Acessibilidade / Reportar erro

O SUS no estado do Rio de Janeiro

O SUS no estado do Rio de Janeiro

Ana Luiza D'Ávila Viana; Eduardo Levcovitz; Mário Roberto Dal Poz (organizadores)

Há mais de duas décadas, o Brasil vive uma extraordinária experiência de reformas e redesenho do seu sistema de saúde. Um intenso processo de sucessivas mudanças na política de saúde, iniciado ainda na década de 70 e acelerado na década seguinte, mais especificamente a partir de 1983, culminou na emergência do Sistema Único de Saúde (SUS), como peça integrante da própria Constituição Federal de 1988. Na década seguinte, reformularam-se os papéis e funções dos entes governamentais na oferta de serviços e gerência do sistema de saúde, e os critérios de alocação e transferência de recursos. Foram criadas ainda novas instâncias decisórias (como os Conselhos de Saúde nos diferentes níveis de governo) e de pactuação e integração dos gestores da política nos planos federal, estadual e municipal (Comissões Intergestores Tripartite e Bipartite).

O SUS conformou o novo modelo público de prestação de serviços e ações de saúde em nível nacional, incorporando novos instrumentos gerenciais, técnicos e de democratização da gestão. Em sua concepção original, visava a integrar os subsistemas de saúde pública e de assistência previdenciária ­ os ramos da medicina preventiva e curativa - bem como os serviços públicos e privados, em regime de contrato ou convênio, em um sistema único e nacional, de acesso universal e igualitário. Previu-se um comando único em cada nível de governo, segundo as diretrizes da descentralização administrativa e operacional, do atendimento integral à saúde e da participação da comunidade com vistas ao controle social.

A implementação do SUS iniciou-se nos primeiros anos da década de 90, após a promulgação da Lei Orgânica da Saúde, e de várias normas e portarias emitidas pelo Ministério da Saúde - as Normas Operacionais Básicas (NOBs) -, como instrumentos de regulamentação do sistema. Sublinhe-se que as normas definem a forma de transferência de recursos interinstâncias de governo e as modalidades de pagamento dos serviços de saúde, além de instruírem o processo de descentralização e de construção de uma rede de serviços capaz de operar com racionalidade sistêmica.

Entretanto, dadas as características do federalismo brasileiro e a evolução das práticas e instituições federativas nos anos mais recentes, inúmeros percalços acompanharam esse processo de descentralização e de construção de um poder gestor municipal sistemicamente integrado na área da saúde.

As diferentes análises realizadas sobre o tema das relações intergovernamentais - seja as que dão prioridade à distribuição de recursos ou às relações político-administrativas - são convergentes, no sentido que identificam três grandes períodos marcados por uma dinâmica de aperto/ afrouxamento de controles políticos e fiscais 1 1 Kugelmas, E., Sola. Recentralização/Descentralização dinâmica do regima federativo no Brasil dos anos 90. São Paulo: Tempo Social, 2000. : um primeiro, de alto centralismo, característico da fase do regime autoritário; outro, que caminhou no sentido da descentralização e da formação de um novo modelo federalista; por fim, um terceiro, de indefinições quanto a um novo modelo de federação, porém com alguns traços de recentralização e marcante ausência de mecanismos cooperativos, denominada de federalismo predatório

Segundo Abrucio2 2 Abrucio, F., L. Os Barões da Federação. Os govermídores e a redemocratização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1998. , o modelo anterior - denominado "unionista-autoritário", que vigorou como forma de relação intergovernamental no período do regime militar - estava assentado sobre três pilares: o financeiro, o administrativo e o político. A centralização de receitas pelo Executivo federal, a uniformização administrativa nos três níveis de governo e o controle das eleições para governadores asseguravam a predominância da união sobre os demais entes federados.

A passagem para um novo modelo de relação intergovernamental teve início na segunda metade da década de 70. Com as eleições diretas para os governos estaduais em 1982 - eleições fundadoras da democracia -, houve uma mudança importante no sentido da formação de um novo modelo, denominado pelo autor de "federalismo estadualista". O novo modelo implica o poder dos governadores ao longo da década de 80, assentado sobre: a coincidência temporal entre as crises do Estado desenvolvimentista e a do regime militar; o contínuo fortalecimento financeiro das unidades subnacionais; o papel dos governadores na transição democrática; a importância das eleições de governador no sistema político, e a crise do presidencialismo brasileiro durante os anos 80 e começo dos 90.

