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DISCURSOS DE GÊNERO NOS LIVROS INTRODUTÓRIOS À PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

Discursos de género en los libros introductorios a la Psicología del Desarrollo

RESUMO

O objetivo desta pesquisa foi identificar e analisar os discursos sobre gênero presentes em livros introdutórios das disciplinas de Psicologia do Desenvolvimento de cursos de graduação em Psicologia, em universidades públicas brasileiras. Identificamos, com base em uma consulta aos planos de ensino desses cursos, os dois livros mais citados. Organizamos, examinamos e apresentamos o material, tendo em vista os procedimentos da pesquisa documental: o contexto de produção das obras, suas autorias e as os discursos sobre gênero nas descrições dos marcadores etários (infância e adolescência). A partir das contribuições dos estudos feministas e queers sobre gênero e das contribuições de Michel Foucault sobre o biopoder, identificamos possíveis efeitos do discurso na função controle e limitação dos modos de gestar as experiências de gênero, na infância e na adolescência. Formulamos considerações a respeito desses efeitos e da circunstância de a formação na área se aproximar das críticas ao discurso científico, desde os estudos feministas e queer.

Palavras-chave:
gênero; discurso; psicologia do desenvolvimento

RESUMEN

El objetivo de esta investigación fue identificar el analizar los discursos sobre género presentes en libros introductorio de las asignaturas de Psicología del Desarrollo de cursos de graduación en Psicología, en universidades públicas brasileñas. Identificamos, con base en la consulta a los planes de enseñanza de esos cursos, los dos libros más citados. Organizamos, examinamos y presentamos el material, teniendo en vista procedimientos de la investigación documental: el contexto de producción de las obras, sus autorías y las de los discursos sobre género en las descripciones de los marcadores etarios (infancia y adolescencia). A partir de las contribuciones de los estudios feministas y queers sobre género y de las contribuciones de Michel Foucault sobre el biopoder, identificamos posibles efectos del discurso en la función control y limitación de los modos de gestar las experiencias de género, en la infancia y en la adolescencia. Formulamos consideraciones a respeto de esos efectos y de la circunstancia de la formación en el área acercarse de las críticas al discurso científico, desde los estudios feministas y queer.

Palabras clave:
género; discurso; psicología del desarrollo

ABSTRACT

The objective of this research was to identify and analyze the discourses about gender present in introductory books of the Developmental Psychology disciplines of undergraduate courses in Psychology, in Brazilian public universities. We identified, based on a consultation of the teaching plans of these courses, the two most cited books. We organize, examine and present the material, taking into account the procedures of documentary research: the context of production of the works, their authorship and the discourses about gender in the descriptions of age markers (childhood and adolescence). Based on the contributions of feminist and queer studies about gender and on the contributions of Michel Foucault on biopower, we identified possible effects of discourse about the control function and limitation of the ways of managing gender experiences in childhood and adolescence. We formulate considerations about these effects and the circumstance that training in the area approaches criticism of scientific discourse, from feminist and queer studies.

Keywords:
gender; discourse; developmental psychology

INTRODUÇÃO: PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO, GÊNERO E FEMINISMOS

Esta investigação faz parte de um programa de pesquisa que se propõe provocar revisões críticas, no campo de estudos em Psicologia do Desenvolvimento. Ela acompanha outros estudos e ensaios que trataram do tema, amparados em perspectivas (trans)feministas e queer (Burman, 2017Burman, E. (2017). Descontructing the Developmental Psychology. London & New York: Routledge.; Mattos & Cidade, 2016Mattos, A. R.; Cidade, M. L. R. (2016). Para pensar a cisheteronormatividade na psicologia: lições tomadas do transfeminismo. Revista Periódicus, Salvador, 1(5), 23-31. https://doi.org/10.9771/peri.v1i5.17181
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; Oliveira & Madureira, 2014Oliveira, M. C.; Madureira, A. F. (2014). Gênero e Psicologia do Desenvolvimento: quando a ciência é utilizada como força normatizadora das identidades de gênero. Labrys - Estudos Feministas, 1-44.); todavia, empreendeu-se aqui uma leitura que intersecciona idade, gênero e sexualidade, a partir dos discursos da Psicologia científica, em livros introdutórios em Psicologia do Desenvolvimento de cursos de Psicologia de universidades públicas brasileiras.

Buscamos demonstrar como os discursos sobre gênero, interseccionados com idade, produzidos por uma determinada Psicologia científica, realizam aproximações e distanciamentos de perspectivas feministas que provocaram deslocamentos de perspectivas ontológicas, epistemológicas e metodológicas, nas ciências. Para isso, nos orientamos pelas ferramentas conceituais oferecidas por Michel Foucault acerca da produção do conhecimento, como os conceitos de episteme, biopoder e discurso. Em As palavras e as coisas, Foucault (1987)Foucault, M. (1987). As palavras e as coisas - uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes. reflete sobre o funcionamento das relações entre as ciências e a sociedade, a partir das epistemes, considerando-as um modo de pensar/conhecer de uma época ou contexto, portanto não atinentes à afirmação de uma forma de saber e ao estabelecimento das condições de verdade.

Epistemes referem-se às condições de formação discursivas (enunciados) sobre determinados objetos que concernem a um certo a priori, o qual dá condições para a enunciação de um discurso “verdadeiro”, atravessado por relações de poder. O discurso é um instrumento que estrutura esse imaginário social e contribui para formas de controle já naturalizadas e socialmente aceitas.

Os discursos instrumentalizam o biopoder. Como um conceito-dispositivo formulado por Foucault (1988Foucault, M. (1988). História da sexualidade: a vontade de saber. São Paulo: Martins Fontes.), no biopoder os processos vitais são regulados por processos de intervenção desde uma anátomo-política do corpo e uma biopolítica da população. O primeiro processo trata de empreender dispositivos disciplinares que possam extrair dos corpos em espaços institucionalizados sua força produtiva, seu pleno desenvolvimento de habilidades e competências, para viver em sociedade a partir do controle do tempo e dos espaços vividos. No segundo, Foucault descreve as formas de controle das massas, em que são produzidas ferramentas para a gestão de taxas de natalidade, aumento de longevidade, mortalidade, entre outros aspectos.

