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RELATOS DA PERMANÊNCIA DE ESTUDANTES INDÍGENAS NOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

Relatos da permanencia de estudiantes indígenas en los programas de posgrado de la Universidad Federal do Amazonas

RESUMO

Através de reivindicações e políticas de ações afirmativas, cada vez mais os povos indígenas têm ingressado no Ensino Superior. Esta pesquisa pretendeu investigar e compreender os motivos de permanência dos indígenas nos Programas de Pós-Graduação (PPGs) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). A partir de uma pesquisa qualitativa, enviamos questionários às 42 secretarias desses PPGs e, posteriormente, entrevistamos 7 pós-graduandos indígenas de etnias diferentes, com transcrição e análise de conteúdos segundo Bardin. Chegamos às unidades temáticas e categorias: percurso acadêmico dos alunos pós-graduandos (trajetória de escolarização; chegada na universidade); enfrentamentos para permanecer universitário (dificuldades, resistência, resoluções); sugestões e propostas. Concluímos que as dificuldades financeiras, pedagógicas, culturais e sociais são decorrentes de uma lógica hegemônica que continua gerando discriminação, desigualdade e exclusão, mas o compromisso consigo, com sua família, etnia e causas indígenas dão resistência para finalizar o curso.

Palavras-chave:
indígena; ação afirmativa; ensino superior; pós-graduação

RESUMEN

A través de reivindicaciones y políticas de acciones afirmativas, cada vez más los pueblos indígenas han ingresado en la enseñanza universitaria. En esta investigación se pretendió averiguar y comprender los motivos de permanencia de los indígenas en los Programas de Posgrado (PPGs) de la Universidad Federal do Amazonas (UFAM). A partir de una investigación cualitativa, enviamos cuestionarios a las 42 secretarias de esos PPGs y, posteriormente, entrevistamos 7 posgraduados indígenas de etnias distintas, con transcripción y análisis de contenidos según Bardin. Llegamos a las unidades temáticas y categorías: recorrido académico de los alumnos posgraduados (trayectoria de escolarización; llegada en la universidad); enfrentamientos para permanecer universitario (dificultades, resistencia, resoluciones); sugerencias y propuestas. Concluimos que las dificultades financieras, pedagógicas, culturales y sociales son decurrentes de una lógica hegemónica que sigue generando discriminación, desigualdad y exclusión, pero el compromiso consigo, con su familia, etnia y causas indígenas dan resistencia para finalizar el curso.

Palabras clave:
indígena; acción afirmativa; enseñanza universitaria; posgrado

ABSTRACT

By means of claims and affirmative action policies, more and more indigenous peoples have entered higher education. This research intended to investigate and understand the reasons for the indigenous people’s permanence in the Post-Graduate Programs (PPGs) of the Federal University of Amazonas (UFAM). Based on qualitative research, we sent questionnaires to the 42 coordination offices of these PPGs and, subsequently, we interviewed 7 indigenous graduate students from different ethnic groups, with transcription and content analysis according to Bardin. We included three thematic units and categories: academic path of postgraduate students (schooling records; entrance at university); confrontations to remain at the university (difficulties, resistance, resolutions); suggestions and proposals. We conclude that financial, pedagogical, cultural, and social difficulties are the result of a hegemonic logic that continues to generate discrimination, inequality, and exclusion, but the commitment to oneself, to one’s family, ethnicity and indigenous causes provides them with the inspiration to resist and finish the course.

Keywords:
indigenous; affirmative action; higher education; postgraduate studies

INTRODUÇÃO

Com o compromisso de romper com a herança escravocrata do país, as políticas de ações afirmativas são medidas que buscam combater as diferentes formas de discriminação, desigualdade e exclusão (Angnes, Freitas, Klozovski, Costa, & Rocha, 2017Angnes, J. S.; Freitas, M. F. Q.; Klozovski, M. L.; Costa, Z. F.; & Rocha, C. M. (2017). A permanência e a conclusão no ensino superior: O que dizem os Índios da Universidade Estadual do Centro Oeste do Paraná (UNICENTRO) - Brasil. Archivos Analíticos de Políticas Educativas, 25(6), 1-34. https://doi.org/10.14507/epaa.25.2426
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; Feres Jr. & Daflon, 2015Feres Jr., J.; Daflon, V. T. (2015). Ação afirmativas na Índia e no Brasil: um estudo sobre a retórica acadêmica. Sociologias 17(40), 92-123. https://doi.org/10.1590/15174522-017004003
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; Godoy & Bairrão, 2016Godoy, D. B. O. A.; Bairrão, J. F. M. H. (2016). Vozes Ameríndias na universidade pública inclusiva. Cadernos CIMEAC 6(2), 15-38. https://doi.org/10.18554/cimeac.v6i2.1923
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; Moura & Tamboril, 2018Moura, M. R. S.; & Tamboril, M. I. B. (2018). “Não é assim de graça!”: Lei de Cotas e o desafio da diferença. Psicologia Escolar e Educacional, 22(3), 593-601. https://doi.org/10.1590/2175-35392018035604
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). No Ensino Superior, tais políticas são realizadas, por exemplo, por cotas e bônus que propiciam a entrada de representantes de grupos historicamente excluídos, reconhecendo a diferença das identidades ao criar requisitos de acesso e de autodeclaração (Dal Bó, 2018Dal Bó, T. (2018). A presença de estudantes indígenas nas universidades: entre ações afirmativas e composições de modos de conhecer. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo. Teses USP https://doi.org/10.11606/T.8.2018.tde-25102018-105344
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).

Um dos grupos sociais que têm sido alvo das ações afirmativas são os povos indígenas. Apesar dessa unidade “povos indígenas”, cada povo/etnia possui particularidades em sua cosmologia, relações sociais e culturais (Pereira, Amaral, & Bilar, 2020Pereira, G. F. S. F., Amaral, W. R.; & Bilar, J. A. B. (2020). A experiência de estar na universidade sob a ótica de uma indígena estudante da pós-graduação. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, 28(158), 01-18. https://doi.org/10.14507/epaa.28.4791
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). Dessa forma, os indígenas são diferentes grupos étnicos que possuem diversidades em seus modos de vida, mas que têm em comum a exposição a processos de dominação e exploração pela sociedade, que produziu e continua reproduzindo preconceito e discriminação que perpassa todos os povos (Viana & Maheirie, 2017Viana, I.; & Maheirie, K. (2017). Identidades em reinvenção: o fortalecimento coletivo de estudantes indígenas no meio universitário. Revista Polis e Psique, 7(3), 224-249. https://doi.org/10.22456/2238-152X.74372
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).

