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Introdução às características fonético-fonológicas das consoantes do alemão Standard e do alemão boêmio

Introduction to phonetic-phonological features of the Standard German and Bohemian German consonants

Resumo

O Rio Grande do Sul (RS) recebeu, em 1824, os primeiros imigrantes alemães vindos da região do Hunsrück, Alemanha (Altenhofen 1996). Posteriormente, por volta de 1873, chegaram os imigrantes alemães da Boêmia, região da atual República Tcheca (Habel 2017). Com isso, ocorreu um intenso contato linguístico entre essas variedades dialetais. Como ainda não foram identificados estudos sobre o sistema consonantal dessa língua falada pelos descendentes de alemães boêmios, é feita, inicialmente, uma revisão bibliográfica do alemão Standard e da variedade de imigração alemã, Hunsrückisch. Assim, o objetivo desse estudo é fazer uma descrição preliminar de alguns aspectos do sistema fonético-fonológico das consoantes do alemão boêmio em um ponto de pesquisa do RS, tendo como base, em especial, o alemão Standard.

Palavras-Chave:
alemão Standard; alemão boêmio; fonética e fonologia

Abstract

In 1824, Rio Grande do Sul (RS) received the first German immigrants coming from the Hunsrück region, Germany (Altenhofen 1996). Later, around 1873, German immigrants arrived from Bohemia, a current region of Czech Republic (Habel 2017). After that, there was an intense linguistic contact between these dialectal varieties. Since we have not identified studies on the consonant system of this language spoken by the descendants of Bohemian Germans yet, a bibliographical revision of the standard German and the German immigration variety (Hunsrückisch) is initially made. Therefore, the purpose of this study is to make a preliminary description of some aspects of the phonetic-phonological system of the German-Bohemian consonants in a research point at RS, based, especially, on the standard German.

Keywords:
Standard German; Bohemian German; phonetic and phonology

1 Introdução

A fonética e a fonologia serão vistas neste trabalho como duas disciplinas que se complementam e que possuem uma relação de dependência entre si. Segundo Brescancini e Gomes (2014Brescancini, C. R.; Gomes, C. A. Fonética versus fonologia? Letras de Hoje, v. 49, n. 1, 2014, p. 5-10.: 05), a aproximação entre a fonética e a fonologia começa no estruturalismo (fonêmica), no qual a representação sonora e abstrata da forma das palavras se baseia em segmentos com função distintiva.

Estudos da fonologia devem ser definidos em relação à fonética, segundo Abaurre (1993Abaurre, M. B. M. Fonologia: a gramática dos sons. Letras, Santa Maria, n. 5, 1993, p. 9-24., p. 10), pois são disciplinas próximas. A primeira disciplina estuda a função dos sons - responsáveis pela diferença de sentido - e a relação de oposição que ocorre em sistemas específicos; ou seja, ela se vale dos resultados apresentados pela fonética. A segunda disciplina estuda os sons da linguagem que podem ser descritos com base em suas características físicas e articulatórias. Enquanto a fonética define suas unidades mínimas como sendo os sons da linguagem ou os fones, a fonologia, que se ocupa com elementos abstratos, define os fonemas como suas unidades básicas (Abaurre 1993: 10).

A ausência de descrições fonético-fonológicas do alemão falado por descendentes de imigrantes boêmios no Brasil justifica este estudo preliminar. Por alemão boêmio, segundo Habel (2017Habel, J. M. “Das Böhmische Deutsch”: perda e coineização de variantes do alemão de imigrantes boêmios no Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Letras. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017. Disponível em: https://bit.ly/2YduYqN. Acesso em: 10 fev. 2018.
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), entende-se uma variedade de fala que chegou ao Brasil, em 1873, através da imigração de alemães da região norte da Boêmia (atual República Tcheca) para o Rio Grande do Sul (RS). Este grupo de imigrantes já tinha acesso à leitura e ao ensino do alemão Standard antes de imigrar, o que explica a formação de associações de leitura e canto (Flores 1983Flores, H. A. H. Canção dos imigrantes. Porto Alegre: Est, 1983.: 76) e a construção de escolas alemãs no Brasil. Ao lado dessa variedade linguística mais Standard - utilizada em momentos mais formais, especialmente em espaços comunitários -, o grupo também se comunicava através de uma variedade mais dialetal em espaços familiares. Além disso, ocorreu o contato linguístico com os falantes de Hunsrückisch, grupo de imigrantes alemães vindos em 1824 da região do Hunsrück, sudoeste da Alemanha (Altenhofen 1996Altenhofen, C. V. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Ein Beitrag zur Beschreibung einer deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem Portugiesischen. Stuttgart: Steiner, 1996.).

O contato entre as variedades alemãs, da mais Standard à mais dialetal, não parece ter representado dificuldades comunicativas, uma vez que muitos falantes assumem as variedades consideradas diferentes que convivem nos entornos da comunidade. Esse contexto de contato linguístico intervarietal, ou seja, o contato entre essas variedades alemãs, bem como a intercompreensão entre elas, pode ser entendido melhor através da análise fonético-fonológica do alemão Standard, do Hunsrückisch e do alemão boêmio.

Sendo assim, objetiva-se descrever preliminarmente alguns aspectos do sistema fonético-fonológico do alemão boêmio. Para atingir o objetivo proposto, o estudo segue o modelo teórico-metodológico de Chomsky e Halle (1968Chomsky, N.; Halle, M. The sound pattern of English. New York: Harper and Row, 1968.), identificando, na medida do possível, os fonemas, os alofones e os principais processos fonológicos que atuam na língua.

Com Chomsky e Halle (1968Chomsky, N.; Halle, M. The sound pattern of English. New York: Harper and Row, 1968.) deu-se o início da teoria fonológica gerativa através da publicação de The Sound Pattern of English (SPE). De acordo com o modelo, falantes dispõem de uma estrutura linguística com informações gramaticais. Através do uso de regras, essa estrutura gramatical pode ser modificada e formar a fala, ou seja, as estruturas de superfície ou as representações fonéticas.

