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Encenando a modernização europeia: Toni Erdmann, de Maren Ade

Staging the European modernization: Toni Erdmann, by Maren Ade

Resumo

Este artigo apresenta uma leitura do filme alemão Toni Erdmann (2016), dirigido por Maren Ade, a partir da indagação a respeito dos modos através dos quais ele analisa os processos contemporâneos de modernização na Europa. Para tanto, será feita também uma reflexão sobre a apropriação que o filme faz de certos modos de encenação épica propostos por Bertolt Brecht. A parte final do artigo sugere uma aproximação entre o filme e a peça Mãe Coragem e seus filhos (Mutter Courage und ihre Kinder, 1939).

Palavras-chave:
Toni Erdmann; modernização; cinema alemão; Bertolt Brecht; teatro épico

Abstract

This paper aims to analyze the German film Toni Erdmann (2016), by Maren Ade, in order to look at the way in which it probes into contemporary modernization processes in Europe. To do so, we also propose a reflection about the film’s appropriation of some of the elements of epic dramaturgy proposed by Bertolt Brecht. The final part of the essay suggests an approximation between the film and the play Mother Courage and her children (Mutter Courage und ihre Kinder, 1939).

Keywords:
Toni Erdmann; modernization; German cinema; Bertolt Brecht; epic theatre

1 Introdução

As imagens da Alemanha que têm circulado recentemente nos meios de comunicação internacionais - tanto aquelas que registram o papel central do país na decisão dos destinos da União Europeia, quanto aquelas que mostram a chegada de multidões de refugiados em diversas cidades alemãs - parecem ter pouco impacto sobre a sequência inicial de Toni Erdmann (Ade, 2016), o filme alemão mais celebrado pela crítica nos últimos anos. Os espectadores atraídos pelas notícias do sucesso da película em diversos festivais importantes de cinema encontrarão nesse início uma situação aparentemente trivial, na qual a câmera estática mostra a chegada de um jovem carteiro com um pacote endereçado a Winfried Conradi (Peter Simonischek). O enquadramento é fixo e as superfícies achatadas, pois há pouco espaço no quintal da casa para que a câmera possa escolher ângulos ou se mover livremente. Após um tempo de espera excessivamente longo para os padrões industriais de edição, tem início o diálogo entre os dois personagens. Enquanto o jovem carteiro quer apenas cumprir sua tarefa, Winfried atravanca o caráter pragmático da transação ao insistir que o pacote pertence ao irmão Toni, que acabou de sair da prisão, onde cumpriu pena por enviar bombas pelo correio. Se não completamente alienado do sucesso econômico do país nas últimas décadas, Winfried parece estar, a julgar pela aparência desgrenhada, em suas margens mais distantes. As tomadas que mostram a reação espantada do carteiro são feitas por uma câmera muito próxima das costas e ombros de Winfried, que efetiva o jogo de campo/contracampo, mas ao mesmo tempo enfatiza a sensação de restrição espacial e de claustrofobia. Quando Toni finalmente aparece, todo tempo reclamando que o pacote com produtos eróticos era claramente o resultado de algum erro, o espectador percebe que tudo não passou de uma farsa, pois é Winfried fantasiado que surge à porta. O carteiro, interessado em se esquivar da situação embaraçosa, ainda insiste em manter certo profissionalismo desinteressado, enquanto Toni/Winfried desenvolve seu quadro cômico. Finalmente, a atuação é interrompida pela chegada de Lukas (Lennart Moho), um aluno adolescente que anuncia que tarefas mais urgentes o forçarão a interromper suas aulas particulares de piano. O carteiro, que até então havia feito o papel de uma plateia apática para as diabruras do nosso artista-protagonista, finalmente recebe uma gorjeta e parte. O papel especial de mensageiros de todos os tipos desde a tragédia grega (o portador de notícias boas ou ruins) é ironicamente substituído por uma transação financeira efêmera e indiferente, que coloca fim a qualquer esperança de desenvolvimento pessoal.

A sequência aparentemente simples pode desconcertar o público que esperava, da parte da mais famosa diretora de uma jovem geração de cineastas berlinenses, uma abordagem formal mais “radical” e antenada com as modas das vanguardas pós-modernas, com seus cortes rápidos, seus ritmos desenvoltos e aproximações inesperadas, características que levaram o crítico Fredric Jameson a denominar parte substancial da cultura visual contemporânea como um “surrealismo sem inconsciente” (Jameson 1991:67). Já o espectador que ativa sua capacidade de identificar padrões narrativos e visuais conseguirá perceber nesse início alguns dos temas centrais do filme: o papel dos conflitos geracionais; as várias funções da prática da atuação; as diferenças entre um sentido mais linear e homogêneo do tempo e um outro sentido mais denso e multiforme do tempo como experiência vivida e interação pessoal, em uma possível atualização da famosa distinção proposta por Walter Benjamin entre Erlebnis e Erfahrung (Benjamin 1993Benjamin, W. “O autor como produtor”. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993.: 197-221). A sequência também revela um arranjo formal que busca um equilíbrio sutil entre registros diversos, encampando a insistência em registrar “tempos mortos” que atravancam o ritmo da edição (as longas esperas), até as temporalidades e atuações mais fluídas e abertas associadas ao cômico, ao nonsense e ao carnavalesco. Tal combinação aparentemente bizarra entre o sério e o cômico pode ser lida alegoricamente como uma tentativa de negociar o lugar de uma produção cinematográfica independente em um mercado dominado por hábitos de consumo e distribuição norte-americanos (ou “globais”), assunto que o filme tratará de desenvolver. Por outro lado, será o talento de Winfried para a comédia e para a improvisação que o equipará com a energia para enfrentar o estilo de vida de Ines Conradi (Sandra Hüller), sua jovem filha, cuja chegada dará início aos principais eventos do enredo. Os encontros e desencontros entre as personagens darão corpo a uma potente representação da agenda neoliberal europeia, cujas práticas sociais serão exploradas por meio de uma reapropriação frutífera do método de distanciamento brechtiano e de aproximações com sua peça Mãe Coragem (1939), como desenvolveremos mais adiante.

2 Entre a Alemanha e a Romênia

As sequências seguintes são econômicas e precisas na caracterização do choque de gerações que fornecerá o assunto ostensivo do filme. A idade de Winfried (cerca de 60 anos), suas roupas (permanentemente maltrapilhas e desconjuntadas), seu emprego (um despretensioso professor de música na prosaica escola local), seus hábitos alimentares (ele ignora as novíssimas modas ecológicas em favor de comida congelada) e sua personalidade (ele embarca em novas e inesperadas improvisações desconcertantes sempre que surge uma oportunidade) são delineados em suas curtas interlocuções com a ex-mulher, a mãe idosa, os membros da família, os alunos adolescentes e os colegas mais velhos. A maquiagem branca que ele aplica em seu rosto para participar de uma apresentação escolar em homenagem a um colega aposentado nos lembra de sua queda para o teatral, mas também reforça sua semelhança com as imagens de zumbis que povoam produções mais convencionais. Dessa combinação inusitada vislumbra-se aos poucos o fundo histórico da narrativa, que sintetiza na figura de Winfried os traços centrais de uma geração à beira da extinção biológica e histórica, cujas sensibilidades haviam sido formadas a partir dos impulsos rebeldes dos anos 1960, mobilizados contra as tendências mais conservadoras nascidas do “milagre alemão” do pós-guerra. Os leitores interessados na história do cinema alemão lembrarão que foi justamente esse choque de gerações que havia fornecido a impressionante energia criativa de um dos mais importantes artistas alemães de sua geração, o cineasta Rainer Werner Fassbinder (Elsaesser 1981Elsaesser, T. Fassbinder’s Germany. Amsterdam: Amsterdam University Press, 1981.; Berling 1992Berling, P. Die Dreizehn Jahres des Rainer Werner Fassbinder. Berlin: Lübbe, 1992.). Se em Winfried ainda vemos alguns vagos e derradeiros vislumbres dessa sensibilidade, sua filha Ines escolherá uma direção mais propriamente contemporânea, diretamente ligada aos negócios: ela está de passagem e retornará em seguida para Bucareste, onde trabalha como consultora para uma companhia internacional, Morrisons, que se dedica à “modernização” da Romênia.

