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Arte engajada e arte autônoma no pensamento de Theodor Adorno

Committed and autonomous art in Theodor Adorno's thought

Resumos

No ensaio Engagement, de 1962, Theodor Adorno recoloca em discussão a dicotomia entre literatura engajada e literatura autônoma, advertindo que em seu tempo a controvérsia não se situa mais no nível da sobrevivência humana ou da vida em sociedade, mas se coloca como uma especulação intelectual. O presente texto recupera as principais ideias de Adorno a respeito do tema e procura refletir sobre elas. O pensador apresenta os dois polos de pensamento sobre o problema e inicia dizendo que a tensão entre eles agora está diluída. Seguem-se então considerações sobre as confusões que envolvem o debate sobre o engagement, reflexões sobre a filosofia da arte de Sartre e sua concretização em obras de ficção, a arte e a didática de Bertolt Brecht, bem como o tratamento que o dramaturgo alemão dá ao fascismo, a relação entre o tom da poesia e a política, o problema do sofrimento ligado à obra de arte, o experimentalismo contemporâneo de Kafka e Becket, as tradições culturais da França e da Alemanha, e as relações entre a política e a arte autônoma.

obra de arte; engagement; autonomia; política e sociedade


In the essay Engagement, published in 1962, Theodor Adorno discusses the duality between committed and autonomous literature, noticing that at his time the controversy doesn't stand in the level of human survival and life in society, but presents itself as an intellectual speculation. This text recovers Adorno's main ideas concerning the subject and tries to reflect upon them. The German thinker shows the two poles of thoughts on the problem and says that the tension between them is now dissolved. He then talks about the confusions of the debate about commitment, and offers some reflections upon philosophy and art in Sartre's work, Bertolt Brecht's didacticism in art, as well as his treatment of fascism, the relation between politics and poetic tone, the problem of suffering related to the work of art, the contemporary experimentalism of Kafka and Becket, the cultural traditions in France and Germany, and the relations between politics and autonomous art.

work of art; commitment; autonomy; politics and society


LITERATURA/CULTURA

Arte engajada e arte autônoma no pensamento de Theodor Adorno

Committed and autonomous art in Theodor Adorno's thought

Cid Ottoni Bylaardt

Doutor em Literatura Comparada pela UFMG; Pós-Doutor em Literatura Comparada pela Universidade de Coimbra; professor Adjunto III da Universidade Federal do Ceará. Email: cidobyl@ig.com.br

RESUMO

No ensaio Engagement, de 1962, Theodor Adorno recoloca em discussão a dicotomia entre literatura engajada e literatura autônoma, advertindo que em seu tempo a controvérsia não se situa mais no nível da sobrevivência humana ou da vida em sociedade, mas se coloca como uma especulação intelectual. O presente texto recupera as principais ideias de Adorno a respeito do tema e procura refletir sobre elas. O pensador apresenta os dois polos de pensamento sobre o problema e inicia dizendo que a tensão entre eles agora está diluída. Seguem-se então considerações sobre as confusões que envolvem o debate sobre o engagement, reflexões sobre a filosofia da arte de Sartre e sua concretização em obras de ficção, a arte e a didática de Bertolt Brecht, bem como o tratamento que o dramaturgo alemão dá ao fascismo, a relação entre o tom da poesia e a política, o problema do sofrimento ligado à obra de arte, o experimentalismo contemporâneo de Kafka e Becket, as tradições culturais da França e da Alemanha, e as relações entre a política e a arte autônoma.

Palavras-chave: obra de arte, engagement, autonomia, política e sociedade

ABSTRACT

In the essay Engagement, published in 1962, Theodor Adorno discusses the duality between committed and autonomous literature, noticing that at his time the controversy doesn't stand in the level of human survival and life in society, but presents itself as an intellectual speculation. This text recovers Adorno's main ideas concerning the subject and tries to reflect upon them. The German thinker shows the two poles of thoughts on the problem and says that the tension between them is now dissolved. He then talks about the confusions of the debate about commitment, and offers some reflections upon philosophy and art in Sartre's work, Bertolt Brecht's didacticism in art, as well as his treatment of fascism, the relation between politics and poetic tone, the problem of suffering related to the work of art, the contemporary experimentalism of Kafka and Becket, the cultural traditions in France and Germany, and the relations between politics and autonomous art.

Keywords: work of art, commitment, autonomy, politics and society

Publicado em 1962, o texto Engagement, de Theodor Adorno, retoma o tema decisivo do diálogo que a literatura supostamente empreende com o mundo real. Esse diálogo é efetivo? Em caso positivo, como ele pode se dar? É possível a literatura, a arte mover ações de intervenção na realidade? É possível ela manter-se alienada da sociedade? Essas e outras questões são discutidas no presente texto.

Adorno menciona inicialmente o estudo de Sartre, Qu'est'ce que la littérature?, como referência para a questão da arte engajada em oposição à arte autônoma. Após o texto de Sartre, diz ele, há menos desentendimentos, mas a controvérsia permanece, embora não como uma questão que afeta a sobrevivência do ser humano, e sim como discussão intelectual. Para Adorno, o que teria levado Sartre a escrever seu texto seria a visão insuportável de obras expostas num panteão de unverbindlicher Bildung (2003: 409) ["edificação descompromissada"], degradadas a bens culturais de consumo, certamente uma referência à indústria cultural, à arte de entretenimento. Adorno não menciona entretanto algo que parece importante como elemento contextualizador do ensaio de Sartre: a época em que foi publicado, o ano de 1947. Ele foi escrito, então, em meio à ressonância dos efeitos da Segunda Guerra Mundial na Europa, um texto radical num contexto radical. Sartre temia, ainda, que as perspectivas surrealistas sobre a obra de arte tivessem maiores repercussões e contribuíssem para a alienação da arte e dos artistas.