Em função dos poucos estudos sobre o alemão boêmio (Habel 2017Habel, J. M. “Das Böhmische Deutsch”: perda e coineização de variantes do alemão de imigrantes boêmios no Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Letras. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017. Disponível em: https://bit.ly/2YduYqN. Acesso em: 10 fev. 2018.
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) e da falta de análises fonético-fonológicas dessa variedade (exclusivamente oral) surgiu a motivação para entender um pouco mais sobre sua constituição em contato com o português do RS e com o Hunsrückisch. Para isso, inicialmente torna-se necessário uma revisão bibliográfica de estudos sobre o alemão Standard e da variedade brasileira de imigração alemã, o Hunsrückisch, para compreender melhor o sistema consonantal dessas variedades. Com essas leituras, podemos analisar o que pode ter sido transferido para o sistema fonológico do alemão falado pelos descendentes de imigrantes boêmios, uma vez que se trata de variedades linguísticas extremamente próximas.

Algumas noções teóricas básicas para este estudo serão apresentadas na próxima seção, com base em Bisol (2010Bisol, L. (Org.). Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. 5. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.) e Hayes (2009Hayes, B. Introductory phonology. Malden: Wiley-Blackwell, 2009.). Seguiremos agora para as noções de fonema, alofone e regra fonológica.

2 Algumas noções teóricas

A fonologia se ocupa dos sons capazes de distinguir significados (fonemas), segundo Hayes (2009Hayes, B. Introductory phonology. Malden: Wiley-Blackwell, 2009.: 20). Fonemas são os sons básicos da fala, as unidades relacionadas aos sons (fones) produzidos e percebidos em seu contexto. Conforme o gerativismo, para identificar os fonemas de uma língua utilizam-se os pares mínimos que indicam se determinadas unidades contrastam significado. Matzenauer (2010Matzenauer, C. L. B. Introdução à teoria fonológica. In: Bisol, L. (org.). Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. 5. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010, p. 11-73.: 12) utiliza os exemplos pala/bala, que mostram os fonemas /p/ e /b/ como unidades sonoras diferentes. No modelo de Chomsky e Halle (1968Chomsky, N.; Halle, M. The sound pattern of English. New York: Harper and Row, 1968.) os traços distintivos podem ser ausentes (-) ou presentes (+) e, com isso, podem provar contrastes fonológicos. Os fonemas são, portanto, sons contrastivos.

Para entender com mais clareza o que foi exposto anteriormente, utilizamos o exemplo do processo de palatalização - que ocorre em alguns dialetos do português - fornecido por Matzenauer (2010Matzenauer, C. L. B. Introdução à teoria fonológica. In: Bisol, L. (org.). Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. 5. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010, p. 11-73.: 26). A regra fonológica deve ser lida da seguinte forma: o segmento /t/ torna-se [tʃ] quando acompanhado da vogal /i/ (como em ‘tia’ [tʃ ia]).

Fig. 1:
Regra fonológica de palatalização no português

A regra da palatalização também pode ser explicada pelo uso de traços distintivos, como abaixo. Segundo Matzenauer (2010Matzenauer, C. L. B. Introdução à teoria fonológica. In: Bisol, L. (org.). Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. 5. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010, p. 11-73.: 27), os traços distintivos revelam a motivação fonética expressa nessa regra. As consoantes dentais tornam-se palatais (ou seja, altas) antes da vogal /i/, que também é palatal [+ alto]. Nessa regra pode-se visualizar que alguns traços são alterados no processo, enquanto outros permanecem inalterados, constituindo instrumentos importantes para a descrição fonológica das línguas, conforme a autora.

Fig. 2:
Traços distintivos da palatalização

Os alofones são sons não contrastivos e, quando manifestados foneticamente, são resultantes de regras fonológicas aplicadas em contextos apropriados (Hayes 2009Hayes, B. Introductory phonology. Malden: Wiley-Blackwell, 2009.: 48). Um exemplo de alofone do português é o [tʃ], apresentado na regra da palatalização, como vimos acima. Uma abordagem teórica adotada na fonologia é a de caracterizar o fonema estabelecendo um nível abstrato de representação, chamado de representação subjacente, forma subjacente, forma base ou, ainda, representação fonêmica (Hayes 2009: 29).

O componente fonológico, parte da gramática que atribui interpretação fonética, aceita como entrada (input ou estrutura subjacente) as formas armazenadas no léxico e arranjadas em palavras no componente morfológico (Hayes 2009Hayes, B. Introductory phonology. Malden: Wiley-Blackwell, 2009.: 124). Já como saída (output ou realização de superfície) o componente fornece a representação fonética, conforme Chomsky e Halle (1968Chomsky, N.; Halle, M. The sound pattern of English. New York: Harper and Row, 1968.: 164).

Para explicar os processos fonético-fonológicos pelos quais uma língua passa, a teoria gerativa se utiliza das regras fonológicas. Essas regras podem transformar, apagar, inserir segmentos ou mudá-los de posição (no caso de metátese, por exemplo). Segundo Matzenauer (2010Matzenauer, C. L. B. Introdução à teoria fonológica. In: Bisol, L. (org.). Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. 5. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010, p. 11-73.: 34-35), os gerativistas utilizam símbolos para expressar essas regras, o que garante clareza e comparabilidade entre as línguas. O símbolo C representa as consoantes; V, as vogais; G, glides; N, nasais. O símbolo # representa final de palavra e o símbolo ø representa categorias vazias em regras de inserção ou de apagamento. A sílaba é representada pela letra grega em minúsculo (σ, o sigma).