É interessante que as primeiras informações que recebemos sobre Ines nos sejam dadas por outras pessoas. Ela é vista pela primeira vez através da porta de vidro da casa, movendo-se impaciente enquanto fala ao telefone e ocupando um espaço diferente dos demais. De fato, é como se a personagem estivesse “emoldurada” em um outro nível narrativo - ela é o objeto acerca de quem vai se construindo uma definição e caracterização. Assim, as conversas sobre Ines confirmam seu lugar diferenciado como um “objeto sob análise”. Inicialmente, o espectador é levado a acreditar que ela é uma empresária de sucesso, trabalhando na indústria do petróleo. Oliver (Hans Löw), filho de Gerhard (Jürg Löw), não hesita em corrigir as informações sobre a personagem, afirmando que “ela está apenas prestando consultoria a uma empresa de petróleo. Ela ainda é uma consultora empresarial”. No final da cena na casa de sua mãe, Ines é novamente vista em um ambiente diferente dos demais. Winfried surpreende-a no momento em que ela afirma estar falando ao telefone enquanto olha distraidamente para o celular, que é rapidamente levado ao ouvido para simular uma conversa. Essa atitude repentina mais uma vez corrige as primeiras impressões que tivéramos de Ines ‒ provavelmente sua primeira (e longa) conversa ao telefone também havia sido fictícia, sendo o intuito da “farsa” a transmissão de uma imagem (criada para os outros e para si mesma) que será regularmente desmontada no decorrer da narrativa. Sua simulação busca mimetizar uma tendência corporativa contemporânea, a saber, a dissolução final das fronteiras entre o tempo do trabalho e o tempo do ócio (ou de sociabilidades alternativas, neste caso) e nos remete aos processos modernos de produtividade gerencial, frequentemente descritos como portadores de uma “temporalidade 24/7”, como descrito por Crary (2013Crary, J. 24/7: late capitalism and the ends of sleep. New York & London: Verso, 2013.: 74, tradução nossa):

Ao final do século vinte, tornou-se visível uma integração mais ampla e muito mais completa do sujeito humano à “continuidade constante” de um capitalismo 24/7, que sempre fora inerentemente global. Hoje os domínios da comunicação e da produção e circulação de informação, permanentemente em funcionamento, penetram em todos os lugares. Um alinhamento temporal do indivíduo com o funcionamento dos mercados - em desenvolvimento há dois séculos - tornou irrelevante as distinções entre trabalho e não trabalho, entre público e privado, entre vida cotidiana e meios institucionais organizados.

A promessa de visitar a filha em Bucareste, feita antes que Ines parta às pressas, é cumprida na cena seguinte, que mostra Winfried no saguão da corporação onde a jovem trabalha. A rápida elipse que liga as duas sequências - Winfried em seu quintal e, em seguida, sua presença em Bucareste - novamente reforça a reflexão do filme sobre os mais recentes sentidos de tempo e espaço: tanto o processo de globalização quanto a competição entre economias menores para se integrarem à União Europeia parecem ter diminuído as distâncias geográficas e simbólicas entre espaços previamente percebidos como essencialmente diversos, problema que adquire novas ressonâncias quando se trata das distâncias históricas entre as potências europeias e as antigas sociedades “comunistas” do leste europeu. A julgar pela edição, a Romênia está disponível “logo ali”, transformada em mera extensão das sociedades avançadas e seus centros financeiros.

As próximas sequências do filme demonstrarão a incompatibilidade entre o pai e sua competitiva filha, que busca agressivamente seu lugar ao sol no mundo essencialmente masculino das grandes corporações internacionais. Já as imagens de Bucareste são raras. Embora Winfried insista no desejo de fazer “programas culturais”, grande parte das imagens da cidade é feita do interior de carros e táxis. Enquanto Winfried, claramente aturdido, segue a filha em diversos compromissos profissionais, vemos imagens de uma cidade internacional de onde são apagados todos os traços da cultura e dos costumes locais. Seja na embaixada norte-americana, nos saguões de hotéis, nos centros comerciais, nos clubes noturnos, nos restaurantes internacionais ou nos rinques de patinação, os efeitos de padronização do processo de globalização ficam evidentes na escolha dos ambientes, contradizendo os jargões contemporâneos que fazem o elogio da diferença e do multiculturalismo. A língua comum utilizada pelos empregados da corporação é na maior parte do tempo o inglês, ou, às vezes, uma curiosa mistura entre o inglês e o alemão, o que aponta para o esforço das línguas europeias de se “modernizarem” e dos aspirantes a estrelas do mundo dos negócios de seguirem as modas corporativas. O efeito entre o cômico e o satírico fica mais evidente na figura de Anca (Ingrid Bisu), a jovem assistente romena de Ines, que se aplica diligentemente para atingir uma performance adequada, como ela mesma explica a Winfried quando indagada sobre suas atividades profissionais: “Sua filha me dá bastante feedback sobre minha performance”. E, em seguida, adiciona: “Nenhum conceito faz sentido se o cliente não o entender. Nossa arte consiste em dizer ao cliente aquilo que ele realmente deseja”. A repetição mecânica de clichês e jargões corporativos aponta aqui que a prática da atuação pode traduzir um engodo, ao mesmo tempo em que indica a possível desonestidade implícita na tarefa de “prever” necessidades das quais os próprios clientes nem sequer suspeitam. Entretanto, essa desconexão das realidades locais também possui um lado mais pragmático: a tarefa de Ines consiste em terceirizar serviços essenciais de uma companhia local de petróleo, o que significará a demissão de centenas de trabalhadores romenos.

