Acessibilidade / Reportar erro

Romper a superfície da imagem - reflexões de Brecht sobre o cinema e a fotografia

Breaking through the Surface of the Image - Brecht's reflections on film and photography 1 1 A tradução de citações tomadas do alemão é da autora, que agradece ao professor de alemão Peter Hilgeland por sua revisão.

Resumo

Este artigo pretende apresentar algumas das ideias de Brecht sobre o cinema e a fotografia, elaboradas em obras literárias, ensaios e notas escritos ao longo de sua trajetória. A proposta aqui é oferecer ao leitor de português acesso a uma importante faceta do pensamento brechtiano, ainda pouco conhecida no Brasil: suas reflexões sobre a imagem técnica.

Palavras-Chave:
Brecht; cinema; fotografia; imagem técnica

Abstract

This article aims to present some of Brecht's ideas on cinema and photography, elaborated in literary works, essays and notes written along his trajectory as author. The article intends to offer the Portuguese-language reader access to an important facet of Brechtian thought, still little known in Brazil: his reflections on the technical image.

Keywords:
Brecht; cinema; photography; technical image

Introdução

Neste texto, abordaremos as ideias que Brecht desenvolveu acerca do cinema e da fotografia em reflexões escritas na forma de notas, diário, conto, poesia, ensaio, de maneira a recuperar uma faceta importante do pensamento do escritor: aquela voltada para a mídia. Em função da limitação de espaço, selecionamos, para este artigo, a reflexão elaborada sobre a imagem técnica, deixando de lado os trabalhos sobre e para o rádio, e também as experiências práticas no cinema, na escrita de projetos e roteiros ao longo de toda a sua vida, e em sua participação na realização dos filmes Mistérios de uma barbearia (Erich Engel e Karl Valentin, 1923), Kuhle Wampe (Slatan Dudow, 1932) e Os carrascos também morrem (Fritz Lang, 1943).

Vamos começar com um breve comentário sobre a importância do cinema para o desenvolvimento do teatro épico por Brecht, para em seguida delinear o contexto dos debates sobre cinema na República de Weimar. Depois, se abordará uma das ações mais conhecidas de Brecht neste campo: o ensaio em que reflete sobre o processo que moveu contra a produtora que comprara o direito de adaptação de A ópera dos três vinténs. Então faremos um flashback em direção às ideias que mais cedo Brecht esboçara sobre o cinema, passando em seguida a comentar o conto Die Bestie, em que se apresenta uma reflexão sobre a encenação cinematográfica. Na sequência, comentaremos as notas deixadas nos diários e um ensaio escrito no período do exílio de Brecht em Hollywood, bem como a coletânea de poemas Elegias Hollywoodianas. Por fim, se abordará a relação de Brecht com a fotografia, observada em seu livro de fotopoemas Kriegsfibel, e em notas escritas ao longo de sua trajetória3 3 Para um olhar panorâmico sobre os vários aspectos da relação entre Brecht e o cinema, ver meu artigo “Brecht: teoria e prática crítica dos meios” (2019), e, para uma visão mais abrangente do mesmo tema, ver o livro de minha autoria, Brecht/cinema/América Latina, no prelo. Sem o conhecimento do idioma alemão, o acesso aos principais textos de Brecht sobre rádio e cinema é possível através de sua tradução ao inglês em coletânea organizada por Silberman (2000). .

O cinema na criação do teatro épico

Os estudos de Benjamin sobre Brecht afirmam que o teatro épico corresponde a novas formas técnicas como o rádio e o cinema e que o gesto é o núcleo do teatro de Brecht (LINDNER 2006LINDNER, B. “Die Entdeckung der Geste - Brecht und die Medien”. In: ARNOLD, H. L.; KNOPF, J. (Hg). Text+Kritik. Sonderband Bertolt Brecht. München: Richard Boorberg Verlag, 2006, 21-32.). No cinema se teria apresentado, para o escritor, o foco nas ações exteriores, uma forma de observação orientada ao acontecimento e a interpretação gestual, em que cada gesto se torna “citável”. Em Über Filmmusik (abril/maio de 1942), Brecht afirma que o teatro épico não deve pouco ao cinema: dele, o novo teatro tomou a própria “epicidade” (ou narratividade), a valorização do gesto como meio de expressão, a montagem, e o uso do filme em si como material documental incorporado à peça (BRECHT 1993BRECHT, B. “Betrachtung der Kunst und Kunst der Betrachtung [1939]”. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXII. Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1993.). E, em A compra do latão (1939-1955), obra inacabada de dramaturgia teórica escrita ao longo de vários anos, acrescenta-se que, no fundo, Piscator e o “homem de Augsburgo” só “registravam para o teatro o que se passava no cinema” (BRECHT 1999BRECHT, B. A compra do latão. Tradução Urs Zuber e P. Berndt. Évora: Vega, 1999 [1939-1955].: 102).

Pode-se dizer que o sucesso do cinema, ao representar uma nova concorrência, foi para o teatro um “impulso perturbador” (GERSCH 1975GERSCH, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.) que lhe lança um desafio correlato ao efeito exercido pela fotografia sobre a pintura. A fotografia libera a pintura da função mimética, podendo esta voltar-se para o material ̶ a cor, o traço, as formas, etc. Da mesma maneira, o cinema libera o teatro para voltar ao seu elemento original, o pódio - aspecto sobre o qual Benjamin (2017aBENJAMIN, W. Ensaios sobre Brecht. Tradução de Claudia Abeling. São Paulo: Boitempo, 2017a [1930-1939].) chamou atenção ao analisar o teatro de Brecht. Trata-se, segundo Gersch (1975GERSCH, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.), de um retorno ao teatro, em que o ator volta a estar no centro, a cena retoma o caráter de citação de algo já passado e o espectador é novamente interpelado. Há uma busca pela especificidade do teatro, um retorno a tradições teatrais mais remotas, podendo-se mesmo falar em uma “reteatralização” do teatro. Além disso, há a técnica da montagem que, ainda que fosse anterior ao cinema e não dele exclusiva, é por este colocada em evidência. De acordo com Walter Benjamin (2017aBENJAMIN, W. “A obra de arte na época da possibilidade de sua reprodução técnica (5ª versão)”. In: BENJAMIN, W. Estética e sociologia da arte. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b[1938], 7-47.), o princípio fundamental do teatro épico é a interrupção, obtida pela montagem em descontinuidade.

Outro aspecto da relação do teatro de Brecht com o cinema é o uso do filme no palco. Segundo Gersch (1975GERSCH, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.), a contraposição entre cenas teatrais e sequências fílmicas vista no teatro de Piscator gerou um dos princípios da dramaturgia de Brecht, pois, já que as personagens não precisavam mais fornecer informações objetivas a respeito de si ou do enredo, podiam manifestar-se livremente. Com isso, cada elemento a compor a peça teatral (cenário, música, interpretação, texto etc.) já não precisaria reiterar o outro, mas poderia lhe servir de contraponto. De forma que o princípio épico do comentário teria sido experimentado por Piscator justamente por meio do filme.

Brecht também fez uso de projeções cinematográficas em algumas de suas peças, de que são exemplos as duas montagens de A mãe, em 1932 e 1951, que traziam um breve filme no final, com função propagandística. Uma influência mais direta do cinema pode ser observada em certas peças suas: na interpretação clownesca da Peça didática de Baden-Baden sobre o acordo, de 1929, por exemplo, Gersch (1975GERSCH, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.) observa o princípio de destruição tomado do cinema grotesco de Laurel e Hardy, que tivera grande sucesso entre 1928 e 1929 na Alemanha. Joachin Lang (2006LANG, J. Episches Theater als Film. Würzburg: Verlag Königshausen & Neumann, 2006.), por sua vez, analisa o uso do flashback e da elipse temporal, recursos típicos do cinema, em A alma boa de Setsuan (1941), em cena em que a protagonista relata um acontecimento do passado, desdobrando-se em narradora e participante da ação. De forma que o próprio caráter épico do teatro brechtiano estaria relacionado à narratividade do cinema - que combina o narrativo e o dramático, o contar e o mostrar4 4 Jameson alerta para a superposição das palavras ‘‘épico’’ e ‘‘narrativo’’ em alemão, o que gera um problema de tradução pode ter dado margem a diferentes interpretações na difusão do pensamento de Brecht por todo o mundo. Jameson afirma que o épico em Brecht ‘‘de forma alguma envolve as associações elevadas e clássicas da tradição homérica’’, mas significa a simples “narrativa ou ato de contar histórias” (JAMESON 1999: 69-70). Bonnaud (2001) chega mesmo a propor chamar o teatro de Brecht de “narrativo”. Poderia até ser mais preciso, mas o termo épico está por demais estabelecido para que uma proposta como essa se dissemine. .

Mais um aspecto que Brecht tomou do cinema silencioso foi o uso de intertítulos - cujo abandono no cinema sonoro lamentou nas notas de seu roteiro Die Beule (1930). E também, da cultura de massa de maneira geral, Brecht extraiu a ideia de uma reconversão ou refuncionalização5 5 Barrento, nas notas de sua tradução de Benjamin (2017), propõe o termo ‘‘reconversão’’ para o neologismo de Brecht, Umfunktionierung. ‘‘Refuncionalização’’ seria uma tradução mais literal e direta, embora seja palavra inexistente nos dicionários. do “gosto do público” e da recepção distraída. Esta, que era rejeitada por uma inteligência literária ciosa da recepção individual contemplativa, é reconhecida por Kracauer (2009cKRACAUER, S. “Culto da distração”. In: KRACAUER, S. O ornamento da massa . Tradução de Carlos Eduardo J. Machado e Marlene Holzhausen. São Paulo: Cosac Naify , 2009c [1926], 343-348.) como fenômeno mais próprio para seu tempo do que a contemplação absorta, enquanto Benjamin afirma que “à meditação que se tornou, no processo de degeneração da burguesia, uma escola de comportamento associal, contrapõe-se a distração como uma forma especial de comportamento social” (BENJAMIN 2017bBENJAMIN, W. “A obra de arte na época da possibilidade de sua reprodução técnica (5ª versão)”. In: BENJAMIN, W. Estética e sociologia da arte. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b[1938], 7-47.: 42). Pois os novos meios implicariam, de acordo com Benjamin, em novas tarefas para a percepção de um público examinador distraído. Brecht justamente almejava para seu teatro um público distraído de fumadores de charuto, mais como o dos cabarés - e do primeiro cinema - do que como aquele do teatro tradicional, e com uma postura analítica como aquela dos espectadores de eventos esportivos.

Os debates sobre cinema na República de Weimar

Na Alemanha dos primórdios do cinema, a produção cinematográfica nacional tinha relativamente pouco espaço em seu mercado interno, se comparada à produção de países como EUA e França; por outro lado, era intensa a discussão em torno do cinema na esfera pública. Diederichs (1996DIEDERICHS, H. H. Frühgeschichte deutscher Filmtheorie. Habilitationsschrift im Fach Soziologie am Fachbereich Gesellschaftswissenschaften der J. W. Goethe-Universität Frankfurt am Main. Frankfurt am Main: 1996.) investiga os debates entabulados antes da Primeira Guerra Mundial na imprensa especializada em cinema, e também em meio à inteligência literária e entre os artífices do movimento pela reforma do cinema. Quanto a este último, tratou-se de um movimento heterogêneo composto por pedagogos, religiosos e juristas, de amplo espectro político que incluía de ultraconservadores a liberais, e que, a partir de associações religiosas e comunitárias, pretendia reformar o cinema para um uso mais “elevado”.

O movimento pela reforma do cinema estava preocupado com os efeitos deletérios da nova diversão popular, que poderia representar um “incentivo aos delitos” para os jovens e estimular o “descuido moral” das moças, com uma “perigosa hiperexcitação da fantasia” e a “turvação do senso de realidade”. Os reformadores do cinema não negavam o cinema em si, mas seu uso por “homens de negócio inescrupulosos”. Boa parte deles via o motivo dos problemas no princípio de concorrência capitalista; outros, porém, o encontravam na origem estrangeira dos filmes ou no mau gosto do público. As propostas dos reformadores do cinema se constituíam de medidas repressivas como o estabelecimento de censura e classificação etária, ou proposições positivas, como o estímulo à produção e exibição de filmes de cunho didático (DIEDERICHS 1996DIEDERICHS, H. H. Frühgeschichte deutscher Filmtheorie. Habilitationsschrift im Fach Soziologie am Fachbereich Gesellschaftswissenschaften der J. W. Goethe-Universität Frankfurt am Main. Frankfurt am Main: 1996.).

Para o reformador Häfker, um escritor de Dresden, o motivo da má-qualidade dos programas correntes nas salas de exibição era a liberdade de comércio, daí que reivindicasse a estatização do cinema para fins educativos. Em seus estudos, Häfker analisa a organização econômica do cinema: para a recuperação lucrativa do investimento na custosa produção de filmes se fazia necessário um mercado internacional, com o que era possível observar quase o mesmo programa em salas de cinema ao redor de todo o mundo. Häfker preocupava-se com a cartelização do negócio, que deixava a “alimentação espiritual” de amplas camadas população nas mãos de um monopólio. Sua proposta era a utilização do cinema para finalidades mais elevadas: a observação da beleza do movimento humano e da natureza, a elaboração do jornal do futuro, obras de matéria histórica ou filmes técnicos e industriais para uso didático (DIEDERICHS 1996DIEDERICHS, H. H. Frühgeschichte deutscher Filmtheorie. Habilitationsschrift im Fach Soziologie am Fachbereich Gesellschaftswissenschaften der J. W. Goethe-Universität Frankfurt am Main. Frankfurt am Main: 1996.).