Com o objetivo de garantir o direito dos povos indígenas ao acesso à universidade, especialmente após a conferência de Durban, em 2001, onde foi discutida a importância de ações afirmativas, foram criados vários projetos para inclusão de grupos marginalizados na Educação, tais quais: programa “Diversidade na Universidade” (de 2002), Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) (de 2007), Programa Universidade para Todos (PROUNI) (de 2012) (David, Melo, & Malheiro, 2013David, M.; Melo, M. L.; & Malheiro, J. M. S. (2013). Desafios do currículo multicultural na educação superior para indígenas. Educação e Pesquisa, 39(1), 111-125. https://doi.org/10.1590/S1517-97022013000100008
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). No ano de 2013, o Ministério da Educação (MEC), criou a Bolsa Permanência como estratégia de permanência de estudantes que tinham direito às ações afirmativas (Bergamaschi, Doebber, & Brito, 2018Bergamaschi, M. A.; Doebber B. M.; & Brito, P. O. (2018). Estudantes indígenas em universidades brasileiras: um estudo das políticas de acesso e permanência. Revista Brasileira de Estudos Pedagogógicos, 9(251), 37-53. https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.99i251.3337
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). Além desses programas, existe o Programa de Licenciatura Intercultural Indígena (PROLIND), criado em 2005 que é mais específico para os povos indígenas,

Por outro lado, foi com a lei nº 12.711/2012, a lei de cotas, que a política de ações afirmativas se estabeleceu nas universidades públicas, embora algumas IFES já tivessem políticas anterior a essa lei. Moura e Tamboril (2018Moura, M. R. S.; & Tamboril, M. I. B. (2018). “Não é assim de graça!”: Lei de Cotas e o desafio da diferença. Psicologia Escolar e Educacional, 22(3), 593-601. https://doi.org/10.1590/2175-35392018035604
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) destacaram que tal lei procura aumentar a participação de grupos historicamente discriminados no acesso ao Ensino Superior. E complementaram que por essa lei tem havido a transformação do espaço acadêmico elitizado e inalcançável para um espaço de resistência e de direito de distintos grupos sociais, entre os quais figuram também os povos indígenas.

A universidade é tida como um espaço de base dominante de todas as tecnologias e saberes que compõem a história de nossa sociedade, bem como seu presente, sendo importante que os estudantes indígenas se apropriem desses saberes para trabalharem em prol do seu coletivo (Viana & Maheirie, 2017Viana, I.; & Maheirie, K. (2017). Identidades em reinvenção: o fortalecimento coletivo de estudantes indígenas no meio universitário. Revista Polis e Psique, 7(3), 224-249. https://doi.org/10.22456/2238-152X.74372
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). Essa ocupação do espaço acadêmico e apropriação da ciência ocidental é uma estratégia adotada por alguns indígenas do Amazonas, por exemplo, tanto para aprender o conhecimento ocidental quanto para difundir seus próprios saberes indígenas para a sociedade envolvente (Calegare, Menezes, & Fernandes, 2017Calegare, M. G. A.; Menezes, T. F.; & Fernandes, F. O. P. (2017). Pós-graduandos indígenas da UFAM: seus pontos de vista sobre os ppgs, teorias acadêmicas e incentivos institucionais. Rev. AMAzônica, 19(1), 350-373. Recuperado de: https://periodicos.ufam.edu.br/index.php/amazonica/article/view/4664
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; Fernandes, Azevedo, Barreto & Calegare, 2021Fernandes, F. O. P.; Azevedo, D. L.; Barreto, J. P.; & Calegare, M. (2021). The macro cultural psychology understanding of the constitution of a Yepa Mahsã person. Culture & Psychology, 27(2), 243-257. https://doi.org/10.1177/1354067X2095
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).

Através das ações afirmativas e por outras reivindicações, os indígenas puderam acessar a universidade (Angnes et al., 2017Angnes, J. S.; Freitas, M. F. Q.; Klozovski, M. L.; Costa, Z. F.; & Rocha, C. M. (2017). A permanência e a conclusão no ensino superior: O que dizem os Índios da Universidade Estadual do Centro Oeste do Paraná (UNICENTRO) - Brasil. Archivos Analíticos de Políticas Educativas, 25(6), 1-34. https://doi.org/10.14507/epaa.25.2426
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). Entretanto, o processo de ingresso no Ensino Superior deve considerar também o que segue depois: a permanência e a conclusão no curso. Nesse sentido, a entrada dos povos indígenas na universidade não eliminou todos os problemas de inclusão, pois permanecer na universidade ainda é um desafio que gera sofrimento psíquico (Herbetta & Nazareno, 2020Herbetta, A. F.; & Nazareno, E. (2020). Sofrimento acadêmico e violência epistêmica: considerações iniciais sobre dores vividas em trajetórias acadêmicas indígenas. Tellus, 20(41), 57-82. https://doi.org/10.20435/tellus.v20i41.640
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). O indígena se depara com situações de complexa resolução como, por exemplo, não ter recursos financeiros para se manter dentro e fora da universidade (Oliven & Bello, 2017Oliven, A. C.; & Bello, L. (2017). Negros e indígenas ocupam o templo branco: ações afirmativas na UFRGS. Horizontes Antropológicos, 23(49), 339-374. https://doi.org/10.1590/S0104-71832017000300013
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).

Em suscinta revisão da literatura sobre as políticas de ações afirmativas com indígenas no Ensino Superior, encontramos que a maior parte é das áreas da Sociologia e Antropologia, havendo pouca contribuição da Psicologia (Oliveira, Maia, & Lima, 2020Oliveira, I. A.; Maia, L. M.; & Lima, T. J. S. (2020). Cotas raciais na universidade: uma revisão integrativa da Psicologia brasileira. Revista Subjetividades, 20(Esp. 1), e9337. https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20iEsp1.e9337
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), o que indica a relevância de nosso artigo para a nossa área. Dentre os textos encontrados, naqueles que possuíam como fonte de informação o discurso dos indígenas, verificamos que a permanência é um ponto fundamental para esses grupos: por enfrentar preconceito e discriminação, desrespeito ao saber indígena e faltar políticas específicas aos indígenas, alguns permanecem e outros desistem do curso (Beltrão & Cunha, 2011Beltrão, J. F.; & Cunha M. J. S. (2011). Resposta à diversidade: políticas afirmativas para povos tradicionais, a experiência da Universidade Federal do Pará. Espaço Ameríndio, 5(3), 10-38. https://doi.org/10.22456/1982-6524.21822
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; Bergamaschi et al., 2018Bergamaschi, M. A.; Doebber B. M.; & Brito, P. O. (2018). Estudantes indígenas em universidades brasileiras: um estudo das políticas de acesso e permanência. Revista Brasileira de Estudos Pedagogógicos, 9(251), 37-53. https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.99i251.3337
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; Cassandre, Amaral, & Silva, 2016Cassandre, M. P.; Amaral, W. R.; & Silva, A. (2016). Eu, Alex, da etnia Guarani: o testemunho de um estudante indígena de administração e seu duplo pertencimento. Cad. EBAPE.BR, 14(4), 934-947. https://doi.org/10.1590/1679-395146821
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; Calegare et al., 2017Calegare, M. G. A.; Menezes, T. F.; & Fernandes, F. O. P. (2017). Pós-graduandos indígenas da UFAM: seus pontos de vista sobre os ppgs, teorias acadêmicas e incentivos institucionais. Rev. AMAzônica, 19(1), 350-373. Recuperado de: https://periodicos.ufam.edu.br/index.php/amazonica/article/view/4664
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; David et al., 2013David, M.; Melo, M. L.; & Malheiro, J. M. S. (2013). Desafios do currículo multicultural na educação superior para indígenas. Educação e Pesquisa, 39(1), 111-125. https://doi.org/10.1590/S1517-97022013000100008
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).