A sílaba é uma unidade fonológica reconhecida pela fonologia gerativa. Há duas teorias que a estudam: teoria autossegmental (pressupõe camadas independentes) e teoria métrica, na qual a sílaba possui um ataque (A) e uma rima (R) formada por um núcleo (Nu) constituído de vogal/vogais e coda (Co) (Collischonn (2010Collischonn, G. A sílaba em português. In: Bisol, L. (org.). Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. 5. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010, p. 99-131.: 100) aprofundou isso em seus estudos com o português brasileiro). Neste trabalho, preferimos utilizar o termo “final de sílaba” no lugar de “coda silábica”.

Fig. 3:
Representação silábica de “pais” (em português

A teoria autossegmental prevê um comportamento igual entre os três elementos. Já a teoria métrica propõe haver uma estrutura interna hierárquica na sílaba, pressupondo um relacionamento mais estreito entre a vogal do núcleo e a consoante da coda. Neste estudo, seguiremos a teoria autossegmental quando necessário, uma vez que ela subentende a sílaba como um todo, no que se refere às regras fonológicas.

Após essa breve revisão teórica, seguimos com a seção sobre alemão Standard, mostrando o sistema das consoantes e algumas regras fonológicas que incidem sobre o mesmo.

3 Alemão Standard

Na literatura pesquisada para este trabalho, percebeu-se que não há consenso sobre o número de fonemas que compõem o sistema consonantal do alemão (cf. Pittner 2013Pittner, K. Einführung in die germanistische Linguistik. Darmstadt: WBG, 2013.: 22; Kürschner 2017Kürschner, W. Grammatisches Kompendium: Systematisches Verzeichnis grammatischer Grundbegriffe. Tübingen: Francke Verlag, 2017.: 45; Bergmann 2005Bergmann, R. Phonetik und Phonologie. In: BERGMANN, R.; PAULY, P.; STRICKER, S. (org.). Einführung in die Deutsche Sprachwissenschaft. Heidelberg: Universitätsverlag Winter, 2005, p. 21-30.: 28), o que torna o estudo ainda mais complexo e instigante. Pittner (2013: 22), por exemplo, não considera as consoantes dentais, inserindo-as na categoria alveolares ou pós-alveolares. A autora apresenta as fricativas palatal [ʝ] e uvular [X], que não são consideradas por Kürschner (2017), em seu quadro consonantal. Parece haver uma mistura entre fones e fonemas. Bergmann (2005: 28), por exemplo, faz distinção entre os fones (colocando-os entre colchetes) e fonemas (entre barras inclinadas), inserindo até mesmo as africadas /pf/ e /ts/.

Conforme Kürschner (2017Kürschner, W. Grammatisches Kompendium: Systematisches Verzeichnis grammatischer Grundbegriffe. Tübingen: Francke Verlag, 2017.: 41), os fones [r], [ʁ] e [R] utilizados na palavra Rot (vermelho) não levam a um novo significado. Sendo assim, temos [r], [ʁ] e [R] como alofones de /r/. Os alofones são realizações variantes de fonemas. O autor explica que os sons /ç/ e /x/ são dois fones no alemão, mas que seriam alofones de um fonema subjacente. O [ç] ocorre apenas em ambientes em que [x] não ocorre e vice-versa, como no exemplo, ich (eu) e ach (ai). Esses dois sons estariam em distribuição complementar, sendo que [x] aparece após vogais posteriores como em Buch (livro), e o [ç] surge em todos os outros contextos, como em Bücher (livros) ou ich (eu).

Embora tenhamos analisado três quadros fonéticos do alemão Standard para fins comparativos, optou-se por adaptar o quadro de símbolos do Alfabeto Fonético Internacional (IPA: International Phonetic Alphabet) retirado de Kürschner (2017Kürschner, W. Grammatisches Kompendium: Systematisches Verzeichnis grammatischer Grundbegriffe. Tübingen: Francke Verlag, 2017.: 45).

No quadro abaixo, listamos os fonemas consonantais que ocorrem no alemão Standard. Na coluna da esquerda está a representação do estado da glote que separa os fonemas desvozeados (representados por D), dos vozeados (representados por V), além de listar o modo de articulação. Na primeira linha do quadro indicou-se o lugar de articulação.

Quadro 1:
O sistema consonantal fonético do alemão Standard (adaptado de Kürschner)

Para se chegar ao quadro de fonemas consonantais do alemão, são utilizados os pares mínimos, conforme o Quadro 2. O par mínimo Pass - Bass (conforme o primeiro exemplo do quadro) possui significados diferentes, no qual /p/ e /b/ são considerados fonemas da língua alemã. Percebemos que a alteração de apenas um segmento em uma palavra modifica o significado dela, formando um novo item lexical.

Quadro 2:
Pares mínimos com as consoantes do alemão (adaptado de Jürgen Trouvain2 2 Dado a dificuldade em encontrar listas de pares mínimos da língua alemã Standard, optou-se pela lista disponibilizada por Jürgen Trouvain. Disponível em: https://bit.ly/2Voios6. No entanto, mais pares mínimos também podem ser encontrados no site Phoenix Software. Disponível em: https://bit.ly/2YKCWbt. Acesso em: 10 jan. 2019. )

Na comparação desse quadro de pares mínimos com o quadro do sistema consonantal fonético somou-se vinte e quatro fonemas no alemão Standard. Segundo Dudalski, Figueredo e Meireles (2008Dudalski, R.; Figueredo, S.; Meireles, S. Recepção oral e produção escrita: um estudo sobre aprendizado da língua alemã por alunos de graduação em Letras. In: Battaglia, M. H. V.; Nomura, M. (org.). Estudos linguísticos contrastivos em alemão e português. São Paulo: Annablume, 2008.: 31), é importante observar que o /R/ representa dois fones distintos na língua alemã. O fone [R], comum em início de sílabas, como em Rabe [ˈra:bə], também pode ocorrer em final de sílaba e, nesse caso, sofrer um processo de vocalização, como em armer [ˈaɐmɐ]. Por outro lado, as oclusivas (plosivas) /b/, /d/, /g/ e as fricativas /v/, /z/, /ʒ/ sofrem desvozeamento (Auslautverhärtung/devoicing), aproximando esses fonemas do seu par quando ocorrem em início ou final de sílaba - como em Bad [ba:t] -, alterando a sonoridade. No entanto, a fricativa /v/ merece um estudo mais aprofundado, porque ela pode apresentar diferentes formas de produção, como ocorre em nervig [´nɛrfiç] e [´nɛrviç]. Em estudos sobre diferentes variedades dialetais da língua alemã é comum esse tipo de ocorrência.