Ao longo da narrativa de Toni Erdmann, destacam-se, de fato, questões como a preponderância do mercado neoliberal globalizado e sua relação intrínseca com lógicas de austeridade e com o imperialismo econômico. Logo após a chegada de Winfried em Bucareste temos um primeiro contato com esses assuntos. Na primeira conversa cara a cara entre Ines e Winfried na Romênia, a consultora define as regras para a adequação de seu pai ao ambiente do discurso do embaixador americano. No entanto, Winfried mostra já ser capaz de adaptar-se às regras discursivas do jogo corporativo, repetindo a máxima previamente apresentada por Anca a respeito da necessidade de alinhamento total com os interesses do cliente: “nenhum conceito faz sentido sem o cliente”. Nessa cena, os protagonistas, vale notar, são filmados em close-up confinados ao interior de um carro, o que reforça a ideia de claustrofobia que a mise-en-scène do filme insiste em construir. Eles compartilham o mesmo quadro, no início, mas no final da cena são enquadrados em uma dinâmica de campo/contracampo, sinalizando, talvez, a relação dialética de aproximação e distanciamento entre as próprias personagens e as visões de mundo que personificam. Na cena seguinte, acompanhamos pai e filha em direção ao salão onde o discurso do embaixador estadunidense já começara. Em sua fala, ele aponta para um novo caminho a ser seguido na Romênia pelas empresas internacionais após “uma série de falhas do governo”, devendo haver foco agora em “reformas, modernização e investimento em infraestrutura”. Ele acrescenta: “A Romênia oferece oportunidades significativas para as empresas americanas, com produtos, serviços ou tecnologias que ou atendem à crescente demanda privada ou contribuem para as prioridades de desenvolvimento do país”.

O efeito criado pela montagem para enfatizar a diferença de ritmo entre as diversas atividades profissionais de Ines e a reação incrédula e hesitante de Winfried, vale ressaltar, não esconde o fato de que a jovem empreendedora não é tão bem-sucedida quanto quer aparentar. O encontro com Henneberg (Michael Wittenborn), o CEO da companhia, após o discurso do embaixador estadunidense, reduz a consultora ao papel degradante de acompanhar sua esposa russa na atividade de compras no shopping center local (“o maior de Europa”, como ela explica ironicamente, “embora as lojas estejam sempre vazias.”). A tarefa exige uma especialista, pois a esposa precisa comprar um presente caro antes de ir a um casamento em Moscou, capital do país que, de potência comunista passou a ser um dos maiores centros globais do capital financeiro. Mais tarde, numa visita a um bar para o qual Henneberg convida Ines, Winfried e outros homens de negócios, a jovem é repreendida por revelar que a intenção da companhia é a terceirização de serviços. Como ela explicará mais tarde ao pai, sua firma deve atuar como uma fachada para os negócios locais, que poderão passar a culpa das demissões para os consultores estrangeiros, quando estes estiverem a salvo em “missão modernizadora” em outro lugar do mundo. Rebaixada ao papel de “atriz coadjuvante”, Ines, entretanto, abraça com fervor a tarefa de acompanhar a esposa russa em suas atividades de consumo no dia seguinte. Seu sorriso congelado, o emprego de lugares-comuns para expressar intimidade e afeto, o comportamento mecânico a artificial, tudo mostra uma mercadoria humana vagando entre objetos à venda: poucas vezes no cinema contemporâneo o conceito de “reificação da subjetividade” (Lukacs 2003) encontrou expressão tão justa. Por outro lado, a claustrofobia criada pela posição da câmera na sequência inicial não é superada, pois as tomadas ainda permanecem basicamente estáticas e o ritmo da edição é lento, enquanto os corredores vazios, os espelhos abundantes e as luzes ofuscantes criam uma desoladora atmosfera de isolamento.

O evidente chauvinismo do mundo dos negócios ajuda a transformar Ines em uma agressiva e supereficiente máquina de competição, cujas energias estão inteiramente voltadas para a incorporação de um “conjunto de normas subjetivas baseadas em palavras-chave do discurso do empreendedorismo neoliberal, tais como flexibilidade, incerteza e fluidez” (Dardot e Laval 2017Dardot, P. e laval, C. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2017.: 255). Sua disposição para a mudança perpétua e a adaptação constante conta com um coach, que em aulas particulares no Skype ensina como cada movimento ou inflexão de voz devem ser calculados para atingir seu efeito máximo. No entanto, a criação meticulosa dessa persona fictícia não resulta no “sujeito fragmentado” da modernidade quando a tarefa de combinar as exigências de ser, ao mesmo tempo, um devoto cristão e um feroz homem de negócios, levavam a novos patamares de sofrimento psíquico e esquizofrenia social. A performance de Ines, por sua vez, apaga as antigas fronteiras entre o doméstico e o social, entre a autenticidade psicológica e a atuação pública, de modo que já não é possível distinguir o rosto da máscara. Além disso, seu processo de reificação também depende de sua recusa obstinada da alteridade, assim como da transformação de todos em peças dos seus planos de promoção e sucesso profissional. Seu caso amoroso com um colega de trabalho é resumido naquela que é uma das mais bizarras cenas de sexo do cinema recente, na qual uma vingança pessoal contra os “homens” é perpetuada e o desejo é ridicularizado em nome da autorrepressão de modo a preservar seu investimento libidinal para objetivos profissionais. Colegas romenos são em geral ignorados e as amigas vistas como importantes contatos no mundo dos negócios. As sequências rápidas nas quais Ines coloca seus planos em prática são observadas por Winfried, que hesita entre a curiosidade, o afeto paternal e o espanto. Suas tentativas hesitantes de indagar a filha sobre o sentido daquele modo de vida são recebidas com sarcasmo e o clímax do confronto acontece precisamente em um centro de compras, onde Winfried pergunta a Ines: “Bist du eigentlich ein Mensch?” (“Você é realmente uma pessoa?”). Entretanto, os limites físicos e psicológicos da jovem empreendedora começam a surgir e levam à perda de um compromisso com Henneberg e sua esposa. Frustrada e furiosa, a jovem tem um ataque de nervos e culpa a ineficácia do pai, que observa a cena em estado de choque. A decisão de Winfried de voltar para casa parece indicar uma admissão de derrota, mas na verdade inicia um novo segmento do filme, cujo centro será a reaparição de Toni Erdmann, o “duplo” criado pelo protagonista.

3 Toni Erdmann como mecanismo de distanciamento

A decisão de dividir o filme em uma introdução (o prelúdio com o carteiro) e duas partes claramente delimitadas pelo papel adotado por Winfried mostra não apenas um roteiro meticulosamente estruturado, mas também introduz um novo enquadramento conceitual que pode elucidar a função da personagem de Toni Erdmann. Trata-se do Verfremdungseffekt ou “efeito de distanciamento” brechtiano, a tentativa de encenar o “usual” de modo a torná-lo “estranho” e, assim, indagar as práticas sociais do ponto de vista de sua historicidade, identificando o que há de construção e artificialidade em discursos, ações e relações tidos como “naturais”. Rosenfeld (2012: 151) assim conecta o Verfremdungseffekt brechtiano ao método épico e dialético do dramaturgo:

Para os filhos de uma época científica, eminentemente produtiva como a nossa, não pode existir divertimento mais produtivo que tomar uma atitude crítica em face das crônicas que narram as vicissitudes do convívio social. Esse alegre efeito didático é suscitado por toda a estrutura épica da peça e principalmente pelo “efeito de distanciamento” (Verfremdungseffekt = efeito de estranheza, alienação), mercê do qual o espectador, começando a estranhar tantas coisas que pelo hábito se lhe afiguram familiares e por isso naturais e imutáveis, se convence da necessidade da intervenção transformadora. O que há muito tempo não muda, parece imutável. A peça deve, portanto, caracterizar determinada situação na sua relatividade histórica, para demonstrar a sua condição passageira. A nossa própria situação, época e sociedade devem ser apresentadas como se estivessem distanciadas de nós pelo tempo histórico ou pelo espaço geográfico. Desta forma o público reconhecerá que as próprias condições sociais são apenas relativas e, como tais, fugazes e não “enviadas por Deus”. Isso é o início da crítica.

