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O saudável encontro entre fatos e valores: renovando a Saúde Coletiva; reformando a Saúde Pública

RESENHAS E CRÍTICAS BIBLIOGRÁFICAS

O saudável encontro entre fatos e valores: renovando a Saúde Coletiva; reformando a Saúde Pública

André Luis de Oliveira Mendonça

Doutor em Filosofia pelo IFCH/UERJ e pós-doutorando em Saúde Coletiva no IMS-UERJ. Endereço eletrônico: alomendonca@gmail.com

CAMARGO JR, Kenneth R.; NOGUEIRA, Maria Inês (Org.).

Por uma filosofia empírica da atenção à saúde: olhares sobre o campo biomédico.

Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009. 228p.

Desde os idos de 1960, a concepção de ciência de inspiração positivista,1 1 Vale dizer que há um movimento recente, capitaneado por Michael Friedman, cujo projeto consiste em desfazer o que seriam malentendidos históricos acerca da compreensão da tradição positivista, especificamente do positivismo lógico. A assunção básica dessas reconsiderações sustenta que os positivistas não eram defensores de uma racionalidade científica ingenuamente empirista; na verdade, eles costumam ser apresentados como sendo afinados com os autores supostamente críticos de suas ideias (por exemplo, Carnap surge como aliado de Kuhn). Ou seja, é como se nos espantássemos com um fantasma que é fruto da nossa própria criação. predominante até então, vem sendo profundamente modificada, graças ao advento de uma nova tradição de pensamento que não leva mais em consideração somente os aspectos lógico-linguísticos do conhecimento científico, tampouco parte de um padrão historiográfico presentista. Tanto a epistemologia francesa de Bachelard, Koyré, Canguilhem e Foucault, entre outros, quanto a filosofia da ciência anglo-saxã levada a cabo por Kuhn, Feyerabend, Lakatos, Laudan, para citar os mais influentes, desferiram duros golpes no coração do corpo doutrinário positivista, segundo o qual a ciência seria uma forma de conhecimento distinta e superior às demais porque disporia de uma metodologia especial (objetiva, neutra e desinteressada), de viés testabilista, que lhe daria acesso privilegiado à verdade sobre os fatos; outrossim, seria a única esfera da atividade humana na qual há efetivamente progresso, compreendido como desenvolvimento paulatino e linear. Contrapondo-se a esse cenário filosófico, emergiu uma nova paisagem na qual o conhecimento científico aparece com um matiz bem mais diversificado, com destaque para seus aspectos desvalorizados até então (e.g.: traços pessoais, contexto histórico e fatores sociais), ou até mesmo repudiados, por serem reputados como sendo externos à racionalidade científica, além de o crescimento cognitivo gerado pela ciência ter passado a ser concebido por intermédio das noções de descontinuidade, ruptura, revolução, corte etc.

Incorporando os principais preceitos da tradição pós-positivista supracitada, o Programa Forte levou adiante seu projeto por intermédio da formulação de quatro princípios basilares: causalidade, imparcialidade, simetria e reflexividade. Estes princípios nortearam fortemente os trabalhos empíricos realizados entre as décadas de 1970 e 1980 pela chamada sociologia do conhecimento científico, criada com a finalidade ambiciosa de substituir a epistemologia clássica na tarefa de deslindar o conteúdo dito cognitivo da ciência, analisando as "teorias perdedoras" com os mesmos critérios de exame das "teorias vencedoras", pois ambos os lados das dicotomias "verdadeira x falsa", "certa x errada", "objetiva x subjetiva", entre outras, seriam socialmente construídos. A partir do final dos anos 1980, visando a superar as supostamente persistentes fraquezas teóricas - sobretudo as incongruências gravitando em torno do princípio de simetria e a abordagem ainda idealizada e de cunho generalista -, bem como os insatisfatórios resultados empíricos do Programa Forte originário, um grupo de autores começou a despontar como representantes de uma "verdadeiramente nova perspectiva" - sob a designação de science studies -, cujos mais renomados são Bruno Latour, Harry Collins, Peter Galison, Steve Shapin, Karin Knorr-Cetina e Andrew Pickering. Grosso modo, para esse grupo de autores, epistemologia e política (ética) formam um binômio inextrincável.