As teorias psicológicas sobre gênero, que descrevem processos de mudança ao longo das idades, inscrevem origens, roteiros cujo propósito é construir uma narrativa da verdade sobre a natureza da identidade de gênero e as diferenças entre os sexos. Os processos de subjetivação engenderados pelo biopoder nos discursos de gênero nas teorias psicológicas (evolucionistas, cognitivistas, psicanalítica, aprendizagem social) sustentam, em diferentes graus, binarismos de gênero, dicotomias nas relações natureza e cultura, bem como universalidades sobre a os scripts de gênero. Algumas dessas perspectivas teóricas surgem desde as críticas feministas da visão androcêntrica e sexista em Psicologia.

As relações da Psicologia com os feminismos têm uma história a qual está relacionada a explicações das diferenças entre homens e mulheres, e estas vão desde perspectivas biologizantes à ausência das mulheres e do gênero nos estudos em Psicologia, até às perspectivas interseccionais e pós-modernas (Rutherford, 2012Rutherford, A. (2012). O feminismo precisa da psicologia? Reconstruindo a história de uma relação. In F. T. Portugal; A. M. Jacó-Vilela (Eds.), Clio-Psyché - gênero, psicologia, história (pp. 23-41). Rio de Janeiro: NAU/FAPERJ.; Saavedra & Nogueira, 2006Saavedra, L.; Nogueira, C. (2006). Memórias sobre o feminismo na psicologia: para a construção de memórias futuras. Memorandum, 11,113-127.).

A Psicologia, na sua intencionalidade de se tornar uma ciência, buscou a construção de um corpo teórico e metodológico unificado, alicerçado na tradição experimentalista das ciências modernas. Nessa proposta, acabou por incursionar nos estudos sobre as diferenças entre homens e mulheres, cujos resultados corroboravam perspectivas sexistas e do patriarcado, nas quais se afirmam a superioridade masculina sobre a feminina e a naturalização das explicações dessas diferenças, na esteira do discurso do evolucionismo e da Biologia (Burman, 2017Burman, E. (2017). Descontructing the Developmental Psychology. London & New York: Routledge.; Oliveira & Madureira, 2014Oliveira, M. C.; Madureira, A. F. (2014). Gênero e Psicologia do Desenvolvimento: quando a ciência é utilizada como força normatizadora das identidades de gênero. Labrys - Estudos Feministas, 1-44.).

Saavedra e Nogueira (2006Saavedra, L.; Nogueira, C. (2006). Memórias sobre o feminismo na psicologia: para a construção de memórias futuras. Memorandum, 11,113-127.) afirmam que a preocupação da Psicologia com uma perspectiva de gênero pode ser localizada desde o final do século XIX até os anos de 1930.3 3 O período de referência, desde a leitura da Psicologia estadunidense. A Psicologia se apropriou de referências metodológicas e de explicações da Biologia (fisiológicas e anatômicas), para estabelecer as explicações das diferenças no comportamento entre homens e mulheres. Já a partir dos anos de 1930, o interesse é deslocado dos estudos sobre a cognição e a motricidade para as diferenças de personalidade de homens e mulheres, devido à dificuldade em chegar-se a leituras consistentes dessas diferenças em bases fisiológicas, resultando no desenvolvimento de instrumentos de medida de habilidades e competências vinculadas às diferenças entre os sexos.

Num segundo momento, entre as décadas de 1970 e 1990, a Psicologia se alia ao debate sobre as influências do patriarcado sobre as diferenças entre homens e mulheres, acarretando o desenvolvimento de teorias, metodologias e implicações políticas na pesquisa. Ademais, as feministas se concentraram nos seguintes esforços na pesquisa e produção do conhecimento, que tem implicações na pesquisa em psicologia: a) estabelecer argumentos da crítica da forma de investigação que reforça a igualdade e não a diferença, a qual legitima a desigualdade; b) propor argumentos para justificar as diferenças; c) implementar a valorização das diferenças, com base na crítica à universalidade (Saavedra & Nogueira, 2006Saavedra, L.; Nogueira, C. (2006). Memórias sobre o feminismo na psicologia: para a construção de memórias futuras. Memorandum, 11,113-127.).

Trata-se de um programa feminista empiricista, o qual se alia aos modelos tradicionais de pesquisa, para combater o androcentrismo e o sexismo, de dentro do modelo. Nesse programa, duas abordagens emergem: a essencialista e a da socialização. Na abordagem essencialista, sexo e gênero são equivalentes, uma propriedade estável, inata e bipolar da diferenciação sexual. Desse modo, ela determina a expressão e a qualidade de certos comportamentos humanos, como a cognição, a afetividade e o julgamento moral, por exemplo. Na abordagem socializante, muda-se o foco da Biologia para a socialização, situando-se o gênero como produto das relações sociais do contexto de vida do indivíduo - o gênero é uma característica aprendida e modelada, não sendo de origem inata.

É a partir dos anos de 1980-1990 que os feminismos se aproximam das críticas ao estruturalismo nas ciências e às perspectivas que buscam modelos alternativos de pesquisar (Harding, 1993Harding, S. (1993). A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista. Estudos Feministas, 1, 7-31.). Na Psicologia, a passagem de uma perspectiva das mulheres (essencialista, racionalista, universalista, binária) para uma perspectiva feminista (relativista, crítica, interseccional) atenta às diversas formas de opressão de diferentes mulheres, e não de uma única mulher, leva à revisão, não somente teórica, mas com implicações metodológicas e de intervenção (Rutherford, 2012Rutherford, A. (2012). O feminismo precisa da psicologia? Reconstruindo a história de uma relação. In F. T. Portugal; A. M. Jacó-Vilela (Eds.), Clio-Psyché - gênero, psicologia, história (pp. 23-41). Rio de Janeiro: NAU/FAPERJ.; Saavedra & Nogueira, 2006Saavedra, L.; Nogueira, C. (2006). Memórias sobre o feminismo na psicologia: para a construção de memórias futuras. Memorandum, 11,113-127.).