A “redescoberta de Brecht” havia sido, é bom lembrar, a marca registrada de parte do cinema mais radical e ousado dos anos 1960, desde o trabalho de Godard e Straub até os experimentos posteriores de Alexander Kluge e Peter Watkins (Macbean 1975; Harvey 1980Harvey, S. May ‘68 and film culture. London: BFI, 1980.; Walsh 1981; Ellis 1983Ellis, G. Bertolt Brecht: cahiers du cinema and contemporary film theory. London: UMI Research Press, 1983.). Maren Ade parece estar ciente desse legado quando faz com que Winfried, ao invés de adotar os comportamentos que caracterizam a “performance total” de Ines (na qual a personagem fictícia se transforma em uma “segunda natureza”), decida admitir o lado artificial, construído e discursivo de sua performance enquanto “mecanismo de distanciamento”. Assim, ele entra e sai da personagem Toni Erdmann com a ajuda de uma peruca e de uma dentadura para expor os aspectos não naturais de um modo de vida que Ines julga inevitável.

A primeira aparição desse “duplo” acontece em um restaurante no qual a filha encontra duas amigas. Enquanto esperam por uma mesa, Ines reclama amargamente da visita do pai, quando inesperadamente Toni Erdmann surge. Ines reconhece o pai por trás do disfarce, mas está aturdida demais para desmascará-lo. Se a aparência ridícula de Toni ameaça a eficácia de suas manobras, as amigas começam a levar tudo mais a sério quando Winfried afirma que está à espera de Ion Tiriac (na vida real, o mais rico empresário romeno), que precisa de apoio moral após a morte inesperada de sua tartaruga de estimação. As duas amigas, hesitando entre a descrença e o interesse próprio, decidem, a despeito das aparências, que “a história pode ser verdadeira” e oferecem seus cartões pessoais a Toni (“Nunca se sabe”, arrisca uma delas). Esse primeiro encontro garantirá a entrada de Toni no círculo profissional e privado de Ines, onde ele a assombra com seus “experimentos teatrais”. Seu comportamento escandaloso, assim como seu hábito de mencionar os nomes de clientes e sócios imaginários no mundo corporativo, serão aceitos por todos, o que demonstrará o lado oportunista de pessoas que estão dispostas a aceitar qualquer absurdo para garantir seu sucesso profissional. A decisão de Maren Ade de dirigir Peter Simonischek para que ele atuasse no registro da alta comédia, próximo às inversões inesperadas e do ataque violento ao bom gosto típicos do pastelão (uma de suas piadas envolve uma almofada que imita sons de flatulência) inicialmente contrasta com o estilo mais naturalista dos outros atores, mas é precisamente a disposição desses últimos de tomarem parte do jogo que revela o absurdo de seus comportamentos. Na sequência cômica com a almofada, Gerard (Thomas Loibl), o gerente alemão de Ines, fica chocado com a grosseria da piada, mas rapidamente adere ao trote quando ouve a falsa notícia de que Winfried é um dos assessores de Henneberg. Ines assiste a tudo com um misto de diversão e dúvida e o espectador começa a ter esperança de que sua posição como plateia e alvo implícito dos experimentos de Winfried possa criar nela algum tipo de consciência crítica.

Ao mesmo tempo, a relativa abertura de Winfried ao mundo externo começa a criar e ampliar as lacunas que constantemente ameaçam a visão restrita de Ines a respeito das realidades locais. Tais limitações são resumidas - com a usual economia do roteiro do filme - na sequência em que Ines apresenta as estratégias da companhia para Henneberg e outros homens de negócios locais. Desencorajada pela recepção pouco entusiasmada de sua plateia em relação aos planos corporativos delineados em uma apresentação cuidadosamente planejada (que incluiu uma mudança repentina de guarda-roupa nos “bastidores” do banheiro feminino), ela olha pensativamente através da janela para a rua. Uma tomada subjetiva de seu ponto de vista mostra a entrada luxuosa da companhia, separada por um alto muro das favelas empilhadas ao lado. Paredes e muros funcionam como uma poderosa metáfora (assim como uma medida prática) de políticas divisionistas em todo o mundo e, desnecessário insistir, especialmente na Alemanha do pós-guerra. Além disso, tais imagens adquiriram um significado especial com o crescimento da xenofobia na Europa, assim como seus correspondentes ideológicos e práticos na América de Trump. Neste filme, elas corporificam os limites visíveis do conhecimento superficial e seletivo dos personagens em relação à Romênia que existe fora da bolha claustrofóbica em que habitam. Elas também ajudam a qualificar os espaços “internacionais” do filme, nos quais a câmara se move tão desconfortavelmente quanto um convidado intruso: restaurantes e bares estão constantemente lotados e barulhentos, pois a elite financeira tem que se espremer nos poucos espaços “seguros” que, de algum modo, os isolam da pobreza que impera no resto da cidade. A sociabilidade mais democrática de Winfried, por outro lado, ensaia criar um novo regime visual e uma nova abertura para a câmera, que abandonará o interior dos hotéis e dos táxis para explorar uma cidade que não tem sido considerada um paradigma brilhante das conquistas europeias recentes. Quando Winfried, em outra de suas brincadeiras, se algema com Ines e perde a chave, um taxista local os ajuda a encontrar uma solução com um grupo de habitantes da periferia da cidade (pequenos delinquentes?), enquanto uma visita a um campo de petróleo nas imediações dará a pai e filha a chance de encontrar uma família composta justamente pelas vítimas do processo de modernização no qual Ines está empenhada.

As imagens resultantes adquirem significado especial graças ao contraste com as tomadas anteriores de Bucareste. O resultado final nos remete a algumas das mais eloquentes imagens de uma nova safra de filmes romenos recentes (uma influência reconhecida por Maren Ade em diversas entrevistas), dentre os quais talvez o mais conhecido seja A leste de Bucareste, de Corneliu Porumboiu, vencedor do Camera d’Or em Cannes em 2006. O filme conta a história de um programa de televisão romeno encenado em uma pequena comunidade próxima a Bucareste e cujo propósito é investigar os eventos da “revolução” de 1989 que trouxe fim à ditadura de Nicolae Ceausescu e ao comunismo. A iluminação esmaecida, os movimentos desajeitados e pouco proficientes da câmera no interior do estúdio, o ritmo lento criado pela montagem e a posição em geral estática da câmera do filme romeno não apenas registram algumas das mais devastadoras imagens da Europa recente, mas também capturam o atraso e a letargia dos ritmos de um país esquecido pelas modernas ondas modernizadoras do capitalismo financeiro. Visto dessa perspectiva, o achado do filme está em sua descoberta (ou tentativa de criação) de uma forte relação entre forma, técnica e matéria histórica (Nasta 2013). Além disso, será justamente a insistência na lentidão da edição e da montagem que permitirá que o olhar do espectador capture um número ilimitado de pormenores, imersos na história recente, tanto nas paisagens quanto nos comportamentos, de modo que a imensa riqueza de um tipo de realismo redescoberto possa mapear os novos sentidos do contemporâneo. Assim, o filme poderia ser lido como uma tentativa de reativar imageticamente o que diversos críticos contemporâneos têm chamado de “retorno de um novo realismo crítico”, que se oporia às abstrações dos arranjos globais de uma cultura internacional, ainda a ser plenamente teorizada (Fisher 2009Fisher, M. Capitalism realism. London: Zero Books, 2009.). Depois de mais uma década do novo século, a descoberta das ruínas de um “terceiro mundo” europeu, assim como a novidade e o contraste chocante entre tais imagens e aquelas empregadas em produções mais ortodoxas para glorificar as conquistas da União Europeia, podem dar a esse tipo de realismo seu potencial crítico. Além disso, podem reintroduzir, de uma perspectiva teórica e prática, a questão sempre viva e controversa a respeito da atualidade e utilidade de um cinema baseado em Verfremdungseffekte brechtianos.