Entre os intelectuais que debatiam a emergência de novos meios como o cinema e o rádio na esfera pública alemã - até então representada sobretudo pelos jornais -, ideias ambivalentes emergiam: eles oscilavam entre dar boas-vindas aos novos meios como possíveis veículos de democratização da cultura, de politização das massas, e a sua rejeição pelo caráter comercial, superficial ou de “mau-gosto” dos produtos que veiculavam. A cultura de massa dos grandes centros urbanos representou uma mudança estrutural na esfera pública, e também nas formas de percepção do público. No cinema, o choque se constitui em princípio formal, com o que o meio dá vazão a uma estética adequada a seu tempo. Os filmes têm uma função compensatória, de fuga da pressão e da coerção do trabalho mecanizado - ao mesmo tempo, o veículo da fuga é ele próprio um produto do mundo técnico. O cinema podia ser saudado como espaço para o florescimento de uma contracultura plebeia, mas também ser visto como meio de alienação, uniformização a devorar a individualidade dos povos. Para além do cinema, a massificação da cultura de maneira mais ampla gera na crítica um alerta contra a banalização e a dessacralização dos bens culturais - a perda do valor de culto a que Benjamin deu boas-vindas (KAES 1978KAES, A. (Hg). Kino-Debatte. Texte zum Verhältnis von Literatur und Film 1909-1929. München; Tübingen: Deutscher Taschenbuch Verlag; Max Niemeyer Verlag, 1978.).

Portanto, ao primeiro momento proletário do cinema os intelectuais alemães reagiram com um misto de recusa e fascínio. Sua relação com o novo meio estava atravessada pela crise do papel dos intelectuais na sociedade (HELLER 1985HELLER, H-B. Literarische Intelligenz und Film. Tübigen: Max Niemeyer Verlag, 1985.). A invasão do cinema leva os escritores a uma autorreflexão sociológica e estética a respeito da própria literatura. Se até 1909 o novo meio ainda não estava tão presente nos debates da crítica, a partir de seu estabelecimento em salas, passa a representar uma concorrência para a literatura e o teatro. Os literatos veem aí um risco para as condições de existência da literatura; ao mesmo tempo, o cinema poderia representar uma possibilidade de dirigirem-se a um público não-letrado - pois a burguesia quer ter papel de liderança no processo de massificação da cultura (KAES 1978KAES, A. (Hg). Kino-Debatte. Texte zum Verhältnis von Literatur und Film 1909-1929. München; Tübingen: Deutscher Taschenbuch Verlag; Max Niemeyer Verlag, 1978.)6 6 Os literatos são obrigados a reconhecer que o fenômeno do cinema altera as condições de produção e recepção da literatura, levando mesmo, posteriormente, a uma problematização do próprio conceito de literatura. Esta acaba por tornar-se permeável aos novos meios, assimilando-lhes elementos estéticos como a visualidade, a fragmentação, a montagem, a composição orientada aos efeitos, e a incorporação do documental, da reportagem. Aponta-se, por exemplo, o estilo ‘‘cinematográfico’’ de Döblin, com sua escrita apressada e precisa, ou a lírica com ‘‘valor de uso’’ e o recurso a formas estilísticas jornalísticas em Brecht e Feuchtwanger (KAES 1978). .

Assim, o anseio por ressonância numa esfera pública cada vez mais descolada da literatura leva alguns escritores ao cinema. A produção dos Autorenfilme7 7 Os “filmes de autor” são adaptações cinematográficas de obras literárias ou aqueles produzidos a partir de roteiros originais de escritores reconhecidos. O conceito de Autorenfilm não deve ser confundido com a noção de ‘‘cinema de autor’’ cunhada na França nos anos 1950: esta se tratava da valorização de diretores de cinema que conseguiram imprimir uma marca de estilo próprio mesmo trabalhando dentro da indústria de Hollywood (BERNARDET 1994). , correspondentes alemães do Film d'Art francês, é uma tentativa de ganhar respeitabilidade para o cinema: para a sua legitimação, procura-se “enobrecê-lo” por meio da adaptação de obras literárias canonizadas. A tendência causa indignação entre alguns intelectuais, que rejeitavam que escritores respeitados vendessem sua arte no “bordel do cinema” (DIEDERICHS 1996DIEDERICHS, H. H. Frühgeschichte deutscher Filmtheorie. Habilitationsschrift im Fach Soziologie am Fachbereich Gesellschaftswissenschaften der J. W. Goethe-Universität Frankfurt am Main. Frankfurt am Main: 1996.). Pois o cinema põe também em crise a noção de autoria: a sacrossanta propriedade intelectual é colocada em xeque, já que o autor do roteiro não tem o menor controle sobre o produto final (KAES 1978KAES, A. (Hg). Kino-Debatte. Texte zum Verhältnis von Literatur und Film 1909-1929. München; Tübingen: Deutscher Taschenbuch Verlag; Max Niemeyer Verlag, 1978.).

Outro fenômeno a alimentar os debates sobre cinema foi a chamada disputa entre o teatro e o cinema (Theater-Kino-Streit), quando alguns profissionais de teatro vieram a público para denunciar os efeitos da concorrência do cinema, a roubar aos palcos público e profissionais - havendo mesmo quem quisesse proibir atores de teatro de interpretarem papéis em filmes. Alguns, por outro lado, acreditavam que o cinema poderia liberar o palco do comercialismo, dirigindo-o de volta à sua verdadeira essência: é o caso de Lukács, por exemplo, que defende que o próprio do teatro é a presença, a abstração, a tragédia8 8 No texto Ideias para uma estética do cinema, de 1913. . Tanto os filmes de autores como a disputa entre o teatro e o cinema serviram para estimular o pensamento sobre o cinema, levantando questões como se ele seria ou não uma nova arte, levando à comparação entre o cinema e outras formas artísticas e à reflexão sobre o que lhe seria inerente e específico (DIEDERICHS 1996DIEDERICHS, H. H. Frühgeschichte deutscher Filmtheorie. Habilitationsschrift im Fach Soziologie am Fachbereich Gesellschaftswissenschaften der J. W. Goethe-Universität Frankfurt am Main. Frankfurt am Main: 1996.).

Houve quem valorizasse o cinema como a possibilidade de um reflexo da vida, do registro de pedaços de realidade, e quem afirmasse que, justamente por isso, o cinema seria mera reprodução, mas não uma arte, por não alcançar a abstração que seria condição necessária a essa. Entre aqueles que enxergavam com bons olhos a ideia de reprodução da realidade, destacou-se a possibilidade da filmagem de espaços reais, e a mobilidade da câmera, a nos transportar a lugares remotos. Outros viam o cinema, pelo contrário, como possibilidade para a acentuação do fantástico e do fabuloso na arte. Destacou-se sua capacidade de materializar lembranças e sonhos. Também se deram boas-vindas ao renascimento da pantomima, da mímica, da linguagem corporal trazidos pelo cinema, numa revalorização da comunicação não-verbal, gestual e fisionômica: chamava a atenção o ocaso da palavra e o incremento de uma cultura visual. Outro tema em debate foi o recurso aos intertítulos: quase todos os rejeitavam, acreditando que um bom filme deveria ser capaz de contar uma história recorrendo apenas a imagens.

O cinema podia ser visto como vitória da trivialidade. Em oposição a seu aspecto populista, alguns preferiam o hermetismo vanguardístico; contra a ditadura do gosto do público, a incomunicabilidade, a reivindicação da autonomia da poesia. Na comparação com o teatro, comentou-se que o cinema estaria limitado à criação de efeitos de suspense, que seu ritmo estava definido pelo máximo de ação no mínimo de tempo, e os filmes permaneceriam reduzidos à representação de ações exteriores. Pois só a palavra, exclusiva do teatro, daria acesso à psicologia, à interioridade das personagens. Na oposição ao cinema como arte, o argumento mais recorrente era seu caráter de entretenimento. Havia quem visse o cinema como substituto da literatura barata e da diversão das feiras populares, e atribuísse à sua aparência superficial um efeito de infantilização do público, um estímulo à preguiça de pensar no que outrora fora o “povo dos poetas e dos pensadores”.

Também o potencial de influência política do cinema foi discutido, a recepção de O encouraçado Potemkin (S. Eisenstein, 1925) servindo a isso de estímulo. Em 1928, deu-se o lançamento da “Liga popular para arte cinematográfica”, uma frente ampla, não partidária, que contou com a participação de Heinrich Mann, e cuja proposta poderia ser concebida hoje como um projeto de formação de público, que consistia na exibição de filmes com uma programação especial, que dava ênfase ao cinema soviético, e incluía a publicação de uma revista com análise de filmes, para fazer contraposição à recepção alienada por parte do grande público.

Entre os social-democratas, estava disseminado o pensamento de que o cinema desviaria o proletariado da militância. De acordo com um estudioso das políticas culturais do movimento operário na República de Weimar, “na rejeição ao cinema-lixo e na ênfase na função educativa e formadora do cinema estavam unidos os pedagogos do movimento da reforma do cinema e o movimento dos trabalhadores” (KINTER apud DIEDERICHS 1996DIEDERICHS, H. H. Frühgeschichte deutscher Filmtheorie. Habilitationsschrift im Fach Soziologie am Fachbereich Gesellschaftswissenschaften der J. W. Goethe-Universität Frankfurt am Main. Frankfurt am Main: 1996.: 12). Alimentou-se a ideia da realização de exibições em sindicatos, mas só a partir da segunda metade dos anos 1920 o partido social-democrata engajou-se na produção de filmes, voltados sobretudo para campanhas eleitorais (STOOSS 1977STOOSS, T. “Erobert den Film! Oder ‚Prometheus‘ gegen ‚UFA‘ & Co.”. In: STOOSS, T. Neuen Gesellshaft für Bildende Kunst/Freuden der Deutschen Kinemathek (Hg). Erobert den Film - Proletariat und Film in der Weimarer Republik. Berlin: NGBK, 1977, 4-47.).

Com relação ao Partido Comunista, este também passou, na segunda metade dos anos 1920, a promover a produção de filmes através da Prometheus, produtora que tinha ligação com o partido e com a URSS. A Prometheus surgira como braço cinematográfico da Organização Internacional de Ajuda aos Trabalhadores, que fora criada para arrecadar fundos para a população em situação de penúria na URSS. Inicialmente ocupava-se com a importação e distribuição de filmes soviéticos para a Alemanha, além da produção de alguns documentários. Depois, em função de uma lei de compensação por importações, a Prometheus passaria à produção de filmes de ficção (STOOSS 1977STOOSS, T. “Erobert den Film! Oder ‚Prometheus‘ gegen ‚UFA‘ & Co.”. In: STOOSS, T. Neuen Gesellshaft für Bildende Kunst/Freuden der Deutschen Kinemathek (Hg). Erobert den Film - Proletariat und Film in der Weimarer Republik. Berlin: NGBK, 1977, 4-47., MURRAY 1990MURRAY, B. Film and the German left in the Weimar Republic. Austin: Texas University Press, 1990.), entre os quais encontra-se Kuhle Wampe, filme em cuja realização Brecht engajou-se.

O processo dos três vinténs

Diante de tal contexto, vê-se que o ensaio de Brecht, O processo dos três vinténs, era uma evidente intervenção nos debates da época, uma provocação aos intelectuais cujas posições se baseavam numa oposição idealista entre espírito e matéria, arte e mercado. Brecht se diferencia dos pensadores de então, que se concentravam na “essência” do cinema e na busca por uma estética da linguagem cinematográfica, ao colocar seu foco na materialidade da produção e em suas consequências para a arte como um todo (GERSCH 1975GERSCH, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.).

A história é conhecida. Ao fazer o contrato para adaptação cinematográfica de A ópera dos três vinténs, Brecht havia incluído uma cláusula em que buscava garantir que a versão final do roteiro passasse por seu crivo. Como esta cláusula não foi respeitada, Brecht entrou com um processo na justiça. A partir disto, publicou o texto que considerava uma “experiência sociológica”, envolvendo a indústria cinematográfica, a justiça e a imprensa. O objetivo de Brecht é provar que, embora na teoria a justiça devesse defender o direito à propriedade intelectual, na prática não o faz, porque o capital fala mais alto do que o idealismo da lei. A ironia da situação é que Brecht vai aos tribunais para defender um direito com o qual ele mesmo não concorda, apenas para provar a discrepância entre a ideologia burguesa e a realidade do capital. Afinal, como afirma Benjamin em seu A obra de arte na época da possibilidade de sua reprodução técnica, a transformação da superestrutura é mais lenta do que a da base.

Com o estrondoso sucesso de A ópera dos três vinténs, a proposta de uma adaptação cinematográfica significava para Brecht a possibilidade de ganhar dinheiro mas também uma oportunidade para adquirir experiência no novo meio. O caso era um prato cheio para o polemista Brecht, levando em consideração os debates públicos acerca do problema dos direitos autorais no cinema, e a notoriedade de A ópera dos três vinténs, que fora encenada em diversos países europeus demais de ter alcançado grande sucesso de vendas em discos.

Durante todo o ano de 1930 a imprensa noticiou a realização da adaptação cinematográfica de A ópera dos três vinténs. Artigos promocionais destacavam a magnificência dos cenários, reconstrução em estúdio da Londres de outrora. Logo as polêmicas começam a surgir. Scheer, presidente da associação dos exibidores de cinema, fez um discurso em assembleia, contrário à realização da adaptação cinematográfica de uma ópera que, com base nas canções tocadas em disco, considerava conteúdo impróprio para o público de cinema. O discurso foi publicado e gerou diversas respostas em oposição, entre as quais a de Herbert Jhering, que observava que, além da censura oficial, havia ainda aquela imposta pelos exibidores.