Para além da entrada na universidade por um curso de graduação, há alguns poucos indígenas que resistem, re-existem e continuam em Programas de Pós-Graduação (PPGs) das mais diversas áreas, havendo ainda poucos trabalhos avaliando as políticas de ações afirmativas nesse nível ou o ingresso, permanência e conclusão desses pós-graduandos (Pereira et al., 2020Pereira, G. F. S. F., Amaral, W. R.; & Bilar, J. A. B. (2020). A experiência de estar na universidade sob a ótica de uma indígena estudante da pós-graduação. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, 28(158), 01-18. https://doi.org/10.14507/epaa.28.4791
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). Trabalhos encontrados na revisão de literatura, que avaliam as políticas de ações afirmativas na pós-graduação, como Calegare et al. (2017Calegare, M. G. A.; Menezes, T. F.; & Fernandes, F. O. P. (2017). Pós-graduandos indígenas da UFAM: seus pontos de vista sobre os ppgs, teorias acadêmicas e incentivos institucionais. Rev. AMAzônica, 19(1), 350-373. Recuperado de: https://periodicos.ufam.edu.br/index.php/amazonica/article/view/4664
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), Dal Bó (2018Dal Bó, T. (2018). A presença de estudantes indígenas nas universidades: entre ações afirmativas e composições de modos de conhecer. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo. Teses USP https://doi.org/10.11606/T.8.2018.tde-25102018-105344
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), Pereira et al. (2020)Pereira, G. F. S. F., Amaral, W. R.; & Bilar, J. A. B. (2020). A experiência de estar na universidade sob a ótica de uma indígena estudante da pós-graduação. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, 28(158), 01-18. https://doi.org/10.14507/epaa.28.4791
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, e Venturini e Feres Jr. (2020Venturini, A. N.; & Feres Jr., J. (2020). Políticas de ação afirmativa na pós-graduação: o caso das universidades públicas. Cadernos de Pesquisa, 80(177), 882-909. https://doi.org/10.1590/198053147491
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), também apontaram que um elemento muito importante nos discursos dos indígenas é o da permanência na universidade, enfrentando as mesmas dificuldades que os estudantes indígenas de graduação. Desta feita, é preciso conhecer os motivos de permanência de estudantes indígenas de pós-graduação para que as políticas de ações afirmativas se efetivem, assim como avaliar os programas de permanência para podermos detectar suas falhas, lacunas e efeitos, buscando desenvolver melhorias (Saraiva & Nunes, 2011Saraiva, L. A. S.; & Nunes A. S. (2011). A efetividade de programas sociais de acesso à educação superior: o caso do ProUni. Revista de Administração Pública, 45(4), 941-64. https://doi.org/10.1590/S0034-76122011000400003
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).

As dificuldades que os estudantes indígenas do Ensino Superior enfrentam, seja na graduação ou pós-graduação, são de natureza social e cultural, sendo necessário compreender e investigar a relação psicossocial do estudante indígena não apenas com a universidade, mas com a cultura ocidental (Angnes et al., 2017Angnes, J. S.; Freitas, M. F. Q.; Klozovski, M. L.; Costa, Z. F.; & Rocha, C. M. (2017). A permanência e a conclusão no ensino superior: O que dizem os Índios da Universidade Estadual do Centro Oeste do Paraná (UNICENTRO) - Brasil. Archivos Analíticos de Políticas Educativas, 25(6), 1-34. https://doi.org/10.14507/epaa.25.2426
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). Como criticaram Herbetta e Nazareno (2020Herbetta, A. F.; & Nazareno, E. (2020). Sofrimento acadêmico e violência epistêmica: considerações iniciais sobre dores vividas em trajetórias acadêmicas indígenas. Tellus, 20(41), 57-82. https://doi.org/10.20435/tellus.v20i41.640
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), nosso sistema universitário possui uma estrutura que inviabiliza e hierarquiza esses povos gerando sofrimento através da colonialidade.

Há uma distinção importante entre colonialidade e colonialismo. Tonial, Maheirie e Garcia Jr. (2017Tonial, F. A. L.; Maheirie, K.; & Garcia Jr., C. A. V. (2017). A resistência à colonialidade: definições e fronteiras. Revista de Psicologia da UNESP, 16(1), 18-26. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-90442017000100002&lng=pt&tlng=pt
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) explicaram que o colonialismo é caracterizado como o movimento de um povo chegar ao território de outro povo, dominando, explorando e subjugando-o pela força política e militar. Já a colonialidade é a dimensão simbólica do colonialismo, que naturaliza e mantém as relações de poder e dominação por meio de hierarquias territoriais, raciais, culturais, de gênero e epistêmicas. Esses processos colonizadores, que ainda estão em progresso atualmente, foram caracterizados por Quijano (2011)Quijano, A. (2011). Colonialidad del poder y clasificación social. Contextualizaciones Latinoamericanas, 5, 1-33. http://contexlatin.cucsh.udg.mx/index.php/CL/article/view/2836
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segundo a colonialidade do poder, do ser e do saber.

Nesse sentido, o estudante indígena se depara com a colonialidade inerente à estrutura universitária, como se seu destino fatalista fosse o de nunca poder ocupar esse lugar. Na leitura psicossocial que adotamos como referencial de Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na Psicologia: estudos psicossociais - organização (notas e tradução deF. Lacerda Jr .). Vozes.), o fatalismo é a compreensão de que o destino de todos está predeterminado e é imutável. Isso resulta na formação do caráter latino-americano expresso em ideias de inferioridade e inação, sentimentos de resignação e comportamentos de submissão e conformismo. Tal processo seria superável pelo resgate da memória histórica e pela desideologização da experiência cotidiana, esta entendida como ato de “resgatar a experiência original dos grupos e das pessoas e devolvê-las como dado objetivo” (Martín-Baró, 2011Martín-Baró, I. (2011). Para uma Psicologia da Libertação. In R. S. L. Guzzo, & F. Lacerda Jr. (Eds.), Psicologia Social para América Latina: o resgate da Psicologia da Libertação (2a ed. rev., pp. 183-197). Editora Alínea., p. 196), isto é, o processo de desconstrução da naturalização do presente e conscientização da produção histórica da realidade.