A influência dessas perspectivas tem alcançado alguns campos específicos da Psicologia. Os estudos de Nuernberg, Tonelli, Medrado e Lyra (2011Nuernberg, A.; Tonelli, M. J.; Medrado, B.; Lyra, J. (2011). Feminism, Psychology, and Gender Studies: The Brazilian Case. In A. Rutherford; R. Capdevila; V. Undurti; I. Palmary (Eds.), Handbook of International Feminisms, International and Cultural Psychology, Social Media(pp.109-127). New York: Springer.) e Jesus e Galinkin (2015Jesus, J. G.; Galinkin, A. L. (2015). Gênero e psicologia social no Brasil: entre silêncio e diálogo. Barbarói, Santa Cruz do Sul, 43, 90-103. https://doi.org/10.17058/barbaroi.v0i0.4482
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) destacam o papel da Psicologia social na apropriação dos feminismos. Esses estudos, juntos, avaliaram a produção científica da Psicologia no Brasil nas últimas três décadas, verificando que a Psicologia Social figura como principal articuladora das ideias feministas, produzindo discussões teóricas e metodológicas.

Adotar a perspectiva da Psicologia Social é posicionar-se política e eticamente diante do que se investiga e analisar os fenômenos de maneira a considerar a complexidade em que são produzidos. Trata-se não de operar com dualismos e determinismos polarizados na explicação, mas de ampliar a visão para a multiplicidade de elementos que compõem o que se quer conhecer (Borges, 2014Borges, L. S. (2014). Feminismos, teoriaqueer e psicologia social crítica: (re)contando histórias. Psicologia e Sociedade. 26(2), 280-289.). As perspectivas queer feministas entram em cena também na necessidade de se produzir outras linguagens, roteiros, métodos e narrativas sobre as experiências dos gêneros e sexualidades dissidentes, levando em conta a crítica à heteronormatividade, à centralidade da cisgeneridade; portanto, ao debater sobre sistema sexo-gênero-desejo (Butler, 2003Butler, J. (2003). Problemas de gênero - feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

Dentre os campos de investigação, a Psicologia do Desenvolvimento é outro que tem se apoiado em leituras feministas, para uma revisão dos modelos de pesquisa, notadamente, quando opera sobre a crítica do gênero, nos processos de investigação e teorização sobre os tempos da vida e nos processos de mudança (Burman, 2017Burman, E. (2017). Descontructing the Developmental Psychology. London & New York: Routledge.; Mattos & Cidade, 2016Mattos, A. R.; Cidade, M. L. R. (2016). Para pensar a cisheteronormatividade na psicologia: lições tomadas do transfeminismo. Revista Periódicus, Salvador, 1(5), 23-31. https://doi.org/10.9771/peri.v1i5.17181
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).

Na Psicologia do Desenvolvimento, pode-se localizar a influência dos feminismos com as preocupações iniciais em descrever as diferenças entre as habilidades e competências psicológicas de homens e mulheres, como demonstrado por Rutherford (2012Rutherford, A. (2012). O feminismo precisa da psicologia? Reconstruindo a história de uma relação. In F. T. Portugal; A. M. Jacó-Vilela (Eds.), Clio-Psyché - gênero, psicologia, história (pp. 23-41). Rio de Janeiro: NAU/FAPERJ.) e Saavedra e Nogueira (2006Saavedra, L.; Nogueira, C. (2006). Memórias sobre o feminismo na psicologia: para a construção de memórias futuras. Memorandum, 11,113-127.). A Psicologia do Desenvolvimento tem e teve um papel fundamental na construção da ciência psicológica (Mota, 2005Mota, M. E. (2005). Psicologia do Desenvolvimento: uma perspectiva histórica. Temas em Psicologia, 13(2), 105-111.; Dessen & Guedea, 2005Dessen, M. A.; Guedea, M. T. D. (2005). A ciência do desenvolvimento humano: ajustando o foco de análise. Paideia, USP-Ribeirão Preto, 15(30), 11-20.). Atuou como dispositivo de práticas e teorias acerca do sujeito e seus processos de mudança. Para esses autores, é unânime a definição de que o estudo do desenvolvimento humano trata de investigar os processos de mudança, ao longo das trajetórias de vida do indivíduo.

Mota (2005Mota, M. E. (2005). Psicologia do Desenvolvimento: uma perspectiva histórica. Temas em Psicologia, 13(2), 105-111.) sugere a emergência da Psicologia do Desenvolvimento em quatro momentos, no contexto europeu e estadunidense. Um momento pode ser denominado formativo, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, quando surge um conjunto de estudos sobre os processos psicobiológicos, a Psicologia da personalidade e o desenvolvimento cognitivo de crianças. Logo após, viria uma fase em que há a institucionalização da Psicologia do desenvolvimento humano, com os estudos de Stanley Hall sobre a adolescência e o envelhecimento.

Depois da Segunda Guerra Mundial, tem-se um novo momento, no qual os estudos se voltam para as preocupações com o desenvolvimento de crianças, focando nas variáveis que criam os desvios de rota (patologias) e aquelas que podem promover o desenvolvimento de maneira saudável. Da segunda metade do século XX até o final da década de 1980, há a ampliação dos estudos, em função de métodos experimentais e longitudinais, com ênfase nas teorias da aprendizagem social, comportamentalista e um retorno dos estudos da Psicologia genética piagetiana. Após esse período, há maior ênfase em aspectos interdisciplinares, ampliando-se as análises a partir da abordagem do ciclo vital - Life Spam Theory - e da Bioecologia do desenvolvimento humano, considerando influências de novos paradigmas na ciência, como a teoria sistêmica.

Essas leituras mais próximas de uma interdisciplinaridade questionam o processo evolutivo como único e sugerem a ideia de trajetórias probabilísticas, baseadas nas relações entre variáveis de influências diversas, sobre as mudanças no curso da vida. Mesmo considerando tais contribuições como mais dinâmicas, as quais incorporam elementos como o acaso e os desvios de rota no curso da vida, o pano de fundo epistêmico ainda trabalha com determinismos e dualismos, em algumas explicações, dadas suas vinculações epistemológicas (Burman 2017Burman, E. (2017). Descontructing the Developmental Psychology. London & New York: Routledge.).