Quando se inicia o processo surgem logo inúmeras matérias, destacando o caráter histórico do caso, já que era a primeira vez em que um autor entrava com processo antes de a obra ficar pronta. Para a imprensa, era um caso de grande interesse, pois levantava o problema dos direitos autorais no âmbito específico do cinema sonoro. Uma publicação afirma tratar-se de um documento de época: a luta entre o “ideal de uma obra de arte” e os 800 mil marcos já investidos no filme. Em texto de novembro de 1930, Kracauer afirma que o processo chamava atenção para a falta de escrúpulos da indústria de cinema contra autores de nível. A Nero havia vendido os direitos de adaptação à Tobis e à Warner Bros, que se tornariam suas parceiras na produção. Para Kracauer, o processo demonstrava que um entendimento entre a vanguarda artística e a indústria cinematográfica dificilmente seria possível, e a história do processo daria um romance social moderno.

Film-Kurier é a publicação que acompanha todo o caso mais de perto. Em outubro de 1930 noticia o processo levantado por Brecht, e dá espaço de resposta à Nero, que afirma que o autor pretendia dar ao filme uma acentuada tendência política que, sem levar em conta questões de censura, em consideração à sua posição como firma “politicamente neutra”, de maneira alguma poderia admitir - tal argumentação de caráter político não será destacada depois durante o processo, quando o juiz e os advogados se concentram em questões de ordem legal e contratual.

O julgamento teve tanta notoriedade que foi preciso colocar um cordão de isolamento para afastar os curiosos. Film-Kurier relata o processo em matéria de página inteira, publicando na íntegra os juízos. Brecht propôs que o filme constasse como adaptação de The Beggar’s Opera, com músicas de Brecht e Weill, alegando proteção dos fundamentos estilísticos de sua obra e até mesmo dos direitos do espectador de receber uma obra autêntica, e queria retomar o direito de adaptação da ópera segundo suas ideias. Dr. Frankfurter, advogado da Nero, destacou a importância de que o filme fosse levado a termo, sublinhando o significado internacional da empreitada, já que, se esta não desse certo, os produtores estadunidenses já não haveriam de trabalhar com uma empresa alemã. A produtora se defendeu fazendo menção aos atrasos de Brecht e às dificuldades em obter o roteiro do escritor, e reclamou do desvio do roteiro com relação à ópera. O juiz concluiu que Brecht teria dificultado o trabalho conjunto, rompendo assim o contrato primeiro, o que justificaria que a própria empresa também o fizesse, levando a cabo o filme sem a aprovação do escritor; e argumentou ainda com a especificidade do direito autoral no cinema, em que este seria transferido, no processo de realização da obra, do autor do texto àquele do produto audiovisual9 9 Lindner (2003) especula que Brecht teria ocultado o argumento Die Beule, que publicou um ano mais tarde, pois não queria que fosse realizado sob a direção Pabst. De toda forma, a demora na entrega do texto serviu como pretexto para a firma, já que Brecht teria impedido a rápida filmagem, não tendo colocado em prática a cláusula de codeterminação. No entanto, algumas das ideias presentes em Die Beule se encontram no filme de Pabst, pois chegaram a ser transmitidas à produção. .

Em dezembro, Film-Kurier publica nota sobre o acordo de Brecht com a Nero: o autor recebeu pagamento pelo trabalho já investido no roteiro, retomou o direito de adaptação da obra para depois de passado algum tempo, e o filme deveria ser apresentado como “versão livre a partir da ópera de Brecht e Weill”, com o que o escritor se eximia de qualquer responsabilidade sobre a obra cinematográfica. Weill também havia levantado um processo contra a empresa mas, em seu caso, o juízo fora favorável ao músico, que igualmente acabou por entrar em acordo com a produtora, obtendo pagamento por seu trabalho e um contrato para a realização de três outros filmes.

A imprensa reage aos acordos com desapontamento. A impressão geral é a de que, ao não ir adiante com o processo, Brecht teria se deixado comprar. A Film-Kurier de 05/02/1931 expressa sua decepção com os artistas, que teriam se revelado “gente de negócios”, e alerta a imprensa para ser mais cuidadosa ao propagar pontos de vista que defendam “ideais artísticos”. Em Licht-Bild-Bühne, Lothar Stark publica duas cartas abertas e um poema em que ironiza Brecht e Weill e questiona o que são os problemas de moradia, emprego, fuga de capitais etc., diante da magnificência dos artistas. Há até mesmo quem desenhe tirinhas mostrando Brecht e Weill saindo do juízo com seus sacos de dinheiro, Weill, que defende a arte com melodia, levando o maior deles10 10 As informações apresentadas neste trecho foram extraídas do livro Photo: Casparius (BOCK; BERGER 1978), catálogo de exposição organizada na cinemateca de Berlim sobre o fotógrafo Hans Casparius, que registrou as filmagens do filme de Pabst. Neste catálogo foram publicados vários artigos da imprensa da época sobre o processo de Brecht contra a produtora. .

Diante de tudo isso, antes de lançar-se a seu “experimento sociológico”, Brecht publica, em Der Scheinwerfer de dezembro de 1930, o texto Zur Tonfilmdiskussion, que vale a pena reproduzir na íntegra:

O processo da “Ópera dos três vinténs” mostra quão avançado está o processo de refundição de valores espirituais em mercadoria. A fim de preservar as características formais e sócio-críticas da “Ópera dos três vinténs” em filme sonoro, fizemos nós mesmos um esboço de manuscrito. Para proteger este projeto contra a previsível neutralização pela indústria fizemos um contrato. Para tornar efetivo este contrato, fizemos um processo. No que deu tudo isso? Pelo projeto nos foi oferecido dinheiro, para que não o fizéssemos. Era uma mercadoria. Pelo contrato, que não foi observado de forma alguma, ofereceu-se-nos 25.000 marcos ainda antes do tribunal, para que o vendêssemos. O contrato era de fato uma mercadoria. O processo, que em parte perdemos, pois nossos depoimentos não foram escutados, deve ser conduzido através de todas as instâncias, o que é muito caro, de forma que também o tenhamos que comprar por um preço inacessível. O processo - também uma mercadoria. Já segundo o advogado Cícero, o sistema judiciário custa ou a justiça ou o dinheiro. Então a justiça situa-se atrás de muitas portas, que só se abrem com dinheiro. O que se pode então aprender do processo da “Ópera dos três vinténs”? Se você compra um bilhete para um filme sonoro, você aprendeu e sabe que isto que irá ver foi produzido tão somente como mercadoria em um mundo composto exclusivamente de mercadorias. Se você de fato com seu bilhete queria comprar arte, então você não aprendeu que a arte que lhe é vendida no filme sonoro primeiro precisa ser vendável para poder ser vendida (BRECHT 1992BRECHT, B. “Zur Tonfilmdiskussion” [1930]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke, Band XXI. Berlin/Weimar/Frankfurt am Main: Aufbau-Verlag/Suhrkamp, 1992, 444.: 444).

Enfim, de toda esta polêmica resulta o mais consistente ensaio de Brecht sobre cinema: O processo dos três vinténs. José Antônio Pasta Jr. (1986PASTA JR., J. A. Trabalho de Brecht - breve introdução ao estudo de uma classicidade contemporânea. São Paulo: Ática, 1986.) toma este texto como um dos mais importantes de Brecht, nele analisando a atitude do escândalo. Do ensaio se depreende um dos papéis fundamentais do cinema para Brecht, o de estabelecer a arte como mercadoria, fato progressista se considerado não como fim mas como etapa do progresso, pois significa a “proletarização dos produtores: tal como o trabalhador manual, também o trabalhador intelectual não tem mais para investir no processo de produção a não ser a pura força de trabalho” (BRECHT 2005BRECHT, B. O processo do filme A ópera dos três vinténs [1931]. Tradução de João Barrento. Porto: Campo das Letras, 2005a.a: 81). O processo que coloca o intelectual do mesmo lado do proletariado é irreversível e a ele não se pode escapar; pois a liberdade do artista de “prescindir dos novos instrumentos de trabalho é o mesmo que lhe apontar uma liberdade fora do processo de produção” (BRECHT 2005BRECHT, B. Diário de trabalho, vol. 2 [1941-1947]. Tradução de Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2005b.a: 81).

O “experimento sociológico” de Brecht trata, de acordo com Bürguer (1978), do lugar da arte na sociedade capitalista tardia. Brecht contrapõe o conceito invulnerável de arte alimentado pelo “humano” ao interesse de uso do capital. A autonomia da arte a nada corresponde na prática: provocado por Brecht, o tribunal assume a tarefa de revelar a nulidade do conceito. Bürguer valoriza a contribuição de Brecht em revelar a autonomia como conceito institucionalizado e a arte como mercadoria. A partir do cinema, o escritor observa o caráter de mercadoria de toda arte sem exceção. Para Brecht, trata-se de um processo progressista por revogar o conceito de arte autônoma, com o que o modo de produção capitalista destrói a própria ideologia burguesa, o que se configura num pré-requisito para o surgimento de uma nova arte, para a necessária superação da arte “irradiante”.

O texto de Brecht combate as tendências idealistas da intelligentsia alemã em relação à arte, que podiam ser vistas como exemplo de Ungleichzeitigkeit, extemporaneidade ou não-contemporaneidade, conceito proposto por Bloch (1991BLOCH, E. Heritage of our times. Tradução de Neville e Stephen Plaice. Cambridge: Polity Press, 1991[1935/1962].) em sua análise da ascensão do nazismo, quando conteúdos arcaicos, como a mitologia relativa ao solo e ao sangue, foram mobilizados politicamente. Em O autor como produtor (1934), reverberando ideias que Brecht apresentara em seu ensaio, Benjamin afirma que no contexto do capitalismo avançado o intelectual como “homem de espírito” desaparece, e lembra que a luta revolucionária não se dá entre capitalismo e espírito, mas entre capitalismo e proletariado.

Também o famoso ensaio de Benjamin, A obra de arte na época da possibilidade de sua reprodução técnica (5ª versão, 1938), leva adiante reflexões que Brecht apresentara em O processo dos três vinténs: as ideias de que se havia modificado o próprio conceito de arte e de que a reprodutibilidade técnica representava uma liquidação do valor de tradição da herança cultural. Eliminado o critério da autenticidade na valoração de obras artísticas, desaparecida a aparência de autonomia da arte, a consequência seria uma mudança em sua função social. Em seu texto, Brecht detecta a alteração na percepção do público trazida pelo novo meio, a afetar todas as artes, pois “o espectador de cinema lê uma narrativa de forma diferente” (BRECHT 2005aBRECHT, B. O processo do filme A ópera dos três vinténs [1931]. Tradução de João Barrento. Porto: Campo das Letras, 2005a.: 79). A alteração no aparelho perceptivo do ser humano será um dos temas centrais de Benjamin em seu ensaio. Brecht e Benjamin coincidem ainda em apontar o problema da veiculação de velhos padrões de significado por meio de um novo aparato11 11 Para uma comparação aprofundada entre o ensaio de Brecht e A obra de arte na época da possibilidade de sua reprodução técnica, ver Giles (1998). Para uma análise crítica deste ensaio e uma visão mais compreensiva do pensamento de Benjamin sobre as mídias, ver Wagner (1992). E, para um panorama da recepção alemã posterior de O processo dos três vinténs, ver meu artigo “Um ‘experimento sociológico’: o lugar de Brecht na história do cinema” (2020). .

Brecht afirma que o gosto da massa está mais enraizado na realidade do que o gosto da intelectualidade. Também para Kracauer, a distração da multidão corresponde a um prazer estético legítimo: “A massa que adota espontaneamente este modelo é superior àqueles que o desprezam, quando ela reconhece de modo claro os fatos em estado bruto” (KRACAUER 2009aKRACAUER, S. “O ornamento da massa”. In: KRACAUER, S. O ornamento da massa. Tradução de Carlos Eduardo J. Machado e Marlene Holzhausen. São Paulo: Cosac Naify, 2009a [1927], 91-103.: 101), e as manifestações de uma arte supostamente superior são na verdade produtos ultrapassados, que se evadem das necessidades da época. Por outro lado, Brecht reconhece os efeitos deletérios do cinema, ao estimular a identificação do público com o inimigo de classe, e ao tomar parte do fenômeno do lazer administrado que Kracauer foi um dos primeiros a observar e que foi analisado posteriormente por Adorno (2002ADORNO, T. “Tempo livre”. In: DE ALMEIDA, J. M. B. (org.). Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002[1969] , 63-70.).

Mas é sobretudo a marcada oposição, própria das formas de produção capitalista, entre trabalho e distracção que estabelece, para todas as actividades do espírito, uma distinção entre aquelas que servem o trabalho e aquelas outras que servem a distracção, fazendo das últimas um sistema de reprodução da força de trabalho. A distracção não pode integrar nada do que o trabalho integra. No interesse da produção, a distracção é dedicada à não-produção. Deste modo não se consegue, naturalmente, criar um estilo de vida uniforme.