A decisão de contar a história da presença de uma elite financeira na Romênia depois que o país se juntou à União Europeia em 2007 mostra uma sociedade firmemente engajada em perseguir o modelo de modernização, ansiosamente tentando alcançar os patamares de seus vizinhos mais desenvolvidos. Entretanto, a escolha de combinar temporalidades diversas através da conjunção entre os ritmos mais nervosos do processo de construção de nova modernidade com a persistência de movimentos de câmera e tipos de montagem mais lentos revela, simbolicamente, a sobrevida de antigas formas de desigualdade. Na verdade, o filme mostrará que os benefícios da modernização serão distribuídos de modo desigual e que tais desenvolvimentos são, de fato, incapazes de universalizar suas conquistas. As relações entre o filme alemão e o romeno vão, assim, muito além da mera “citação pós-moderna” (Jameson 1991: 279).

4 Autorreflexividade

Duas sequências na segunda metade de Toni Erdmann não apenas desenvolverão o enredo, mas também adicionarão novas camadas de significado ao caráter alegórico ou mais propriamente autorreflexivo do filme. A primeira registra a visita de Ines e Winfried ao campo de petróleo nas redondezas de Bucareste, onde Ines pretende estreitar relações com Iliescu (Vlad Ivanov), gerente da companhia cujos empregados serão demitidos. Winfried é apresentado como um executivo alemão envolvido com negócios semelhantes com os russos e que, por isso, tem interesses em investigar a economia local. Iliescu, mais do que a jovem Anca, se mostra ansioso em obedecer aos desideratos dos estrangeiros, demonstrando que há uma classe de técnicos e gerentes romenos de nível médio com a qual as corporações internacionais podem contar. Muito orgulhoso de seu comando mediano do idioma inglês, Iliescu leva seus convidados para um passeio pelo campo de extração. A câmera se move mais livremente para explorar pormenores significantes: pessoas, locais, comportamentos. Winfried utiliza o banheiro de uma família de trabalhadores e se encanta com sua simplicidade. A ênfase no corpo humano e nas suas necessidades físicas reforça a ideia de que existem limites biológicos para os ritmos alucinantes da vida de Ines, assim como para as energias da geração mais velha de reagir, mas também aponta para o “humor rebaixado”, geralmente associado com a comédia pastelão e o carnavalesco (Bakhtin 2010Bakhtin, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, 2010.). A reação desajeitada de Winfried é oferecer dinheiro em troca da hospitalidade, para o constrangimento dos locais. Entretanto, a sociabilidade mais inclusiva de Winfried o encoraja a iniciar outro “experimento sociológico”, talvez para o benefício de sua filha: ao assistir a um grupo de trabalhadores discutindo um problema técnico em romeno, ele se aproxima deles e sorri enquanto finge apertar as mãos de um deles, que está suja de óleo. Iliescu fica indignado com o trabalhador, pois este não seguiu à risca as modernas regras de segurança no trabalho que exigem que todos usem luvas. Ele repreende a vítima da piada de Winfried em romeno, mas é suficientemente enfático para que este entenda que o trabalhador foi sumariamente demitido. Quando suas tentativas de concertar a situação são ignoradas, ele apela à filha, que assiste a tudo passivamente. “Quanto mais ele demitir”, ela retruca, “menos trabalho eu terei”. Pelo menos duas consequências importantes podem ser tiradas a partir da análise dessa sequência em relação ao que temos chamado de elemento autorreflexivo do filme. A primeira tem a ver com a posição de Ines como “espectadora interna” dos quadros “teatrais” encenados por Winfried. As esperanças do pai de que Ines possa se humanizar através do contato com a dura realidade dos trabalhadores encontram total indiferença. Em um nível mais alegórico, isso significaria que pode haver limites para as possibilidades críticas do realismo? Seria a superexposição de realidades anteriormente desconhecidas responsável pelo enfraquecimento de sua novidade e, por conseguinte, de seu impacto crítico? Seria o cinema capaz de reproduzir tais imagens sem transformá-las em espetáculo para a diversão de uma plateia de consumidores? Seria o destino do moderno processo de produção imagético levar ao embelezamento das mais atrozes cicatrizes sociais para sua transformação em mercadorias visuais, como Benjamin já havia denunciado em relação à Nova Objetividade (Benjamin 1993Benjamin, W. “O autor como produtor”. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993.: 125-6)? Ou, de uma perspectiva mais ampla, poderia uma produção cultural bem-intencionada ser capaz de vencer as batalhas contra os mais crassos interesses materiais? Seria a tentativa de reativar certa distância estética e o conteúdo crítico das imagens auxiliada pela utilização dos efeitos de distanciamento do tipo proposto por Brecht?

Entretanto, ainda uma outra complicação resulta das consequências catastróficas da interação de Winfried com os trabalhadores romenos: seria sua abertura democrática, multicultural e inclusiva suficiente para criar uma perspectiva crítica diante dos fenômenos sociais? No atual contexto ideológico europeu, poderiam lacunas profundas serem diminuídas por uma sensibilidade liberal para criar uma oposição às consequências devastadoras do processo de modernização? Teria a distância em geral, incluindo o “distanciamento crítico”, sido abolida nos novos espaços pós-modernos? Mais do que dar respostas, o filme poderosamente interroga os regimes visuais e as estratégias cênicas utilizadas.

Outra sequência importante desenvolverá tais reflexões. Trata-se da cena na qual Winfried, no caminho de volta a Bucareste com Ines, decide fazer uma visita a duas irmãs romenas que ele havia conhecido em uma festa na embaixada norte-americana. Ele encontra a família envolvida no festejo da Páscoa, mas ainda assim pede a uma das irmãs que lhe ensine a pintar ovos, um antigo costume romeno. Antes de partir, Winfried vê um órgão elétrico e decide presentear os convivas com um número musical. Ele se senta ao órgão e pede que Ines cante algo. Constrangida, ela ouve as primeiras notas improvisadas do pai e hesitantemente entoa os primeiros versos da canção “Greatest love of all”, famosa na gravação de Whitney Houston. A imitação barata de um subproduto da indústria cultural não deixa de ser surpreendente, ao mesmo tempo em que demonstra o ventriloquismo cultural que caracteriza as relações entre os Estados Unidos e seus postos comerciais na Europa. Quando, no final do filme, Winfried menciona que o cantor favorito da mãe morta era Harry Belafonte, a sequência anterior da festa de Páscoa ganha novas ressonâncias, pois fica indicada a curva decrescente que liga as batalhas mundiais dos anos 160 (neste caso específico, o papel da Harry Belafonte e da música afro-americana em geral na luta pelos direitos civis) ao comercialismo abertamente abraçado por artistas mais recentes.