Para seus defensores, consoante Adorno, a obra engajada desencanta o fetiche, o jogo ocioso do descompromisso. Para seus detratores, ela desvia-se dos interesses reais, empenhando-se numa luta datada que se esvai amanhã; ao voltar-se radicalmente para a existência, torna-se efêmera. Para os engajados, a autonomia é um desastre para o espírito, que renuncia a si mesmo se renunciar à liberdade. Ambas, negando-se uma à outra, negam-se a si mesmas. A engajada porque, ao tentar abolir a distinção entre arte e realidade, nega então a própria arte (arte é arte, realidade é realidade, recusar essa distinção é negar a arte). A outra, porque, ao negar o relacionamento da arte com a realidade ― a "unauslöschliche Beziehung auf die Realität" (2003: 410) ["inextinguível conexão com a realidade"] ― nega a presença do humano, condição da própria arte. É curioso que Adorno termine este parágrafo afirmando: "Zwischen den beiden Polen zehrgeht die Spannung, an der Kunst bis zum jüngstein Zeitalter ihr Leben hatte" (2003: 410) ["Entre esses dois polos, dissolve-se a tensão na qual a arte tinha vivido até eras recentes"]. A tensão dissolve-se, dilui-se, possivelmente porque, como ele disse no início do texto, a questão é mais intelectual do que de sobrevivência. É preciso seguir de perto a ideia do ensaísta.1 1 Considerando essa polarização, pode-se pensar na literatura grega, na literatura romana, na literatura medieval e seu caráter oralizante, que exigia sempre uma atitude do poeta, do aedo, do artista, do trovador. Por mais que as lições dos mestres comentadores e normatizadores preconizassem convenções acauteladoras para os criadores, a presença grandíloqua do pai do escrito ou de seu preposto, a figura demoníaca do poeta entusiasmado e delirante agregava ao texto inúmeros perigos, que se amenizaram nos tempos subsequentes à invenção de Gutenberg. Mesmo na era pós-Gutenberg, pode-se falar, até meados do século XIX, possivelmente, em uma espécie de acordo tácito entre os poetas e a sociedade, ainda ligado à prática da récita, o qual não comportava qualquer tipo de distinção entre poesia compromissada e descompromissada, ou, de maneira mais contundente, entre arte engajada e arte autônoma.

Segundo Adorno, a própria literatura contemporânea duvida da onipotência da polarização, certamente porque a controvérsia não está ainda "so gänzlich vom Weltlauf unterjocht, als daß sie zur Frontenbildung sich schickte" (2003: 410) ["tão subjugada ao curso do mundo para lançar-se à frente de batalha"], ou seja, a querela pertence ao discurso, e não à realidade. E segue: "Die Sartreschen Böcke, die Valéryschen Schafe lassen nicht sich scheiden"2 2 Adorno faz aqui uma referência ao evangelho de São Mateus (25:31-46, dos bodes e ovelhas): "Quando o filho do homem vier em sua glória, e com eles os anjos, ele se sentará em seu trono glorioso. Todas as nações se unirão diante dele, e ele separará as pessoas umas das outras como o pastor separa as ovelhas dos bodes. Ele colocará as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda". Há aí uma noção de separação entre os bons e os maus (como o joio do trigo). A ideia de Adorno parece ser de que a polarização será eliminada. Jean-Paul Sartre e Paul Valéry representariam, respectivamente, as noções de engajamento e autonomia na literatura. (2003: 410) ["Os bodes sartrianos e as ovelhas valerianas não se deixam separar"]. Há, assim, uma espécie de engajamento multissignificativo, complacente, que não se pode reduzir a panfleto, a ação direta, "deren willfährige Gestalt alles Engagement des Subjekts verhöhnt" (2003: 410) ["cuja conformação complacente ridiculariza qualquer engajamento do sujeito"]. O outro lado, conhecido na Rússia como Formalismo, é contestado tanto pelos administradores públicos de lá, quanto pelo existencialismo libertário, e mesmo por alguns críticos de vanguarda. Entende-se que Adorno deseja exemplificar que não há tomada de partido homogênea em relação a um ou outro lado. Daí a ideia de dissolução, de diluição.

Embora tenha pelo quadro Guernica, de Picasso, obra considerada engajada, a maior admiração, Sartre poderia facilmente ser acusado de simpatias formalistas na pintura e na música. Ele argumenta que o escritor de romances e contos, este sim, deve engajar-se porque lida com significações; Adorno objeta que, embora as palavras tenham uma vinculação ao discurso comunicativo, em uma obra literária as significações são alteradas, adulteradas. Vale lembrar que, se o próprio código utilitário mata o objeto no discurso, por mais transparente que procure ser, com mais razão o faz a escritura artística. Em casos mais extremos, nem há mesmo o que matar, é só escritura mesmo. As significações externas são a parte não-artística da arte. Consoante Adorno, a lei da arte está na dialética entre o externo e o interno, que realiza a transformação dos elementos no interior da obra (posição semelhante à adotada por Antonio Candido, sobre os elementos internos e externos da obra literária). O que importa em arte não é seu aspecto publicístico, nem a verdade-mensagem, que se debate entre o que o artista concebeu e a verdade que se quer atribuir objetivamente à obra.