A bem da verdade, trata-se de um campo em construção com inúmeras vertentes, várias subáreas e cada vez mais simpatizantes, que, a despeito das divergências entre si, partem de alguns pressupostos comuns, dentre os quais se pode sublinhar o de a ciência ser tomada como uma prática local, isto é, uma atividade material, e não apenas etérea, que intervém no mundo natural - inclusive criando e estabilizando fenômenos até então existentes somente em estado bruto na natureza - a partir de um contexto social específico. Um corolário decorrente desse ponto de partida é a tese de acordo com a qual a reconstrução da ciência deve levar em conta seus fatores geralmente considerados externos. Desse modo, os praticantes dos science studies atêm-se aos feitos dos cientistas, e não aos seus ditos. Em outras palavras, eles voltam a atenção especialmente para o processo de construção do conhecimento científico, em vez de se restringirem à análise do seu produto final na forma de divulgação de resultados. Seu interesse reside na ciência tal como se faz, e não como se diz que se faz. Sob a égide desse princípio metodológico, produziram-se trabalhos empíricos que contrastam claramente com a concepção de ciência de inclinação positivista, a ponto de terem ensejado as chamadas guerras das ciências, um acontecimento de significação intelectual e ao mesmo tempo política que, apesar de atravessar um período de trégua, decerto não pode ser visto como tendo findado.

Sem entrar no mérito dessa querela, por ser incompatível com o escopo deste texto, o fato é que, longe de tentarem denegrir a autoridade cultural exibida pela ciência, os praticantes do que prefiro chamar de "estudos da prática científica" almejam apenas defender uma terceira via entre o realismo ingênuo propagandeado em algumas legitimações (ideológicas?) da ciência e o construtivismo social alardeado em algumas "desmistificações" radicais. Para os science studies, ao menos na perspectiva dos autores supracitados, os fatos científicos são reais porque são construídos, normalmente em laboratórios. Ou seja, realismo e relativismo, para usar um antigo vocabulário na falta de um mais apropriado, finalmente convivem em paz, ainda que não perpétua. Na opinião de Latour, o que ele e seus colegas sustentam é um relativismo relativista e um realismo realista. Ao fim e ao cabo, é como se, para eles, o problema não estivesse na ciência em si, mas nas suas representações histórico-filosóficas idealizadas. A propósito, o mesmo Latour decreta que a Ciência (sua representação de tendência positivista) está morta; mas, por isso mesmo, exulta: viva as ciências ("descrição real" fornecida pelos science studies).

Em consonância com esse referencial teórico, o livro Por uma filosofia empírica da atenção à saúde: olhares sobre o campo biomédico se constitui como uma muito bem-vinda novidade em solo brasileiro. Adaptando as discussões atinentes às ciências naturais para a área da saúde, os autores levam a contento a tarefa de lançar uma nova luz sobre a prática biomédica - onde os "fatos científicos" estariam em plena consonância com valores humanos mais amplos -, tendo em vista o objetivo implícito de torná-la a melhor possível. Para tanto, são empregados outros tipos de referenciais, cabendo ressaltar o da própria antropologia médica, assim como o das chamadas "racionalidades médicas", desenvolvido independentemente por Kenneth Rochel (coorganizador/coautor do livro) e por Madel Luz.

Dentre a literatura no âmbito da epistemologia pós-positivista, são utilizadas sobremaneira as noções de paradigma e anomalia cunhadas por Kuhn, a de estilo de pensamento elaborada por Fleck - provavelmente, o autor mais referido do livro -, e as de ideias, marcas e coisas, sem contar as de estilos de raciocínio, de Hacking (filósofo fundador da chamada epistemologia do experimento, assaz afinado com os science studies). Em todos esses casos, em que pesem as nítidas diferenças entre si, está em jogo a assunção de que as observações e as intervenções são condicionadas por um arcabouço teórico prévio que dita, tanto na pesquisa dos cientistas quanto na formação dos neófitos, os compromissos compartilhados (consenso) a serem aquiescidos por determinada comunidade científica, englobando os níveis ontológico, epistemológico, metodológico e axiológico. O não-previsto (fenômeno anômalo) amiúde passa despercebido, ou até mesmo deliberadamente desconsiderado, salvo situações extraordinárias.