Em todo caso, a inserção de um procedimento formal caro a Brecht ‒ o de trazer referências externas à diegese do filme com o propósito de relativizar, questionar e complicar seus assuntos ‒ articula-se com outros momentos em que podemos destacar uma reapropriação frutífera da prática artística do dramaturgo. Em Toni Erdmann, além da reapropriação produtiva dos Verfremdungseffekte, como previamente apontado, um paralelo interessante também pode ser traçado com a peça Mãe Coragem e seus filhos (Mutter Courage und ihre Kinder, 1939), guardando-se, obviamente, as devidas proporções.

5 Mãe Coragem e seus filhos

Mãe Coragem, escrita às vésperas da Segunda Guerra Mundial, é um exemplo produtivo do teatro dialético do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. A peça se passa na Guerra dos Trinta Anos, precisamente entre 1624 e 1636, e conta a história de Anna Fierling, uma mascate conhecida como “Mãe Coragem” que ganha a vida com a guerra, fazendo negócios com quem quer que ela acredite que possa lhe trazer lucros. Isso significa que ela não hesita em negociar com o lado protestante ou católico do conflito, alinhando suas posições ideológicas com aqueles que estão, em momentos determinados, vencendo a guerra. A perfeita adequação de Coragem ao jogo da guerra pode ser lida como uma elaborada alusão ao livre mercado, fazendo com que as ações e concepções da personagem remetam à isenção de qualquer controle estatal ou impedimentos éticos às negociatas “liberais”. Ela desconsidera, no entanto, um único detalhe: o enorme custo do pacto com a lógica do lucro a qualquer preço, sobretudo para aqueles que não integram o seleto grupo da elite econômica mundial. Como é comum nesse tipo de pacto, o preço a ser pago é em vidas humanas - o principal combustível de qualquer guerra - e, na peça, isso é figurado pelo fato de que Coragem acaba perdendo seus três filhos para as letais engrenagens bélicas. A peça, assim, expõe a estrutura contraditória de sobrevivência e tragédia que nasce das relações conflitantes da comerciante com a guerra.

A estrutura dialética de Mãe Coragem motiva a apreensão dos materiais que aborda, incluindo suas diversas contradições, em uma perspectiva distanciada (verfremdet). O fato de as ações da peça serem colocadas no século XVII, por exemplo, possibilita o distanciamento do momento em que a peça é encenada (na década de 1940, primeiramente) para reconhecer, em outro momento histórico, práticas e contradições relacionadas ao tempo presente. Em tais práticas, torna-se também possível distinguir processos e elementos sociais que mudaram ao longo do tempo, estimulando, assim, a compreensão da realidade contemporânea como igualmente mutável (Brecht 1993Brecht, B. Kurze Beschreibung einer neuen Technik der Schauspielkunst, die einen Verfremdungseffekt hervorbringt. In: Werke. Große kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe. Band 22. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1993, p. 472-473.: 472-473). Brecht chama essa técnica anti-ilusionista de Historisierung (Historicização), segundo a qual o ator deve representar os acontecimentos de uma peça como processos históricos. Como afirma o dramaturgo (1993: 472-473), esses são eventos únicos, temporários, associados a determinadas épocas, e o comportamento das pessoas em tais épocas não é simplesmente humano e imutável, mas composto de certas peculiaridades que o tornam sujeito à crítica do ponto de vista do seu respectivo tempo. O ator de um teatro dialético, acrescenta Brecht (1993: 473), precisa distanciar-nos dos eventos e modos de comportamento do seu próprio tempo assim como um historiador distancia-se de eventos e modos de comportamento passados. Ele deve alienar-nos desses eventos e pessoas cotidianos, do ambiente imediato, uma vez que eles têm algo de “natural” para nós porque nos são familiares. Brecht conclui que desfamiliarizá-los, nesse sentido, serve para transformar eventos, processos e comportamentos contemporâneos tidos como imutáveis e inevitáveis em incomuns (1993: 473).

Toni Erdmann, como mencionado, aproxima-se de Mãe Coragem em termos de reapropriação de aspectos da metodologia anti-ilusionista de Brecht. Situações e formas de interação atuais são demonstradas de maneira tal que, ao invés de nos identificarmos acriticamente com as personagens, vendo seus atos como familiares, distanciamo-nos de suas ações, ideias e comportamentos, reconhecendo o absurdo e a anormalidade de suas (e nossas) situações cotidianas. Depreende-se desse movimento o êxito do filme em quebrar habilmente as expectativas do espectador, em harmonia com os desenvolvimentos críticos de Brecht, estimulando-o a estranhar as atitudes das personagens. Tanto Ines quanto Winfried, assim, adquirem caráter de elementos distanciados dos espectadores, que devem ser examinados com critérios quase científicos.

A apresentação que o filme faz de Ines, vale ressaltar, partindo da descrição de outros, configura-se como uma coleção de pontos de vista diversos e até mesmo contraditórios que são responsáveis ​​por “montar” a imagem da personagem. Suas atitudes em diversas cenas também acumulam uma série de contradições, já indicando as diversas performances às quais ela recorre para sustentar seus interesses. Formas convencionais de compreender e relacionar-se com os protagonistas de um filme são, dessa maneira, minadas em favor de uma atitude mais reflexiva do espectador. Em consonância com o método anti-ilusionista de Brecht e com a construção formal de Mãe Coragem, por exemplo, não apenas a interpretação dos atores de Toni Erdmann, mas a construção em “mosaico” da narrativa, os agonizantes tempos mortos intercalados com transições abruptas no tempo, a dinâmica entre os espaços, as constantes rupturas de expectativas e o modo como situações improváveis se acumulam, todos esses elementos ajudam a expor diversas contradições do mundo representado. Simultaneamente, o filme estimula a permanente reorientação de tempo, espaço e visão de mundo, impedindo que o espectador considere qualquer desenvolvimento da narrativa como evidente.

6 Pessoas de negócios

Se por um lado é preciso sublinhar as diferenças fundamentais entre a peça e o filme no que diz respeito a alguns de seus materiais centrais (como o fato de a protagonista da peça ser uma mãe, enquanto Ines é uma filha ou o fato de a ambientação da peça ser diretamente relacionada à guerra, o que não ocorre em Toni Erdmann), há que se observar a presença de importantes paralelos temáticos entre as obras. Assim, a denominação que Coragem dá à sua comitiva mercantil, “pessoas de negócios” (Geschäftsleute, na versão original) (Brecht 1967bBrecht, B. Mutter Courage und ihre Kinder. In: Gesammelte Werke 4. Stücke 4. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1967b, p. 1349-1443.: 1350), alude ao mesmo conceito que podemos usar para se referir a Ines e a todo o ambiente corporativo que a rodeia. Como na peça, há várias referências no filme concernentes ao âmbito da racionalidade técnica, especialmente envolvendo cálculos, gráficos e estatísticas que ajudam a justificar e dar um viés de bom senso aos processos desumanos de lucro a qualquer preço. Com efeito, a figuração de Coragem como interesseira, egoísta e astuciosa, precisamente em uma época de expansão econômica europeia no século XVII (Hobsbawm 1960: 105), guarda relações com o self egoísta, empreendedor e meritocrático expresso na figura de Ines, que ilustra um novo momento de expansão econômica europeia, abarcando os países pós-comunistas. O processo atual de expansão do capital, em curso desde a reorganização neoliberal global dos anos 1970, alimentando e sendo alimentado por crises profundas, é, de fato, um dos temas predominantes do filme.