Para Adorno, há muita confusão em torno da função social que se pode atribuir ao engagement; ele reitera a não-separação de bodes de um lado e ovelhas de outro. Os conservadores e seus oponentes unem forças contra obras atélicas e herméticas; quem defende o engajamento vai elogiar a profundidade de Huis Clos por sua relevância social, sem se dar conta de que o texto procura justamente se afastar da subordinação de sentido, desafiando-o; por outro lado, o ateísta Sartre considera a importância conceitual da arte como a premissa básica do engajamento; obras criticadas pela polícia russa são também criticadas pelos partidários da "verdade" no Ocidente; enquanto isso, os de direita destilam seu ódio contra o bolchevismo cultural. A Socialpsychologie (2003: 412) ["psicologia social"] quer defender o caráter afeito à autoridade e à ordem, e seus partidários hostilizam tudo o que é estranho, atitude mais compatível com o realismo literário do que com obras autônomas.

Uma consciência política superficial, calcada no exterior das obras, procurou impedir a representação das peças de Brecht na Alemanha Ocidental, ainda que essas campanhas não tenham sido tão vigorosas assim, nem depois do 13 de agosto de 1961, data do início do erguimento do Muro de Berlim, símbolo da intolerância do socialismo ao capitalismo. Os cabelos se arrepiam para as obras que não falam do real, em que "der Gesellschaftvertrag mit der Realität gekündigt wird" (2003: 412) ["o contrato social com a realidade é desfeito"]. As discussões sobre engajamento não levam em conta o efeito de obras não compromissadas (obras cujas leis formais próprias desprezam, negligenciam resultados coerentes). A ideia é de que como a disputa entre os dois polos ignora aquilo que o choque de ininteligibilidade pode comunicar, o que prevalece é uma luta de sombras. O julgamento do problema não é feito de forma clara, o que não o modifica, mas provoca o pensar do outro lado, isto é, as confusões na discussão do problema não o alteram, mas tornam necessário repensar as soluções alternativas propostas para ele.

É preciso distinguir engajamento (atitude, consciência) de tendenciosidade (ação prática, incisiva). Para Sartre, por exemplo, seu objetivo é despertar a livre escolha das pessoas, atitude que leva a uma decisão, em confronto com a neutralidade passiva. A arte engajada é plurissignificativa, ambígua, diferente do "tendenziösen Spruchband" (2003: 412) ["veredito tendencioso"]; ao invés de apresentar um "konkreten theologischen Inhalt" (2003: 413) ["conteúdo teológico concreto"], tem a autoridade abstrata da opção recomendada. Entretanto, o que Sartre quer dar a entender como sendo liberdade, acaba sendo uma imposição velada, ou "leere Behauptung" (2003: 413) ["afirmação vazia"]. É o que diz esta frase: "Die vorgezeichnete Form der Alternative, in der Sartre die Unverlierbarkeit von Freiheit beweisen will, hebt diese auf. " (2003: 413) ["A forma prescrita da alternativa com a qual Sartre quer provar o não desaparecimento da liberdade invalida-a"]. A opção: aceitar o martírio ou recusá-lo. A prescrição sartriana soa mais ou menos como o anexim: "case com quem quiser, desde que seja com a Maria José". Sartre então retira a liberdade do leitor, embora pareça ter a intenção de preservá-la. Merece reflexão esta frase: "Kunst heißt nicht: Alternativen pointieren, sondern, durch nichts anderes als ihre Gestalt, dem Weltlauf widerstehen, der den Menschen immerzu die Pistole auf die Brust setzt. " (2003: 413) ["Arte não significa ressaltar alternativas, mas resistir, por nada mais que sua própria forma, ao curso do mundo, que está sempre a mirar uma pistola para o peito dos homens"]. A função da arte seria então não forçar uma alternativa, mas apresentar possibilidades de resistência ao mundo controlado. Tornar as decisões o critério de valoração da arte engajada é tornar substituíveis as próprias decisões. O raciocínio é simples: a arte é polissêmica; se seu critério maior de valoração são as decisões, elas também se tornam ambíguas, e assim enfraquecem o valor da atitude que a obra quer despertar na recepção. O próprio Sartre reconhece a dificuldade de a arte agir no mundo. O Warum schreiben? (2003: 413) ["Por que escrever?"] de Sartre é falho, uma vez que a obra, a escritura não leva em conta as motivações do autor. Como Hegel, ele reconhece que quanto maior a obra, menos ela se prende a quem a fez: "Dem ist Sartre nicht so fern, soweit er erwägt, daß der Rang der Werke, wie schon Hegel wußte, steigt, je weniger sie in der empirischen Person verhaftet bleiben, die sie hervorbringt" (2003: 414) ["Sartre não está muito longe, em suas ponderações, da ideia de que o nível das obras, como já sabia Hegel, é maior quanto menos elas se prendem à pessoa que as criou."]. Essas considerações fazem lembrar a famosa "disparition elocutoire du poète" ["desaparecimento elocutório do poeta"] de Mallarmé (2010: 141).

Para Adorno, as peças de Sartre possuem um querer-dizer anacrônico. A intriga é tradicional, e quer-se apoiar no significado "elevado", pretensamente transponível da arte para a realidade. Ao final de Huis clos (Entre quatro paredes), uma de suas mais famosas peças, a frase não menos famosa "O inferno são os outros" soa como um saber, e não como arte. Isso deu a Sartre sucesso comercial, inserção na indústria cultural, papel proeminente na política, e não apenas entre as vítimas obscuras. A personalização do inferno, das injustiças, faz com que sua "moral" possa ser utilizada pelos inimigos. Para Adorno, esse é um engajamento fraco.