Um dos grupos que se vinculam a uma abordagem crítica ao programa da Psicologia do Desenvolvimento é formado por aqueles que partem do gênero como dispositivo de problematização da ciência do desenvolvimento humano - mais relacionado às preocupações em construir uma Psicologia das diferenças de gênero. Por exemplo, Gilligan (1993Gilligan, C. (1993). Uma voz diferente: psicologia das difernças entre homens e mulheres. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.) o faz, denunciando o viés androcêntrico e sexista, nos estudos da moralidade. Miller (2006Miller, P. H. (2006). Contemporary perspectives from human development: implications for feminist scholarship. Signs: Journal of Women in Culture and Society. The University of Chicago Press, 31(2), 445-469.) preconiza uma imersão dos feminismos sobre os estudos dos processos de mudança nas diferentes idades. Faz uma crítica aos estudos feministas como adultocêntricos, destacando a necessidade de se realizar mais pesquisas sobre outros marcadores etários.

Burman (2017Burman, E. (2017). Descontructing the Developmental Psychology. London & New York: Routledge.), especialmente, nos mostra como as abordagens cientificistas constituem poderosos recursos discursivos na regulação das mulheres e famílias, marginalizando a classe trabalhadora e as minorias étnicas, normalizando as configurações familiares ocidentais, de classe média e mães patologizadoras. Nessa obra, a autora empreende leituras críticas das principais teorias de desenvolvimento humano, trabalhando a construção discursiva sobre a criança, a adolescência e suas características psicológicas baseadas em princípios universais, descontextualizados, que excluem as vozes de crianças e adolescentes, em suas especificidades culturais, étnicas, de gênero, sociais e econômicas.

Trabalhos como o de Castañeda (2002Castañeda, C. (2002). Figurations: child, bodies, worlds. Durham: Duke University Press Books.) aliam-se às proposições de Burman, quando analisaram as produções sobre desenvolvimento: a necessidade de uma perspectiva contextual advinda da experiência concreta das crianças, escapando de uma afirmação genérica, abstrata e universal, pela qual, nas ciências do desenvolvimento tradicional, o final é o modelo do desenvolvimento psicológico da criança branca, euroamericana.

Com base no debate sobre gênero e suas intersecções nos feminismos contemporâneos, buscamos tensionar o campo da Psicologia do Desenvolvimento. Para isso, analisamos alguns discursos sobre gênero, na Psicologia do Desenvolvimento em cursos de formação, a partir de livros introdutórios à área, procurando produzir deslocamentos necessários a abarcar a multiplicidade de expressões de gênero, aliando-se a leituras éticas e políticas sobre os gêneros e marcadores etários.

MÉTODO

Tendo como objetivo identificar e analisar os discursos sobre gênero nos livros introdutórios em Psicologia do Desenvolvimento, procedemos à busca de disciplinas sobre o tema/área Psicologia do Desenvolvimento e seus respectivos planos de ensino. A referida busca foi realizada entre os anos de 2018 e 2019, por meio digital e por contato telefônico, quando necessário para sanar dúvidas e/ou coletar informações, dos cursos de Psicologia (das sedes - câmpus centrais) de universidades públicas em diferentes regiões do Brasil.

Não se pretendeu uma amostra representativa de cada região, mas abarcar o maior número possível, sob as condições de coleta, de universidades públicas de diferentes regiões brasileiras. Assim, acessamos 11 universidades estaduais e 18 universidades federais, totalizando 29 universidades: quatro do Norte; nove do Nordeste; três do Sul; oito do Sudeste; cinco do Centro-Oeste.

Foram destacadas aquelas disciplinas que diretamente ou indiretamente tratam da Psicologia do Desenvolvimento, a qual geralmente é oferecida como parte do Núcleo Comum dos cursos de formação, e/ou disciplinas que tenham os marcadores sociais de idade (adolescência, infância e juventude) como foco. Definimos o termo “Psicologia do Desenvolvimento” como referência para a busca, em razão da maior usuabilidade e tradição, em muitos cursos, e os termos “infância”, “adolescência” e “juventude”, por serem marcadores etários contemplados pelas preocupações da Psicologia, desde seus primórdios (Burman, 2017Burman, E. (2017). Descontructing the Developmental Psychology. London & New York: Routledge.; Motta, 2005).

Selecionados os planos de ensino dessas disciplinas, um por curso, das Universidades, os títulos, ementas e bibliografias foram lidos e nos dedicamos a separar aqueles livros que eram indicados como referência e se caracterizassem como introdutórios. Tais livros se identificam como livros que pretendem introduzir o leitor no estudo da Psicologia e/ou da ciência do desenvolvimento humano, sendo, portanto, obras de referência e que compilam os principais temas e teorias da área. Não selecionamos, portanto, a literatura de teorias e abordagens específicas, mas aqueles livros que se apresentam como organizadores e compiladores do conhecimento produzido pela Psicologia do Desenvolvimento, ao longo do seu tempo.

Para o tratamento do material, utilizamos a pesquisa documental, a qual se caracteriza por adotar métodos, técnicas e outros instrumentos para a análise de documentos. A pesquisa documental apresenta semelhança com a pesquisa bibliográfica, pois ambas fazem levantamentos nas fontes científicas, livros, enciclopédias etc.; entretanto, com a diferença de que a análise documental levanta matérias que ainda não foram editadas ou que ainda não sofreram suficiente tratamento analítico (Sá-Silva, Almeida, & Guindani, 2009Sá-Silva, J. R.; Almeida, C. D.; Guindani, J. F. (2009). Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. 1, 1-15. https://periodicos.furg.br/rbhcs/article/view/10351/pdf
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).

Nessa análise, buscamos evidenciar os enunciados presentes nos livros sobre como o gênero vai se constituindo como um componente do biopoder que engendra os processos de subjetivação na infância e na adolescência. Procurou-se identificar quais os atravessamentos e aproximações, nesses casos, com as críticas feministas, buscando ampliar as perspectivas dos estudos de gênero. A intenção também foi a de descrever como os discursos sobre gênero na infância e adolescência desse material têm seus efeitos em práticas psi e educativas.

Com isso, a partir da leitura dos planos de ensino, optamos por analisar dois dos livros introdutórios mais citados. Apresentamos, adiante, esses livros, sua descrição em termos de forma e conteúdo e, em seguida, os procedimentos de análise do material coletado.