A exaltação de pilares fundamentais do modelo neoliberal de globalização é contraposta pela cena em que Ines e seu pai visitam o campo petrolífero. As demissões esperadas pela consultora (e concretizada pela “brincadeira” de Winfried) são mencionadas como algo cruel, mas ao mesmo tempo “inevitáveis” e parte de um “plano ousado maior”, o que mostra a face real do processo de expansão do capital. Nesse sentido, a lógica de liberalização do comércio, privatização e desregulamentação financeira, além da flexibilização e desregulamentação das relações trabalhistas, são todas justificadas pelo conceito de “modernização”. Os interesses econômicos por trás desse conceito são desvelados no filme: sob um verniz de “progresso” para a periferia do capital (onde se encontra o maior shopping center do mundo!) há um processo de espoliação e pauperização em curso (ninguém tem dinheiro para fazer compras no shopping). O movimento de “desvelamento” das engrenagens sociais e das contradições de determinado momento histórico também pode ser localizado em Mãe Coragem, como na constatação de que a guerra é um motor central do capitalismo. Em suas respectivas figurações de agentes e vítimas de momentos históricos de violentas transformações (Hobsbawm 1954Hobsbawm, E. J. The general crisis of the European economy in the seventeenth century. Oxford Journals, Oxford, v. 5, 1954, p. 33-53.), também une as duas personagens a necessidade de se deixar flutuar ao sabor dos lucros. Falamos aqui não só do aspecto físico do termo, já que as duas personagens peregrinam pelo mundo seguindo o apelo das vantagens financeiras, mas também da dinâmica de mudar constantemente de opinião e de se adaptar ao alinhamento ideológico que lhes parece mais vantajoso.

Outro momento de aproximação com a peça de Brecht acontece na cena posterior à celebração de Páscoa na casa das irmãs romenas: o brunch organizado por Ines para comemorar seu aniversário e reunir os colegas da Morrisons. O evento é previamente anunciado pela protagonista como “algo pessoal”, uma proposta que agrada seu chefe, Gerald, que vê o evento como uma oportunidade “para impulsionar o espírito de equipe”. A cena inicia-se a partir de outro salto temporal extremamente abrupto, transportando-nos imediatamente da chegada de Ines da celebração da Páscoa para o dia seguinte, durante os preparativos finais para o brunch. A princípio, parece que estamos testemunhando mais um momento de busca por perfeição e eficiência da parte da consultora, que se esforça para oferecer um evento que impressione seu chefe e seus colegas. Em um determinado momento, no entanto, quando a campainha toca, Ines começa a travar uma batalha contra o vestido extremamente apertado que veste, figurando mais uma metáfora construída pelo filme sobre claustrofobia e espaços agonizantemente estreitos. Deixando o vestido de lado, ela caminha até a porta usando nada mais do que uma calcinha da cor de pele; ao mesmo tempo, ela verifica se seu cabelo está impecável, algo que intensifica a estranheza da situação.

A naturalidade com que Ines recebe sua amiga Steph, a primeira convidada, sem demonstrar qualquer constrangimento por seus trajes minimalistas, dá a impressão de que a consultora está passando por uma espécie de transe ou mesmo por um surto, sendo as regras de civilidade e a “atuação” necessária para a sociabilidade formal surpreendentemente descartadas. De fato, Ines mostra-se cada vez mais incapaz de seguir os protocolos burgueses de interação social, como abrir o presente que acaba de receber. Assim, despindo-se de todas as amarras formais no gesto simbólico de livrar-se até mesmo da calcinha, ela passa a anunciar aos demais convidados que se trata de uma naked party para fomentar o team building. Gerald (a princípio) e Tim não entram no jogo, ao contrário de Anca, cuja posição subordinada na hierarquia corporativa não lhe dá outra escolha. O absurdo da situação agrava-se à medida que Anca começa a conectar a naked party à lógica corporativa, definindo o visível desconforto que sente em tal contexto como um “desafio”. Desse modo, a cena deixa implícito o tipo de humilhação e adequação mental a que a jovem deve se sujeitar para poder manter seu emprego.

Quando o convidado seguinte entra no apartamento a situação fica ainda mais absurda, já que se trata de uma pessoa vestindo uma fantasia de Kukeri, uma divindade búlgara totalmente coberta de pelos escuros e com uma cabeça muito longa. Após o espanto inicial das duas mulheres nuas ‒ em forte contraste com a “entidade” inteiramente coberta ‒, Gerald, agora também despido, decide aderir ao evento, sendo logo surpreendido pela figura do Kukeri. Seu choque desaparece rapidamente, pois, dentro do espírito de “desafios corporativos” existe, para ele, a possibilidade de um coach estar dentro do traje, o que torna ainda mais proeminente o fato de os maiores absurdos possíveis poderem ser facilmente incorporados às dinâmicas mercantis e corporativas.

A detecção de mais um paralelo com Mãe Coragem e sua representação da lógica da guerra como “inevitável, natural e necessária”, aos olhos de Coragem, parece ser coerente, especialmente quando percebemos que a estrutura anti-ilusionista da peça procura mostrar ao espectador a incongruência dessa posição ideológica. A ênfase é precisamente em revelar o que há de irracional e insensato no processo de familiarização com uma lógica de exceção comumente apresentada como a regra. Da mesma forma, quando o nível de absurdo da cena acima descrita atinge seu ponto máximo, ela contrasta claramente com as demais cenas do filme, que relegam os deslocamentos, inadequações e estranhezas do filme à figura de Toni Erdmann. E é esse ponto de virada da obra que enfatiza uma das mais interessantes investigações apresentadas pelo filme: a naturalização das devastações causadas pela lógica mercantil - seja no plano político, social, econômico e mesmo psíquico - e como estas são consideradas inevitáveis e indispensáveis à vida contemporânea.