Brecht, por outro lado, demonstra a defesa de uma atitude reflexiva e intelectiva, e não ilusionista e sentimentalista. Mais consistente do que Sartre, e mais artista do que ele, como declara Adorno, elevou a abstração a sua lei formal eliminando o conceito tradicional de pessoa dramática. Pode-se imaginar que essa eliminação tem a ver com o fato de que o personagem "age" como humano. Na sociedade, a superfície encobre a essência. Brecht rejeitou, como ideologia, a individuação estética. Ele então procurou traduzir a hediondez da sociedade em crueza teatral, desmascarando-a, arrancando-a de sua camuflagem. A degenerescência social aí aparece nua, sem estilização, a dramatização cola-se ao mundo empírico. As personagens em cena se reduzem diante de nossos olhos a agentes de processos e funções, o que efetivamente são, indiretamente e sem o saber, considerando-se a realidade empírica. Brecht não postula mais, como Sartre, uma identidade entre indivíduos vivos e a essência da sociedade, descartando qualquer soberania do sujeito. Entretanto, o processo de redução estética, ou seja, o desnudamento a que ele submete personagens e ação, que ele persegue em nome da verdade política, desmente-a frontalmente, uma vez que essa verdade pressupõe um sem-número de mediações, que Brecht desdenha. Adorno segue afirmando que o que é artisticamente legítimo como infantilismo alienante ― as primeiras peças de Brecht provêm, segundo ele, do mesmo meio que Dada ― torna-se meramente infantilidade quando começa a reivindicar validade teórica ou social. Ele queria revelar em imagens a natureza interior do capitalismo. Nesse sentido sua intenção ― que ele camuflou contra o terror stalinista ― era certamente realista. Contudo, ele teria recusado privar a essência social de sentido tomando-a como ela se mostra, cega e sem imagem, numa única vida mutilada. Mas isso acarretou para ele a obrigação de assegurar que o que ele pretendia deixar inequivocamente claro era teoricamente correto. Sua arte, entretanto, recusou aceitar o quid pro quo: ela se apresenta como didática e ao mesmo tempo reivindica a dispensa da responsabilidade de um alcance maior do que é ensinado, incorrendo numa contradição difícil de se assimilar. Adorno exemplifica a contradição citando a peça Der gute Mensch von Sezuan (A boa pessoa de Sezuan), afirmando que quanto mais Brecht se preocupa com informações sobre fatos da vida econômica do dia-a-dia, meros episódios rotineiros, e quanto menos ele busca imagens significativas, mais ele perde a essência do capitalismo que a peça pretende apresentar.

Ainda que a obra de Brecht assuma ares de doutrina, nela a forma estética prevalece sobre o compromisso. Ele nunca colocou à frente a ideologia, como uma salvação. Rixas de verdureiros encobrem a essência do capitalismo, ridicularizam as relações, fazendo com que os oponentes de Brecht nada tenham a temer de inimigos tão tolos. Para Adorno, Brecht certamente não estava convencido dos efeitos sociais da arte; ele teria chegado a dizer que para o dramaturgo seu teatro era mais importante que quaisquer mudanças sociais que ele pudesse promover. Mesmo assim o princípio artístico da simplificação não apenas expurgou da política as distinções ilusórias projetadas por reflexões subjetivas em objetividade social, como Brecht pretendia, mas também falsificou a própria objetividade que o drama didático lutava para destilar. Adorno chega a afirmar que, se julgarmos o teatro engajado de Brecht por critérios políticos, a política torna sua obra inverídica. Segundo Adorno, Hegel ensinou que a essência deve aparecer. Assim, uma representação da essência que ignora sua relação com a aparência deve ser intrinsecamente falsa como a substituição dos homens por trás do fascismo pelo proletariado.

Adorno considera que há, na Alemanha, uma tendência a separar o Brecht político do artista, em favor deste, cuja força poética seria mais poderosa que sua força de engajamento. Contudo, ele acha que Brecht não seria quem é sem seu lado comprometido, que produz reflexão. A verdade política dá consistência à forma estética, assim como a inconsistência dos problemas sociais enfraquece a estrutura formal. Adorno busca em Sartre a abonação: "Mais personne ne saurait supposer un instant qu'on puisse écrire un bom roman à la louange de l'antisémitisme" (1967: 80) ["Ninguém pode supor por um momento sequer que seja possível escrever um bom romance em louvor do antissemitismo."]. Ele cita como exemplo do descompasso entre ideologia e estética a peça Mutter Courage [Mãe coragem], de Brecht (1949), em que os verdadeiros problemas sociais são distorcidos, e assim toda a estrutura formal da peça é abalada:

Weil die Gesellshaft des Dreißigjährigen Krieges nicht die funktionale des modernen ist, kann dort auch poetisch kein geschlossener Funktionszusammenhang stipuliert werden, in dem Leben und Tod der privaten Individuen ohne weiteres durchsichtig würden aufs ökonomische Gesetz. (2003: 420)

[Como a sociedade da guerra dos trinta anos não era a sociedade funcional da era moderna, não podemos, nem mesmo poeticamente, estipular um contexto funcional fechado no qual as vidas e as mortes dos indivíduos privados revelem diretamente as leis econômicas.]