No caso da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), as cotas para PPGs têm sido adotadas a partir da Resolução nº010/2016-Consepe, com ações afirmativas para a inclusão (cotas de entrada por vagas suplementares) e a permanência (bolsas e outros incentivos) de pretos, pardos e indígenas dos cursos de pós-graduação stricto sensu, cabendo a cada PPG adotar a cota entre 20% e 50% (UFAM, 2016Universidade Federal do Amazonas. (2016). Resolução nº010/2016-Consepe. Política de ações afirmativas para pretos, pardos e indígenas na pós-graduação stricto sensu da UFAM. UFAM.). Nesse sentido, torna-se importante investigar quais os motivos que fazem os estudantes indígenas de PPGs permanecerem nos seus respectivos cursos de pós-graduação da UFAM.

Ouvindo os estudantes indígenas de PPGs da UFAM, Calegare et al. (2017Calegare, M. G. A.; Menezes, T. F.; & Fernandes, F. O. P. (2017). Pós-graduandos indígenas da UFAM: seus pontos de vista sobre os ppgs, teorias acadêmicas e incentivos institucionais. Rev. AMAzônica, 19(1), 350-373. Recuperado de: https://periodicos.ufam.edu.br/index.php/amazonica/article/view/4664
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) mostraram que para esses, simultaneamente com a vontade de cursar um PPG, viam a problemática de escolher um programa que abarcasse toda a complexidade das culturas indígenas e que incentivasse o protagonismo indígena. Os autores indicaram também que a permanência desses estudantes envolvia questões relacionadas aos interesses indígenas, ao apoio a eles pela universidade e à difusão de suas obras após a conclusão do curso. Além disso, os indígenas desse estudo reclamaram que as bolsas de auxílio concedidas eram de um valor que não cobria todas as demandas financeiras e, por outro lado, a bolsa os impedia de ter um vínculo empregatício. Dessa forma, concluíram que as ações afirmativas só eram realizadas porque a universidade era obrigada a reservar vagas.

Todas essas informações apontam para necessidade de nos aprofundarmos na questão da permanência indígena nos PPGs da UFAM, já que esses direitos não se encontram em exercício pleno. Ao avaliar a visão dos indígenas a respeito desse assunto por uma leitura psicossocial, podemos contribuir para que a comunidade acadêmica reflita sobre o processo de cursar um PPG para um indígena e que isso se torne mais equitativo com os demais estudantes. Desta feita, neste artigo temos por objetivo apresentar e discutir os pontos de vista de estudantes indígenas a respeito da permanência em PPGs da UFAM.

METODOLOGIA

Esta pesquisa adotou uma perspectiva qualitativa, de caráter exploratório descritiva (Gerhardt & Silveira, 2009Gerhardt, T. E.; & Silveira, D. T. (Orgs.) (2009). Métodos de Pesquisa. Editora UFRGS.). Como instrumento para produção dos dados, utilizamos um questionário enviado às secretarias dos PPGs da UFAM (com identificação de alunos indígenas, cotistas e políticas adotadas para eles) e entrevistas semiestruturadas com alunos indígenas dos PPGs. A pesquisa aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa e seguindo as normas previstas nas resoluções 466/2012 e 510/2016, pelo parecer n° 4.082.840.

Participaram da pesquisa sete estudantes indígenas (seis homens, uma mulher), oriundos dos PPGs em Antropologia Social (PPGAS) e em Educação (PPGE), conforme perfil descrito no Quadro 1, após um processo de busca de informações ardiloso resumido a seguir.

Quadro 1
Perfil dos pós-graduandos indígenas entrevistados.

Chegamos a esse número de participantes da seguinte forma: inicialmente por uma lista do Sistema Eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão (e-sic) disponibilizada pelo Departamento de Políticas Afirmativas (DPA) da UFAM, com 163 alunos indígenas de cursos lato sensu ou stricto sensu. Identificamos 61 estudantes indígenas em 27 PPGs. Em seguida, enviamos um questionário por e-mail a todos os 42 PPGs da UFAM solicitando informações sobre os alunos indígenas, chegando ao número de apenas 27 estudantes indígenas: 17 no nível de mestrado e 10 no doutorado (Quadro 2). Feito o contato com todos esses estudantes, apenas uma parte aceitou participar da pesquisa.

Quadro 2
PPGs com e sem pós-graduandos indígenas na UFAM

Essa triagem inicial já nos revelou um fato importante: o registro do e-sic, fornecido pelo DPA, não correspondia necessariamente aos dados das secretarias dos PPGs, o que revela a confusão quanto à informação sobre raça (cor ou etnia) dos estudantes. Além disso, algumas das secretarias não possuíam esses dados sobre seus alunos e nem se eles eram cotistas - o que já havia sido constatado por Calegare et al. (2017Calegare, M. G. A.; Menezes, T. F.; & Fernandes, F. O. P. (2017). Pós-graduandos indígenas da UFAM: seus pontos de vista sobre os ppgs, teorias acadêmicas e incentivos institucionais. Rev. AMAzônica, 19(1), 350-373. Recuperado de: https://periodicos.ufam.edu.br/index.php/amazonica/article/view/4664
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).

Sobre a não adesão à pesquisa pelos estudantes indígenas, uma parte dos que não quiseram participar justificou estar nas cidades do interior, impossibilitando a entrevista presencial e outra parte simplesmente não queria tratar da temática, o que também é um fato importante a ser registrado. Levantamos como hipótese da maior adesão de estudantes do PPGAS à pesquisa o fato desse programa possuir políticas expressivas de atenção aos indígenas: reserva de cotas e bolsas, aceitação do português como segundo idioma, haver um Colegiado Indígena e valorização desses estudantes. Dando-lhes expressão, eles se sentem à vontade de expressarem-se.

Realizamos as entrevistas audiogravadas presencialmente na UFAM no fim de 2019, antes da pandemia do Covid-19. Após a transcrição, procedemos a análise de conteúdo (Bardin, 2011Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Ed. 70.) através das seguintes etapas: pré-análise (leitura flutuante e esboço das primeiras categorias); exploração do material (com o enquadramento dos trechos das entrevistas em unidades temáticas e categorias definitivas); tratamento dos dados com inferências e intepretações (apresentação dos resultados pelas narrativas). Chegamos, assim, às seguintes unidades temáticas e categorias: (I) percurso acadêmico dos alunos pós-graduandos (trajetória de escolarização; chegada à universidade); (II) enfrentamentos para permanecer universitário (dificuldades, resistência, resoluções); (III) sugestões e propostas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Percurso Acadêmico Dos Alunos Pós-Graduandos

Nesta unidade temática tratamos da trajetória de escolarização do estudante indígena até chegar à universidade e ao PPG. As análises das respostas indicaram duas categorias, descritas e discutidas abaixo.