O primeiro deles, citado 26 vezes, é o livro Desenvolvimento Humano, de Diane Papalia, Sally Olds e Ruth Feldman, publicado pela Art Med e McGrawHill, no Brasil. As datas de publicações citadas são de 2000, 2006 (8a edição) e 2010. A edição mais recente é de 2013, que é a 12ª edição, tendo como autoras, dessa vez, apenas Diane Papalia e Ruth Feldman. Optamos por analisar essa última edição, pois a proposta em ter esses livros como referência na formação contempla o acesso aos discentes a esse material mais atualizado. Nessa última edição, as autoras apresentam o livro em diversas seções. Um primeiro bloco expõe os objetivos e metas do livro, articulando-os com a formação em Psicologia estabelecida pela APA (American Psychologcal Association), além da menção a mudanças no conteúdo, em relação às ultimas edições, e o oferecimento de recursos on-line.

Nas demais partes, segue-se o roteiro de apresentar ao leitor o estudo do desenvolvimento, em seus aspectos teóricos e metodológicos (parte 1). Vêm depois as partes em divisão etária: a parte 2 se refere à descrição dos primórdios do desenvolvimento, em seus aspectos físicos, biológicos e psicossociais. Na sequência, vêm os aspectos cognitivos e psicossociais sobre a infância (partes 3 e 4), adolescência (parte 5), vida adulta e jovem (parte 6), vida adulta intermediária (parte 7), vida adulta tardia (parte 8) e o fim da vida (parte 9). Ao final de cada parte, há um conjunto de atividades e proposições de reflexões, com a finalidade de otimizar a aprendizagem de conteúdos e o raciocínio crítico sobre o tema do desenvolvimento humano.

As autoras não mencionam, nas atualizações, o tema gênero (identidade) na infância. Entretanto, enfatizamos que elas incluem uma série de temas relacionados às homossexualidades, em diferentes momentos da vida, notadamente após a fase jovem e adulta até a velhice, os quais tratam da despatologização das homossexualidades, bem como a descrição de como vivem afetiva e socialmente casais homossexuais e os efeitos da parentalidade homossexual sobre a educação e cuidado com os filhos.

O segundo livro mais citado (10 vezes) é o Ciclo Vital, de Helen Bee (1997Bee, H. (1997). O Ciclo Vital. Artes Médicas: Porto Alegre., 1a edição). Não encontramos atualizações dessa obra mais recentemente. Identificamos que, inclusive, está fora de catálogo, na editora. O livro é organizado em 19 capítulos, que obedecem a uma sequência cronológica de idades sobre o desenvolvimento físico, cognitivo, social e da personalidade. Os primeiros dois capítulos são dedicados a apresentar conceitos e métodos básicos em Psicologia do Desenvolvimento, buscando descrever a natureza do objeto dessa ciência. Ele contém seções de aprendizagens e proposições de atividades que alunos e professores podem executar, como proposta de uma pedagogia sobre a disciplina de desenvolvimento humano.

Os outros capítulos seguem a cronologia vida pré-natal e nascimento (capítulo 3), dos 0 aos 6 anos (capítulos 4 a 8), dos 6 a 12 anos (capítulo 10), dos 12 anos até o fim da adolescência (capítulos 11 e 12), da vida adulta (capítulo 113 e 14), da vida adulta intermediária (capítulo 15 a 16), da velhice e vida adulta tardia (capítulo 17 e 18), do ato de morrer (capítulo 19). Bee (1997Bee, H. (1997). O Ciclo Vital. Artes Médicas: Porto Alegre.), logo no início, debate a estratégia em organizar o livro por idade, o que não era comum em seus trabalhos anteriores, repartidos por temas e não idades. A demanda por esse formato pela editora foi colocada a ela como um desafio e, estrategicamente, de modo a não perder o foco da abordagem do Ciclo Vital, ela criou espaços no livro chamados de interlúdios, a fim de articular diferentes idades em relação a um determinado tema.

No decorrer do livro, Bee (1997Bee, H. (1997). O Ciclo Vital. Artes Médicas: Porto Alegre.) dá destaque às questões de gênero e sexualidades, em termos do desenvolvimento da identidade na infância (aquisição de papéis de gênero, influência do gênero/sexo em diferenças intelectuais e sociais), na adolescência e vida adulta, sobre as escolhas e inserções no mundo do trabalho (diferenças e expectativas de papéis, com base no gênero/sexo). Quanto à homossexualidade na adolescência, ela a realça em painel sobre “o mundo real”, em que tenta explicar, na literatura da época (entre os anos 80 e 90 do século XX), as possíveis origens da homossexualidade, concentrando-a na homossexualidade masculina, mas alude também às mães adolescentes.

Infância e adolescência nas tramas dos discursos sobre gêneros

Em ambos os livros, buscamos identificar os discursos da Psicologia científica a respeito de gênero e os possíveis efeitos dessa sobre os processos de subjetivação na infância e adolescência. Para isso, a análise documental do material considera os contextos de produção da obra e como o discurso científico a propósito do desenvolvimento humano se utiliza da categoria gênero como analisador das diferenças.

As duas obras são escritas por mulheres cisgêneras, pesquisadoras norte-americanas com ampla experiência na produção de compilações dirigidas à população de estudantes, acerca do desenvolvimento humano e da Psicologia. As autoras têm formação acadêmica em importantes e reconhecidas instituições e larga experiência na escrita de divulgação da ciência, em diferentes mídias (revistas científicas, revistas de informação, programas de TV e Rádio, internet). Helen Bee e Diane Papalia têm formação e experiência acadêmica em universidades na área da Psicologia e Psicologia do Desenvolvimento. Já Ruth Feldman também tem formação universitária e é escritora dedicada ao tema da infância, adolescência, velhice e parentalidade para o grande público.4 4 São poucas as fontes para se conhecer melhor as autoras. Em alguns sítios de referência, como estes, é possível encontrar algumas informações: https://www.goodreads.com/author/show/276776.Diane_E_Papalia; https://pt.wikipedia.org/wiki/Helen_Bee

Eagly e Rider (2014Eagly, A.; Rider, S. (2014). Feminist and Psychology: critics and methods. American Psychologist, 69(7), 685-702.), ao levantarem as influências das perspectivas feministas no modo de produzir pesquisa e conhecimento em Psicologia, enfatizam o caráter experimental da grande maioria das pesquisas, tanto quantitativas quanto quantitativo-qualitativas, na tradição de pesquisas em Psicologia, nos Estados Unidos da América. Assim, o conjunto das duas obras examinadas privilegia esses estudos, de maneira que os dados produzidos são utilizados como verdades sobre os processos de desenvolvimento humano. Em que pesem as perspectivas relacionais e de ampliação de análises multideterministas e interdisciplinares, as epistemes que sustentam os modos de fazer pesquisa se baseiam em modelos epistemológicos calcados nas relações de causa e efeito entre sistemas ou contextos (afetivos, cognitivos, biológicos e sociais), os quais se articulam, gerando comportamentos, ações e tipos de funcionamento psicológico.

