "ponto vital", o "coração do hospital".

A relação entre essa especialidade médica e as demais não é homogênea. É atividade ao mesmo tempo heróica e insana. Como a autora afirma, "é no contato com os outros setores hospitalares que o intensivista demarca mais claramente seu campo de saber e poder". O interessante é que ser intensivista extrapola as diferenças de status recorrentes entre as categorias profissionais da área da saúde, como a médica e a enfermagem.

Na intercessão entre a vida e a morte, escolhe–se investir ou desistir dos pacientes. Valores sociais, culturais e morais muitas vezes orientam as decisões tomadas pelos profissionais. A técnica pode tornar–se coadjuvante nestes casos. Ser paciente "viável" é arte complexa num mundo que oculta, rotiniza e domestica a morte, ao passo que investe intensamente no prolongamento da vida. Ser profissional que cuida dessas situações liminares é ainda mais agudo.

A classificação dos pacientes elaborada pelos integrantes das equipes do centro analisado enfatiza uma série de características que fundamentam a ciência positiva: objetificação, padronização, disciplina, método e técnica. Há crença no controle das emoções, que devem estar contidas, ou mesmo, inexistentes. Nesse livro é possível reconhecer tensões relevantes que acompanham a própria construção das Ciências Humanas em seu diálogo com as chamadas Ciências da Natureza. Na luta pela conquista do estatuto de ciência, é presença constante a tensão entre objetividade e subjetividade. No fazer antropológico, especificamente, o contato e a proximidade com o "objeto" de estudo é imprescindível, ao passo que em algum momento deste processo se torna importante certo afastamento em relação àquilo que se buscou compreender com tanta intensidade. Este movimento de aproximação e distanciamento é marcado por emoções que levam à reflexão sobre o próprio lugar do pesquisador em campo, como bem assinala a autora.

A leitura suscitou um paralelo entre o paciente ideal – viável, responsivo, anônimo e cooperativo – e o informante ideal: aquele que possibilite a abertura de portas e sirva de mediador entre os "nativos" e o pesquisador. A crença na objetividade das análises continua a perseguir nossas práticas, mesmo que se pense tratar de versões dentre tantas possíveis. Encontram–se em trabalho de campo diferentes tipos de informantes, que podem ser classificados como os "pacientes viáveis" descritos por Rachel Menezes. Em alguma medida, buscam–se informantes que reiterem o saber técnico e a competência, os responsivos, como descreve a autora. Também existem aqueles "anônimos" e "cooperativos", que não devem estar tão perto e nem tão distante que impossibilitem a análise objetiva.

Trata–se de discussão longa e complexa esta, a do fazer antropológico, e é justamente por promover tais reflexões que o livro Difíceis decisões: etnografia de um Centro de Tratamento Intensivo assume lugar especial, não somente para as Ciências da Saúde, mas para todos os interessados em metodologia e pesquisa social.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Nov 2007
  • Data do Fascículo
    2007
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