Trajetória De Escolarização

A trajetória de escolarização se refere aos percalços e marcas do percurso escolar desde a aldeia até chegar à universidade e PPGs, de maneira global, como indicam os trechos destacados abaixo:

Eu sou de uma geração que foi obrigada a negar a nossa cultura (...) minha educação veio dessa lógica, de imposição cultural (Entrevistado D2).

Nós erámos 9 irmãos, imagina (...) E aí a gente não sabíamos falar português, não estávamos acompanhando o nível de escolaridade, um baque (...) Aí começaram os preconceitos (...) Chegamos em Manaus (...) eu passei trabalhando (...) não queria mais estudar, parei (...) Então, eu vim pra cá [UFAM] e comecei a estudar (Entrevistada M3).

Eu estudei o ensino fundamental em Nova Olinda, mas boa parte foi, assim, parando porque a gente ia pra aldeia, passava um ano e voltava pro município (...) a gente veio pra capital em 2000, que foi quando comecei o ensino fundamental, atrasado (...) Hoje a gente não tem essa dificuldade (...) Um salário mínimo naquela época era o que, 800, 700? Mas era isso, a gente vivia com isso, 5 filhos, foi complicado (Entrevistado D4).

Os alunos doutorandos expuseram as dificuldades que tiveram durante a escolarização pela falta de recursos financeiros, pela migração entre aldeia e cidade, pelo apagamento forçado de sua cultura dentro do espaço escolar, imposição da cultura dominante (eurocêntrica) e o preconceito sofrido neste espaço. Por outro lado, um dos entrevistados explicou que sempre foi incentivado pelos pais professores e sempre se destacou durante a etapa de escolarização.

Através dos relatos sobre a trajetória de escolarização, podemos perceber que esse percurso para a vida universitária é permeado por dificuldades decorrentes da relação de imposição da cultura ocidental, fruto da colonização e colonialidade, sofrendo de dificuldades econômicas, sociais e culturais, tal como também acentuaram em pesquisas similares Herbetta e Nazareno (2020Herbetta, A. F.; & Nazareno, E. (2020). Sofrimento acadêmico e violência epistêmica: considerações iniciais sobre dores vividas em trajetórias acadêmicas indígenas. Tellus, 20(41), 57-82. https://doi.org/10.20435/tellus.v20i41.640
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) e Viana e Maheirie (2017Viana, I.; & Maheirie, K. (2017). Identidades em reinvenção: o fortalecimento coletivo de estudantes indígenas no meio universitário. Revista Polis e Psique, 7(3), 224-249. https://doi.org/10.22456/2238-152X.74372
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).

Além disso, os relatos indicaram que o percurso escolar não foi executado no tempo considerado normal ao estudante, tendo alguns deles parado e retomado posteriormente os estudos. Como nos indicou Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na Psicologia: estudos psicossociais - organização (notas e tradução deF. Lacerda Jr .). Vozes.), uma explicação pela ideologia dominante atribuiria esse atraso à indolência do indígena latino-americano, o que desconsidera o contexto cultural e social em que vivem: as condições de ensino diferenciadas entre aldeia e cidade, o choque cultural, as dificuldades financeiras para sustentar a família. Portanto, não se trata da preguiça de estudar, e sim das muitas dificuldades enfrentadas na trajetória de escolarização.

Chegada à Universidade

Nesta categoria encontramos as lembranças de como foi vir à cidade e entrar em um curso de pós-graduação da UFAM, como exemplificam os trechos a seguir:

Terceiro processo seletivo, comecei a participar dos seminários, do núcleo, pra poder elaborar o projeto (...) Passei, fui aprovado, passei dois anos de mestrado com todo esforço, idade, doenças (...) Pra doutorado, eu consegui pensar minha área mais na área da saúde (...) vim pra cá são 2 horas, e são quase 3 horas e meia pra chegar em casa (Entrevistado D3).

Alugou uma casa (...) Isso era só casa. Então lá eu dormi um mês no chão. Eu não recebia bolsa, eu não tinha emprego (...) depois de eu ter todo o conforto em casa, ser uma liderança dentro casa onde não faltava nada (...) Quando eu penso assim, dá vontade de ir embora, sabe? Esse aqui não é o nosso mundo (Entrevistado M2).

Eu não tive problema (...) PPGAS me adotou como filho e eu adotei (...) deveriam dar mais oportunidades para os indígenas (...) minha família está aqui (...) A família é um ponto muito importante para manter além de qualquer programa que possa existir (Entrevistado M1).

Despreparada mesmo em relação ao ensino, despreparada psicologicamente (...) além de eu pensar em desistir, eu pensei em não ir mesmo pra aula (...) E outra coisa é o estresse (...) situações assim muito ruins. E isso tava até me influenciado a ir mal nas minhas provas (...) Aí eu ficava me culpando (...) me diminuindo (Entrevistada M3).

Somente um aluno pós-graduando não teve dificuldades em sua chegada à universidade, tanto por conta do acolhimento que recebeu do PPGAS quanto pela presença de sua família que considera um ponto fundamental, mas reconhece que é preciso mais oportunidades para os indígenas. Os demais alunos passaram por dificuldades durante a permanência com o surgimento de doenças, a distância entre a casa e a universidade, a falta de bolsa e emprego para viver na cidade, a demora em conseguir a bolsa para custear a estadia e o despreparo para vivenciar o cotidiano do ensino superior que acaba levando a baixa estima, estresse e vontade de desistir.

O fato de a maioria desses alunos sentirem-se deslocados, culpados e diminuídos ao estarem num PPG da UFAM nos mostra que as análises de Martín-Baró (2011, 2017) sobre o caráter fatalista do povo latino-americano ainda vigoram até o presente: o contexto social opressor produz essas subjetividades marcadas pela humilhação e subjugação. Nesse sentido, corroboramos com Angnes et al. (2017Angnes, J. S.; Freitas, M. F. Q.; Klozovski, M. L.; Costa, Z. F.; & Rocha, C. M. (2017). A permanência e a conclusão no ensino superior: O que dizem os Índios da Universidade Estadual do Centro Oeste do Paraná (UNICENTRO) - Brasil. Archivos Analíticos de Políticas Educativas, 25(6), 1-34. https://doi.org/10.14507/epaa.25.2426
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) que a desconsideração das culturas indígenas e suas condutas pautadas nos coletivos são negligenciados nas universidades, causando efeitos psicossociais negativos na vida dos alunos. Isso caracteriza também um sofrimento ético-político, pela desvalorização do ser, do saber e do poder indígena (Viana & Maheirie, 2017Viana, I.; & Maheirie, K. (2017). Identidades em reinvenção: o fortalecimento coletivo de estudantes indígenas no meio universitário. Revista Polis e Psique, 7(3), 224-249. https://doi.org/10.22456/2238-152X.74372
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).