Os contextos e a organização das obras envolvem um conjunto descrito dos processos de desenvolvimento, ao longo da vida (em idades cronologicamente - nascimento, infância, adolescência, adultez, velhice e morte). O modo de narrar esse desenvolvimento e/ou processos de mudança tem predominantemente as referências em pesquisa em Psicologia do Desenvolvimento, cujas formas de pesquisar têm como referências modelos experimentais e analíticos positivistas e pós-positivistas predominantemente da literatura em Psicologia norte-americana (Eagly & Rider, 2014Eagly, A.; Rider, S. (2014). Feminist and Psychology: critics and methods. American Psychologist, 69(7), 685-702.). Apesar de serem apresentadas diferentes perspectivas e abordagens sobre o desenvolvimento humano, logo no início dos textos introdutórios, geralmente, nos primeiros capítulos, as descrições por idade que se seguem nos livros fazem muito mais referências a pesquisas de cunho metodológico-experimental. Exceções acontecem em destaques indicados como seções sobre culturas e realidades que diferem dos aspectos universais enfocados, apontando estudos interculturais, sociológicos e antropológicos os quais expõem dados sobre grupos sociais que têm menos visibilidade.

Uma opção de análise dos enunciados foi partir dos marcadores sociais de idade. Essa escolha se justifica por ser a que se apresenta nos livros, oferecendo-nos a possibilidade de acompanhar o caminho feito pela narrativa sobre as idades, suas continuidades e descontinuidades. Para seguir as análises sobre o modo em que opera a discursividade, quando se emprega a categoria gênero como analisador das diferenças, suas relações com as sexualidades, os modos de socialização e a vida cotidiana, acompanha-nos o conceito de biopoder (Foucault, 1988Foucault, M. (1988). História da sexualidade: a vontade de saber. São Paulo: Martins Fontes.).

Como tema nos livros, o gênero atua como dispositivo do biopoder quando se adere à narrativa de construção identitária, cujos efeitos são o controle dos modos de socialização e de expressão dos corpos, na direção de uma teleologia da socialização do gênero masculino ou feminino. A preocupação é com a aquisição de papéis de gênero pela criança, quando é identificada como sendo de um ou de outro sexo (masculino ou feminino). As brincadeiras, comportamentos e valores são localizados e interpretados mais próximos ou distantes de seu sexo/gênero genital. Não há indícios, nas pesquisas relatadas pelas autoras, de perspectivas de autorreferências (autoidentificação) de gênero, no modo de pesquisa com crianças, especialmente.

O papel de gênero é abordado, nessas obras, de forma determinante a respeito de como os comportamentos femininos e masculinos repercutem no imaginário das instituições familiares e escolares que disciplinam as expressões e corpos de meninas e meninos:

A tendência dos meninos a serem mais ativos e fisicamente agressivos comparados com os estilos de brincadeiras mais sustentadoras e afetuosas são prováveis contribuições para a segregação de gênero. Meninos brincam espontaneamente nas calçadas, nas ruas ou em terrenos vazios; meninas tendem a escolher atividades mais estruturadas e supervisionadas por adultos (…). E isso não parece ser dirigido por influências sociais. Independente do grupo cultural ao qual pertencem, os meninos tendem a participar de brincadeiras mais exploradoras, e as meninas apreciam brincadeiras mais simbólicas e de faz de conta (...). (Papalia & Feldman, 2013Papalia, D. E.; Feldman, R. D. (2013). Desenvolvimento Humano. (12ª ed.). Porto Alegre: AMGH., p. 301).

Papalia e Feldman (2013Papalia, D. E.; Feldman, R. D. (2013). Desenvolvimento Humano. (12ª ed.). Porto Alegre: AMGH.), assim como Bee (1997Bee, H. (1997). O Ciclo Vital. Artes Médicas: Porto Alegre.), efetuam uma descrição das teorias que explicam perspectivas sobre o desenvolvimento do gênero. O conjunto de teorias se resume em: a) abordagem de biológica - baseada nas ideias de que os papéis e comportamentos de gênero têm origem no funcionamento biológico da espécie (hormônios e genética); b) abordagem evolucionista, cujos argumentos recaem sobre os processos de seleção natural que vieram a destacar os tipos de comportamentos para cada sexo; c) abordagem psicanalítica, em que o comportamento e os papéis de gênero constituem uma forma de resolução de conflitos emocionais inconscientes; d) teoria cognitivo-desenvolvimental - um processo baseado em conflitos cognitivos sobre a perspectiva de gênero (sexo); e) teoria do esquema de gênero, quando a criança busca nas referências culturais os esquemas e informações sobre os gêneros e os incorpora, considerando o que é ou não apropriado; f) abordagem da aprendizagem social, na qual a criança observa comportamentos que reforça, em determinados contextos, criando suas combinações comportamentais.

Tais abordagens e teorias criam (e compõem) o debate intenso entre aspectos biológicos e culturais, internos e externos, individuais e sociais sobre a aquisição ou construção de identidade de gênero. O gênero também é uma categoria que fica presa fundamentalmente entre os polos biológico e cultural/social. Seu uso teórico é uma tentativa de explicitar os efeitos de um discurso que ora afirma o determinismo biológico ou cultural, ora tenta articular esses dois lugares, embora ainda de maneira dicotômica e de graus de influências. A ausência do debate sobre perspectivas de gênero, para além do binômio masculino e feminine,5 5 Na abordagem de esquema de gênero, um terceiro elemento é inserido - andrógino, com base nos trabalhos de Bem, S. L. (1974). The measurements of psychological androgyny. Journ al of Counseling a nd Clinical Psychology, 42, 155-162. também é recorrente, fundamentalmente desconsiderando metodologicamente a necessidade de autodeclaração do gênero de participantes, como crianças e adolescentes, destituindo-os desse direito de expressão.