Tais conceitos e ideias tornam-se úteis ferramentas na concretização de belas e relevantes pesquisas qualitativas na área da Saúde Coletiva. Daí, aliás, a escolha feliz da expressão "filosofia empírica", tomada emprestada de Anne Marie Mol, contida no título do livro. De fato, o que poderia parecer, à primeira vista, um caso típico de oxímoro - a filosofia seria o campo que se distingue das demais ciências particulares justamente porque não seria empírica, mas, ao contrário, um conhecimento a priori -, ou, ironicamente, um positivismo disfarçado (lembre-se que os positivistas advogavam precisamente a tese de que a filosofia precisaria transformar-se em ciência; ou seja, ela deveria ser, em certo sentido, também empírica), acaba sendo a designação acertada de uma abordagem que se ancora em boas e velhas discussões epistemológicas, mas tão-somente de modo a elucidar situações e problemas concretos do campo biomédico.

Para a consecução da tarefa de verificar a prática biomédica real, isto é, a biomedicina tal como efetivamente se faz, os autores recorreram à metodologia etnográfica, especialmente por intermédio de observações participantes e entrevistas com seus objetos (ou melhor, sujeitos) de estudo. Como deixam patentes as introduções de cada capítulo, tudo foi devidamente ponderado: desde os critérios de escolha do campo a ser investigado até a linha tênue entre a pesquisa objetiva e a necessidade de interferência pessoal (questão sobre a qual voltarei a mencionar adiante). No que tange propriamente aos resultados encontrados, vale dizer que são inúmeras as revelações sobre as várias subáreas da biomedicina, cabendo aqui destacar, por razões óbvias de espaço, as que são, na minha visão, mais interessantes e relevantes.

No capítulo intitulado "Do humano ao número: ideias, marcas e coisas na redefinição da toxoplasmose", Vera Lucia Marques da Silva relata (por que não dizer?) o processo de construção coletiva da toxoplasmose - desde a coleta de sangue de voluntários de uma pesquisa sobre toxoplasmose ocular até o martelo batido pela biologia molecular - acompanhado de perto por meio de seu minucioso trabalho de campo, realizado em duas etapas. Na primeira, ela analisa os procedimentos da pesquisa (eu diria que este capítulo apresenta, portanto, a peculiaridade de ser também uma espécie de "metapesquisa") levada a cabo num hospital do município do Rio de Janeiro, tal como o recurso ao questionário (142 perguntas) aplicado aos participantes e os exames oftalmológicos; na segunda, realizada num laboratório de biologia, investiga as mediações existentes na técnica de extração do DNA, amparando-se sobremodo na noção de referência circulante de Latour. Literalmente, de modo antagônico ao que a epistemologia clássica acreditou, a referência percorre várias instâncias antes de se cristalizar como fato científico. Marques da Silva nos mostra, com nuanças, o percurso de como um ser humano, com todas suas características pessoais, culturais e sociais etc., termina tornando-se tão-somente, por meio do DNA do seu sangue, um número. Sua tese é a de que outras causas - nomeadamente, fatores econômicos, sociais e culturais -, além da estritamente genética, devam ser observadas como determinantes no caso da toxoplasmose.

No capítulo denominado "Caminhos da biomedicina: vivências dos protocolos e evidências da clínica", tendo como campo de observação rodadas diárias de discussão sobre os casos ocorridos, bem como reuniões clínicas semanais, realizadas na Unidade Cardiointensiva Cirúrgica de um hospital do SUS na cidade do Rio de Janeiro, Alice da Costa Uchôa narra uma rica história - calcada também na análise documental do hospital e em entrevistas com informantes-chave -, na qual a tradicional dicotomia "evidência x vivência" perde sua pretensa "evidência", com um trabalho que desmistifica, por assim dizer, a "desmistificação". De fato, ao menos nesse caso específico, aspectos normalmente considerados subjetivos (e.g.: conhecimento tácito), assim como decisões pautadas em valores, aparecem como determinantes da prática dos médicos. Eis aqui subjacente um belo exemplo da díade "dito x feito": a despeito de o discurso biomédico consagrado (protocolos, artigos, livros-texto etc.) coadunar-se fortemente com os moldes do positivismo, o conhecimento nomeado objetivo (evidências) conjuga-se, na sua prática efetiva, com o conhecimento considerado subjetivo (experiências/vivências), amiúde oficialmente desvalorizado - ainda que essa relação não se dê sem tensões.