Encontramos, dessa forma, semelhanças com as pesquisas de Bergamaschi et al. (2018Bergamaschi, M. A.; Doebber B. M.; & Brito, P. O. (2018). Estudantes indígenas em universidades brasileiras: um estudo das políticas de acesso e permanência. Revista Brasileira de Estudos Pedagogógicos, 9(251), 37-53. https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.99i251.3337
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) Herbetta e Nazareno (2020Herbetta, A. F.; & Nazareno, E. (2020). Sofrimento acadêmico e violência epistêmica: considerações iniciais sobre dores vividas em trajetórias acadêmicas indígenas. Tellus, 20(41), 57-82. https://doi.org/10.20435/tellus.v20i41.640
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) e Viana e Maheirie (2017Viana, I.; & Maheirie, K. (2017). Identidades em reinvenção: o fortalecimento coletivo de estudantes indígenas no meio universitário. Revista Polis e Psique, 7(3), 224-249. https://doi.org/10.22456/2238-152X.74372
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), que também indicaram que, durante a trajetória de escolarização no nível superior, os estudantes indígenas continuaram a sofrer formas de dominação e exploração da colonialidade, muitas vezes sem o conhecimento dos percalços que compõem o percurso universitário, seja na graduação ou pós-graduação, como argumentaram Oliven e Bello (2017Oliven, A. C.; & Bello, L. (2017). Negros e indígenas ocupam o templo branco: ações afirmativas na UFRGS. Horizontes Antropológicos, 23(49), 339-374. https://doi.org/10.1590/S0104-71832017000300013
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).

Enfrentamento Para Permanecer Universitário

Nesta unidade temática apresentamos três categorias que revelam como os entrevistados desenvolveram estratégias de enfrentamento para permanecerem na universidade e concluírem os cursos de pós-graduação.

Dificuldades

Selecionamos trechos que expressam as agruras enfrentadas pelos estudantes na universidade:

Sofri, assim, condições financeiras, pegava ônibus, as vezes me faltava dinheiro pra pegar ônibus (...) Com a bolsa eu consegui comprar passagem (...) eu consegui até comprar, sei lá, acho que uma cama, um guarda-roupa, isso eu conseguia comprar pra me organizar melhor, e até livros (Entrevistado D4).

Não ter nada que assegure sua permanência é complicado. Ainda mais um parente que tem toda uma vida lá naquele povo. E geralmente são esses caras que chegam aqui, não são simplesmente qualquer pessoa (Entrevistado M2).

Os estudantes indígenas discorreram diretamente sobre as dificuldades que precisam enfrentar para permanecer no ensino superior, principalmente com a falta de auxílio financeiro, fato também constatado por Oliven e Bello (2017Oliven, A. C.; & Bello, L. (2017). Negros e indígenas ocupam o templo branco: ações afirmativas na UFRGS. Horizontes Antropológicos, 23(49), 339-374. https://doi.org/10.1590/S0104-71832017000300013
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). Concordamos com Angnes et al. (2017Angnes, J. S.; Freitas, M. F. Q.; Klozovski, M. L.; Costa, Z. F.; & Rocha, C. M. (2017). A permanência e a conclusão no ensino superior: O que dizem os Índios da Universidade Estadual do Centro Oeste do Paraná (UNICENTRO) - Brasil. Archivos Analíticos de Políticas Educativas, 25(6), 1-34. https://doi.org/10.14507/epaa.25.2426
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) que as dificuldades que os estudantes indígenas vivem são fonte de sofrimento pela falta do reconhecimento de suas estruturas sociais, vulnerabilidades e desamparo sofridos ao vir para a cidade cursar o nível superior.

Essa vivência se assemelha ao encontrado por Herbetta e Nazareno (2020Herbetta, A. F.; & Nazareno, E. (2020). Sofrimento acadêmico e violência epistêmica: considerações iniciais sobre dores vividas em trajetórias acadêmicas indígenas. Tellus, 20(41), 57-82. https://doi.org/10.20435/tellus.v20i41.640
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): os estudantes indígenas têm as subjetividades e culturas ignoradas no ensino superior, provocando-lhes sofrimento que se expressam na forma de dificuldade com a escrita e rotina acadêmica, podendo chegar ao abandono da universidade e até mesmo ao alcoolismo e suicídio. Para esses autores, isso expressa o sofrimento psíquico que advém da invisibilização e desumanização dos estudantes indígenas na universidade.

Diante desse cenário, consideramos que a falta de bolsas de permanência é uma falha das políticas de ações afirmativas por não serem atribuídas logo em seguida ao ingresso no Ensino Superior, deixando os alunos desamparados depois do acesso. Conforme argumentaram Herbetta e Nazareno (2020Herbetta, A. F.; & Nazareno, E. (2020). Sofrimento acadêmico e violência epistêmica: considerações iniciais sobre dores vividas em trajetórias acadêmicas indígenas. Tellus, 20(41), 57-82. https://doi.org/10.20435/tellus.v20i41.640
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) e Viana e Maheirie (2017Viana, I.; & Maheirie, K. (2017). Identidades em reinvenção: o fortalecimento coletivo de estudantes indígenas no meio universitário. Revista Polis e Psique, 7(3), 224-249. https://doi.org/10.22456/2238-152X.74372
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), para que seja possível combater o sofrimento dos alunos e as injustiças sociais, é preciso que as próprias políticas de ações afirmativas sejam passíveis de reformulações para reconhecer as especificidades dos recortes de raça, gênero, classe etnia e outros.

Resistência

A resistência se refere ao modo como os estudantes indígenas lidaram com as adversidades de cursar um PPG, conforme trechos abaixo:

O tempo e o amadurecimento fizeram com que eu veja o meu curso, o meu próprio projeto de outra maneira (...) o amadurecimento e o tempo que me fez refletir tudo isso (Entrevistada M3).

Colocava na minha cabeça que tinha que fazer (Entrevistado D2).

Quando você tem família (...) para te garantir da ida e volta, se torna possível (...) No meu caso foi dos meus pais. Em conjunto com os familiares (Entrevistado D3).