As controvérsias e debates revelam em si que o dipositivo anátomo-político e o biopolítico da população atuam aqui na produção de discursividade sobre a origem do gênero no psiquismo e suas consequências práticas na educação e tratamento (correção) de sujeitos que fogem da “normalidade”, os quais as autoras (de ambos os livros), repetidas vezes, atribuem a uma dada cultura ou ao inato. Seja na afirmação de que as mudanças comportamentais se realizam no ambiente, numa certa pedagogia da distinção entre os sexos que pode garantir a manutenção dos modelos hegemônicos de masculinidade e feminilidade, seja pelo discurso biologizante, passível de seus efeitos eugênicos.

Quanto a isso, Papalia e Feldman (2013Papalia, D. E.; Feldman, R. D. (2013). Desenvolvimento Humano. (12ª ed.). Porto Alegre: AMGH., p. 291) relatam os efeitos nefastos das operações de resignação sexual de crianças que nasceram com a genitália indefinida, nos experimentos e procedimentos de John Money6 6 Money, J. (1988)Gay, Straight, and In-Between: The Sexology of Erotic Orientation. New York: Oxford University Press. , o qual recomendava a resignação de gênero logo ao nascer, provocando sofrimento psíquico e o suícidio dessas pessoas, em outros perídos da vida. Segundo as autoras, esses fatos acenderam o debate sobre o papel efetivo dos componentes inatos da identidade de gênero.

Como nos relembra Foucault, quanto ao dispositivo da sexualidade (1988Foucault, M. (1988). História da sexualidade: a vontade de saber. São Paulo: Martins Fontes.), o discurso sobre a sexualidade se aperfeiçoa ao longo dos séculos e a Scientia Sexualis toma a frente, a partir do final do século XIX, de como devemos nos situar em relação às práticas sexuais e aos modelos de gêneros relacionados. O discurso das trajetórias de gênero moduladas pela cultura, Biologia ou ambas, opera como um modo de manter certos repertórios necessários à manutenção de valores, ideias e normas que regulam os corpos e o espaço social.

Diferentemente dos apontamentos dirigidos para a infância, no período da adolescência é dado um maior enfoque para a sexualidade, as relações amorosas e as relações de amizade e socialização entre os sexos. O modelo heterossexual e cisgênero é o dominante.

O gênero e o tempo das definições também entram na engrenagem da Scientia Sexualis. Na adolescência, tida como uma fase posterior à infância, nas sociedades ocidentais, e descrita nos livros introdutórios como etapa de transição para a vida adulta, as regras para compor os grupos são menos rígidas, há maiores trocas e socializações entre pessoas de sexos diferentes. Entretanto, a ideia do gênero enquanto aspecto que pode estar em processo não tem força:

Crianças com 7 e 8 anos parecem tratar das categorias de gênero como se fossem regras fixas; os adolescentes, no entanto, veem que uma ampla gama de comportamentos ocorre entre os membros de cada grupo sexual (...). De fato, uma minoria significativa de adolescentes e jovens começam a definir a si mesmos com traços femininos ou masculinos. (Bee, 1997Bee, H. (1997). O Ciclo Vital. Artes Médicas: Porto Alegre., p. 351).

Os rituais das relações amorosas e sexuais na adolescência são abordados predominantemente a partir da heteronormatividade. Quando a homossexualidade é mencionada, ainda são predominantes discursos de sua “raridade” em relação à heterossexualidade, tratando-a muitas vezes como minoria factual e excluindo um processo no qual os rituais das relações amorosoas tem o modelo heteronormativo como referência:

Dentre todas as mudanças nas relações sociais na adolescência, a mais profunda é a troca do domínio absoluto dos amigos do mesmo sexo para as relações heterossexuais. Sem dúvida há um elemento de peso em tudo isso. No entanto, encontramos muitas culturas em que o contato heterossexual durante a puberdade ou antes do casamento é bastante controlado e acompanhado; há outras em que não são encontradas restrições de espécie alguma. (...) A experiência heterossexual não é a única que os adolescentes podem ter. É também bastante comum o contato homossexual, em especial no caso de garotos e, muito especialmente, na infância ou início da adolescência.

(...) Seja qual for a causa uma orientação homossexual é, sem dúvida, uma preferência de minorias, com níveis elevados de preconceito e estereótipos, associados a isso a um alto risco de muitos problemas na adolescência. (Bee, 1997Bee, H. (1997). O Ciclo Vital. Artes Médicas: Porto Alegre., p. 365).

Papalia e Feldman (2013Papalia, D. E.; Feldman, R. D. (2013). Desenvolvimento Humano. (12ª ed.). Porto Alegre: AMGH.) trazem outros posicionamentos a propósito dos dados sobre a homossexualidade, ao longo da vida. Em seu livro mais atualizado, incorporam os efeitos das definições e decisões sobre a despatologização das homossexualidades. Os relatos concernem a pesquisas de comparação entre os modos de vida de casais e parcerias homossexuais e heterossexuais (da adolescência à velhice), bem como acerca dos efeitos sobre a saúde psíquica, em uma sociedade preconceituosa e que invisibiliza a homossexualidade.

Além disso, as temáticas atualizadas da obra focalizam a ampliação das leituras sobre gêneros e sexualidades, no âmbito de sociabilidades, vida afetiva e saúde, expressa pela inclusão das homossexualidades como outras possibilidades de existência, atestada e autorizada pela APA, desde a despatologização das homossexualidades, em 1973, chegando a movimentos pelos direitos LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis/transgêneros/transexuais, intersex e outras dissidências e aliados).