Outro belo caso que se enquadra na referida antítese é o descrito no capítulo "Negociações ritualizadas da prática obstétrica: exemplos do encontro do saber com o sofrimento", assinado por Vanessa Maia Rangel. Apoiada na observação participante levada a termo numa maternidade pública do município do Rio de Janeiro, a envolvente narrativa da autora nos chama a atenção para vários aspectos importantes presentes na prática obstétrica, lançando mão de alguns exemplos mais ordinários e outras situações, por assim dizer, inusitadas. Por não ser o caso aqui entrar nas minúcias do seu estudo de caso, cabe ressaltar o ponto nevrálgico das descobertas de sua pesquisa, qual seja: a constatação de que, conquanto o paradigma obstétrico tenha como valor prioritário a atenção à vida e saúde do bebê, a prática evidencia que "fatores negociáveis" (na minha interpretação, é como se essa expressão, deliberadamente ampla e ao mesmo tempo precisa, cunhada pela autora, exprimisse a ideia de que as circunstâncias obrigam os protocolos a se tornarem mais maleáveis, sobretudo em casos como os de parto, em que atores humanos estão presentes na performance - o que também, obviamente, não acontece sem que haja tensões) entram em jogo nas situações concretas do parto, onde a dor e o sofrimento das parturientes - fatores praticamente ausentes do paradigma e do estilo de pensamento obstétrico, digamos, oficial - terminam sendo, felizmente, levados em consideração juntamente com os de seus filhos. Isso não quer dizer que a autora não sugira, de algum modo, que a prática obstétrica possa humanizar-se ainda mais.

Maria Inês Nogueira (coorganizadora/coautora do livro), no capítulo "A translação do olhar: da biomedicina à acupuntura", relata os resultados da observação etnográfica das aulas teóricas (especificamente do módulo "Bases da medicina chinesa") e das aulas práticas em ambulatório, ambas ministradas no Instituto de Acupuntura do Rio de Janeiro (IARJ). Trata-se de um estudo diferenciado dos demais contidos no livro, uma vez que não lida diretamente com uma área da biomedicina, mas, sim, com uma prática dita alternativa. Outra diferença, não exclusiva, é que a pesquisa de Nogueira examinou o processo de formação ou de iniciação a um paradigma; no caso em questão, especificamente de indivíduos já moldados pelo paradigma biomédico sendo introduzidos ao paradigma da medicina chinesa. Como já seria de se esperar, a autora traça um panorama das grandes diferenças - e até mesmo incomensurabilidade em alguns pontos específicos - entre os dois modos de se conceber e se praticar a medicina, e do quão difícil é a translação do olhar (a passagem de um paradigma a outro), o que exige esforço e treinamento tenaz.

Na medicina chinesa, há uma valorização da subjetividade do paciente, uma procura por identificação dos padrões de desarmonia (visão integral do ser humano), em lugar da busca de uma causa única (normalmente biológica) da doença, uma hierarquização do diagnóstico, uma prioridade da terapêutica sobre o diagnóstico e uma ênfase grande na prevenção, dentre outras coisas. Não obstante essas diferenças já relativamente propaladas, o que é positivamente surpreendente em seu texto diz respeito ao fato de ela não propor a substituição do paradigma biomédico pelo da medicina chinesa, como é costumeiro em alguns pesquisadores das medicinas denominadas alternativas. Contrapondo-se a essa tendência, a tese de Nogueira consiste, apesar do seu endosso aos aspectos da acupuntura elencados por ela e de seu subtítulo sugerirem outra postura, na defesa pela complementaridade saudável entre essas duas racionalidades médicas.