Apesar de viverem situações de vulnerabilidade e dificuldades durante permanência estudantil, os alunos ressignificam suas trajetórias e experiências como uma estratégia para conclusão de seus cursos. Os alunos expõem a importância do tempo para reflexão, a persistência para continuar e a importância do apoio e apoio financeiro da família para fazer a migração de seu território para a universidade e da universidade para seu território. Conforme explicaram Angnes et al. (2017Angnes, J. S.; Freitas, M. F. Q.; Klozovski, M. L.; Costa, Z. F.; & Rocha, C. M. (2017). A permanência e a conclusão no ensino superior: O que dizem os Índios da Universidade Estadual do Centro Oeste do Paraná (UNICENTRO) - Brasil. Archivos Analíticos de Políticas Educativas, 25(6), 1-34. https://doi.org/10.14507/epaa.25.2426
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) e Viana e Maheirie (2017Viana, I.; & Maheirie, K. (2017). Identidades em reinvenção: o fortalecimento coletivo de estudantes indígenas no meio universitário. Revista Polis e Psique, 7(3), 224-249. https://doi.org/10.22456/2238-152X.74372
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), a identidade indígena é pautada na interação social, familiar e na coletividade, que leva à diferenciação e reconhecimento de seu pertencimento enquanto indivíduo e grupo.

Nessa linha, estamos de acordo com Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na Psicologia: estudos psicossociais - organização (notas e tradução deF. Lacerda Jr .). Vozes.) ao argumentar que a desideologização, enquanto ato reflexivo de examinar os enredamentos cotidianos e desnaturalizar a opressão gerada pela estrutura social, é um caminho necessário à conscientização e libertação do oprimido. Além disso, contar com as redes de apoio familiar e do grupo étnico funcionam como base ao fortalecimento pessoal, dando força e resistência ao estudante indígena para seguir adiante na meta de concluir os estudos no nível superior.

Resoluções

Nesta categoria indicamos as estratégias de enfrentamento adotadas como resoluções pessoais, que remetem aos motivos para permanecerem na universidade e concluírem seus cursos, conforme trechos a seguir:

Não tô estudando pra mim. Claro que isso vai me ajudar diretamente, mas é tudo voltado pensando pra eles, né, pro nosso povo. Quero terminar por causa disso, ter um diálogo mais de igual pra igual (Entrevistado M2).

Acredito que o estudo pode mudar a minha vida (Entrevistado M1).

Olha, primeiro eu quero ser um exemplo pras minhas irmãs, pra minha família e eu quero mostrar pra eles (...) nós somos capazes, nós podemos ser profissionais, nós podemos servir a nossa comunidade (Entrevistada M3).

Tudo que eu aprendo aqui eu utilizo e uso como instrumento pra eu pensar o meu pensamento, como indígena. Aprender a construir instrumento de pesquisa, instrumento de pensamento, instrumento de escrita. Isso que me motiva (...) abriu a possibilidade deu criar o centro de medicina que não existe no Brasil todo (...) meu título me possibilita a ousar (Entrevistado D2).

Minha mãe veio de uma família humilde, ela não fala português, mas ela falou pra mim seria uma honra concluir essa pós-graduação. Eu quero mostrar que nós podemos ser como outras pessoas também, ser intelectuais. (...) Eu tô nessa linha nessa busca. Nessa loucura acadêmica (Entrevistado D3).

A minha responsabilidade histórica. Porque eu sou o primeiro Munduruku da demarcação toda a entrar no curso de doutorado (Entrevistado D4).

Os relatos mostram um ponto em comum: os estudantes acreditam no poder do estudo para transformar suas realidades, com perspectivas diferentes em cada experiência. Essas mudanças significativas são para transformar a própria vida, ajudar no diálogo intercultural de forma não hierarquizada, desenvolver novas criações por conta da validação que títulos acadêmicos trazem e ser um exemplo de realização dentro do espaço acadêmico para outros indígenas, assim como para não indígenas.

Martín-Baró (2011, 2017) apontou que a tarefa da libertação e conscientização envolve também a recuperação da memória histórica e a prática de classe - no nosso contexto, esta última deve ser reconsiderada como prática coletiva étnica. Assim sendo, os estudantes indígenas já possuem a consciência de que o benefício do título de mestre ou doutor não é apenas um benefício próprio, mas sim algo que vem fortalecer as lutas coletivas e funcionar como estratégia de reconhecimento da cultura e causas indígenas.

Conforme argumentaram Moura e Tamboril (2018Moura, M. R. S.; & Tamboril, M. I. B. (2018). “Não é assim de graça!”: Lei de Cotas e o desafio da diferença. Psicologia Escolar e Educacional, 22(3), 593-601. https://doi.org/10.1590/2175-35392018035604
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), os enfrentamentos e resoluções das dificuldades estão estritamente ligados às razões para permanecer na universidade. Complementaram também que estudantes indígenas contam com sua comunidade e família para enfrentar a permanência estudantil, conseguindo resistir às variadas formas de interferência que ferem suas subjetividades e modos de vida. Nesse sentido, Calegare et al. (2017Calegare, M. G. A.; Menezes, T. F.; & Fernandes, F. O. P. (2017). Pós-graduandos indígenas da UFAM: seus pontos de vista sobre os ppgs, teorias acadêmicas e incentivos institucionais. Rev. AMAzônica, 19(1), 350-373. Recuperado de: https://periodicos.ufam.edu.br/index.php/amazonica/article/view/4664
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) apontaram que os estudantes indígenas concluem a pós-graduação visando tanto o benefício próprio, como da família e comunidade, sempre honrando seus ancestrais.

Sugestões e Propostas

Nesta unidade temática os estudantes indígenas compartilharam suas sugestões propostas à universidade que deveriam existir e/ou que podem ser melhoradas, para ajudar em sua permanência, como indicado abaixo:

Existir um apoio psicológico (...) a maioria dos indígenas vem de muito longe, vem deixando família, casa, costume e vem de uma cultura totalmente diferente (...) dar mais apoio aos indígenas (Entrevistado M1).

Uma seleção diferenciada de acesso aos indígenas, ou quilombolas, ou ribeirinhos (...) temos outra lógica, outra epistemologia (...) Política afirmativa tem que levar em conta essas lógicas de epistemologia (Entrevistado D2).

Criar um instituto mesmo indígena (...) estar discutindo nossas próprias políticas, onde a gente poderia estar trazendo pajé e outros conhecedores da nossa cultura (Entrevistado M2).

Um mecanismo mais rápido pra resolver (...) fazer casas estudantil (...) política de ajuda, de custo pra materiais escolares, apostilas (...) a bolsa se você olhar bem ele não dá conta (Entrevistado D1).

Você não consegue ter acesso a informações (...) Talvez publicar, ou jogar na mídia, no site da UFAM, facilitar pra ter acesso pras pessoas que precisam (Entrevistado D3).

Bolsa, moradia, política linguística (...) melhorar as ementas dos cursos, (...) atualize as referências pra discussão das políticas indígenas na universidade (...) combater o preconceito na universidade que os estudantes hoje ainda sofrem bastante (Entrevistado D4).

Das críticas e sugestões feitas pelos estudantes indígenas, observamos que uma das demandas é a necessidade de reconhecimento dos que vêm de uma realidade não ocidental, apoiando-os para permanecerem e se adaptar ao novo cotidiano universitário. Outra sugestão é que sejam feitos modelos diferenciados na universidade que abarque a cultura e vivência indígena: processo seletivo diferenciado, textos e orientações diferenciadas, um centro ou instituto indígena. Dessa forma, é preciso que a universidade faça um movimento contra-hegemônico para que os estudantes indígenas tenham uma permanência estudantil satisfatória.