O desvozeamento neutraliza o contraste entre /t/ e /d/ em final de sílaba, por exemplo, conforme Féry (2013Féry, C. Einführung in die Phonologie. Institut für Linguistik: Frankfurt am Main, Goethe Universität Frankfurt, 2013. Disponível em: https://bit.ly/2JoF8ki. Acesso em: 22 jan. 2018.
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: 65) apresenta em seu estudo. O desvozeamento das plosivas /b/, /d/ e /g/ faz parte do sistema fonológico da língua alemã e ocorre em final de sílaba, o que pode ser facilmente verificado ao compararmos as formas Kind [t] (criança) e o plural Kinder [d] (crianças).

A aspiração das plosivas desvozeadas /p/, /t/ e /k/ fornece outro exemplo de alternância sistemática e ocorre em início de palavra (Féry 2013Féry, C. Einführung in die Phonologie. Institut für Linguistik: Frankfurt am Main, Goethe Universität Frankfurt, 2013. Disponível em: https://bit.ly/2JoF8ki. Acesso em: 22 jan. 2018.
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: 65), como em Panther [ph] (pantera), Tür [th] (porta) e Kaffee [kh] (café). Portanto, as plosivas aspiradas [ph], [th] e [kh] entram na lista de alofones das plosivas desvozeadas.

Assim como o desvozeamento das plosivas, a aspiração também deve ser um provável resultado da aplicação de regras fonológicas em contextos particulares. Com o modelo de Hayes (2009Hayes, B. Introductory phonology. Malden: Wiley-Blackwell, 2009.: 30), veremos, abaixo, a representação da regra da aspiração:

Fig. 4:
Regra da aspiração

Nesse processo fonológico percebemos que os fonemas /p/ e /k/ passaram por um procedimento de aspiração e, em sua forma de superfície, a saída (output) foi [ph] e [kh]. No terceiro exemplo - stark (forte) -, a regra não se aplicou, porque temos a fricativa em início de sílaba impedindo o processo. A aspiração também não ocorre com as africadas ou fricativas [ʃt, ʃp, sp, pf, ps, pʃ, ts, tʃ, ks]Segundo Šileikaite-Kaishauri (2015Šileikaitė-Kaishauri, D. Einführung in die Phonetik und Phonologie des Deutschen: Basiswissen, Aufgaben und Literaturhinweise. Vilnius: Universität Vilnius, 2015.: 322), a aspiração não ocorre diante das nasais, como em raten [′ʁatn]. Sendo assim, a regra da aspiração é aplicada principalmente em início de palavras e na frente de vogais, além de também aplicada em final de palavras, embora com menor frequência. Altenhofen (1996Altenhofen, C. V. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Ein Beitrag zur Beschreibung einer deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem Portugiesischen. Stuttgart: Steiner, 1996.) explica que a ocorrência da aspiração nas plosivas do germânico ocidental e, até mesmo a segunda rotação consonantal (II Lautverschiebung), manteve-se em vários dialetos da língua alemã e migrou com os imigrantes para a nova pátria (Brasil), mantendo-se aqui até hoje, como veremos nas próximas seções.

3.1 A sílaba no alemão Standard

O presente estudo é introdutório, portanto, mencionaremos apenas algumas das possíveis formações silábicas no alemão para entender melhor os fones da língua. Em [′a.maɪ.zə] (formiga), temos a primeira sílaba formada por uma V, a segunda sílaba com CVV e a terceira sílaba com CV. Em Ei (ovo), temos uma sílaba com VV; em Eid (juramento), temos VVC. Ainda existem outras possibilidades de formar sílabas mais curtas, como em Akt (ato), em que temos VCC.

Há sílabas mais complexas, as quais são formadas por mais consoantes, característica bastante comum do alemão. O exemplo Schmuck [ʃmʊk] (joias) possui uma sequência de dois fones consonantais em início de sílaba. Assim, também é possível encontrar palavras com fones consonantais em final de sílaba, como no exemplo Deutsch [ˈdɔɪtʃ] (alemão) (C+VV+CCCC), onde há uma africada após a vogal. Quando se define a sílaba mais longa do alemão (incluindo clíticos e terminações flexionais), percebe-se que as vogais curtas podem apresentar até cinco consoantes (Becker 1998Becker, T. Das Vokalsystem der deutschen Standardsprache. In: EHLICH, K. (org.). Arbeiten zur Sprachanalyse. Berlin: Peter Lang, 1998.: 52), como no sobrenome Jantsch [jaŋʃ] (CVCCCCC), grafada com apenas uma vogal e, na sequência, dois fones consonantais. As vogais longas ou ditongos suportam até quatro consoantes, como em hübsch [hʏpʃ] (bonito) e er tauscht [ˈtaʊʃt] (ele troca).