Também tratando da questão da formação, sendo que dentro do paradigma biomédico, Debora Fontenelle dos Santos narra os fatos transcorridos no ambulatório de Aids do Serviço de Doenças Infecto-Paratárias (DIP) de um hospital universitário da cidade do Rio de Janeiro, a partir da observação do atendimento realizado por três médicos residentes do serviço. Como o próprio subtítulo, apesar de interrogativo, do seu capítulo denominado "HIV/Aids e os médicos em formação: aprendendo a cuidar de vírus ou pessoas?" já sugere, a formação dos médicos nesse tipo de especialidade acaba, curiosamente, privilegiando os aspectos biomédicos em detrimento dos fatores subjetivos, sociais e econômicos dos pacientes. Ou seja, aprende-se a cuidar mais do vírus do que propriamente das pessoas infectadas por ele, o que gera ineficácia e, simultaneamente, insatisfação não apenas nos pacientes, mas também nos próprios médicos em formação, que também não deixam de ser uma espécie de vítima dessas circunstâncias. A proposta de Santos é clara e direta: por uma formação que considere a multicausalidade da Aids. Isso significa que os fatores subjetivos, culturais, econômicos, entre outros, deverão se somar aos aspectos estritamente biomédicos, tanto na formação dos médicos quanto na sua prática real.

No capítulo intitulado "Quando a lesão não aparece: como médicos lidam com sofredores de sintomas indefinidos", Carla Ribeiro Guedes chama a atenção, de forma bastante perspicaz, para o contraste entre o conhecimento objetivo valorizado na formação e a "sabedoria prática" adquirida no decorrer da atuação profissional. Como o título do texto indica, o objeto de sua pesquisa circunscreveu-se nos limites da análise acerca das estratégias empregadas pelos médicos no tratamento dos pacientes que eles costumam chamar de "dispépticos funcionais" (na maioria dos casos concretos, trata-se de uma designação pejorativa, insinuando que o paciente não tem doença alguma, ou ao menos lesão física nenhuma, o que, para eles, costuma significar a mesma coisa), na ausência de uma denominação mais precisa.

Realizada num ambulatório de gastroenterologia de um hospital-escola localizado na cidade do Rio de Janeiro, sua observação participante centrou-se em seis residentes e um médico chefe do serviço, sob o pseudônimo de Luís. Condicionados pelo paradigma biomédico, que identifica doença com lesão biológica, os residentes dessa especialidade acabam não notando (a autora ressalva que, mais do que não perceber outros fatores atuando no problema enfrentado pelo paciente, os formandos são treinados para desconsiderá-los) razões de outras ordens tão relevantes quanto os aspectos propriamente biomédicos. Sendo assim, costumam receitar medicamentos (sobremaneira o Omeprazol) que acabam não surtindo o efeito esperado (Guedes chama a atenção para o fato de que os próprios pacientes, também fortemente influenciados pelo paradigma biomédico hegemônico ou pelo fenômeno da medicalização social, anseiam sempre pela prescrição de um remédio).

Além da afirmação frequente de que os pacientes sem lesão biológica não têm doença grave alguma e da prescrição de medicamentos, os residentes adotam pelo menos outras três estratégias padronizadas e, em geral, ineficazes, a saber: recomendação de dietas; encaminhamento para a psiquiatria; e classificação das queixas como "doenças funcionais". Em contraposição, Luís concede a devida importância aos fatores subjetivos, psicológicos, sociais, culturais, entre outros, nas suas consultas; ele acaba atuando como se fosse um terapeuta. Todavia, o próprio Luís acaba identificando sua forma de atuar como se fosse uma característica pessoal, e consequentemente, não passível de ser aprendida. A tese sustentada por Guedes é que, ao contrário, esses referidos fatores sejam incorporados explicitamente, e não apenas de modo tácito, tanto pela prática, quanto pela formação biomédica.

Se praticamente todos os trabalhos de campo foram conduzidos em hospitais, a pesquisa concretizada por Edna Aparecida Barbosa de Castro, apesar de percorrer várias instituições (rede de proteção, para usar sua própria expressão), deteve-se especialmente na observação das famílias (doze no total) que cuidam dos pacientes com doenças crônicas após estes receberem alta. Sob o título "Tecendo a rede de proteção após a queda: o cuidado depois da alta", seu capítulo centra-se no caso da família de D. Vanda (pseudônimo), vítima de um segundo derrame cerebral que lhe deixou, aos 53 anos, completamente dependente dos cuidados de terceiros, até mesmo para se alimentar. Sem omitir as dificuldades e os conflitos no seio dessa família real e comum da cidade de Juiz de Fora, a autora relata como os familiares de D. Vanda (especialmente os filhos, a nora e uma sobrinha) acabam desenvolvendo modos próprios de cuidar, tendo em vista seu conforto e bem-estar. Jane, Hélcio e Márcia (em ordem, nomes fictícios da sobrinha, filho e nora) desempenham as funções de cuidador - auxílio nas atividades físicas, desde a higiene até a alimentação -, de administrador e de "supervisora", respectivamente.