Logo depois da cena do brunch, vemos o Kukeri dirigindo-se a uma praça. Ines, vestindo um penhoar, segue-o, gritando: “Papa!” (Papai!). Eles se abraçam, em um raro momento de contato físico, ainda que a câmera não se furte a captar o contraste entre Ines, vestida apenas com um fino tecido, como se tentando abster-se das normas corporativistas homogeneizadas que a sobrecarregam claustrofobicamente, e Winfried, coberto e envolto em “tradição”, na figura que invoca valores populares, folclóricos e “autênticos”, também antagônicos aos globalizados padrões corporativos. Em seguida, uma breve cena de transição nos mostra Winfried em uma recepção do hotel sendo auxiliado na remoção de sua máscara de Kukeri. O posicionamento da câmera em suas costas, que ocupam quase todo o espaço do quadro, aponta mais uma vez para o tema da claustrofobia, espelhando a cena em que Ines se esforça para se livrar de seu vestido apertado. Nesse sentido, o filme insiste em trabalhar de uma maneira dialética o contraste e, sobretudo, a aproximação entre as visões de mundo de Winfried e de Ines, ambas sujeitas, por exemplo, a um espaço de ação limitado e agonizante, como enaltecido pelas recorrentes alusões formais e temáticas a confinamentos estreitos, claustrofóbicos. Enfatiza-se nessa aproximação, como ocorrera no campo petrolífero, que as aparentes abertura e sensibilidade democráticas de Winfried podem não ser suficientes, como sugerimos anteriormente, para produzir uma perspectiva externa a respeito dos fenômenos sociais e políticos que o filme explora.

7 Memória, história e a passagem do tempo

A sequência final, ou “epílogo”, é novamente ambientada na Alemanha e, como no “prólogo”, também se articula em torno de símbolos, temas e motivos relacionados à morte, preenchendo, assim, uma espécie de moldura tonal do filme. Com um novo salto temporal, testemunhamos, após a cena de Winfried na recepção do hotel, a chegada de Ines no funeral de sua avó. A câmera, novamente posicionada atrás de Winfried, capta o momento em que pai e filha se reencontram, registrando o contato superficial e quase indiferente entre eles. Isso pode surpreender o espectador que, após o episódio do “surto” de Ines no brunch, esperava algum aprendizado desta (e de Winfried) a respeito de seu relacionamento. A atitude da consultora em relação à avó no caixão transparece, no entanto, o fato de ela ter voltado a meramente seguir, friamente, os protocolos burgueses de sociabilidade: há certo mecanicismo na forma como ela toca o corpo da avó, ou quando ela declara sentir muito por não tê-la visto mais, o que evoca, contrastivamente, a irritação de Ines, no início do filme, quando descobre que seu pai avisara sua avó que ela estava na Alemanha.

No decorrer dessa sequência, constatamos, em uma conversa entre Ines e um parente, que ela não deixou o mundo corporativo; pelo contrário, ela está se mudando para Cingapura, onde trabalhará para uma nova empresa de consultoria por dois anos. Em seguida, vemos Ines e Winfried examinando um conjunto de objetos colecionados pela falecida idosa, incluindo um grande número de chapéus e um capacete. A cena ilustra o fato de que a geração anterior à de Winfried foi contemporânea à Segunda Guerra Mundial, o que levanta suposições até mesmo a respeito do posicionamento ideológico de sua mãe, que gostava de Harry Belafonte apesar de ser “negro music”, como declara Winfried em tom de repreensão à mãe. Eles então se dirigem a uma área externa e Winfried faz um melancólico monólogo, cujo tom indica que apenas com o passar do tempo é possível se perceber a importância de certos instantes, tornados relevantes na posteridade. No momento em que ocorrem as situações, ele enfatiza, não é possível perceber o que elas significam.

Vale notar, aqui, como o discurso ganha relevância quando associado ao tema da memória que o conjunto de relíquias da mãe evoca. Para além de uma temática inserida nos estreitos limites do âmbito familiar - incluindo o embate geracional que os protagonistas encerram -, a questão da memória abrange, na narrativa, dimensão histórica e política, mais uma vez apontando a reapropriação do fazer artístico de Brecht. Ao trazer à tona, por meio do capacete de aço, a memória do tenebroso passado bélico alemão, é difícil não lembrarmos de que em nome do sucesso, do lucro, da soberania e da prosperidade muitos negociaram e fomentaram a perda de qualquer resquício de humanidade. Essa temática, proeminente em Mãe Coragem, resvala na agressividade, na insensibilidade e na ambição indomável de Ines, a quem atributos não humanos são reiteradamente dados.

Voltando aos momentos finais do filme, após o monólogo de Winfried, Ines, com movimentos desajeitados, retira a dentadura de Toni Erdmann do bolso da camisa de seu pai, coloca-a na própria boca e veste um chapéu inusitado. Winfried responde à montagem dessa nova “personagem” de Ines com um sorriso e retira-se para pegar uma câmera. A cena de espera de Ines estende-se desconfortavelmente, até que ela decide desmontar sua personagem. Em close-up, a câmera registra sua última imagem, impaciente e talvez percebendo que seu pai não vai voltar. Um corte seco encerra o filme.

Neste epílogo, o filme novamente nos oferece mais perguntas do que respostas. Uma possível pergunta colocada pelo filme a respeito da temática da memória, por exemplo, é se seriam as atitudes desumanizadas que o filme elenca ‒ componentes fundamentais do self de sucesso na lógica neoliberal ‒ perceptíveis apenas em um momento posterior, como aponta Winfried em seu monólogo, quando as afinidades entre essa lógica e a do nazi-fascismo já não puderem mais ser ignoradas. A esse respeito, lembremos que, semelhante a Coragem, Ines nada aprende sobre o custo psíquico, afetivo e em vidas humanas que a adequação à lógica financeira de horror lhe causa, assim como aos demais. De fato, não há adesão de Ines à visão de mundo de seu pai, embora o fato de ela criar uma “persona” de si mesma, inclusive com a dentadura de Toni Erdmann, possa sinalizar certa harmonização entre suas posições ideológicas. No entanto, como indicado anteriormente, o filme não privilegia a visão de mundo de Winfried como um espaço legítimo para a problematização e o escape das dinâmicas do mercado e da cruel expansão do capital, mais claramente incorporadas por Ines e seu ambiente corporativo.

As conexões com Mãe Coragem, escritas às vésperas da Segunda Guerra Mundial (por sua vez, um resultado imediato da crise de 1929, que guarda muitas semelhanças com a crise de 2008), podem levar a outra relação necessária a ser feita na análise do filme. As considerações temáticas e formais levantadas pelo filme sobre a memória, a história e a passagem do tempo ‒ essa última também percebida na edição, com seus momentos de alongamento e de “abruptidade” ‒ sugerem a repetição trágica de atrocidades quando abandonamos, em nome do lucro, qualquer sinal de humanidade. Além disso, a perpetuação de um processo “civilizatório” e “modernizante” em todo o mundo pelo centro do capital (Hobsbawm 1960), ainda que de maneira mais velada do que em momentos mais explícitos de barbárie, como na época em que a peça foi escrita, não deixa de anunciar os custos humanos de sua manutenção, sobretudo para os mais vulneráveis. Nesses termos, sobressaem outras perguntas de nossa leitura do filme: seria Toni Erdmann, ainda que ancorado em vários recursos e temas anti-ilusionistas brechtianos, realmente capaz de apontar uma saída crítica e verdadeiramente desnaturalizante para a realidade catastrófica que o filme anuncia? Ou o mero diagnóstico que o filme constrói já apontaria um possível caminho a ser seguido, em termos críticos, devido a seu estudo dialético da contemporaneidade e dos paralelos que o filme constrói com o trabalho de Brecht? Cabe a cada espectador refletir a respeito dessas questões, o que, por si só, já constitui um grande avanço estético e político da obra.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2019
  • Aceito
    29 Jun 2019
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