O que pode explicar a formação dessas sílabas longas é o termo “extrassilábico”, que se refere a um segmento que não pode ser associado a nenhuma sílaba, mas que também não pode ser apagado por ser considerado invisível às operações de apagamento (Collischonn 2010Collischonn, G. A sílaba em português. In: Bisol, L. (org.). Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. 5. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010, p. 99-131.: 114). Vejamos o exemplo streichst an (pintar) apresentado por Wiese (1986Wiese, R. Zur Theorie der Silbe. Studium Linguistik, n. 20, 1986, p. 1-15. Disponível em: https://bit.ly/2J5yBvx. Acesso em: 20 jan. 2018.
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: 13), onde ele define as formações silábicas com /ʃ/ como extrassilábicas:

Fig. 5:
Representação silábica do verbo streichst

Outros exemplos surgem na língua alemã sem a presença do segmento /ʃ/ na sílaba, como é o caso de Herbst [′hɛrpst] (outono) ou denkst [′dɛŋkst] (pensa). No século XIX, o linguista Eduard Sievers (1881Sievers, E. Grundzüge der Phonetik. Leipzig: Breitkopf und Härtel, 1881.) mostrou que a ordem dos segmentos em uma sílaba com várias consoantes é orientada pela sonoridade. Nesse sentido, Pittner (2013Pittner, K. Einführung in die germanistische Linguistik. Darmstadt: WBG, 2013.: 28) apresenta a estruturação da hierarquia de sonoridade que atua na formação silábica, ou seja, que ordena as consoantes antes ou após seu núcleo, conforme a Figura abaixo:

Fig. 6:
Hierarquia da sonoridade (adaptado de Pittner)

Esses dois exemplos [′hɛrpst] e [′dɛŋkst] mostram o aumento da obstrução do fluxo do ar após a vogal, ou seja, após o núcleo da sílaba. Os sons com a menor sonoridade são representados pelas plosivas, e a maior sonoridade está nas vogais. Assim, também podemos justificar a ocorrência de encontros consonantais antes do núcleo da sílaba, ou seja, antes da vogal, como nos exemplos Pflanze [′pflan.tsγ] (planta) e Pfropfen [′pfrɔp.fən] (rolha). Aqui percebemos o aumento da sonoridade, que vai da plosiva /p/ para a fricativa /f/ e em seguida para a lateral /l/ ou para a vibrante /r/, chegando até o núcleo silábico. Sendo assim, a hierarquia de sonoridade facilita bastante o entendimento da formação silábica e da realização dessas sílabas complexas pelos falantes de alemão.

A africada /pf/ do alemão Standard ocorre tanto em início de palavra (Pflanze ) quanto no meio (Zapfen) ou no final (Topf ), seguindo o aumento da sonoridade das consoantes. A formação silábica e a hierarquia da sonoridade do alemão Standard se manifestam também nas variedades germânicas do Brasil (Hunsrückisch e alemão boêmio), que estão a mais de um século em contato com o português. Sendo assim, passaremos para a próxima seção sobre o sistema consonantal do Hunsrückisch.

4 Hunsrückisch

Para entender melhor as características da variedade alemã que entrou em contato linguístico com os descendentes de imigrantes boêmios, focamos no estudo de Altenhofen (1996Altenhofen, C. V. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Ein Beitrag zur Beschreibung einer deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem Portugiesischen. Stuttgart: Steiner, 1996.) e de Altenhofen et al. (2007), além de trazer exemplos levantados em entrevistas realizadas em campo no ano de 2016. Para tornar mais ágil a identificação dos segmentos consonantais, readaptamos a distribuição dos símbolos fonêmicos em um quadro que segue o formato da tabela IPA (International Phonetic Alphabet).

Para analisar as consoantes do Hunsrückisch, esse estudo pioneiro de Altenhofen (1996Altenhofen, C. V. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Ein Beitrag zur Beschreibung einer deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem Portugiesischen. Stuttgart: Steiner, 1996.) teve como principal base bibliográfica os estudos realizados com línguas germânicas ocidentais (Westgermanisch). No quadro, muito provavelmente, não devem constar todos os símbolos fonêmicos do repertório linguístico dos falantes de Hunsrückisch, uma vez que o estudo de Altenhofen (1996) se restringiu apenas a alguns pontos de pesquisa no Rio Grande do Sul.

Assim, Altenhofen (1996Altenhofen, C. V. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Ein Beitrag zur Beschreibung einer deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem Portugiesischen. Stuttgart: Steiner, 1996.) analisa as principais características do inventário consonantal do Hunsrückisch no RS, fazendo um paralelo com o germânico do ocidente, em função da matriz de origem desses imigrantes alemães.

Quadro 3:
Inventário fonêmico das consoantes do Hunsrückisch (adaptado de Altenhofen)

Altenhofen (1996Altenhofen, C. V. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Ein Beitrag zur Beschreibung einer deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem Portugiesischen. Stuttgart: Steiner, 1996.) identificou 20 fones consonantais na língua de imigração alemã, o Hunsrückisch, analisada em seu estudo. Para este trabalho, inserimos a distribuição dos fones em uma tabela conforme o ponto de articulação (bilabial, labiodental, alveolar, pós-alveolar, palatal, velar e glotal); conforme o modo de articulação (plosivas, fricativas, nasais, vibrante e lateral); por fim, conforme o estado da glote (desvozeadas e vozeadas). Os diacríticos que marcam a aspiração e a dessonorização (diacrítico “bolinha”) das plosivas foram mantidos como originalmente apresentados por Altenhofen (1996: 344). O diacrítico “bolinha” é inserido com o uso da Fonte IPA Kiel3 3 A Fonte IPA Kiel pode ser acessada aqui: https://bit.ly/2Wu3EUP Acesso em: 12 jan. 2019. , desenvolvida na Universidade de Kiel, Alemanha.

Gewehr-Borella (2014Gewehr-Borella, S. “Tu dampém fala assim?”: macroanálises pluridimensionais da variação de sonorização e dessonorização das oclusivas do português de falantes bilíngues hunsriqueano-português. Tese (Doutorado) - Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.: 68-69) explica que as plosivas do Hunsrückisch foram representadas em seu trabalho por símbolos mais genéricos, sendo os desvozeados representados por /p/, /t/ e /k/, e os vozeados por /b/, /d/ e /g/. Assim, a marcação dos diacríticos de aspiração e de desvozeamento ficaria reservada para a realização fonética.