Após as reivindicações do movimento indígena e da Constituição de 1988, todas as etapas de ensino passam de um lugar de imposição para um de direito. Este vem sendo progressivamente conquistado e resultando na valorização de suas identidades e modos de vida, assim como fomentando a construção de diálogos entre as diversas epistemologias (Calegare et al., 2017Calegare, M. G. A.; Menezes, T. F.; & Fernandes, F. O. P. (2017). Pós-graduandos indígenas da UFAM: seus pontos de vista sobre os ppgs, teorias acadêmicas e incentivos institucionais. Rev. AMAzônica, 19(1), 350-373. Recuperado de: https://periodicos.ufam.edu.br/index.php/amazonica/article/view/4664
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; Pereira et al., 2020Pereira, G. F. S. F., Amaral, W. R.; & Bilar, J. A. B. (2020). A experiência de estar na universidade sob a ótica de uma indígena estudante da pós-graduação. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, 28(158), 01-18. https://doi.org/10.14507/epaa.28.4791
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; Viana & Maheirie, 2017Viana, I.; & Maheirie, K. (2017). Identidades em reinvenção: o fortalecimento coletivo de estudantes indígenas no meio universitário. Revista Polis e Psique, 7(3), 224-249. https://doi.org/10.22456/2238-152X.74372
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). Nesse sentido, é importante que as ações afirmativas para a permanência de indígenas sejam diferenciadas em função da realidade, cultura e subjetividade de cada povo, buscando respeitar a diversidade ao invés de enquadrar a todos num mesmo padrão universal uniformizante (Angnes et al., 2017Angnes, J. S.; Freitas, M. F. Q.; Klozovski, M. L.; Costa, Z. F.; & Rocha, C. M. (2017). A permanência e a conclusão no ensino superior: O que dizem os Índios da Universidade Estadual do Centro Oeste do Paraná (UNICENTRO) - Brasil. Archivos Analíticos de Políticas Educativas, 25(6), 1-34. https://doi.org/10.14507/epaa.25.2426
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; Bergamaschi et al., 2018Bergamaschi, M. A.; Doebber B. M.; & Brito, P. O. (2018). Estudantes indígenas em universidades brasileiras: um estudo das políticas de acesso e permanência. Revista Brasileira de Estudos Pedagogógicos, 9(251), 37-53. https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.99i251.3337
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).

As propostas dos alunos espelham a realidade das políticas de ações afirmativas. Como argumentaram Herbetta e Nazareno (2020Herbetta, A. F.; & Nazareno, E. (2020). Sofrimento acadêmico e violência epistêmica: considerações iniciais sobre dores vividas em trajetórias acadêmicas indígenas. Tellus, 20(41), 57-82. https://doi.org/10.20435/tellus.v20i41.640
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), as lutas para uma sociedade igualitária e justa devem ser feitas de forma crítica junto aos povos indígenas, na tentativa de democratizar todos os direitos e estruturas societárias. Defenderam ainda que para que haja democracia numa sociedade ideológica, é necessário que sejam expostas as ideologias que dominam e exploram (ideologias antipopular) que estão presentes no cotidiano. Conforme defendeu Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na Psicologia: estudos psicossociais - organização (notas e tradução deF. Lacerda Jr .). Vozes.), é preciso desideologizar através do desenvolvimento de conhecimento (poder) numa perspectiva feita pelas maiorias populares.

Para isso, é preciso que sejam satisfeitas as necessidades do povo oprimido, a construção de um novo modo de pensar que seja pautado na solidariedade e no comunitário e, por último, que seja construída uma nova personalidade social nacional e popular, nos termos de Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na Psicologia: estudos psicossociais - organização (notas e tradução deF. Lacerda Jr .). Vozes.). Dessa feita, Moura e Tamboril (2018Moura, M. R. S.; & Tamboril, M. I. B. (2018). “Não é assim de graça!”: Lei de Cotas e o desafio da diferença. Psicologia Escolar e Educacional, 22(3), 593-601. https://doi.org/10.1590/2175-35392018035604
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) defenderam que a Psicologia enquanto ciência deve atuar e lutar para a autonomia dos povos indígenas, contribuindo para a mudança social no sentido de uma nova realidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As políticas de ações afirmativas de permanência, mesmo que ajudem minimamente os estudantes e contribuam para a presença de alguns deles nos espaços acadêmicos, ainda os deixam em situação de vulnerabilidade. Não apenas no sentido financeiro, mas simbólico, pois ao não considerarem os saberes de cada povo indígena, os desvalorizam e os submetem às lógicas ocidentais para que tenham suas existências validadas na academia.

Os discursos apresentados e discutidos nesta pesquisa expuseram as dificuldades financeiras, pedagógicas, culturais e sociais dos pós-graduandos indígenas da UFAM, escancarando o despreparo do Ensino Superior para garantir a permanência de forma digna, por ser um sistema construído a partir de uma lógica hegemônica. Diante disso, os alunos sofrem inúmeras formas de discriminação, desigualdade e exclusão, que podemos considerar como a perpetuação no cotidiano da colonialidade.

Por outro lado, estar num PPG representa ocupar um lugar de destaque e expandir os saberes indígenas à sociedade envolvente, de modo a transformar a falsa hierarquia entre os diferentes conhecimentos. Nesse sentido, apesar das fragilidades das políticas de ações afirmativas voltadas aos estudantes indígenas pós-graduandos, eles revelaram resistir e re-existir à lógica universitária na pós-graduação. Enfrentam as dificuldades e tiram forças a partir das relações sociais com a família, comunidade e povo. Conseguem, portanto, permanecer na universidade a partir do compromisso consigo, com suas famílias, etnia e causas indígenas.

Nosso estudo, apesar do aprofundamento nos discursos indígenas, teve um número limitado de participantes (e com maioria masculina), decorrente tanto do desconhecimento dos órgãos da universidade e PPGs a respeito de seus estudantes, quanto da recusa em participar pelos próprios pós-graduandos indígenas. Assim, abre-se a possibilidade de futuras pesquisas investigarem o motivo da falta de informação completa sobre os alunos cotistas e/ou indígenas, bem como a falta de engajamento para responder pesquisas sobre temáticas étnico-raciais. Pode-se também aprofundar a pesquisa em tópicos de escolarização, diferenças de gênero na trajetória escolar, modos de re-existência e sua relação com estruturas coloniais.

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  • O presente trabalho foi realizado com apoio do Edital n° 21/2018 PROCAD-Amazônia da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - (CAPES) e de bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2021
  • Aceito
    17 Jul 2023
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