Entretanto, vale ressaltar que o fato da despatologização se refere a uma discursividade sobre a verdade oriunda de procedimentos científicos. A necessidade do atestado científico para despatologizar as homossexualidades, como apontado pelas autoras, é forjada na disputa a respeito de quem consegue descobrir a sua origem (e, consequentemente, como tratá-la, corrigi-la). Mesmo com o atestado científico, o embate sobre a origem da homossexualidade ainda se faz no plano moral. A sexualidade como dispositivo não está alheia aos aspectos morais da sociedade, que considera o que é prática aceitável ou não, cuja aprovação não passa somente pelo atestado científico de normalidade. Tem a ver com um conjunto de crenças e valores historicamente enraizados nas práticas sociais, que toma a ciência por vezes a seu favor ou não. Não é estranho que as terapias de conversão ainda têm visibilidade, inclusive na própria Psicologia (Garcia & Mattos, 2019Garcia, M. R. V.; Mattos, A. R. (2019). “Terapias de Conversão”: Histórico da (Des)Patologização das Homossexualidades e Embates Jurídicos Contemporâneos. Psicologia: ciência e profissão, 39(3), 228-550. https://doi.org/10.1590/1982-3703003228550
https://doi.org/10.1590/1982-37030032285...
).

O discurso sobre a homossexualidade como doença ou prática imoral faz parte da lógica da afirmação de uma heterossexualidade saudável e aceitável. A mudança na lógica se opera em frentes que não passam somente pela factibilidade do discurso científico. Seria necessário construir outras lógicas, no contexto social de organização das diferenças, para que a homossexualidade esteja em um outro lugar, deslocado do abjeto e da doença.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que pudemos apresentar aqui foi um recorte, entre muitos outros possíveis, de uma leitura sobre os discursos sobre gêneros, nesses livros introdutórios. Além disso, outras fontes de análise podem ser consultadas, como livros específicos sobre o tema - frise-se que encontramos poucos, mas podem estar presentes em outras disciplinas, ao longo da formação.

Os discursos nos livros introdutórios desvelam os processos empreendidos pelo biopoder sobre o gênero e as instersecções. Tendo em vista as ferramentas do biopoder como sistema-sexo-gênero, presentes em diferentes enunciados nos livros, podemos identificar como se dão os processos de disciplinarização dos corpos/idade e o gerenciamento dos grupos etários.

Assim, os discursos sobre gênero, nos livros introdutórios, considerando os marcadores etários, nos revelam que a infância é definida como um lugar das aprendizagens e aquisição dos repertórios de gêneros hegemônicos e sem protagonismo da sua sexualidade (que deve ser conduzida e controlada). Logo, os efeitos políticos (políticas de atenção, cuidado e educação) do discurso sobre gênero, na infância, demonstram o controle e a disciplinarização dos corpos infantis, como depositantes da manutenção das culturas do patriarcado e da heteronormatividade.

Na adolescência, o discurso acerca de gênero se sobrepõe ao da sexualidade. Embora algumas sexualidades dissidentes (homossexuais) sejam abordadas, o discurso prevalece sobre uma polaridade e/ou comparação dessa sexualidade com a heterossexual. O gênero aparece no rol de repertórios sobre as relações de amizade e amorosas. Definem-se diferenças nos modos de conduzir e vivenciar essas relações, marcadas por uma descrição estereotipada de como meninos e meninas se relacionam.

Em ambos os casos, na infância e na adolescência, gênero é uma categoria analítica das diferenças baseadas na heteroidentificação. Não encontramos, nos textos, a citação de pesquisas, quando se trata do tema gênero como autoidentificado. A transgeneridade é situada, no livro de Papalia e Feldman (2013Papalia, D. E.; Feldman, R. D. (2013). Desenvolvimento Humano. (12ª ed.). Porto Alegre: AMGH.), como sendo algo possível, mas retornando a um discurso médico-biológico da origem do transgênero.

As obras analisadas nesta pesquisa são referências para práticas psi e educativas, e seus enunciados têm efeitos de biopoder e são também efeitos de biopoder. A ciência do desenvolvimento humano, divulgada nos livros, tem o propósito de legitimar as regularidades sobre os processos de mudança, a fim de se empreender ações capazes de manter em regularidade ou otimizar os processos de aquisição de habilidades, competências e comportamentos mais “saudáveis”. Os saberes e conhecimentos produzidos pela Psicologia do Desenvolvimento se pretendem preditivos para se produzir ações preventivas. Trata-se de dados e saberes sobre a população, pelo recorte etário, os quais gerenciam a vida dessas populações em diferentes intituições de atenção e intervenção sociais criadas para elas, tais como escolas, hospitais, prisões, serviços de saúde e projetos sociais.

A presente pesquisa oferece elementos para um debate sobre formação em Psicologia, no que se refere aos estudos de gênero e idades. A formação que trata dos tempos da vida precisa incorporar outras perspectivas teóricas e metodológicas, as quais se aliem às realidades e experiências dos sujeitos concretos, provocando a produção de leituras de alternativas epistemológicas e ontológicas. Nesse sentido, as perspectivas feministas e queer contemporênas podem ser aliadas interessantes, ao deslocar os discursos de neutralidade, dualistas e determinados sobre as relações entre natureza e cultura, sujeito e objeto, para outros lugares que impliquem uma relação ética com as expressões de gêneros e sexualidades.

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  • Saavedra, L.; Nogueira, C. (2006). Memórias sobre o feminismo na psicologia: para a construção de memórias futuras. Memorandum, 11,113-127.
  • 3
    O período de referência, desde a leitura da Psicologia estadunidense.
  • 4
    São poucas as fontes para se conhecer melhor as autoras. Em alguns sítios de referência, como estes, é possível encontrar algumas informações: https://www.goodreads.com/author/show/276776.Diane_E_Papalia; https://pt.wikipedia.org/wiki/Helen_Bee
  • 5
    Na abordagem de esquema de gênero, um terceiro elemento é inserido - andrógino, com base nos trabalhos de Bem, S. L. (1974). The measurements of psychological androgyny. Journ al of Counseling a nd Clinical Psychology, 42, 155-162.
  • 6
    Money, J. (1988)Gay, Straight, and In-Between: The Sexology of Erotic Orientation. New York: Oxford University Press.
  • 1
    Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Assis - SP - Brasil; leonardo.lemos@unesp.br; thaisfialho02@gmail.com; ale.r.botan@gmail.com
  • 2
    Instituto Federal do Paraná - Jacarezinho - PR - Brasil; marcos.nunes@ifpr.edu.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Jul 2020
  • Aceito
    11 Abr 2021
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