Segundo ele, o resultado dessa combinação de crises foi que o Executivo federal e a Presidência da República perderam forças perante o Congresso Nacional e a união perante os estados. Durante toda a década de 80, as unidades subnacionais aumentaram sua participação nas receitas nacionais, a partir da Emenda Passos Porto, em 1983, o que seria sacramentado na nova Constituição federal de 1988: "a crise financeira do Governo federal, no início da década de 80, a conquista dos governos estaduais pela oposição; o papel dos governadores na transição e, por fim, as regras estabelecidas pela Constituição de 1988, destruíram o antigo modelo de federalismo"3 3 Abrucio (1998: 107). .

Entretanto, como ressalta Abrucio, a descentralização no Brasil se fez sobre um padrão perverso de políticas públicas, pois nem a União conseguiu governar esse processo, nem os estados mudaram suas formas de fazer política. O autor identifica nos estados um modo não-republicano de se fazer política, baseado na não-equipotência entre os poderes - Executivo, Legislativo e Judiciário -; na politização da administração pública estadual; no fato de o sistema eleitoral ser dependente do governo estadual; na ausência de contrapesos regionais; na baixa visibilidade política; e na neutralização dos órgãos fiscalizadores estaduais. Assim, o poder dos governadores se alicerça numa rede de lealdade (que deve vigorar nas eleições), vinculada à distribuição de cargos do Executivo estadual e a montagem de uma estrutura clientelista junto aos prefeitos e líderes locais.

Os municípios assumiram papel mais definido do que os estados na distribuição das atribuições governamentais: primeiro, porque o discurso de descentralização no Brasil teve uma feição municipalista (justificada pelo fato de a descentralização induzir a uma maior participação e eficiência) e, segundo, porque a população "cobra" mais de prefeitos do que de outros dirigentes.

Outro estudo4 4 Couto e Silva. M. M. A. O processo de endividamento dos Estados problemas e limites à descentralização e à autonomia. Dissertação (Mestrado em Economia) ­ Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1998. recente sobre o processo de mudança nas relações intergovernamentais, do ponto de vista fiscal-financeiro5 5 As relações intergovernamentais se estabelecem em torno das transferências tributárias; das transferências não-tributárias e dos empréstimos e financiamentos. , aponta que a tendência à descentralização - manifestada, na Constituição de 1988, pela autonomia dos governos estaduais no campo fiscal; discriminação das receitas tributárias de cada nível de governo; aumento da participação dos governos subnacionais na carga tributária e constituição da seguridade social ­ foi revertida na década de 90. A reversão ocorreu porque: i) houve a apropriação, pelo Orçamento Geral da União, dos recursos previstos para o financiamento da Seguridade; e ii) pelos desequilíbrios financeiros dos governos subnacionais.

Segundo o estudo, a insustentabilidade do processo de descentralização decorre da fragilidade da base de sustentação fiscal dos estados. A frustra~ ção da descentralização é irmã siamesa do ajuste fiscal: "no Brasil, este processo se dará tanto pela recentralização fiscal propiciada pelo crescimento da participação das contribuições sociais na receita federal (e a decorrente frustração das políticas sociais descentralizadoras - saúde e educação), quanto pelas soluções encaminhadas para a superação da crise financeira dos governos subnacionais"6 6 Couto e Silva (1998: 15) .

Assim, frustra-se a proposta da descentralização porque:

• a previsão de aumento da pmticipação das instâncias subnacionais nos fundos de participação não ocorreu: de 1988 a 1996 caiu de 21 % para 15% a participação das instâncias subnacionais na receita tributária da União porque os tributos partilhados (IR e IPI) não acompanharam a evolução dessa receita;

• os estados perderam autonomia, dados seus níveis de endividamento crescentes;

• os recursos da Seguridade foram contigenciados (primeiro, no período inflacionário, através dos atrasos na liberação; segundo, depois da estabilização, pela criação do FSE e posterior FEF). A Seguridade tornou-se assim uma variável de ajuste do processo de estabilização.