O erro não reside no facto de, assim, a arte ser arrastada para o âmbito da produção, mas no facto de isto se realizar de forma tão incompleta e de a arte dever constituir uma ilha da “não-produção”. Quem compra um bilhete transforma-se, diante do ecrã, num parasita e num explorador. Dado que aqui o produto da exploração é transferido para ele próprio, ele transforma-se, por assim dizer, numa vítima da auto-exploração [Einbeutung]” (BRECHT 2005aBRECHT, B. O processo do filme A ópera dos três vinténs [1931]. Tradução de João Barrento. Porto: Campo das Letras, 2005a.: 93)12 12 O termo de que se utiliza Pasta (1986) em seu livro para a tradução de ‘‘Einbeutung’’ é ‘‘insploração’’, solução também adotada na tradução ao castelhano de Joan Fontcubierta, e que nos parece corresponder melhor ao neologismo de Brecht: trata-se de uma espécie de exploração para dentro. .

Contra tal efeito, Brecht recomenda que o diretor cinematográfico não se empenhe na dissimulação das imperfeições do aparato com o objetivo de realizar uma reprodução o mais fiel possível da realidade: “estando tão dentro do negócio, ele está longe de supor que precisamente essas deficiências de sua aparelhagem podem ser vantagens, porque isso pressuporia uma transformação da função do cinema” (BRECHT 2005aBRECHT, B. O processo do filme A ópera dos três vinténs [1931]. Tradução de João Barrento. Porto: Campo das Letras, 2005a.: 101). Nesta passagem, está fazendo uma sugestão contra a impressão de realidade gerada pelo cinema, contra a decupagem transparente13 13 ‘‘Decupagem transparente’’ é como se costuma chamar o padrão de montagem do cinema convencional, em que uma série de regras foram desenvolvidas para tornar os cortes tão suaves e imperceptíveis quanto possível, criando-se assim a sensação de continuidade entre os planos que compõem um filme. Para uma reflexão sobre o tema, ver Xavier (2005). , em favor de um uso inteligente da montagem e da descontinuidade inerente ao meio. Brecht também desmistifica a ideia de que um filme possa ser “retrógrado no conteúdo e progressista na forma” (BRECHT 2005aBRECHT, B. Diário de trabalho, vol. 2 [1941-1947]. Tradução de Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2005b.: 98), ou seja, a fetichização da técnica de quando se valoriza um filme por ser “bem-feito” apesar de seu conteúdo tolo. Pois, assim concebida, a técnica é usada para “fazer de uma porção de esterco, uma saborosa sobremesa” (BRECHT 2005aBRECHT, B. O processo do filme A ópera dos três vinténs [1931]. Tradução de João Barrento. Porto: Campo das Letras, 2005a.: 101).

Diversos aspectos do cinema, porém, são valorizados por Brecht: por exemplo o fato de que, “no momento em que o homem surge como objeto, as relações de causalidade tornam-se decisivas” (BRECHT 2005aBRECHT, B. O processo do filme A ópera dos três vinténs [1931]. Tradução de João Barrento. Porto: Campo das Letras, 2005a.: 96). A externalidade do cinema pode servir para deixar de lado a narrativa fundada na psicologia individual e, usando os recursos da montagem, chegar à causalidade dos fenômenos. Pois, em seu uso científico, o cinema pode fixar os comportamentos visíveis, mostrar processos simultâneos e, trazido à esfera social, revelar os comportamentos dos homens entre si. O cinema é também uma chance de assumir o caráter de mercadoria da arte, tomando-o como pressuposto, para que a arte volte a tomar parte nos processos e relações de produção; e abre caminho para o surgimento de uma nova concepção da criação artística, fundada não no gênio individual, mas na colaboração coletiva. O cinema pode representar a emancipação da arte do valor de culto, sua reinserção no cotidiano. Contribuindo para a superação de concepções caducas sobre a arte, o cinema é, para Brecht, sobretudo, uma oportunidade de transformação da arte como um todo e do próprio conceito de arte.

Ideias tempranas sobre o cinema

Datam de muito cedo, de quando ainda vivia em sua cidade natal, Augsburgo, as primeiras reflexões registradas por Brecht sobre o cinema. Aus dem Theaterleben, publicado em Der Volkswille em novembro de 1919, é uma crítica aos Aufklärungfilme, filmes de esclarecimento ou educação sexual, com temas “edificantes”, que deveriam ter efeito moralizante ao retratar, por exemplo, a vida de mulheres caídas na prostituição. Brecht, com sua perspicácia, detecta a contradição contida em tais filmes, que ao mesmo tempo excitam a imaginação das moças para o que acontece nas elipses, e asseguram os rapazes de sua posição por meio da personagem masculina. Brecht felicita os soluços das espectadoras, que o poupam de ouvir o acompanhamento do órgão. E afirma que, enquanto os cinemas gozarem de liberdade para exibir este tipo de porcarias, os teatros ficarão vazios. E observa o uso da compaixão como mercadoria.

Aqui há um aspecto importante para o desenvolvimento posterior do teatro épico por Brecht, que é a compreensão da compaixão enquanto mercadoria (tema tão bem explorado na Ópera dos três vinténs) e a rejeição absoluta do recurso ao sentimentalismo. Ao mesmo tempo, vemos que Brecht faz uma intervenção nos debates sobre o cinema, ironizando aqueles que pretendiam combater seu caráter meramente comercial e de entretenimento com obras “edificantes” - pois identifica elas mesmas como mercadoria.

No próximo texto em que aborda o cinema - ainda que de passagem - pode-se ver a mesma ironia dirigida àqueles que rejeitavam o cinema por seu caráter popular. Brecht começa o texto, Das Theater als Sport, um manuscrito de 1920, afirmando:

O cinema é uma coisa para os pobres diabos, que querem satisfazer, de passagem, sua fome por ação e romance, três suicídios por oitenta centavos, embrulhados em ensino sobre como comportar-se no salão, com acompanhamento de órgão e belas paisagens; o cinema, isto é uma instituição de caridade alimentar, um autômato, um asilo para os desabrigados espirituais ̶ mas o teatro é para apreciadores mais requintados (BRECHT 1992BRECHT, B. “Das Theater als Sport” [1920]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI . Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1992, 56-58.: 56-57).

Pois, no teatro, o interesse do espectador recai sobre o modo como a história é contada; já no cinema o espectador não iria além do acompanhamento da fábula, e por isso os filmes estariam destinados principalmente aos tolos. Novamente, de certa forma Brecht parece alinhar-se àqueles que rejeitavam o caráter “plebeu” do cinema. Mas esta impressão é desfeita quando se atenta ao que Brecht valoriza no teatro, que é o aspecto “esportivo”: o conflito entre personagens, a ser observado como uma luta de boxe - outra diversão plebeia -, em que os pequenos truques são o que há de interessante.

Über den Film (1922) é a contribuição de Brecht para uma série de artigos organizada por Jhering para o jornal Berliner Börsen-Courier com a opinião de poetas alemães sobre o cinema. Brecht afirma que “nenhum engenheiro concebe o projeto de uma instalação hidráulica na esperança de por acaso encontrar uma empresa que precisa urgente e exatamente dessa instalação” (BRECHT 1992BRECHT, B. “Über den Film” [1922]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI . Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1992, 100.: 100). Assevera também que os poetas não podem tolerar o ritmo do cinema (porém, mais tarde, em sua poesia “para os habitantes da cidade”, será evidente seu esforço em adequá-la aos novos padrões de percepção e escuta da população urbana). E termina por concluir que se alcançaria muito se ao menos se organizasse a distribuição de fábulas cinematográficas artisticamente aceitáveis. Quer dizer, aqui Brecht adere sem ironia à intelligentsia que repudiava a tolice do cinema.

Em Weniger Sicherheit!!! (texto datilografado de 1926) ainda se pode detectar algo desse desprezo ao cinema (“de um serrote envergado entre as pernas não se espera escutar uma fuga”) mas aí já se entreveem no meio algumas possibilidades interessantes, ou aproveitáveis. Brecht valoriza a capacidade do cinema de “reunir documentos”. Deve-se entender porém que, por documentos, Brecht não se refere à reprodução do real, ou a um cinema de tipo documental, mas a materiais brutos, pedaços de realidade que podem ser combinados como um recorte de jornal ou um objeto qualquer extraído do real e colocado numa colagem. Pois, entre os “documentos”, Brecht menciona um mímico, um cantor que nos dá vontade de ver ao vivo etc. - ou seja, pode-se interpretar a palavra aqui como algo próximo às atrações de Eisenstein14 14 Um pouco mais tarde, em 1932, Lukács escreve na Linkskurve uma crítica a um livro de Ottwalt, contra o uso da montagem e de materiais documentais na arte, em favor da superfície mediada pela forma, de uma noção de organicidade contra a qual se contrapõe o caráter de montagem do teatro épico (GERSCH 1975). Brecht inclusive chamou seu teatro, inicialmente, de ‘‘épico’’ e ‘‘documental’’. Ou seja, vê-se que a noção de documento não tinha mesmo o mero sentido de uma arte documentária, sendo porém mais ampla e fazendo parte dos debates estéticos da época, também motivados pela Nova Objetividade. Brecht menciona a ideia de um teatro ‘‘épico’’ e ‘‘documental’’ no texto datilografado Tendenz der Völksbühne: reine Kunst, parcialmente publicado no jornal Berliner Börsen-Courier em março de 1927. A compilação da poesia de Brecht traduzida e organizada por André Vallias (2019) se abre com uma citação de Godard, em que este afirma, muito a propósito: ‘‘na realidade, dizia Brecht, só o fragmento traz a marca da autenticidade’’. Tal citação de Godard esclarece muito bem a questão. Pois há um mal-entendido que prevalece em Gersch (1975) e até no mais recente trabalho de Lang (2006): tais autores entendem este ‘‘documental’’ no sentido de registro documental, e afirmam que as ideias de Brecht depois se afastariam dessa noção. Eles têm razão em que haja um desenvolvimento no pensamento de Brecht em relação ao tema: em texto de 1926 (Die besten Bücher des Jahres 1926, publicado em Das Tage-Buch), Brecht elogia um livro de fotorreportagem por trazer mais do real do que muita literatura. Depois (em Pequeno relato sobre 400 (quatrocentos) jovens poetas, de 1927, publicado em Die Literarische Welt), preza por que haja algum ‘‘valor de documento’’ na poesia, em oposição ao impressionismo e ao expressionismo - ou seja, que traga algo do real, para além da subjetividade. E, mais tarde - como se verá adiante -, irá mais fundo no problema da fotografia e de sua capacidade de revelar ou não algo sobre o real. Nos esboços de 1945 para A compra do latão, comenta-se que, no teatro de Piscator, imagens dos filmes de atualidades eram montadas de forma a fazer sentido e fornecer às encenações ‘‘material documentário’’. Mas, parece-me que, desde o princípio, ‘‘documento’’ tinha este sentido de fragmento, pedaço do real, a que Godard faz menção, e não tanto de registro documental (e muito menos de representação mimética do real). .

Em reflexão sobre o uso do filme no teatro épico (em Aus dem Abc des epischen Theaters, texto datilografado de 1927), Brecht estabelece algumas considerações teóricas sobre o cinema: para o escritor, este obedece às mesmas leis das artes gráficas, devendo ser concebido como uma série de quadros estáticos. O efeito deve ser produzido pela interrupção entre eles, afirma Brecht. Os quadros devem ser compostos de maneira a serem observados em visão de conjunto, o que não significa abdicar do enquadramento de detalhes, que devem ter correspondência precisa com o plano geral. É isso o que, para Brecht, torna o cinema resistente à ação dramática, esta necessidade de uma precisão plástica na composição do quadro. Encontram-se aí ideias importantes, bastante assemelhadas ao pensamento de Eisenstein sobre a montagem interna ao quadro - sua precisa composição plástica - e a montagem por colisão entre os planos.

Dados estes pressupostos mais gerais sobre o cinema, Brecht faz colocações sobre as possibilidades de seu uso no teatro épico: o filme poderia servir como uma espécie de coro ótico. Para isto, recomenda que não seja construído, ou que seja desenhado. Brecht sugere que se apresentem números, estatísticas, paisagens, ou meros objetos da realidade. E agrega:

Já que o cinema representa a realidade de maneira a surtir efeito tão abstrato, ele serve para confrontos com a realidade. Ele pode confirmar ou refutar. Pode lembrar ou profetizar. Ele é capaz de assumir o papel daquelas aparições fantasmagóricas sem as quais por longos tempos, mesmo os melhores, não houve grande drama. Mas acontece que com isso ele desempenha um papel plenamente revolucionário, pois permite aparecer como espectro a realidade nua, a boa deusa da revolução (BRECHT 1992BRECHT, B. “Aus dem Abc des epischen Theaters” [circa 1927]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI. Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp, 1992, 210-212.: 211-212).

Brecht finaliza afirmando que o filme pode até ser usado apenas como decoração, para criar o ambiente em que se desenrola a ação, mas, neste caso, deve-se priorizar o típico, e o filme poderia ser então construído ou desenhado, atentando-se para não destruir a dialética entre o plástico e o não-plástico. Ou seja: a prioridade de Brecht parece não ser recorrer a pequenos filmes montados, mas apresentar materiais brutos, imagens fragmentárias em relação dialética com a ação encenada.

E, em 1929, em resposta a uma entrevista, questionado sobre se teria interesse em escrever para o cinema, Brecht afirmou que a indústria cinematográfica era muito burra, e teria de ir à falência primeiro (apudWÖHRLE 1988WÖHRLE, D. Bertolt Brechts medienästetische Versuche. Köln: Prometh, 1988.). Ou seja, vê-se que, até aqui, Brecht oscila entre fazer coro aos intelectuais que rejeitavam o cinema, pela banalidade de suas fábulas, pela exploração do sentimentalismo etc., e uma valorização de certos aspectos e potencialidades do cinema, como a capacidade de reunir documentos, ou o princípio da montagem.