Brecht percebia que a sociedade de sua época não podia mais ser diretamente compreendida em termos de pessoas e coisas ― pensemos nos sistemas globais de hoje ―, o que faz com que um modelo social falso conduza à implausibilidade dramática: "Politisch Schlechtes wird ein künstlerisch Schlechtes und umgekehrt"(2003: 421) ["Algo politicamente ruim torna-se artisticamente ruim e vice-versa"]. A temática abordada tem que ser socialmente consistente, sob pena de a obra se tornar incoerente: "Je weniger aber die Werke etwas verkünden müssen, was sie nicht ganz sich glauben können, um so stimmiger werden sie auch selber; desto weniger brauchen sie ein Surplus dessen, was sie sagen, über das, was sie sind"(2003: 421) ["Mas quanto menos as obras têm que proclamar aquilo em que elas mesmas não acreditam completamente, tanto mais coerentes se tornam, e menos necessitam de um adicional sobre o que dizem, sobre o que são."].

A ocorrência desses problemas, segundo Adorno, chega a afetar o tom das peças de Brecht, "die dichterische Fiber hinein"(2003: 421) ["até para dentro da fibra poética"]. Assim, a inverdade de suas políticas afeta negativamente o tom de algumas de suas obras. Ele acreditava estar a favor de um socialismo incompleto, mas acaba fazendo a apologia de uma dominação coercitiva sustentada por forças cegamente irracionais e violentas, o que torna frágil sua voz lírica. Esse engajamento forçado, segundo o pensador alemão, contagia até a melhor parte da obra de Brecht. Adorno afirma que o dramaturgo tenta usar a dicção do oprimido, mas a linguagem é a do intelectual, tornando forçadas a despretensão e a simplicidade, e inconsistente a doutrina que ele advoga: "Sie verrät sich ebenso durch Male von Übertreibung wie durch stilisierenden Rückgriff auf veraltete oder provinzielle Ausdruckscharaktere"(2003: 421) ["Ela se trai tanto por sinais de exagero quanto pela recorrência estilizada a formas de expressão arcaicas ou provincianas"]. A linguagem das vítimas soa falsa, enganosa. Não há como representar o proletário nesse cenário intelectual; nesse caso, "Am schwersten fällt wider das Engagement ins Gewicht, daß selbst die richtige Absicht verstimmt, wenn man sie merkt, und mehr noch, wenn sie eben darum sich maskiert" (2003: 422) ["O que mais pesa contra o engajamento é que até mesmo as intenções corretas enfadam quando são percebidas, e mais ainda quando justamente por isso se mascaram."]. Segundo Adorno, há peças de Brecht em que as relações arcaicas encenadas comprometem a intenção de engajamento, uma vez que ecoam relações sociais já extintas.

Adorno chega a insinuar que Brecht tem momentos de sentimentos burgueses, ligados a uma tradição iluminista: "Der späte Brecht war von offizieller Humanität gar nicht so entfernt [...]"3 3 A tradução brasileira emprega a expressão "humanidade oficial" (1973: 63), o que não nos parece ser a ideia de Adorno. A tradução do original para o inglês usa o termo "humanism" (com minúscula), que pode referir-se a uma atitude humanitária. Preferimos a utilização da expressão "humanitarismo oficial", que sem dúvida preserva uma certa ironia a um sentimentalismo piegas da tradição ocidental, e que evita a confusão com o movimento intelectual e cultural que se consagrou com o nome Humanismo. (2003: 422) ["O Brecht tardio não estava muito afastado do humanitarismo oficial [...]"]. Não se pode deixar de perceber na expressão utilizada por Adorno a atribuição a certos momentos de Brecht de uma certa pieguice ligada à ideologia burguesa, como a apologia da maternidade e o exemplo comovente de vitalidade que a empregada dá à patroa lamurienta na peça DerKaukasische Kreidekreis [O círculo de giz caucasiano] (BRECHT 2009). Sobre a produção brechtiana como um todo, Adorno afirma que "Sein gesamtes œuvre ist eine Sisyphusanstrengung, seinen hochgezüchteten und differenzierten Geshmack mit den tölpelhaft heteronomen Anforderungen irgend auszugleichen, die er desperat sich zumutete"(2003: 422) ["Sua obra completa é um trabalho de Sísifo para de algum modo conciliar seu gosto altamente cultivado e diferenciado com as tolas exigências heteronômicas a que ele, desesperadamente, se impôs."]. A afirmação de Adorno sugere que colocar a obra de arte a serviço de uma ideia acaba tornando o elemento artístico dependente, incompleto, claudicante, forçado.

Na sequência de suas reflexões, Adorno relaciona cultura e barbárie, e refere-se a uma sua famosa frase, que gerou perplexidade e especulações, desde que foi escrita, em 1949. É preciso recuperá-la em sua extensão e esclarecer seu contexto:

Kulturkritik findet sich der letzten Stufe der Dialektik von Kultur und Barbarei gegenüber: nach Auschwitz ein Gedicht zu schreiben, ist barbarisch, und das frißt auch die Erkenntnis an, die ausspricht, warum es unmöglich ward, heute Gedichte zu schreiben. (2003A: 30)

[A crítica cultural se encontra diante do estágio final da dialética entre cultura e barbárie: é bárbaro escrever um poema depois de Auschwitz, e isso corrói até mesmo o conhecimento que expressa por que se tornou impossível escrever poesia nos dias de hoje.]