Depois de aludir a várias questões interessantes, como as da tensão entre sentimentos de afetividade e responsabilidade social por parte das famílias, da (des)hospitalização (é bom para os pacientes nessas situações se recuperarem em casa, mas, em contrapartida, há uma oneração para as famílias ainda não muito bem equacionada, pondera Castro) e da responsabilidade do Estado no que tange à saúde da família, a autora conclui por um planejamento no setor da saúde, por parte do SUS, que não perca de vista as especificidades socioeconômicas das famílias.

Também observando o interior das famílias que convivem com membros que possuem doenças crônicas, no capítulo "Crônica do sofrimento na vida cotidiana: dois relatos sobre crianças com fibrose cística", Priscila Menezes de Aragão narra duas histórias comoventes: uma sobre a vida cotidiana de Luana (nome fictício de uma menina de 11 anos, residente em Duque de Caxias) e outra sobre a de Júlia (nome fictício de uma menina de 7 anos, residente na Taquara, Zona Oeste do Rio de Janeiro). Valendo-se de conceitos como o de "mundo da vida" concebido por Schutz, a autora acompanhou essas crianças em seu contexto social mais amplo (no seio da família, no colégio, nas clínicas etc.), tendo inclusive realizado entrevistas com seus familiares e profissionais das escolas. A constatação de Aragão não deixa margem para dúvidas: o sentido atribuído à doença, sobretudo pela família, desempenha papel preponderante na construção da identidade da própria criança. No caso de Luana, o fato de ela ter na figura da mãe praticamente a única pessoa a lhe prestar cuidado domiciliar faz com que essa mesma mãe tenha uma relação com a filha determinada quase que exclusivamente pelo viés da doença. Ao passo que, no caso de Júlia, cujo ambiente familiar conta com, além da mãe, a presença de uma tia e dos avós maternos, a menina possa levar uma vida mais integral, na qual a doença não impede que ela leve uma vida relativamente normal. Daí a pertinente proposta defendida pela autora - tendo em vista uma harmonia maior entre a necessidade de cuidados intensivos e a salutar ampliação de horizontes do mundo da vida da criança - em prol de uma rede socioafetiva a mais abrangente possível.

Além desses capítulos de conteúdo empírico, o livro conta com uma bela e ponderada reflexão acerca do referencial teórico subjacente aos estudos de caso e com uma arguta discussão sobre os resultados alcançados. Assinando o primeiro ("A filosofia empírica da saúde") e o último ("Um olhar sobre os olhares") capítulos do livro, Kenneth Rochel de Camargo Jr. (orientador das pesquisas de mestrado e doutorado cujos resultados foram, de certa forma, sintetizados nos capítulos do livro), ressalta a relevância dos science studies para a Saúde Coletiva, no sentido da obtenção de uma análise crítica da biomedicina mais adequada. Chama a atenção para a imbricação entre o aspecto epistemológico e ético dessa prática, bem como para a necessidade de uma abordagem local; assume a dívida com a epistemologia comparativa de Fleck; defende a importância do recurso à metodologia qualitativa, principalmente em tempos de hegemonia das pesquisas epidemiológicas quantitativas; e discute os "achados" de cada capítulo em particular, chegando à seguinte conclusão geral:

Giramos o caleidoscópio várias vezes, e as imagens tomam forma à nossa frente. Valendo-se de um conjunto restrito de elementos, infinitas configurações se desdobram na desunidade de um saber-prática complexo, e, por essa razão, sob a mesma injunção posta por Fine para a ciência: não há uma teoria geral que possa abarcar a totalidade desses enactments. (p. 222).