Nos anos 1930 Brecht avança em suas reflexões sobre o cinema. Ponto alto é, como visto, o ensaio O processo dos três vinténs. O texto Rauschwirkung (de aproximadamente 1935) traz questões de suma importância e é curto o bastante para ser aqui reproduzido na íntegra:

Engano, que o “tédio” dos vilarejos e cidadezinhas afugentava as pessoas para o cinema; elas precisam mais dele nas cidades grandes e em geral nas maiores cidades. A fome por substitutos da experiência é maior onde o abismo entre trabalho e repouso é mais profundo, onde a contradição entre incitação e desaceleração da coerção ao desempenho se agudiza. Não se suporta a atomização da vida e se demanda ações sumárias; ações de outros homens são a causa da nossa impotência, nossa defesa consiste em empatizar com essas ações (BRECHT 1993BRECHT, B. “Rauschwirkung” [circa 1935]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI I. Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1993, 173.: 173).

Brecht reconhece aqui, muito cedo, problemas que serão analisados posteriormente pela teoria crítica e, mais tarde ainda, por diversos teóricos do cinema: a ideia do cinema como substituto da experiência a compensar uma impotência real, relacionada à alienação do trabalho e à pressão pelo desempenho. A teoria do distanciamento serve exatamente para impedir que o espectador se deixe absorver pela ação, para que mantenha em alerta o senso crítico e a consciência de que observa uma representação.

Die Bestie

Anos antes, o conto Die Bestie, de 1928, já representava uma primeira tentativa de tematizar questões de estética cinematográfica, e propunha uma discussão teórica sobre o cinema por meio da prática literária. O conto foi escrito para um concurso do Berliner Ilustrierte Zeitung, de que saiu vencedor. Die Bestie trata da realização de um filme em que há uma cena sobre os pogroms na Rússia, na qual um comandante facínora manda matar dois prisioneiros judeus. Há uma estrela fazendo o papel, mas um homem parecido com a figura histórica real se oferece para interpretá-lo. A equipe decide permitir que o homem faça um teste - inclusive a “estrela” antes elencada para o papel, que não estava muito satisfeita em manchar sua imagem com a personagem de um facínora. Na cena prevista, o militar deve decidir a morte dos presos enquanto come uma maçã - o detalhe é importante para conferir autenticidade ao filme, pois assim se contava que fazia na vida real. Recebidas as indicações da direção, o desconhecido faz a cena comendo a maçã mecanicamente. O diretor o interrompe, dizendo não ser assim que um facínora come uma maçã. Após algumas tentativas, o ator estrelado acaba retomando o papel, agora incorporando elementos dos ensaios com o desconhecido - na realidade, o verdadeiro militar.

A ideia de debater o cinema a partir de um conto não é originalidade de Brecht. Entre os anos 1910 e 1920, vários foram os intelectuais que se engajaram em debates sobre o novo meio, entre os quais alguns o fizeram através da literatura em prosa e até da poesia (HELLER 1985HELLER, H-B. Literarische Intelligenz und Film. Tübigen: Max Niemeyer Verlag, 1985.). Depois da premiação do conto de Brecht, a crítica questiona a decisão do júri, sugerindo ter sido baseada no renome do autor e não na qualidade do conto, mera descrição de O último comando (The last command, Josef von Sternberg, 1928). Tal filme realmente trata de história similar, sobre um ex-militar russo que acaba trabalhando no cinema e é dirigido por uma de suas vítimas. Mas o fato é que o filme ainda não havia sido exibido na Alemanha quando da publicação do conto de Brecht (HECHT et al 1997HECHT, W.; Knopf, J.; Mittenzwei, W.; Müller, K-D. “Kommentar”. In: HECHT, W.; Knopf, J.; Mittenzwei, W.; Müller, K-D. Bertolt Brecht - Werke Band XX. Berlin; Weimar; Frankfurt: Aufbau-Verlag; Suhrkamp, 1997, 491-628.).

É provável que sua ideia para o conto tenha vindo de algumas notícias do mundo do cinema publicadas naquele momento. Uma delas, Ein Wiedererkennen, publicada no Frankfurter Zeitung em junho de 1928, contava sobre um ex-militar czarista reconhecido por suas vítimas durante a rodagem de um filme da Mezhrabpom, A águia branca (1928), de Protazanov. Outra, uma entrevista de Emil Jannings para divulgação de O último comando, publicada em agosto de 1928, em que o ator comentava ter contracenado com ex-militares russos que agora trabalhavam em Hollywood interpretando a si mesmos por 7,5 dólares ao dia (HECHT et al. 1997HECHT, W.; Knopf, J.; Mittenzwei, W.; Müller, K-D. “Kommentar”. In: HECHT, W.; Knopf, J.; Mittenzwei, W.; Müller, K-D. Bertolt Brecht - Werke Band XX. Berlin; Weimar; Frankfurt: Aufbau-Verlag; Suhrkamp, 1997, 491-628.). No conto de Brecht, o filme que está sendo rodado é A águia branca, pela produtora russa “Moszropom” - mas o filme soviético homônimo não versa sobre os pogroms e sim sobre a repressão à movimentação política de 1905 na Rússia, e baseou-se na novela O governador (1905), de Leonid Andreiev.

Assim, o que Brecht faz é tomar um pouco de cada anedota. Ao misturar referências dos EUA e da URSS, o escritor coloca o problema da continuidade dos critérios capitalistas de produção sob o socialismo (DYCK 1974DYCK, J. “Ideologische Korrektur der Wirklichkeit. Brechts Filmästhetik am Beispiel seiner Erzählung Die Bestie”. In: DYCK, J. et al. (Hg). Brechtdiskussion. Kronberg; Taunus: Scriptor Verlag, 1974, 207-206.). De toda forma, os dados verídicos são o de menos: o que importa é como, por meio de seu conto, Brecht propõe uma discussão teórica sobre o cinema, em que rejeita tanto o star system como a escalação de intérpretes baseada na fisionomia, o recurso a cenários e atores “reais” - ou “não-atores” - para conferir “autenticidade” ao filme. As duas opções - bastante em voga na época, no cinema comercial e naquele que se queria apresentar como alternativa ao primeiro - são ironizadas por Brecht.

Pode-se enxergar no conto uma resposta ao manual de Pudovkin sobre direção cinematográfica publicado na Alemanha naquele ano (HECHT et al. 1997HECHT, W.; Knopf, J.; Mittenzwei, W.; Müller, K-D. “Kommentar”. In: HECHT, W.; Knopf, J.; Mittenzwei, W.; Müller, K-D. Bertolt Brecht - Werke Band XX. Berlin; Weimar; Frankfurt: Aufbau-Verlag; Suhrkamp, 1997, 491-628.)15 15 Já Wöhrle (1991) vê no conto uma possível provocação a Balázs e sua noção de estilo de interpretação fisionômico. . Ali, Pudovkin afirma haver dois tipos de produção: aquela que recorre à “estrela”, em que toda a criação é feita em função do ator escalado, ou aquela em que os intérpretes são buscados de acordo com a ideia central do filme. Neste caso, o ator deve ser escolhido em função das características físicas da personagem. Em contraposição a tal concepção da interpretação, Brecht sempre valorizou o trabalho inteligente do ator, combatendo a ideia de um transe inspirado e defendendo um método de composição racional da personagem a partir dos gestos, da observação distanciada e crítica da personagem pelo ator, e da manutenção da separação entre ator e personagem.

No cinema, não importa o intérprete mas sim o efeito sobre o público. Como representar a bestialidade em um filme? Será uma questão de aparência física? Além da interpretação cinematográfica, outros temas importantes estão aqui em discussão: de certa forma, Brecht adianta o debate de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal - pois o velho militar interpreta a cena como teria feito na realidade, de maneira mecânica, rotineira, burocrática, e não como a ação maligna de um terrível facínora. Também está em jogo o problema da forma mercadoria do cinema, que leva os criadores a orientar-se pelo gosto do público, ou pelo efeito a ser produzido, mais do que por qualquer consideração sobre a relação entre forma e conteúdo (WÖHRLE 1988WÖHRLE, D. Bertolt Brechts medienästetische Versuche. Köln: Prometh, 1988.; 1991WÖHRLE, D. “Die Bestie”. In: GELLERT, E.; WALLBURG, B. (Hg). Brecht 90 - Schwierigkeiten mit der Kommunikation? - Kulturtheoretische Aspekte der Brechtschen Medienprogrammatik. Berlin; Bern; Frankfurt am Main; New York; Paris; Wien: Peter Lang, 1991.).

Uma mesma cena é encenada de diferentes maneiras e por diferentes intérpretes. Assim, afirma Wöhrle (1988WÖHRLE, D. Bertolt Brechts medienästetische Versuche. Köln: Prometh, 1988.), no ato de leitura a encenação cinematográfica é compreendida, e a arte é mostrada como trabalho. Ao escalar um ator em função de sua fisionomia, de sua semelhança física com a personagem representada, o cinema leva ao extremo o naturalismo. Mas o efeito é mais importante do que a identidade e a verdade da representação, e as impressões artisticamente produzidas no espectador se sobrepõem à preocupação com a unidade entre representado e representação. Trata-se de um exemplo da velha concepção da arte perpetuando-se em um novo meio e, na velha forma de arte que é o conto, da apresentação de uma nova compreensão da arte. O conto se constitui assim em uma obra estética de crítica cinematográfica (WÖHRLE 1988WÖHRLE, D. Bertolt Brechts medienästetische Versuche. Köln: Prometh, 1988.), exemplo de “literatura operativa como práxis de crítica ideológica” (BRÜGGELMANN apudDYCK 1974DYCK, J. “Ideologische Korrektur der Wirklichkeit. Brechts Filmästhetik am Beispiel seiner Erzählung Die Bestie”. In: DYCK, J. et al. (Hg). Brechtdiskussion. Kronberg; Taunus: Scriptor Verlag, 1974, 207-206.).

Em Hollywood

No ensaio Über Filmmusik, de 1942 - notas elaboradas para uma contribuição ao livro de Eisler e Adorno, Composing for the Films (1947), que não chegaram a ser publicadas em seu momento -, Brecht afirma que a indústria, em busca de lucros, é forçada a organizar avanços e ao mesmo tempo neutralizá-los, mas que as equipes podem tirar proveito dessa necessidade de inovação. Numa nota no diário, da mesma época, Brecht comenta que Eisler estava certo ao afirmar como era arriscado colocar em circulação inovações puramente técnicas, desligadas de sua função social. Por exemplo, a música instigante que tanto buscaram antes do exílio podia ser ouvida no rádio dos Estados Unidos, estimulando a compra de Coca-Cola. Nesta nota de 09/05/1942, Brecht conclui: “É suficiente para fazer você exigir l'art pour l'art em desespero” (BRECHT 2005bBRECHT, B. Diário de trabalho, vol. 2 [1941-1947]. Tradução de Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2005b.: 101).

Voltando ao texto sobre música de cinema, então pode-se entender a estratégia de Brecht: se a indústria se apropria das inovações técnicas propostas pelos artistas, estes também devem se aproveitar da necessidade de inovação da indústria para experimentá-las. No texto, Brecht usa ironicamente a palavra que mais via circular entre os estadunidenses: “comprar”. Diz que a indústria compra avanços e ao mesmo tempo métodos para liquidá-los, com o que as equipes poderiam “lucrar”. Brecht recomenda aos artistas não fazer especulações sobre quanta arte o público está disposto a aceitar, mas sim sobre quão pouca anestesia lhe é suficiente em seu entretenimento.

E faz análises muito lúcidas sobre a forma como a música é comumente usada no cinema, para mascarar arbitrariedades, saltos e incongruências da ação. É interessante observar como Brecht e Eisler já haviam experimentado algo totalmente diverso em Kuhle Wampe, em que a música tem um lugar privilegiado de contraponto à imagem, de interrupção de episódios e até de condução de algumas sequências. Neste texto de 1942, Brecht advoga a separação dos elementos para conferir à música uma nova função.

Nos diários de trabalho escritos no exílio, mesmo que de passagem, Brecht deixa uma série de apontamentos produtivos sobre o cinema e a arte de maneira geral. É interessante observar como, a partir destes apontamentos e das notas e reflexões escritas como acompanhamentos das peças anteriores ao exílio, vemos Brecht ir organizando suas proposições estéticas, que serão formuladas no Pequeno organon para o teatro, de 1949, e na obra inacabada A compra do latão.