Em Engagement, Theodor W. Adorno diz que não vai amenizar a frase proferida por ele treze anos antes. Seria ela um julgamento da poesia escrita após Auschwitz? Uma condenação da arte e da cultura do pós-guerra? Auschwitz marca o fim da poesia lírica? A história do lirismo anterior a Auschwitz não pode mais continuar?

No texto de Prismen [Prismas], "Kulturkritik und Gesellschaft"(2003A) ["Crítica cultural e sociedade"], escrito em 1949 e publicado em 1951, em Sociologische Forschung in unserer Zeit [Pesquisa sociológica em nossa época], Adorno assume uma atitude metacrítica, proclamando a obsolescência da crítica, por ele chamada de transcendental, em que o crítico se coloca numa condição superior em relação ao objeto analisado, numa atitude equivocada e arrogantemente independente e soberana, assumindo uma espécie de comando da situação, incompatível com seu anunciado princípio de liberdade espiritual. Seu conceito de cultura é cristalizado, em flagrante desprezo pelo processo de vida real da sociedade.

A crítica teria, segundo ele, sucumbido ao próprio processo de reificação por que passa a sociedade de sua época, e procura justificar o emprego de noções reificadas pelo fato de que a própria sociedade é reificada. Continuando sua defesa, a crítica transcendental denuncia o desmoronamento do espírito como consequência da própria crueza e severidade da sociedade.

Adorno recusa a ideia da dependência causal da superestrutura em relação à base, ou seja, a noção de que o comportamento da sociedade é que determinaria a reificação da cultura, e defende o ponto de vista de que sociedade e cultura constituem um todo lamentavelmente integrado em que não se podem determinar relações de causa e efeito. Para Adorno, o mundo como um todo está se transformando em uma enorme prisão a céu aberto, na qual impera a propaganda impositiva que ordena o silêncio e o conformismo à regra absoluta daquilo que é. Essa aparente transparência não torna o mundo mais honesto; ao contrário, vulgariza-o. O todo parece renunciar ao particular, que em outras épocas podia tornar possível a busca da verdade pelo confronto das particularidades; essa renúncia torna a cultura tradicional descartável, supérflua, sob o sorriso malicioso dos publicitários da cultura de massa. A totalização da sociedade e da cultura provoca a reificação do próprio espírito, que, paradoxalmente, parece se esforçar para escapar dessa condição. É nesse contexto que Adorno cita a famosa frase, transcrita acima. A reificação, que já se apoderara do intelecto, passa a dominar o espírito, e nesse caso o poema soaria como algo vazio diante do horror em que se constituiria o holocausto, ou shoah. Não se pode esquecer de que o momento de enunciação da frase é bem próximo do horror metonimizado por Auschwitz.

A regressão social não implicaria uma regressão artística, estética, da linguagem? Como, então, seria possível a poesia em meio a tanta degradação humana? Por outro lado, a literatura deve resistir, para não se render ao cinismo. O sofrimento real não tolera o esquecimento: a consciência da adversidade, segundo Hegel, exige a existência continuada da arte, ao mesmo tempo em que a proíbe, e essa talvez seja a interpretação que se pode deduzir da famosa frase acima transcrita e de sua afirmação de que a situação da arte é paradoxal: "Aber jenes Leiden, nach Hegels Wort das Bewußtsein von Nöten, erheischt auch die Fortdauer von Kunst, die es verbietet[...]" (2003: 423) ["Mas aquele sofrimento, segundo Hegel a consciência das adversidades, requer também a permanência da arte que proíbe [...]."]. Apenas na arte o sofrimento pode encontrar sua voz, sem ser traído por ela. A traição está em narrar o sofrimento, transformá-lo em discurso, o que seria minimizado pela ação da arte, enquanto o discurso ordinário, por outro lado, teria o efeito de vulgarizar o horror. Mas aquela era uma época de aflição, em que o sofrimento ainda estava presente, como na dor da cantata Ein Überlebender aus Warschau [Um sobrevivente de Varsóvia], de Schönberg. Não obstante, Adorno completa adiante: a estilização do sofrimento não estaria mesmo traindo o sofrimento? A moral que faz com que a arte impeça o esquecimento do horror não seria a antimoral de tornar diversão o próprio horror? Quando o genocídio se torna parte da herança cultural nos temas da literatura engajada, fica mais fácil conviver com a cultura que propiciou o nascimento do assassinato. Pode-se pensar então que narrar o horror torna-o parte da cultura que o gerou, ainda que relatar as atrocidades até as situações-limite possa pretender estar a serviço da autenticidade. Ocorre que nessa atmosfera de horror a distinção entre vítimas e algozes se desfaz, o que em geral é menos desconfortável para os carrascos.