Após essa pálida reconstrução das complexas e ricas narrativas contidas no livro e rápida menção aos dois capítulos de teor mais teórico, gostaria de suscitar, sucintamente, algumas reflexões antes de concluir. Primeiramente, retomo um tema já aludido: o da delicada linha demarcatória entre a objetividade da pesquisa e a interferência pessoal no processo de observação. Recorrendo aos hoje já clássicos da etnografia cultural - de Malinowski a Geertz - e da etnografia médica para ajudar na realização de seus trabalhos de campo, praticamente todas as autoras admitem ter, em algumas situações específicas, interferido conscientemente nos casos observados.

Esses episódios são, a meu ver, narrados com coragem e franqueza exemplares. As intervenções feitas foram ensejadas sobremaneira pelo fato de as autoras, em quase todos os casos, serem também profissionais da área sob análise. Como fica, perguntariam alguns teóricos mais tradicionais, a objetividade do trabalho de campo quando o pesquisador não se limita a observar, da forma mais neutra e imparcial possível, os fatos e os atores em questão? Tenho certeza de que a réplica a esse tipo de objeção seria unânime: o imperativo ético do cuidado à saúde prevalece sobre qualquer valor puramente epistêmico existente, por mais legítimo que ele seja.

Movidas por este imperativo, as pesquisadoras não se abstiveram de auxiliar - seja os pacientes ou familiares, seja os médicos ou residentes - quando as circunstâncias assim as compeliram. Independentemente do argumento de ordem ética, eis uma questão para se pensar: se, por um lado, as pesquisadoras se amparam num referencial teórico no qual se defende justamente que não há neutralidade e imparcialidade em sentido estrito e se, por outro, elas lutam contra a valorização exclusiva dos princípios epistemológicos biomédicos (por exemplo, objetividade) em detrimento de aspectos primordiais da subjetividade humana, como manter a coerência sem deixar de intervir nos casos "inevitáveis"? Essa parece ser uma questão periférica, mas creio que envolve implicações fundamentais, tanto no nível teórico do contexto dos science studies (por exemplo, o princípio da reflexividade - aplicar às ciências humanas os mesmos princípios empregados na análise das ciências naturais -, em jogo aqui, ainda não é suficientemente satisfatório no interior do campo), quanto no trabalho empírico propriamente dito.

Outro tópico que gostaria de destacar diz respeito ao papel das micronarrativas na construção de uma imagem mais "realista" da biomedicina. Decerto, a abordagem localista não constitui, propriamente falando, uma novidade na área. De qualquer forma, penso que a influência dos science studies contribuiu beneficamente para a elaboração de histórias que não se prendem ao padrão internalista tradicional, tampouco recaem sobre o radicalismo externalista. Sem contar o fato de as microanálises produzidas pelas autoras trazerem à baila dados e revelações que jamais seriam possíveis numa investigação mais generalista, além da riqueza de detalhes surpreendentes. Podemos dizer que se trata de narrativas relativamente equilibradas sob esse aspecto, embora eu ressinta um aprofundamento maior das questões mais propriamente técnicas, até porque as pesquisadoras - por também atuarem, no geral, na área sob análise - abordariam as questões de "conteúdo propriamente cognitivo" com conhecimento de causa.

Seja como for, após a leitura do livro, posso afirmar que sei algo mais sobre toxoplasmose, HIV/Aids, "doença funcional", fibrose cística, prática obstétrica etc. Com isso, não estou sugerindo uma ênfase maior nos aspectos internos da biomedicina - o que seria inclusive contraproducente com a proposta dos autores -, talvez apenas uma abordagem o mais simétrica possível. Simetria esta que não exclui a necessidade de estender, no meu julgamento, o chamado contexto externo. Parafraseando Latour, quiçá não seja pertinente, em trabalhos posteriores, seguir os médicos pela sociedade afora, e não apenas os pacientes, com o intuito de fazer valer verdadeiramente o binômio local/global.

Deixando de lado essas questões, concluo minhas considerações sobre este tema da função relevante desempenhada pelas micronarrativas presentes no livro afirmando que, em que se pesem a gravidade e urgência dos temas, as histórias contadas são todas muito agradáveis de serem lidas, além de tocantes em alguns casos. E o mais importante: ler histórias tão vivazes e convincentes talvez possa contribuir, ao menos bem mais do que as meras explanações teóricas de cunho generalista, com a mudança de concepção acerca da biomedicina, tanto no sentido de como ela é de fato, quanto no de como ela deveria ser de direito.