Brecht registra, por exemplo, ideias férteis a partir de uma conversa com Adorno, em que estabelece comparações entre o teatro e o cinema. Afirma que o cinema, diferentemente do teatro, não tem o drama, ou a separação entre peça e representação. Mesmo prevendo a possibilidade de melhoramentos técnicos, Brecht comenta problemas relacionados ao som, ligados ao caráter monofônico dos equipamentos. Brecht menciona ainda a perspectiva única da câmera e, por fim, a sua objeção de base ao cinema: de que aí se apresenta ao público um produto pronto, que não pode ser alterado por sua presença16 16 Brecht está certo: no cinema, o ator fica muito mais colado à personagem e toda representação à história contada. Mas no cinema moderno vários foram os meios usados para descolar o ator da personagem e a diegese da representação cinematográfica - como se pode observar na obra de cineastas como Glauber Rocha e Godard. Ao apontar problemas ligados ao som, Brecht parece ainda incapaz de imaginar toda a experimentação tornada possível por avanços técnicos como o som direto e a estereofonia, e pelo próprio desenvolvimento da linguagem por cineastas modernos - novamente a obra de Godard surge como exemplo fundamental. (Porém, como mencionado, o próprio Brecht já havia feito com Eisler experimentos de um uso contrapontístico do som em Kuhle Wampe). Quanto à imagem, de fato, mesmo que se ofereçam ao público múltiplos pontos de vista de uma cena qualquer, são sempre pontos de vista já determinados previamente. Com relação à perspectiva, o tema deu muito ‘‘pano para manga’’ posteriormente, em discussões da crítica cinematográfica europeia, sobretudo francesa, entre os anos 1960 e 1970. O chamado cinema moderno encontrou maneiras de subverter a perspectiva única da câmera (através do recurso ao plano-sequência, à bidimensionalização da imagem, aos cortes fora de eixo, a determinadas formas de composição do quadro etc.), embora se reconheça o limite de cada plano para tal subversão. A objeção de que no cinema se apresenta à plateia um produto pronto é de certa maneira incontornável. Mas, mesmo com isso, certos cineastas do cinema moderno e de intervenção política mais diretamente militante encontraram um jeito de lidar: por exemplo, a experiência de Solanas e Getino com La hora de los hornos (1968), filme feito para poder ser interrompido e discutido de acordo com os interesses da plateia. Uma alteração efetiva do filme pôde ser conquistada a partir da tecnologia do vídeo e de suas possibilidades de manipulação ao vivo. Mas, mesmo em película, certas formas de exibição militante foram experimentadas no sentido de romper com o caráter de um produto final pronto e acabado - já na Rússia dos inícios da revolução, na experiência dos cine-trens, os filmes eram discutidos com o público para serem em seguida remontados. Por outro lado, pode-se objetar que, com raras exceções como o teatro do oprimido, cujo curso realmente depende da intervenção direta do espectador, de maneira geral é limitada a possibilidade de alteração da peça pelo público, mesmo num teatro supostamente participativo - basta fazer a experiência de assistir duas vezes a uma peça deste tipo - mesmo que o ‘‘espectador ativo’’ possa contribuir mais ou menos, a peça não foge muito do desenvolvimento previsto. . É interessante observar como, a partir de tais comparações, Brecht contribui para o entendimento dos diferentes meios e fundamenta sua opção pelo teatro.

Outro tema presente nas reflexões de Brecht sobre cinema expostas em seus diários é a interpretação. Motivado pela dificuldade de muitos atores europeus de se inserirem e adaptarem na indústria de Hollywood, Brecht começa a tecer comparações entre a atuação dos europeus e aquela dos atores de cinema dos EUA. Pois, neste país, considera-se a interpretação de alguns europeus como “sobre-atuação”, já que em Hollywood o que se demanda é que astros e estrelas não atuem, mas participem de “situações” (BRECHT 2005bBRECHT, B. Diário de trabalho, vol. 2 [1941-1947]. Tradução de Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2005b.). Brecht reflete mesmo sobre a gestualidade na Alemanha e nos EUA, cujos atores nada fariam senão teatralizar o gestual corrente em seu país, mais fluido e maleável do que o alemão, e que “fotografa melhor”.

Na reflexão de Brecht, o fenômeno do culto às estrelas se refere a tipos que nada têm a ver com a arte; por isso, personalidades mais singulares seriam, tanto quanto possível, eliminadas. Irène Bonnaud (2001BONNAUD, I. Brecht, période américaine. Thèse - Université Paris III Sorbonne Nouvelle, Paris, 2001.) afirma que, enquanto a não interpretação do cinema havia sido para Brecht, nos anos 1920, um modelo contra o “transe” do ator de teatro e seu pendor à identificação com a personagem, a mesma característica do cinema estadunidense é denunciada, nos anos 1940, como elemento de identificação entre um público de americanos médios e estrelas que se lhes parecem17 17 A meu ver, porém, como se depreende do comentário em torno de Die Bestie, não era exatamente a não interpretação do cinema o que Brecht valorizava, mas sim a externalidade da ação e a atuação baseada em gestos. .

Outras notas de Brecht dizem respeito à indústria cultural de maneira mais ampla

- muitas das quais apresentam visões compartilhadas por Adorno e Horkheimer (2002ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. “O iluminismo como mistificação das massas”. In: DE ALMEIDA, J. M. B. (org.). Indústria cultural e sociedade . São Paulo: Paz e Terra , 2002 [1949], 5-61.) em seu ensaio de 1949 sobre a indústria cultural. Assim, por exemplo, partilham a visão do caráter em última instância autoritário de uma sociedade dominada pela indústria cultural. É o que se pode depreender de notas como esta de 04/04/1942: “Mas antes de chegar ao público, é preciso passar por seus donos, os distribuidores e os proprietários de cinema que ‘conhecem’ o seu público. Todo mundo sabe que eles são os trampolineiros. Este é um exemplo realmente bom de pseudodemocracia” (BRECHT 2005bBRECHT, B. Diário de trabalho, vol. 2 [1941-1947]. Tradução de Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2005b.: 86). Ou quando, mais adiante, comenta as pesquisas de opinião do instituto Gallup: “Considera-se que isso é uma instituição democrática. Na verdade é um teste da eficácia da publicidade e da propaganda” (BRECHT 2005bBRECHT, B. Diário de trabalho, vol. 2 [1941-1947]. Tradução de Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2005b.: 129).

Elegias hollywoodianas

Nas Elegias hollywoodianas (1942), série de poemas musicados sobre Los Angeles, sobressaem os temas da prostituição intelectual, do fracasso e da frustração que são o reverso da indústria dos sonhos. Assim, na primeira elegia, céu e inferno são um único estabelecimento. Na segunda elegia, as atividades econômicas que promoveram a riqueza da costa oeste dos EUA são colocadas lado a lado com a indústria dos sonhos de Hollywood. É esta, e não as atividades extrativistas, que enche de ranço a cidade. Na quarta elegia Bach e Dante rodam a bolsinha - de acordo com os organizadores das obras completas de Brecht, eles estariam aí como substitutos de Brecht e Eisler. Ao remeter a “clássicos” da música e da literatura, Brecht parece responder uma vez mais à intelligentsia alemã: não há fronteiras entre a alta e a baixa cultura, tudo está corrompido, transformado em mercadoria. A terceira elegia penetra o caráter vicário da indústria cultural: os anjos de Los Angeles compram frascos com cheiro de sexo - não sexo, somente seu odor. E, para arrematar todo o amargor da experiência, diz um último poema:

Toda manhã, para ganhar meu pão / Dirijo até o mercado onde se compra mentiras. / Esperançoso / Eu me ponho na fila dos vendedores (BRECHT 2019BRECHT, B. “Elegias hollywoodianas” [1942]. Tradução de André Vallias. In: BRECHT, B. Poesia. São Paulo: Perspectiva, 2019, 436-439.: 439).

Romper a superfície da imagem

Fugindo um pouco ao cinema, é preciso mencionar ideias e experiências de Brecht sobre e com a fotografia, pois isto diz respeito a seu olhar sobre a imagem técnica de maneira mais ampla. Muito citada é a frase, de O processo dos três vinténs, em que ele afirma que “uma fotografia das fábricas Krupp ou AEG não revela praticamente nada sobre estas instituições”, pois “a verdadeira realidade resvalou para o plano do funcional” e, para representar a reificação das relações humanas, seria preciso “construir alguma coisa”, algo de “artificial” (BRECHT 2005aBRECHT, B. O processo do filme A ópera dos três vinténs [1931]. Tradução de João Barrento. Porto: Campo das Letras, 2005a.: 84).

Mas Brecht sempre manifestou interesse pela fotografia. Já num texto de 1926 (Die besten Bücher des Jahres 1926), em resposta a uma enquete sobre os melhores livros daquele ano, Brecht menciona um livro de fotorreportagem sobre a Primeira Guerra Mundial. Depois, no texto datilografado Über Fotografie, de aproximadamente 1928, reivindica que os fotógrafos voltem seu interesse antes ao objeto fotografado do que à iluminação. Exemplifica seu argumento com a fotografia de um traseiro de mulher. O apelo do objeto real se perde sob a atmosfera inócua da foto. Contra tal efeito, sugere Brecht, o uso de legendas talvez pudesse ajudar.

Num manuscrito de por volta de 1930, Durch Fotografie keine Einsicht (“Através da fotografia, nenhuma compreensão”), escrito pouco antes de O processo dos três vinténs, e adiantando uma ideia importante que será desenvolvida no ensaio, Brecht afirma:

Você não precisa duvidar de que o cinema é atual! A fotografia é a possibilidade de uma reprodução que oculta o contexto. O marxista Sternberg, sobre cujo apreço você deve concordar comigo, discorre sobre que, de uma (conscienciosa) fotografia de uma fábrica da Ford, nenhuma compreensão pode ser obtida (BRECHT 1992BRECHT, B. “Durch Fotografie keine Einsicht” [circa 1930]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI . Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1992, 443-444.: 443-444).

Por que o cinema corresponde a seu tempo? Exatamente pelo caráter da imagem fotográfica, que tem algo de um produto alienado, a tirar o objeto de seu contexto. Brecht destaca o re-produzir, ou seja, seu caráter serial, maquinal, de “reprodutibilidade técnica”. Ele finaliza o pequeno manuscrito afirmando que, “mesmo quando o sociólogo chega ao mesmo resultado do esteta, seu resultado é infinitamente mais utilizável” (BRECHT 1992BRECHT, B. “Durch Fotografie keine Einsicht” [circa 1930]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI . Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1992, 443-444.: 443-444). Quer dizer, é necessária uma ciência social que nos permita compreender um mundo alienado em imagem.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, mais tarde, em edição comemorativa do 10º aniversário do Arbeiter-Illustrierte-Zeitung, publicada em 1931, afirma Brecht em sua contribuição:

O imenso desenvolvimento da fotorreportagem foi raramente um ganho para a verdade sobre as condições que imperam no mundo: a fotografia tornou-se, nas mãos da burguesia, uma temível arma contra a verdade. O enorme material fotográfico que é cuspido diariamente pela imprensa, e que parece mesmo ter o caráter de verdade, serve na realidade somente ao obscurecimento dos fatos. A câmera fotográfica pode mentir tanto quanto a máquina de prensa (BRECHT 1992BRECHT, B. “Zum zehnjährigen Bestehen der ‚A-I-Z‘” [1931]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI . Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1992, 515.: 515).

E finaliza dizendo que o jornal teria solucionado de maneira brilhante o problema de restabelecer os fatos reais. Com a última frase, subentende-se um elogio de Brecht às fotomontagens de Heartfield, que costumavam ilustrar a publicação (HECHT et al 1992HECHT, W.; Knopf, J.; Mittenzwei, W.; Müller, K-D. “Kommentar”. In: HECHT, W.; Knopf, J.; Mittenzwei, W.; Müller, K-D. Bertolt Brecht - Werke Band XXI . Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1992, 593-810.).

A ideia de que a fotografia havia se transformado em arma contra a verdade havia sido apresentada também por Kracauer, em texto de 1927, em que afirmava que, para que a história fosse representada, era preciso destruir a conexão meramente superficial oferecida pela fotografia. Kracauer fazia uma crítica à revista ilustrada, que dá a ver um mundo que se impede de perceber: “nas mãos da sociedade dominante a invenção das revistas ilustradas é um dos mais poderosos instrumentos de greve contra o conhecimento” (KRACAUER 2009bKRACAUER, S. “A fotografia”. In: KRACAUER, S. O ornamento da massa . Tradução de Carlos Eduardo J. Machado e Marlene Holzhausen. São Paulo: Cosac Naify , 2009b [1927], 63-80.: 75). Contra tal efeito, Kracauer sugere o recurso ao procedimento da montagem, que ele encontra na literatura de Kafka e também no cinema.

No célebre Cinco dificuldades no escrever a verdade, de 1935, Brecht comenta uma fotografia exibida em uma revista estadunidense que, após um terremoto, mostrava um campo em ruínas. A legenda dizia: “steel stood” (“o aço resistiu”), com o que o observador voltava à foto e percebia algumas estruturas que haviam ficado de pé em meio às ruínas. Em A compra do latão, Brecht volta a abordar o assunto, acrescentando que, com isto, se havia dado à arte uma boa indicação. A legenda permite observar a foto com outro olhar, e conferir novo sentido à imagem: trata-se do princípio épico do comentário18 18 Lang (2006) é quem chama a atenção sobre tais textos. .

Em sua Pequena história da fotografia (1931), em que cita o trecho de Brecht acima transcrito sobre a fotografia da fábrica AEG, Benjamin afirma que a fotografia se revela incapaz de apreender os contextos humanos em que se insere, daí que se tenha explorado antes sua potencialidade comercial do que aquela de conhecimento. Contra isso, o contraponto proposto por Benjamin é o desmascaramento ou a construção, justamente por meio da legenda escrita. E, em O autor como produtor (1934), analisa como, nas mãos da Nova Objetividade, a fotografia havia convertido a miséria em objeto de prazer. Por isso exigia-se a legenda, que pudesse subtrair a fotografia do desgaste da moda e conferir-lhe valor de uso revolucionário. Enfim, a reflexão sobre a fotografia e seus usos é um fundamento para as ideias de Brecht sobre o cinema como imagem técnica. E alimenta sua concepção de teatro e do que seja um autêntico realismo, aquele que possa penetrar a superfície mimética para revelar as causas e contradições daquilo que é representado, e assim a possibilidade de sua transformação.