A autora ainda apresenta (Quadro 4) algumas regras de vozeamento de plosivas no Hunsrückisch, as quais ocorrem em início e final de palavra e em sílabas pretônica e tônica. Essa regra se aplica nas plosivas com desvozeamento, o que Altenhofen (1996Altenhofen, C. V. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Ein Beitrag zur Beschreibung einer deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem Portugiesischen. Stuttgart: Steiner, 1996.) designou de Halbfortes4 4 Palavra composta, onde Halb (meio) vem do alemão e Fortis (forte) do latim. O termo Halbfortes é utilizado na Germanística para designar consoantes semivozeadas. (semivozeadas). A regra também se aplica em sílabas postônicas sofrendo um processo de enfraquecimento (lenição).

Quadro 4:
Regras de vozeamento do Hunsrückisch

Altenhofen (1996Altenhofen, C. V. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Ein Beitrag zur Beschreibung einer deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem Portugiesischen. Stuttgart: Steiner, 1996.) considera as plosivas como unidades relevantes para o sistema fonêmico do Hunsrückisch em função da aspiração e do desvozeamento. No alemão Standard, as plosivas aspiradas e desvozeadas são identificadas como alofones, ou seja, variantes dos fonemas como /p/ e /b/, por exemplo. No mínimo, trata-se de um assunto complexo, uma vez que na língua de imigração é possível encontrar pares mínimos através de análises foneticamente contrastivas. Um exemplo é o par mínimo do Hunsrückisch, escrito ortograficamente em alemão Standard como geh (vai), Tee (chá) e der (ele).

Fig. 7:
Par mínimo

Além dos pares acima, também haveria mais pares mínimos, como: [se:] (mar), [khe:] (nenhum), [ne:] (não) e [ve:] (doer) - em alemão Standard: See, kein, nein e weh, respectivamente -, conforme Altenhofen (1996Altenhofen, C. V. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Ein Beitrag zur Beschreibung einer deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem Portugiesischen. Stuttgart: Steiner, 1996.: 341).

Exemplos de pares mínimos com os fonemas /k/ e /g/, /p/ e /b/ podem ser vistos na Figura 8 (Altenhofen et al., 2007Altenhofen, C. V. et al. Fundamentos para uma escrita do Hunsrückisch falado no Brasil. Contingentia, Porto Alegre, v. 2, n. 2, 2007, p. 73-87.: 82).

Fig. 8:
Pares mínimos com os fonemas /k/ e /g/, /p/ e /b/

Como estes pares mínimos demonstram claramente o contraste fonêmico entre os sons aspirados - /ph, th, kh/ - e os dessonorizados - /b, d, g/ com o “diacrítico bolinha” -, podemos classificá-los, a meu ver, como fonemas da língua de imigração alemã, o Hunsrückisch. Vejamos mais exemplos que ilustram os demais fonemas consonantais do Hunsrückisch.

Fig. 9:
Fonemas consonantais do Hunsrückisch

As plosivas /p, t, k/ do alemão germânico ocidental (Westgermanisch) sofrem uma mudança sonora no Hunsrückisch, segundo Altenhofen (1996Altenhofen, C. V. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Ein Beitrag zur Beschreibung einer deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem Portugiesischen. Stuttgart: Steiner, 1996.: 329-330), e conforme já relatado no texto. O /p/ também pode sofrer desvozeamento (como em “puxar”, do exemplo 2 abaixo, Figura 10) ou aspiração (como em “roçar”, do exemplo 1) na variedade dialetal transplantada para o Brasil, formando par mínimo. O segmento aspirado [ph] ocorre em início de sílaba, como no exemplo número 1. A forma desvozeada, [b] com o diacrítico “bolinha”, ocorre em início de palavra ou ao final de sílaba, como no exemplo 2. No exemplo 3, temos o [b] se manifestando sem o diacrítico “bolinha” em início de sílaba.

O /t/ pode ocorrer em sua forma desvozeada, como no exemplo número 4, ou na forma aspirada, como no exemplo 5. No caso do /k/, ocorre o mesmo processo de aspiração em início de palavra, como em [khu:] (vaca).

Fig. 10:
Exemplos de aspiração e desvozeamento

Na tentativa de entender melhor esses processos fonológicos, analisaremos as regras no mapeamento da estrutura subjacente (input) e na realização de superfície (output), conforme Hayes (2009Hayes, B. Introductory phonology. Malden: Wiley-Blackwell, 2009.: 30). Veremos, abaixo, a regra da aspiração ocorrendo na variedade alemã, o Hunsrückisch.

Fig. 11:
Exemplos da regra da aspiração

Com esses exemplos, percebemos que há vários processos fonológicos em jogo e não apenas a regra da aspiração. Assim como no alemão Standard, o Hunsrückisch vocaliza as terminações silábicas <-er>, como em Pfeffer (pimenta). O apagamento da nasal alveolar /n/, como no verbo kommen (vir), é bastante frequente em finais de verbos da língua de imigração e não costuma ocorrer no alemão Standard. A africada /pf/ do alemão Standard quase sempre ocorre como [p] no Hunsrückisch do Rio Grande do Sul, ocorrendo apagamento da fricativa labiodental [f]. Na sequência, identificou-se a sonorização em sílaba postônica, ou seja, o enfraquecimento de /t/ para /d/, o que costuma ser chamado de lenição/lenização (Altenhofen 1996Altenhofen, C. V. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Ein Beitrag zur Beschreibung einer deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem Portugiesischen. Stuttgart: Steiner, 1996.). Por fim, percebeu-se a aspiração que ocorre em início de sílaba.