Por fim, quero empreender uma breve reflexão crítica sobre um ponto já sublinhado em meus resumos dos capítulos do livro, qual seja: praticamente todos os estudos terminam com uma proposta de alteração da prática de determinada subárea biomédica. O referencial teórico empregado pelas coautoras rompe, entre outros epítetos, com as noções de neutralidade, imparcialidade, objetividade - pelo menos com suas acepções tradicionais e não causa estranheza (ao contrário, a atitude demonstra louvável coerência) que elas não se restrinjam a fornecer narrativas de conotação meramente descritiva. Os capítulos fecham, via de regra, "fechando" com a ideia de que determinada prática precisa ser melhorada, incorporando outros elementos - sobremodo o princípio da integralidade. Isso pressupõe que não se pretende jogar a biomedicina fora em prol de uma prática médica alternativa qualquer, mas tão-somente se quer mostrar que ela apresenta limitações passíveis de serem transpostas, desde que se abra espaço para outros aspectos da pessoa humana que não os de ordem meramente biológica. Trata-se, portanto, de um posicionamento reformista, e não revolucionário.

Ora, já que o intuito legítimo visa a reformas, penso que os teóricos adotados não são suficientemente propícios na concretização desse objetivo. A despeito de, por exemplo, Kuhn, Hacking e Latour serem imprescindíveis na formulação de uma nova imagem de ciência tal como se faz, eles não são, na minha forma de avaliar a questão, autores propriamente reformistas. (Aliás, os três reconhecem isso explicitamente). Sem dúvida, eles nos legaram um bom diagnóstico da prática científica, mas não nos forneceram uma terapia nos pontos onde esta se faz necessária. Talvez seja este um dos problemas pendentes a ser cuidado em futuros trabalhos, o de uma discussão mais aprofundada sobre qual modalidade de normatividade (por exemplo, prescritiva ou avaliativa) os autores querem defender, além da própria problematização da legitimidade de uma proposta normativa dentro desse contexto. Para tanto, no meu modo de olhar esses impasses, outros autores de inclinação mais genuinamente reformista deverão se somar aos já incorporados até aqui.

Do exposto, creio estar claro que o livro em questão apresenta todos os ingredientes de novidade e originalidade para torná-lo um marco na Saúde Coletiva do Brasil, além de poder contribuir com o ideário - ou sua efetiva concretização - de reformas na Saúde Pública.

Ao refletir sobre qual seria seu público-alvo, lembrei-me do subtítulo ("Um livro para todos e para ninguém") da obra-mor do filósofo alemão Nietzsche, Assim Falava Zaratustra. Parafraseando-o, diria que Por uma filosofia empírica da atenção à saúde: olhares sobre o campo biomédico é "um livro para todo e qualquer". Com efeito, ele pode ser prestimoso para os profissionais da saúde, na medida em que eles poderiam refletir mais adequadamente sobre sua própria prática e, por conseguinte, teriam a ocasião de melhorá-la; para os pesquisadores da Saúde Coletiva, uma vez que travariam contato com uma literatura pouco conhecida, de viés marcadamente interdisciplinar; e para o cidadão comum em geral - que precisa recorrer, eventualmente, aos serviços de saúde -, porquanto poderia tomar mais consciência do que vem a ser um cuidado à saúde verdadeiramente mais humano e integral.

Nota

  • 1
    Vale dizer que há um movimento recente, capitaneado por Michael Friedman, cujo projeto consiste em desfazer o que seriam malentendidos históricos acerca da compreensão da tradição positivista, especificamente do positivismo lógico. A assunção básica dessas reconsiderações sustenta que os positivistas não eram defensores de uma racionalidade científica ingenuamente empirista; na verdade, eles costumam ser apresentados como sendo afinados com os autores supostamente críticos de suas ideias (por exemplo, Carnap surge como aliado de Kuhn). Ou seja, é como se nos espantássemos com um fantasma que é fruto da nossa própria criação.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Dez 2009
    • Data do Fascículo
      2009
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