Em suma, o processo de territorialização das políticas públicas, concomitante às mudanças no perfil da urbanização brasileira, e o processo de incremento de recursos para as instâncias subnacionais, ao lado da democratização, são fatores que desencadearam um novo ciclo descentralizante, a partir do início dos anos 80. Esse movimento culmina na Constituição de 1988 e, nos anos 90, assiste-se a uma tendência recentra1izadora do ponto de vista fiscal e político e uma fase de transição a um novo pacto federativo.

Essa indefinição - ao lado da recentralização de recursos, da permanência de antigas formas de se fazer política e administrar, da ausência de ações coordenadas (nos três níveis de governo) e, sobretudo, de um real enfrentamento da reforma do Estado dentro de uma perspectiva federalista - resulta em padrões muito diferenciados de políticas setoriais.

Do ponto de vista das instâncias subnacionais, esses três períodos são marcados, primeiro, por uma fase embrionária de assunção, pelos municípios, de responsabilidades na área social (pressionada pelo crescimento da demanda por serviços), no início da década de 80; segundo, por um período que teve como característica ações coordenadas dos três níveis de governo nil implementação de algumas políticas (saúde, por exemplo), após a Constituição federal de 1988 e as constituições estaduais e leis orgânicas municipais; e finalmente um terceiro, de recentralização (fiscal e administrativa), cuja outra face é o insulamento municipal.

Porém, nesse último período, a política de saúde, através de inúmeros instrumentos (como as comissões intergestores, as transferências automáticas per capita - PAB fixo e variável - e os incentivos ao aprendizado institucional, através do processo de habilitações dos municípios), procurou superar contradições e conflitos inerentes às relações intergovernamentais geradas dentro de um quadro de federalismo predatório.

Lembremos ainda que a idéia de sistema desenhado pelo SUS é, na verdade, a concretização de uma experiência de federalismo cooperativo, pois o sistema é constituído por diferentes ações de diferentes instâncias governamentais, redesenhadas segundo uma proposta de regionalização que visa à otimização dos recursos disponíveis. Portanto, as relações intergovernamentais - em um sentido amplo, isto é, do ponto de vista do financiamento, da administração e da política - devem ser cooperativas e capazes de solucionar conflitos.

Por isso mesmo é que contextos sociais e culturais mais amplos explicam muitas vezes o sucesso de políticas setoriais em determinados espaços/ territórios geográficos específicos, e menos figurinos institucionais prévios, como já foi assinalado por Kugelmas & Sola7 7 Op. cit. .

Assim, a alta heterogeneidade socioeconâmica, política, cultural, demo gráfica e epidemiológica produz modelos próprios de saúde (regionais ou locais). Esses modelos, por sua vez, são identificados por um rol de características singulares, que só podem ser apreendidas a partir de estudos dirigidos para o exame dessas mesmas realidades, uma vez que as configurações locais são dependentes de inúmeras variáveis. Neste caso destacam­ se as formas anteriores ou pretéritas de gestão e organização dos serviços; os arranjos políticos e as formas de expressão dos interesses no plano regional; as formas de relacionamento entre as esferas de poder (Executivo, Legislativo e Judiciário); o grau de associativismo e de capital social criados e desenvolvidos e, por fim, os perfis de financiamentos e gastos locais em saúde.

Os estudos que ora apresentamos nesta coletânea se inscrevem, justa-o mente, nessa perspectiva. São artigos produzidos a partir de seis dissertações de mestrado e uma tese de doutorado, inscritas e defendidas no Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), e de uma tese de doutorado defendida na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/ FIOCRUZ). As oito investigações têm como ponto comum a discussão de aspectos daimplementação do SUS no Estado do Rio de Janeiro, com o intuito, bem-sucedido, de apreender as especificidades e complexidades próprias do estado no processo de reforma da ação pública na área de saúde.