Após essa exposição rápida sobre as plosivas que são, a meu ver, as representações fonéticas mais complexas e instigantes do Hunsrückisch, seguiremos para a próxima seção com uma breve apresentação do sistema consonantal do alemão boêmio, variedade alemã (presente no Rio Grande do Sul) praticamente inexplorada em seu âmbito linguístico.

5 Alemão boêmio

A principal referência para essa seção é o estudo de Habel (2017Habel, J. M. “Das Böhmische Deutsch”: perda e coineização de variantes do alemão de imigrantes boêmios no Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Letras. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017. Disponível em: https://bit.ly/2YduYqN. Acesso em: 10 fev. 2018.
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) que realizou entrevistas em uma comunidade rural de Paverama, RS, para analisar o alemão boêmio falado. A língua já não é praticada com tanta frequência, porque somente os informantes mais velhos ainda possuem tal conhecimento linguístico e não o transmitiram para os filhos em função das línguas de contato, o Hunsrückisch (Habel 2017: 120) e português. Atualmente, a geração dos netos desses informantes entrevistados também está deixando de aprender a língua de imigração, devido ao fato de a língua portuguesa estar se sobrepondo de forma muito rápida, seja por causa do modelo de ensino em pré-escolas obrigatórias após os quatro anos de idade, seja pelos casamentos interétnicos. Estas são as duas causas mais citadas pelos entrevistados para justificar a não transmissão do alemão boêmio a seus filhos ou netos.

Para identificar os fones consonantais do alemão dos descendentes de imigrantes boêmios, foram utilizados para o presente trabalho apenas os dados da geração mais velha (idade superior a 60 anos; homens e mulheres do meio rural). Os dados coletados não foram suficientes para encontrar pares mínimos e, com isso, identificar os fonemas da língua. Como ainda não há nenhuma descrição fonético-fonológica do alemão boêmio, faremos uma descrição introdutória dos fones que constituem essa variedade alemã, tendo como base os dados já coletados.

Esse estudo inicial poderá ser ampliado no futuro com análises mais específicas, relacionadas aos fonemas e ser expandido também para o estudo das vogais. Para isso, deve ocorrer, ainda, uma nova coleta de dados.

Vejamos a lista (Figura 12) - que contém um exemplo e sua respectiva tradução para o português - de fones consonantais identificados na comunidade de alemães boêmios em Paverama. O segmento em negrito se refere ao fone identificado.

Fig. 12:
Exemplos de fones consonantais em alemão boêmio

O que podemos perceber no alemão boêmio é a ocorrência da aspiração nas plosivas. Este processo também já foi constatado nas seções anteriores do estudo, tanto no alemão Standard quanto na língua de contato, o Hunsrückisch. No pomerano, conforme o estudo de Schaeffer e Meireles (2014Schaeffer, S. C. B.; Meireles, A. R. Descrição sonora da língua pomerana. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 1, 2014, p. 46-55.: 50), a aspiração continua sendo produtiva, embora possa oscilar em uma mesma palavra entre os diferentes falantes entrevistados. Para o alemão boêmio, seguindo o modelo teórico-metodológico das regras fonológicas de Chomsky e Halle (1968Chomsky, N.; Halle, M. The sound pattern of English. New York: Harper and Row, 1968.), podemos fazer a notação da regra de aspiração conforme o modelo:

Fig. 13:
Regra da aspiração

Na regra, percebe-se que /p, t, k/ sofrem aspiração - [ph, th, kh] - quando precedem as vogais em início de palavra. Essa regra ocorre tanto com vogais breves quanto com longas, arredondadas e não arredondadas ou abertas e fechadas. Para confirmar a ocorrência da regra, observemos alguns exemplos:

Fig. 14:
Exemplos de plosivas

Nesses exemplos, percebemos que as chances de ocorrência da aspiração são favorecidas na presença de vogais longas. No entanto, não podemos interpretar essas poucas ocorrências como regra única de aspiração da variedade do alemão boêmio. Um estudo sobre as vogais do alemão boêmio poderá esclarecer melhor o processo.

O desvozeamento das plosivas no alemão boêmio foi observado tanto em início de sílaba quanto em final de sílaba; no entanto, há casos em que elas não sofrem desvozeamento nesses mesmos ambientes (início e final de sílaba), como em “dinheiro" (Gald: // inicial) e “pé descalço” (Bourbs: /b/ inicial). Estes casos necessitam de um estudo mais aprofundado antes de afirmar que há alguma exceção à regra. Alguns exemplos de desvozeamento que ocorreram em início de sílaba estão abaixo. Conforme a Figura 15, ocorreu desvozeamento em final de sílaba e final de palavra:

Fig. 15:
Exemplos de desvozeamento que ocorrem em início de sílaba

Como já salientado anteriormente, o símbolo utilizado para representar a sílaba é a letra grega σ, de acordo com Collischonn (2010Collischonn, G. A sílaba em português. In: Bisol, L. (org.). Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. 5. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010, p. 99-131.: 99). Vejamos a representação da regra fonológica:

Fig. 16:
Regra das plosivas vozeadas

A regra é lida da seguinte forma: as plosivas vozeadas /b, d, g/ sofrem desvozeamento quando em início de sílaba e em final de sílaba.