Os partidários de uma certa filosofia que degenerou em um "esporte ideológico" condenam os artistas que trouxeram às suas obras os horrores da humanidade, como se eles mesmos fossem responsáveis por elas. Adorno cita como exemplo uma anedota de Picasso, que, indagado por um oficial nazista se ele é que havia feito Guernica, teria respondido "Não, foi você". Há na pergunta do representante do nazismo a sugestão de que a representação do horror poderia funcionar como autoria artística do mesmo, recusada incontinente pelo pintor. A obra autônoma nega a realidade empírica, colocando-se em seu lugar, a lembrar infinitamente a culpa, embutida na intenção que a arte carrega, como um gestus diante da realidade. Para Sartre, essa intenção paira sobre a obra de arte, não como um querer-dizer atribuído a ela, mas como seu próprio gesto diante da realidade. Sartre acata a fórmula kantiana de que a obra de arte não tem um fim, mas assinala que isso se dá porque ela já é um fim em si mesma. Para ele, Kant não leva em conta o apelo que emana da obra de arte. Para Adorno, não há uma relação direta entre esse apelo e o engajamento temático de uma obra. A autonomia de obras que resistem à popularização no mercado de certa forma se volta contra elas. A criação artística parte inevitavelmente do mundo empírico, não existe criação ex nihilo, mas a própria arte confere à obra uma autonomia que a afasta da realidade. Essa é a relação da arte com o real: os elementos empíricos são reagrupados pelas leis formais da arte. Mesmo as vanguardas, que parecem ao burguês não terem nada com o real, são uma abstração da lei que impera na sociedade. A obra de Becket, por exemplo, por mais absurda que pareça, lida com uma realidade histórica altamente concreta, segundo Adorno: a abdicação do sujeito, embora não demonstre qualquer engajamento declarado, o que a enfraqueceria. As obras de Kafka e de Beckett, que não são consideradas "engajadas", produzem um efeito tão aterrador que fazem obras engajadas parecerem brincadeiras. A arte nelas é algo intrínseco, orgânico, enquanto o engajamento declarado torna-se superficial. A insolubilidade dos textos de Kafka leva mais a uma mudança de atitude, de uma descrença no mundo, do que as obras declaradamente engajadas.

Parece ter chegado à literatura o efeito de obras de pintura e música que fogem à representação objetiva, conhecidas pelo jargão literário de "textos". Segundo Adorno, são obras marcadas pela indiferença, degeneram insensivelmente em meros hobbies, repetições de fórmulas, padrões etc. Essas obras, para ele, provocam uma chamada ao engajamento. Os extremos se tocam: aqueles que cortam o último fio da comunicação tornam-se presas da teoria da comunicação. Estruturas formais que desafiam o positivismo mentiroso podem facilmente escorregar para uma forma diferente de vacuidade, um jogo vazio de elementos. Não se pode traçar uma linha entre a negação decidida e a má positividade do sem-sentido. Obras de arte que tomam partido das vítimas da racionalidade estão elas mesmas implicadas no processo de racionalização, o qual atua como princípio organizador e unificador de toda obra de arte.

Na penúltima parte de seu texto, Adorno confronta as estéticas francesa e alemã. A concepção estética francesa, segundo ele, é dominada pelo princípio da "arte pela arte", aliada a tendências acadêmicas e reacionárias. É o toque do decorativo agradável, que suscita a indignação de pensadores como Jean-Paul Sartre: "On sait bien que l'art pour et l'art vide sont une même chose et que le purisme esthétique ne fut q'une brillante manœuvre défensive des bourgeois du siècle dernier, qui aimaient mieux se voir dénoncer comme philistins que comme exploiteurs"(1967: 35) ["Sabe-se bem que a arte pura e a arte vazia são uma mesma coisa e que o purismo estético foi apenas uma brilhante manobra defensiva dos burgueses do século passado, que preferiam ver-se denunciados como filisteus a serem tachados de exploradores".]. Na Alemanha, a tradição idealista coloca sob suspeita a falta de finalidade da arte (embora tenha sido um alemão, Immanuel Kant, o primeiro a formulá-la). O problema talvez esteja no fato de que a face que a arte inútil mostra à sociedade é a do prazer sensual. Consoante Adorno, existe um tipo de racionalismo que devota ódio ao incompreensível, ódio ao prazer, ódio ao sexo. O prazer e o alto gozo constituem ideias intoleráveis para os moralistas. Mesmo Brecht, que não abria concessões de sua arte ao consumo, admitia que o prazer não pode ser ignorado no efeito estético total. O primado do objeto estético como pura refiguração não afasta o consumo, e assim a falsa harmonia entra de novo pela porta de trás. Lembrando que mesmo os crimes perpetrados pelos nazistas possuíam uma justificativa moral do ponto de vista deles, Adorno dá a entender que uma obra de arte não pode ser apenas puro prazer ou apenas puro compromisso: a dignidade de uma obra autônoma é sua estrutura inerente e não a totalidade de efeitos.

As obras engajadas se julgam nobres, e manipulam essa condição, mas justificativas morais nem sempre salvam uma obra. Os que alardeiam ética e humanidade só esperam uma chance de perseguir os que sua moral condena, repetindo vulgaridades que se ouvem ou que se querem ouvir, dando a isso o nome de engagement, e tornando a mensagem uma acomodação ao mundo. A literatura que diz ajudar o homem e suas causas já começa por traí-lo. Por outro lado, a que se diz autônoma também degenera em ideologismo. A arte que, mesmo em sua oposição à sociedade, permanece parte dela, deve fechar seus olhos e ouvidos para ela: essa arte não pode escapar da sombra da irracionalidade. Mas se ela busca a irracionalidade deliberadamente, falseia a maldição que paira sobre si, na busca de "efeitos" deliberados. A autonomia pura é má arte; a intenção é mediada pela forma; obras de arte são construções que criam uma vida própria. A ênfase em obras autônomas é de natureza sociopolítica, como uma busca de saída inexistente. A falta de uma política verdadeira e o congelamento das relações históricas obrigam o espírito a tomar um rumo em que ele não precise se acanalhar.

Hoje, todos os fenômenos culturais, mesmo os mais íntegros, estão ameaçados de sufoco pelo cultivo do kitsch. Mas como as manifestações políticas não conseguem se manifestar como uma voz de oposição eficaz, cabe às obras de arte suportar tacitamente a inação política. O senso político transferiu-se para as obras autônomas, principalmente para aquelas que parecem politicamente mortas, como a alegoria das armas de brinquedo em Kafka: impotência da sociedade, paralisação da política.