Em Kriegsfibel, livro publicado em 1955, combinam-se imagens da Segunda Guerra Mundial compiladas da imprensa internacional a poemas em forma de epigrama, no que Brecht chamou de fotoepigramas. De acordo com Ruth Berlau, no prólogo da primeira edição, o livro devia ensinar a arte de ler imagens. Para a compreensão de Kriegsfibel, Wöhrle (1988WÖHRLE, D. Bertolt Brechts medienästetische Versuche. Köln: Prometh, 1988.) recupera algumas citações de Brecht: a já mencionada, de que a fotografia havia se tornado, nas mãos da burguesia, uma arma contra a verdade, e uma frase de outro texto, que diz: “A contemplação da arte só pode ser realmente desfrutada se houver uma arte da contemplação” (BRECHT apudWÖHRLE 1988WÖHRLE, D. Bertolt Brechts medienästetische Versuche. Köln: Prometh, 1988.: 162). Esta frase, Wöhrle toma de um ensaio muito bonito, Betrachtung der Kunst und Kunst der Betrachtung, de 1939, em que Brecht discute o problema da recepção da escultura de retrato, e da arte de maneira geral, no mundo contemporâneo.

Neste texto, Brecht comenta que alguns querem escrever para todo o povo, rompendo o círculo dos conhecedores. Isto soa democrático, mas não o é completamente, na visão de Brecht. Para ele, democrático é tornar mais amplo o “pequeno círculo dos conhecedores”, pois a arte precisa de conhecimentos. A escultura é um árduo trabalho artesanal. No mundo moderno, as pessoas em geral só têm acesso ao produto acabado, ou a um fragmento de sua produção. Neste produto alienado, não se reconhece o processo de produção. Por isso é que Brecht recomenda que, junto com a escultura, sejam exibidas as fases do trabalho, mesmo que seja sob a forma de esboços bidimensionais. Isso para que o público possa ter acesso ao processo do trabalho. Para o prazer estético, afirma ele, não basta o mero consumo, é preciso que o público participe na produção, ponha algo de si. Se o artista encontra maneiras de revelar seu processo de trabalho, isto contribui para desenvolver no público a capacidade de observação, não só da arte mas do mundo como um todo - daí o valor educativo da arte: ensinar a ver.

Voltando à análise de Wöhrle sobre Kriegsfibel, tendo se tornado a fotografia uma arma de manipulação contra a verdade e destacando-se a necessidade de uma “arte da contemplação”, quer dizer, de um conhecimento necessário à fruição da obra de arte, daí a justificativa dos fotoepigramas de Brecht, a ensinar, por meio da poesia, a leitura e o desvendamento de imagens cotidianamente veiculadas pela imprensa. Há uma oposição entre a leitura da imagem e o analfabetismo diante dela. O livro rasga o caráter natural ou “compreensível por si mesmo” da representação e expõe sua finalidade, seu caráter ideológico, o que implica na destruição de determinada maneira de percepção. Ao romper a superfície das fotos, ensina a decifrá-las, perceber sua “carência visível”, pois a realidade não é alcançada pela imediata reprodução da empiria, mas pela crítica da consciência existente (WÖHRLE 1988WÖHRLE, D. Bertolt Brechts medienästetische Versuche. Köln: Prometh, 1988.). Wöhrle lembra Walter Benjamin que, em sua Pequena história da fotografia, afirmara que, informados por fotografias, os analfabetos do futuro seriam aqueles que não soubessem ler imagens19 19 Benjamin o afirma através de uma citação sem indicação da fonte. . Em seu livro vanguardista de 1925 sobre cinema, fotografia e pintura, Moholy-Nagy, numa reflexão avant le lettre sobre o que hoje chamaríamos de design gráfico, propõe a interação na página entre palavra e imagem como uma nova forma de pensamento: ideia que Brecht concretiza com sua Kriegsfibel.