O encontro de uma plosiva desvozeada com uma fricativa desvozeada no mesmo ponto de articulação forma as africadas /pf/ e /ts/, como em [′pflan.tsə] “plantas”, [tsaɪt] “tempo”, [hɛrts] “coração”. A africada labiodental [pf] ocorre predominantemente em início de sílaba no alemão boêmio, assim como no alemão Standard. Variações entre a africada [pf] e a plosiva [p], ou ainda a fricativa [f], já podem ser percebidas na fala dos descendentes de alemão boêmio. Os exemplos que melhor ilustram essa variação linguística entre os falantes são: [′pfafɐ], [′p hafɐ] e [′fafɐ] (pimenta). Esta variação possui relação com a evolução histórica das variedades alemãs, principalmente com a segunda rotação consonantal (die zweite Lautverschiebung), ou seja, a “segunda mudança consonantal”. Com essa variação diacrônica, as plosivas desvozeadas /p, t, k/ se tornam africadas, além do /d/ que sofre desvozeamento, tornando-se /t/. Um exemplo é Pund (do baixo alemão) que, quando passa para a fase do alto alemão, torna-se Pfund (meio quilo). No Hunsrückisch, ocorre apenas a forma aspirada [′phefɐ], sem a africada [pf]. No pomerano, também parece não haver ocorrência da africada [pf], conforme os registros de Schaeffer e Meireles (2014Schaeffer, S. C. B.; Meireles, A. R. Descrição sonora da língua pomerana. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 1, 2014, p. 46-55.: 49).

No alemão boêmio e nas demais variedades de língua alemã, a africada dental-alveolar [ts] pode ocorrer tanto em início de sílaba quanto em final de sílaba. Schaeffer e Meireles (2014Schaeffer, S. C. B.; Meireles, A. R. Descrição sonora da língua pomerana. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 1, 2014, p. 46-55.: 49) não fizeram apontamentos específicos sobre a ocorrência desse fone no pomerano, mas ele pode ser visto no exemplo que os autores mencionaram para ilustrar a plosiva bilabial desvozeada: [plats] (pátio).

O uso das laterais no alemão boêmio segue as mesmas regras do alemão Standard, do Hunsrückisch e do Pomerano. A regra do uso das laterais pode ser apresentada da seguinte forma:

Fig. 17:
Regra do uso das laterais

Nessa regra, a lateral /l/ ocorre em início de sílaba, como em [lɔm.pə] (lâmpada). Já a lateral que ocorre em final de sílaba pode ter a presença de mais de uma consoante, como podemos visualizar nos exemplos da Figura 18:

Fig. 18:
Exemplos da lateral em final de sílaba

Algumas regras importantes do alemão boêmio foram ilustradas, permitindo perceber-se que elas também se aplicam a outras variedades e, em alguns casos, até ao alemão Standard. A única exceção identificada nas consoantes como mais exclusiva do alemão boêmio e do Standard é o uso da africada /pf/.

6 Considerações finais

A análise fonológica fornece subsídios para explicar a variação regional de dialetos alemães presentes no Brasil, como, por exemplo, a variedade falada pelos pomeranos (Schaeffer; Meireles 2014Schaeffer, S. C. B.; Meireles, A. R. Descrição sonora da língua pomerana. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 1, 2014, p. 46-55.), o Hunsrückisch (Altenhofen 1996Altenhofen, C. V. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Ein Beitrag zur Beschreibung einer deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem Portugiesischen. Stuttgart: Steiner, 1996.) e o alemão boêmio (Habel 2017Habel, J. M. “Das Böhmische Deutsch”: perda e coineização de variantes do alemão de imigrantes boêmios no Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Letras. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017. Disponível em: https://bit.ly/2YduYqN. Acesso em: 10 fev. 2018.
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), entre outros. No caso das variedades alemãs transplantadas para o Brasil, como o alemão da Boêmia (aproximadamente em 1873), compreende-se melhor em que medida o sistema fonético-fonológico vem sendo modificado: a partir dos contatos linguísticos com as variedades alemãs fixadas anteriormente no Brasil (o Hunsrückisch a partir de 1824) e com o português, fato que se intensificou com a proibição das línguas estrangeiras no período da Campanha de Nacionalização, durante o Estado Novo (1937-1946).

Certamente ainda há muitas questões a serem resolvidas sobre o alemão boêmio no Rio Grande do Sul, tendo em vista que este estudo se limitou a um único ponto de pesquisa, localizado no Vale do Taquari. Trata-se, neste trabalho, de uma análise inicial sobre as consoantes do alemão falado pelos descendentes de imigrantes boêmios nesse local, variedade linguística ainda não descrita fonologicamente, merecendo estudos futuros detalhados que aprofundem a análise das plosivas, dos desvozeamentos e análises acústicas. Ainda assim, este estudo introdutório contribuiu para realizar um comparativo entre o alemão Standard e as demais variedades mencionadas (Hunsrückisch e alemão boêmio); adaptar e discutir o sistema consonantal do Hunsrückisch com base em Altenhofen (1996Altenhofen, C. V. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul. Ein Beitrag zur Beschreibung einer deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem Portugiesischen. Stuttgart: Steiner, 1996.); iniciar as primeiras análises do sistema fonológico do alemão boêmio.

Muito mais poderia ser discutido a respeito da variedade do alemão falado pelos boêmios; no entanto, ainda há carência de dados registrados sobre essa variedade falada no Rio Grande do Sul, o que deve ser suprido com novas entrevistas. Espera-se ter contribuído com outros estudos fonológicos e com uma base inicial, porém sólida, da descrição do sistema consonantal do alemão boêmio.

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  • 2
    Dado a dificuldade em encontrar listas de pares mínimos da língua alemã Standard, optou-se pela lista disponibilizada por Jürgen Trouvain. Disponível em: https://bit.ly/2Voios6. No entanto, mais pares mínimos também podem ser encontrados no site Phoenix Software. Disponível em: https://bit.ly/2YKCWbt. Acesso em: 10 jan. 2019.
  • 3
    A Fonte IPA Kiel pode ser acessada aqui: https://bit.ly/2Wu3EUP Acesso em: 12 jan. 2019.
  • 4
    Palavra composta, onde Halb (meio) vem do alemão e Fortis (forte) do latim. O termo Halbfortes é utilizado na Germanística para designar consoantes semivozeadas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2019
  • Aceito
    18 Abr 2019
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