Quanto ao objeto analisado, os estudos se distinguem. O trabalho que abre a coletânea é um estudo geral da política de saúde no estado (de 1975 a 1994), cujos objetivos são descrever a herança deixada pela fusão do Estado da Guanabara (ex-Distrito Federal) com o Estado do Rio de Janeiro, em 1975, na organização dos serviços de saúde e nas práticas das instituições de saúde do (novo) estado (as secretarias estadual e municipais de Saúde do atual Estado do Rio de Janeiro) e discutir suas conseqüências para a implantação de uma rede regionalizada e hierarquizada de serviços de saúde, orientada para assistência básica e ações preventivas, como propõe o SUS.

O segundo e o terceiro estudos pretendem analisar a implantação de reformas na área hospitalar do município do Rio de Janeiro e a construção da intergestão (gestão estadual e municipal), como estabelece a NOB de 1993, que cria as Comissões Intergestores Bipartites (onde estão representados o estado e os municípios), visando à emergência de pactos e ações complementares e não-concorrentes, entre as duas instâncias, na área da saúde. Esses três primeiros trabalhos compõem o primeiro volume da publicação.

Um estudo sobre as políticas e a gestão de recursos humanos em saúde no estado, com ênfase na questão da regulação e abarcando um longo período (1984 a 1995), abre o segundo volume. Segue-se um artigo que analisa aspectos específicos da política - os consórcios intermunicipais de saúde. E, finalmente, três estudos sobre a municipalização em saúde, cujo primeiro tem como objetivo discutir as relações entre a política federal e a micropolítica e suas repercussões no espaço local; o segundo discute a saúde bucal como política de saúde e a coletânea se completa com um estudo abrangente sobre um sistema municipal de saúde que evoluiu de forma satisfatória do ponto de vista do sistema, sem alcançar, entretanto, a reforma das instituições (desse mesmo sistema).

Esse conjunto de estudos oferece ao leitor uma visão abrangente das potencialidades e percalços do processo de implementação das reformas da política de saúde no Estado do Rio de Janeiro e pode, ainda, servir de guia para futuras proposições de política. Além disso, em virtude de os trabalhos apresentarem diversas metodologias e métodos próprios de investigação para contextos locais, o resultado é um rico instrumento de aprendizado para elaboração de novos estudos com características regionais.

Certamente será leitura obrigatória tanto nos cursos de graduação para profissionais de saúde, quanto de pós-graduação e extensão, além de fül1alecer linhas de investigação desse tipo nas instituições formadoras do estado.

Finalmente, acreditamos que a edição dos artigos contidos nessa coletânea, em dois números especiais de Physis, inaugura uma nova fase para a revista e a perspectiva do incremento de linhas de pesquisa com enfoque regional, no Departamento de Planejamento e Administração em Saúde e no próprio Instituto de Medicina Social.

  • 1 Kugelmas, E., Sola. Recentralizaçăo/Descentralizaçăo dinâmica do regima federativo no Brasil dos anos 90. Săo Paulo: Tempo Social, 2000.
  • 2 Abrucio, F., L. Os Barőes da Federaçăo. Os govermídores e a redemocratizaçăo brasileira. Săo Paulo: Hucitec, 1998.
  • 4 Couto e Silva. M. M. A. O processo de endividamento dos Estados problemas e limites ŕ descentralizaçăo e ŕ autonomia. Dissertaçăo (Mestrado em Economia) Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1998.
  • 1
    Kugelmas, E., Sola. Recentralização/Descentralização dinâmica do regima federativo no Brasil dos anos 90. São Paulo: Tempo Social, 2000.
  • 2
    Abrucio, F., L. Os Barões da Federação. Os govermídores e a redemocratização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1998.
  • 3
    Abrucio (1998: 107).
  • 4
    Couto e Silva. M. M. A. O processo de endividamento dos Estados problemas e limites à descentralização e à autonomia. Dissertação (Mestrado em Economia) ­ Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1998.
  • 5
    As relações intergovernamentais se estabelecem em torno das transferências tributárias; das transferências não-tributárias e dos empréstimos e financiamentos.
  • 6
    Couto e Silva (1998: 15)
  • 7
    Op. cit.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2001
    PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro - UERJ, Rua São Francisco Xavier, 524 - sala 6013-E- Maracanã. 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: (21) 2334-0504 - ramal 268, Web: https://www.ims.uerj.br/publicacoes/physis/ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: publicacoes@ims.uerj.br