Referências bibliográficas

  • ADORNO, T. “Tempo livre”. In: DE ALMEIDA, J. M. B. (org.). Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002[1969] , 63-70.
  • ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. “O iluminismo como mistificação das massas”. In: DE ALMEIDA, J. M. B. (org.). Indústria cultural e sociedade . São Paulo: Paz e Terra , 2002 [1949], 5-61.
  • BENJAMIN, W. Ensaios sobre Brecht. Tradução de Claudia Abeling. São Paulo: Boitempo, 2017a [1930-1939].
  • BENJAMIN, W. “A obra de arte na época da possibilidade de sua reprodução técnica (5ª versão)”. In: BENJAMIN, W. Estética e sociologia da arte. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b[1938], 7-47.
  • BENJAMIN, W. “Pequena história da fotografia”. In: BENJAMIN, W. Estética e sociologia da arte . Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2017c [1931], 49-78.
  • BENJAMIN, W. “O autor como produtor”. In: BENJAMIN, W. Estética e sociologia da arte . Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica , 2017d [1934], 79-105.
  • BERNARDET, J-C. O autor no cinema: a política dos autores - França, Brasil, anos 50 e 60. São Paulo: Brasiliense/EDUSP, 1994.
  • BLOCH, E. Heritage of our times. Tradução de Neville e Stephen Plaice. Cambridge: Polity Press, 1991[1935/1962].
  • BOCK, H. M.; BERGER, J. (Hg). Photo: Casparius. Berlin: Stiftung Deutsche Kinemathek; Landesbildsstelle Berlin; Berliner Festspiele GMBH; Staatliche Kunsthalle Berlin, 1978.
  • BONNAUD, I. Brecht, période américaine. Thèse - Université Paris III Sorbonne Nouvelle, Paris, 2001.
  • BRECHT, B. “Aus dem Abc des epischen Theaters” [circa 1927]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI. Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp, 1992, 210-212.
  • BRECHT, B. “Aus dem Theaterleben” [1919]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI . Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1992, 40-41.
  • BRECHT, B. “Betrachtung der Kunst und Kunst der Betrachtung [1939]”. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXII. Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1993.
  • BRECHT, B. “Cinco obstáculos para escribir la verdad [1935]”. In El compromiso en literatura y arte. Barcelona: Península, 1973, 157-171.
  • BRECHT, B. “Das Theater als Sport” [1920]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI . Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1992, 56-58.
  • BRECHT, B. “Die besten Bücher des Jahres 1926” [1926]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI . Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1992, 176.
  • BRECHT, B. “Die Bestie” [1928]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XIX. Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1997, 294-299.
  • BRECHT, B. “Durch Fotografie keine Einsicht” [circa 1930]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI . Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1992, 443-444.
  • BRECHT, B. “Elegias hollywoodianas” [1942]. Tradução de André Vallias. In: BRECHT, B. Poesia. São Paulo: Perspectiva, 2019, 436-439.
  • BRECHT, B. “Pequeno relato sobre 400 jovens poetas”. Poesia . Tradução de André Vallias. São Paulo: Perspectiva , 2019 [1927], 523-525.
  • BRECHT, B. “Rauschwirkung” [circa 1935]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI I. Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1993, 173.
  • BRECHT, B. “Über den Film” [1922]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI . Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1992, 100.
  • BRECHT, B. “Über Filmmusik” [1942]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXIII. Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1993.10-20.
  • BRECHT, B. “Über Fotografie” [circa 1928]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI . Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1992, 264-265.
  • BRECHT, B. “Weniger Sicherheit!!!” [1926]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI . Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1992, 135-136.
  • BRECHT, B. “Zum zehnjährigen Bestehen der ‚A-I-Z‘” [1931]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XXI . Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1992, 515.
  • BRECHT, B. “Zur Tonfilmdiskussion” [1930]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke, Band XXI. Berlin/Weimar/Frankfurt am Main: Aufbau-Verlag/Suhrkamp, 1992, 444.
  • BRECHT, B.Kriegsfibel [1955]. In: HECHT, W.; KNOPF, J.; MITTENZWEI, W.; MÜLLER, K-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke Band XII. Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1988, 129-283.
  • BRECHT, B. A compra do latão. Tradução Urs Zuber e P. Berndt. Évora: Vega, 1999 [1939-1955].
  • BRECHT, B. O processo do filme A ópera dos três vinténs [1931]. Tradução de João Barrento. Porto: Campo das Letras, 2005a.
  • BRECHT, B. Diário de trabalho, vol. 2 [1941-1947]. Tradução de Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2005b.
  • BRECHT, B. Poesia . Tradução de André Vallias. São Paulo: Perspectiva , 2019.
  • BÜRGER, P. “Kunstsoziologische Aspekte der Brecht-Benjamin-Adorno Debatte der 30er Jahre”. In: BÜRGER, P. (Hg). Seminar: Literatur und Kunstsoziologie. Frankfurt: Suhrkamp, 1978, 11-20.
  • DIEDERICHS, H. H. Frühgeschichte deutscher Filmtheorie. Habilitationsschrift im Fach Soziologie am Fachbereich Gesellschaftswissenschaften der J. W. Goethe-Universität Frankfurt am Main. Frankfurt am Main: 1996.
  • DYCK, J. “Ideologische Korrektur der Wirklichkeit. Brechts Filmästhetik am Beispiel seiner Erzählung Die Bestie”. In: DYCK, J. et al. (Hg). Brechtdiskussion. Kronberg; Taunus: Scriptor Verlag, 1974, 207-206.
  • EISLER, H.; Adorno, T. Composing for the films. London: Continuum, 2007 [1947].
  • GERSCH, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.
  • GILES, S. Bertolt Brecht and critical theory - marxism, modernity and the threepenny lawsuit. Bern: Lang, 1998.
  • GUTIERREZ, M. A. “Brecht: teoria e prática crítica dos meios”. In: Imagofagia, n. 20, 2019, 143-166.
  • GUTIERREZ, M. A. “Um ‘experimento sociológico’: o lugar de Brecht na história do cinema”. In: de Oliveira, A. B. et al. (ed.). O cinema e as outras artes. Covilhã: LabComIFP, 2020, 317-330.
  • GUTIERREZ, M. A. Brecht/cinema/América Latina. No prelo.
  • HECHT, W.; Knopf, J.; Mittenzwei, W.; Müller, K-D. “Kommentar”. In: HECHT, W.; Knopf, J.; Mittenzwei, W.; Müller, K-D. Bertolt Brecht - Werke Band XX. Berlin; Weimar; Frankfurt: Aufbau-Verlag; Suhrkamp, 1997, 491-628.
  • HECHT, W.; Knopf, J.; Mittenzwei, W.; Müller, K-D. “Kommentar”. In: HECHT, W.; Knopf, J.; Mittenzwei, W.; Müller, K-D. Bertolt Brecht - Werke Band XXI . Berlin/Weimar/Frankfurt: Aufbau-Verlag/Suhrkamp , 1992, 593-810.
  • HELLER, H-B. Literarische Intelligenz und Film. Tübigen: Max Niemeyer Verlag, 1985.
  • JAMESON, F. O método Brecht. Petrópolis: Vozes, 1999.
  • KAES, A. (Hg). Kino-Debatte. Texte zum Verhältnis von Literatur und Film 1909-1929. München; Tübingen: Deutscher Taschenbuch Verlag; Max Niemeyer Verlag, 1978.
  • KRACAUER, S. “O ornamento da massa”. In: KRACAUER, S. O ornamento da massa. Tradução de Carlos Eduardo J. Machado e Marlene Holzhausen. São Paulo: Cosac Naify, 2009a [1927], 91-103.
  • KRACAUER, S. “A fotografia”. In: KRACAUER, S. O ornamento da massa . Tradução de Carlos Eduardo J. Machado e Marlene Holzhausen. São Paulo: Cosac Naify , 2009b [1927], 63-80.
  • KRACAUER, S. “Culto da distração”. In: KRACAUER, S. O ornamento da massa . Tradução de Carlos Eduardo J. Machado e Marlene Holzhausen. São Paulo: Cosac Naify , 2009c [1926], 343-348.
  • LANG, J. Episches Theater als Film. Würzburg: Verlag Königshausen & Neumann, 2006.
  • LINDNER, B. “Der Dreigroschenprozess”. In KNOPF, J. (Hg). Brecht Handbuch, Band 4. Stuttgart; Weimar: Verlag J.B.Metzler, 2003, 134-155.
  • LINDNER, B. “Die Entdeckung der Geste - Brecht und die Medien”. In: ARNOLD, H. L.; KNOPF, J. (Hg). Text+Kritik. Sonderband Bertolt Brecht. München: Richard Boorberg Verlag, 2006, 21-32.
  • MOHOLY-NAGY, L. Painting, photography, film. Tradução de Janet Seligman. London: Lund Humphries, 1969 [1925].
  • MURRAY, B. Film and the German left in the Weimar Republic. Austin: Texas University Press, 1990.
  • PASTA JR., J. A. Trabalho de Brecht - breve introdução ao estudo de uma classicidade contemporânea. São Paulo: Ática, 1986.
  • PUDOVKIN, V. I. Film Technique and Film Acting. London: Vision, 1954 [1929].
  • SILBERMAN, M. (ed.). Brecht on film and radio. London: Methuen, 2000.
  • STOOSS, T. “Erobert den Film! Oder ‚Prometheus‘ gegen ‚UFA‘ & Co.”. In: STOOSS, T. Neuen Gesellshaft für Bildende Kunst/Freuden der Deutschen Kinemathek (Hg). Erobert den Film - Proletariat und Film in der Weimarer Republik. Berlin: NGBK, 1977, 4-47.
  • VALLIAS, A. “Laboratório versatilidade”. In: BRECHT, B. Poesia . Tradução de André Vallias . São Paulo: Perspectiva , 2019, 13-64.
  • WAGNER, G. Walter Benjamin - Die Medien der Moderne. Berlin: Vistas, 1992.
  • WÖHRLE, D. “Die Bestie”. In: GELLERT, E.; WALLBURG, B. (Hg). Brecht 90 - Schwierigkeiten mit der Kommunikation? - Kulturtheoretische Aspekte der Brechtschen Medienprogrammatik. Berlin; Bern; Frankfurt am Main; New York; Paris; Wien: Peter Lang, 1991.
  • WÖHRLE, D. Bertolt Brechts medienästetische Versuche. Köln: Prometh, 1988.
  • XAVIER, I. A opacidade e a transparência. 3. ed. revista e ampliada. São Paulo: Paz e Terra , 2005.
  • 1
    A tradução de citações tomadas do alemão é da autora, que agradece ao professor de alemão Peter Hilgeland por sua revisão.
  • 3
    Para um olhar panorâmico sobre os vários aspectos da relação entre Brecht e o cinema, ver meu artigo “Brecht: teoria e prática crítica dos meios” (2019), e, para uma visão mais abrangente do mesmo tema, ver o livro de minha autoria, Brecht/cinema/América Latina, no prelo. Sem o conhecimento do idioma alemão, o acesso aos principais textos de Brecht sobre rádio e cinema é possível através de sua tradução ao inglês em coletânea organizada por Silberman (2000SILBERMAN, M. (ed.). Brecht on film and radio. London: Methuen, 2000.).
  • 4
    Jameson alerta para a superposição das palavras ‘‘épico’’ e ‘‘narrativo’’ em alemão, o que gera um problema de tradução pode ter dado margem a diferentes interpretações na difusão do pensamento de Brecht por todo o mundo. Jameson afirma que o épico em Brecht ‘‘de forma alguma envolve as associações elevadas e clássicas da tradição homérica’’, mas significa a simples “narrativa ou ato de contar histórias” (JAMESON 1999JAMESON, F. O método Brecht. Petrópolis: Vozes, 1999.: 69-70). Bonnaud (2001BONNAUD, I. Brecht, période américaine. Thèse - Université Paris III Sorbonne Nouvelle, Paris, 2001.) chega mesmo a propor chamar o teatro de Brecht de “narrativo”. Poderia até ser mais preciso, mas o termo épico está por demais estabelecido para que uma proposta como essa se dissemine.
  • 5
    Barrento, nas notas de sua tradução de Benjamin (2017), propõe o termo ‘‘reconversão’’ para o neologismo de Brecht, Umfunktionierung. ‘‘Refuncionalização’’ seria uma tradução mais literal e direta, embora seja palavra inexistente nos dicionários.
  • 6
    Os literatos são obrigados a reconhecer que o fenômeno do cinema altera as condições de produção e recepção da literatura, levando mesmo, posteriormente, a uma problematização do próprio conceito de literatura. Esta acaba por tornar-se permeável aos novos meios, assimilando-lhes elementos estéticos como a visualidade, a fragmentação, a montagem, a composição orientada aos efeitos, e a incorporação do documental, da reportagem. Aponta-se, por exemplo, o estilo ‘‘cinematográfico’’ de Döblin, com sua escrita apressada e precisa, ou a lírica com ‘‘valor de uso’’ e o recurso a formas estilísticas jornalísticas em Brecht e Feuchtwanger (KAES 1978KAES, A. (Hg). Kino-Debatte. Texte zum Verhältnis von Literatur und Film 1909-1929. München; Tübingen: Deutscher Taschenbuch Verlag; Max Niemeyer Verlag, 1978.).
  • 7
    Os “filmes de autor” são adaptações cinematográficas de obras literárias ou aqueles produzidos a partir de roteiros originais de escritores reconhecidos. O conceito de Autorenfilm não deve ser confundido com a noção de ‘‘cinema de autor’’ cunhada na França nos anos 1950: esta se tratava da valorização de diretores de cinema que conseguiram imprimir uma marca de estilo próprio mesmo trabalhando dentro da indústria de Hollywood (BERNARDET 1994BERNARDET, J-C. O autor no cinema: a política dos autores - França, Brasil, anos 50 e 60. São Paulo: Brasiliense/EDUSP, 1994.).
  • 8
    No texto Ideias para uma estética do cinema, de 1913.
  • 9
    Lindner (2003LINDNER, B. “Der Dreigroschenprozess”. In KNOPF, J. (Hg). Brecht Handbuch, Band 4. Stuttgart; Weimar: Verlag J.B.Metzler, 2003, 134-155.) especula que Brecht teria ocultado o argumento Die Beule, que publicou um ano mais tarde, pois não queria que fosse realizado sob a direção Pabst. De toda forma, a demora na entrega do texto serviu como pretexto para a firma, já que Brecht teria impedido a rápida filmagem, não tendo colocado em prática a cláusula de codeterminação. No entanto, algumas das ideias presentes em Die Beule se encontram no filme de Pabst, pois chegaram a ser transmitidas à produção.
  • 10
    As informações apresentadas neste trecho foram extraídas do livro Photo: Casparius (BOCK; BERGER 1978BOCK, H. M.; BERGER, J. (Hg). Photo: Casparius. Berlin: Stiftung Deutsche Kinemathek; Landesbildsstelle Berlin; Berliner Festspiele GMBH; Staatliche Kunsthalle Berlin, 1978.), catálogo de exposição organizada na cinemateca de Berlim sobre o fotógrafo Hans Casparius, que registrou as filmagens do filme de Pabst. Neste catálogo foram publicados vários artigos da imprensa da época sobre o processo de Brecht contra a produtora.
  • 11
    Para uma comparação aprofundada entre o ensaio de Brecht e A obra de arte na época da possibilidade de sua reprodução técnica, ver Giles (1998GILES, S. Bertolt Brecht and critical theory - marxism, modernity and the threepenny lawsuit. Bern: Lang, 1998.). Para uma análise crítica deste ensaio e uma visão mais compreensiva do pensamento de Benjamin sobre as mídias, ver Wagner (1992WAGNER, G. Walter Benjamin - Die Medien der Moderne. Berlin: Vistas, 1992.). E, para um panorama da recepção alemã posterior de O processo dos três vinténs, ver meu artigo “Um ‘experimento sociológico’: o lugar de Brecht na história do cinema” (2020).
  • 12
    O termo de que se utiliza Pasta (1986PASTA JR., J. A. Trabalho de Brecht - breve introdução ao estudo de uma classicidade contemporânea. São Paulo: Ática, 1986.) em seu livro para a tradução de ‘‘Einbeutung’’ é ‘‘insploração’’, solução também adotada na tradução ao castelhano de Joan Fontcubierta, e que nos parece corresponder melhor ao neologismo de Brecht: trata-se de uma espécie de exploração para dentro.
  • 13
    ‘‘Decupagem transparente’’ é como se costuma chamar o padrão de montagem do cinema convencional, em que uma série de regras foram desenvolvidas para tornar os cortes tão suaves e imperceptíveis quanto possível, criando-se assim a sensação de continuidade entre os planos que compõem um filme. Para uma reflexão sobre o tema, ver Xavier (2005XAVIER, I. A opacidade e a transparência. 3. ed. revista e ampliada. São Paulo: Paz e Terra , 2005.).
  • 14
    Um pouco mais tarde, em 1932, Lukács escreve na Linkskurve uma crítica a um livro de Ottwalt, contra o uso da montagem e de materiais documentais na arte, em favor da superfície mediada pela forma, de uma noção de organicidade contra a qual se contrapõe o caráter de montagem do teatro épico (GERSCH 1975GERSCH, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.). Brecht inclusive chamou seu teatro, inicialmente, de ‘‘épico’’ e ‘‘documental’’. Ou seja, vê-se que a noção de documento não tinha mesmo o mero sentido de uma arte documentária, sendo porém mais ampla e fazendo parte dos debates estéticos da época, também motivados pela Nova Objetividade. Brecht menciona a ideia de um teatro ‘‘épico’’ e ‘‘documental’’ no texto datilografado Tendenz der Völksbühne: reine Kunst, parcialmente publicado no jornal Berliner Börsen-Courier em março de 1927. A compilação da poesia de Brecht traduzida e organizada por André Vallias (2019VALLIAS, A. “Laboratório versatilidade”. In: BRECHT, B. Poesia . Tradução de André Vallias . São Paulo: Perspectiva , 2019, 13-64.) se abre com uma citação de Godard, em que este afirma, muito a propósito: ‘‘na realidade, dizia Brecht, só o fragmento traz a marca da autenticidade’’. Tal citação de Godard esclarece muito bem a questão. Pois há um mal-entendido que prevalece em Gersch (1975GERSCH, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.) e até no mais recente trabalho de Lang (2006LANG, J. Episches Theater als Film. Würzburg: Verlag Königshausen & Neumann, 2006.): tais autores entendem este ‘‘documental’’ no sentido de registro documental, e afirmam que as ideias de Brecht depois se afastariam dessa noção. Eles têm razão em que haja um desenvolvimento no pensamento de Brecht em relação ao tema: em texto de 1926 (Die besten Bücher des Jahres 1926, publicado em Das Tage-Buch), Brecht elogia um livro de fotorreportagem por trazer mais do real do que muita literatura. Depois (em Pequeno relato sobre 400 (quatrocentos) jovens poetas, de 1927, publicado em Die Literarische Welt), preza por que haja algum ‘‘valor de documento’’ na poesia, em oposição ao impressionismo e ao expressionismo - ou seja, que traga algo do real, para além da subjetividade. E, mais tarde - como se verá adiante -, irá mais fundo no problema da fotografia e de sua capacidade de revelar ou não algo sobre o real. Nos esboços de 1945 para A compra do latão, comenta-se que, no teatro de Piscator, imagens dos filmes de atualidades eram montadas de forma a fazer sentido e fornecer às encenações ‘‘material documentário’’. Mas, parece-me que, desde o princípio, ‘‘documento’’ tinha este sentido de fragmento, pedaço do real, a que Godard faz menção, e não tanto de registro documental (e muito menos de representação mimética do real).
  • 15
    Já Wöhrle (1991) vê no conto uma possível provocação a Balázs e sua noção de estilo de interpretação fisionômico.
  • 16
    Brecht está certo: no cinema, o ator fica muito mais colado à personagem e toda representação à história contada. Mas no cinema moderno vários foram os meios usados para descolar o ator da personagem e a diegese da representação cinematográfica - como se pode observar na obra de cineastas como Glauber Rocha e Godard. Ao apontar problemas ligados ao som, Brecht parece ainda incapaz de imaginar toda a experimentação tornada possível por avanços técnicos como o som direto e a estereofonia, e pelo próprio desenvolvimento da linguagem por cineastas modernos - novamente a obra de Godard surge como exemplo fundamental. (Porém, como mencionado, o próprio Brecht já havia feito com Eisler experimentos de um uso contrapontístico do som em Kuhle Wampe). Quanto à imagem, de fato, mesmo que se ofereçam ao público múltiplos pontos de vista de uma cena qualquer, são sempre pontos de vista já determinados previamente. Com relação à perspectiva, o tema deu muito ‘‘pano para manga’’ posteriormente, em discussões da crítica cinematográfica europeia, sobretudo francesa, entre os anos 1960 e 1970. O chamado cinema moderno encontrou maneiras de subverter a perspectiva única da câmera (através do recurso ao plano-sequência, à bidimensionalização da imagem, aos cortes fora de eixo, a determinadas formas de composição do quadro etc.), embora se reconheça o limite de cada plano para tal subversão. A objeção de que no cinema se apresenta à plateia um produto pronto é de certa maneira incontornável. Mas, mesmo com isso, certos cineastas do cinema moderno e de intervenção política mais diretamente militante encontraram um jeito de lidar: por exemplo, a experiência de Solanas e Getino com La hora de los hornos (1968), filme feito para poder ser interrompido e discutido de acordo com os interesses da plateia. Uma alteração efetiva do filme pôde ser conquistada a partir da tecnologia do vídeo e de suas possibilidades de manipulação ao vivo. Mas, mesmo em película, certas formas de exibição militante foram experimentadas no sentido de romper com o caráter de um produto final pronto e acabado - já na Rússia dos inícios da revolução, na experiência dos cine-trens, os filmes eram discutidos com o público para serem em seguida remontados. Por outro lado, pode-se objetar que, com raras exceções como o teatro do oprimido, cujo curso realmente depende da intervenção direta do espectador, de maneira geral é limitada a possibilidade de alteração da peça pelo público, mesmo num teatro supostamente participativo - basta fazer a experiência de assistir duas vezes a uma peça deste tipo - mesmo que o ‘‘espectador ativo’’ possa contribuir mais ou menos, a peça não foge muito do desenvolvimento previsto.
  • 17
    A meu ver, porém, como se depreende do comentário em torno de Die Bestie, não era exatamente a não interpretação do cinema o que Brecht valorizava, mas sim a externalidade da ação e a atuação baseada em gestos.
  • 18
    Lang (2006LANG, J. Episches Theater als Film. Würzburg: Verlag Königshausen & Neumann, 2006.) é quem chama a atenção sobre tais textos.
  • 19
    Benjamin o afirma através de uma citação sem indicação da fonte.
  • Este artigo é resultado parcial de pesquisa desenvolvida com o apoio da FAPESP e da CAPES (processo FAPESP 2016/13249-5). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade da autora e não necessariamente refletem a visão da FAPESP e da CAPES.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2021
  • Aceito
    17 Jun 2021
Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/; Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã Av. Prof. Luciano Gualberto, 403, 05508-900 São Paulo/SP/ Brasil, Tel.: (55 11)3091-5028 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: pandaemonium@usp.br