Adorno termina citando Paul Klee e seu quadro Angelus Novus, de 1920, o anjo da máquina, que não carrega nenhum emblema de caricatura ou engajamento, mas voa para longe de ambos. Os olhos enigmáticos do anjo forçam o espectador a tentar decidir se ele está anunciando a culminância do desastre ou a salvação escondida nele próprio. Os sentimentos de paralisação e de impotência da sociedade e da política com os quais Theodor Adorno termina seu texto remetem inevitavelmente ao mais do que conhecido texto de Walter Benjamin (1994: 226) sobre o quadro citado:

Minhas asas estão prontas para o voo,

Se eu pudesse, retrocederia

Pois seria menos feliz

Se permanecesse imerso no tempo vivo.

Gerard Scholem, Saudação do anjo

Há um quadro de Klee que se chama

Angelus Novus

. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.

Para Adorno, o anjo de Klee não é engajado, mas é carregado de sugestões. Walter Benjamin, no texto acima, faz esse anjo falar, explorando uma possibilidade pessimista em relação à história, ao progresso, ao próprio humanismo. É evidente que Adorno compartilha desse pessimismo, afirmando que nenhum fenômeno cultural, ainda que seja um "modelo de integridade", pode contribuir para mudar o panorama, correndo ainda o risco de ser sufocado pelo palavrório da cultura comercial. Resta à arte suportar em silêncio o que é interdito à política, tomando um rumo em que o espírito não precise se acanalhar.

O autor ainda contemporiza a visão do anjo de Klee colocando-o entre as perspectivas opostas de salvação e perdição. Mas afinal opta pela desgraça consumada: "Er ist aber, nach dem Wort Walter Benjamins, der das Blatt besaß, der Engel, der nicht gibt sondern nimmt. "(2003: 430) ["Mas, segundo Walter Benjamin, que possuía o desenho, ele é o anjo que não dá, mas toma."].

A visão de Adorno sobre a arte, e mais especificamente a projeção do que ela pode tornar-se no futuro é sem dúvida pessimista, o que se reforça pela alegoria do anjo de Klee-Benjamin. Por mais que pareça impiedoso em relação às monumentais obras de Brecht e de Sartre, Adorno usa-as como contra-abonações para sua tese de que na arte dita engajada o engajamento não deve aparecer explicitamente, sob pena de sacrificar o efeito estético da obra de arte. Por outro lado, a autonomia pura também é criticada por Adorno, como uma atitude de busca de uma solução que não pode ser encontrada. Para ele, o ideal artístico ― que ele exemplifica citando Kafka e Becket ― está na excelência da forma que estrutura um mundo novo, criando efeitos aterradores que podem efetivamente provocar mudanças.

recebido em 10/04/2013

aceito em 24/08/2013

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  • ______. Notas de literatura Trad. Celeste Aída Galeão e Idalina Azevedo das Silva. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1973.
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  • ______. Kulturkritik und Gesellschaft I Frankfurt am Mein, Suhrkamp, 2003A.
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  • ______. Der kaukasische Kreidekreis Text und Kommentar, Frankfurt am Main: Suhrkamp Basis Bibliothek, 2009.
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  • SARTRE, Jean-Paul. Qu'est-ce que la littérature? Paris, Gallimard, 1967.
  • 1
    Considerando essa polarização, pode-se pensar na literatura grega, na literatura romana, na literatura medieval e seu caráter oralizante, que exigia sempre uma atitude do poeta, do aedo, do artista, do trovador. Por mais que as lições dos mestres comentadores e normatizadores preconizassem convenções acauteladoras para os criadores, a presença grandíloqua do pai do escrito ou de seu preposto, a figura demoníaca do poeta entusiasmado e delirante agregava ao texto inúmeros perigos, que se amenizaram nos tempos subsequentes à invenção de Gutenberg. Mesmo na era pós-Gutenberg, pode-se falar, até meados do século XIX, possivelmente, em uma espécie de acordo tácito entre os poetas e a sociedade, ainda ligado à prática da récita, o qual não comportava qualquer tipo de distinção entre poesia compromissada e descompromissada, ou, de maneira mais contundente, entre arte engajada e arte autônoma.
  • 2
    Adorno faz aqui uma referência ao evangelho de São Mateus (25:31-46, dos bodes e ovelhas): "Quando o filho do homem vier em sua glória, e com eles os anjos, ele se sentará em seu trono glorioso. Todas as nações se unirão diante dele, e ele separará as pessoas umas das outras como o pastor separa as ovelhas dos bodes. Ele colocará as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda". Há aí uma noção de separação entre os bons e os maus (como o joio do trigo). A ideia de Adorno parece ser de que a polarização será eliminada. Jean-Paul Sartre e Paul Valéry representariam, respectivamente, as noções de engajamento e autonomia na literatura.
  • 3
    A tradução brasileira emprega a expressão "humanidade oficial" (1973: 63), o que não nos parece ser a ideia de Adorno. A tradução do original para o inglês usa o termo "humanism" (com minúscula), que pode referir-se a uma atitude humanitária. Preferimos a utilização da expressão "humanitarismo oficial", que sem dúvida preserva uma certa ironia a um sentimentalismo piegas da tradição ocidental, e que evita a confusão com o movimento intelectual e cultural que se consagrou com o nome Humanismo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      10 Abr 2013
    • Aceito
      24 Ago 2013
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