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A relação orientadora-orientanda no primeiro encontro com a pesquisa

RESENHA

A relação orientadora-orientanda no primeiro encontro com a pesquisa1 1 Resenha da obra: Diniz, D. (2012). Carta de uma orientadora: o primeiro projeto de pesquisa. Brasília: Letras Livres.

Fabio Scorsolini-Comin

Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP; professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Fabio Scorsolini-Comin Departamento de Psicologia Universidade Federal do Triângulo Mineiro Av. Getúlio Guaritá, 159, Abadia CEP:38.025-440, Uberaba-MG E-mail: scorsolini_usp@yahoo.com.br

Débora Diniz pode ser considerada uma das pesquisadoras que mais têm buscado o diálogo interdisciplinar em suas produções acadêmicas e em seus documentários, a maior parte destes premiados. Antropóloga de formação e docente da Universidade de Brasília (UnB), não se furta a encontros entusiasmados com as artes, a literatura, a Bioética e a Psicologia na investigação sobre os direitos humanos. Em consonância com o livro e com os pressupostos teóricos adotados pela autora, utilizarei também o gênero feminino nesta resenha, desde o seu título. A autora trata da relação entre orientadora e orientanda justamente por ser o meio científico prioritariamente composto por homens e sua linguagem já anunciar uma distinção de gênero, haja vista que a linguagem científica é notadamente masculina; os seus apontamentos podem ser facilmente aplicados a orientadores e orientandos. Atrevo-me aqui a uma primeira pergunta às leitoras desta resenha: você se lembra de como foi o seu primeiro encontro com a sua orientadora?

A leitura da obra começa por um estranhamento: por que, em meio a tantas publicações sobre metodologia científica e métodos de pesquisas, não encontramos estudos que destaquem a relação entre orientadoras e orientandas? Mesmo nos manuais de pesquisa, pouco ou nenhum espaço é conferido ao tema, como se ele simplesmente preexistisse e não precisasse de maiores reflexões. Outras pesquisadoras mais experientes poderiam se questionar: por que não escrevi um livro sobre esse tema? Uma possível resposta, já concluída a leitura do livro, é que não se trata de uma relação de fácil abordagem, de modo que o deslize permite discutir essa questão pelo viés dos relacionamentos humanos no meio acadêmico, frequentemente referidos como complexos e sobre os quais pairam vaidades e egocentrismos. Não que esse percurso não seja possível, mas a proposta do livro é justamente outra. Débora Diniz investe nessa relação para discutir a formação de pesquisadoras, sendo os primeiros encontros com a orientadora uma das fases definidoras desse percurso profissional. Reúne, para tanto, sua experiência acumulada ao longo das mais de 100 monografias orientadas em cursos de graduação e de pós-graduação.

Para tratar do fazer em pesquisa, a autora recorre a metáforas como cozinhar e costurar, compreendendo o texto científico como um tecido, em que nós e encontros podem dar origem a uma infinidade de texturas e possibilidades de utilização. Desse modo, o texto é compreendido como um ponto de partida, um locus para a compreensão dos sentidos e dos significados que se apresentam às pesquisadoras, tal como propõe a perspectiva bakhtiniana (Bakhtin, 1979/1992). O texto de Débora Diniz é tecido com muito cuidado e de modo intencional, a fim de convidar suas orientandas (as já existentes e as vindouras) para conhecerem um pouco sobre o que é ser uma pesquisadora e uma escritora a partir de sua perspectiva de formação.

Sobre esse possível modelo de ser orientadora não nos cabem maiores questionamentos, pois desde o início a autora afirma que se trata de um documento que, embora seja pessoal e de uma perspectiva particular, pode encontrar ressonância em outras tantas pessoas. Isso não nos impede de repensar a nossa própria forma de orientar e de deixar-nos orientar no fazer da pesquisa. Esse convite é feito em formato de uma carta escrita com sinceridade e com rigor, trazendo tanto a paixão que deve orientar a redação de um estudo científico quanto os pressupostos teórico-metodológicos que devem ser seguidos e respeitados. Tal como uma carta de apresentação, o tom da escrita é o de primeiro encontro, quase às cegas, da orientadora, que já experimentou por diversas vezes a posição de ser orientada e também de orientar, e a de sua possível nova orientanda. Digo possível porque a continuidade desse relacionamento é abertamente trazida pela autora durante os primeiros passos da pesquisa, de modo que o chamado contrato de trabalho pode ser revisto ou mesmo desfeito, caso necessário.

O livro (ou a carta) está dividido em capítulos como o primeiro encontro, o encontro com a pesquisa, com o tempo, com o texto, com a escrita. Esses capítulos destacam algumas das dimensões que podem e devem ser consideradas em um contrato entre orientadora e orientanda. Como uma primeira leitura para quem se aventura na escrita científica, a sua indicação não passa apenas pelas pessoas que, obrigatoriamente, devem apresentar um trabalho de conclusão de curso. É um encontro na pesquisa e pela pesquisa que pode contribuir para a formação de pesquisadoras desde os anos iniciais da graduação. A autora informa suas leitoras sobre termos e expressões que fazem parte do universo científico, como Plataforma Lattes, palavras-chaves, normas, tesauro, revisão de literatura, pesquisa etnográfica, políticas de publicação, agências de fomento, avaliação aos pares, entre outras. São tratados temas como a escrita, o rigor, o plágio e, principalmente, a leitura. Sim, a leitura (não apenas de textos científicos) é priorizada como um dos requisitos para quem deseje seguir a carreira de pesquisadora e de escritora. O universo da leitura é priorizado justamente por permitir um contato com diferentes ideias e escritas, ampliando horizontes no fazer da pesquisa.

O livro pode ser considerado muito sincero e claro ao abordar como o relacionamento é construído ao longo do tempo e que pontos a orientadora (no caso, a autora) privilegia no processo de desenvolvimento de um estudo científico. Trata do ritmo da escrita, dos horários, do contrato, dos processos de escolha, das dificuldades e mesmo dos aspectos estéticos da monografia final. Apresenta diferentes possibilidades de organização do trabalho ao longo de sua execução e oferece diversas orientações no sentido de valorizar a escrita, a coleta de dados e a própria relevância da investigação. Aborda a construção do tema, a redação da pergunta e das diversas partes que compõem uma monografia. A carta praticamente acompanha a orientanda em todo o fazer da sua pesquisa, constituindo não um guia fechado (como os manuais de metodologia científica), com exemplos prontos, mas um diálogo permanentemente aberto.

No final do livro a autora apresenta um mapa de visualização de autoras de base para a construção de uma monografia, figura que é desenvolvida por uma de suas orientandas e inspirada no modelo de John Creswell (2010). Além disso, traz um cronograma detalhado para a redação e desenvolvimento de um projeto de conclusão de curso que se inicia pelo contato com a orientadora e com a leitura da carta destinada à futura orientanda. O cronograma é organizado semana a semana em dois semestres, sendo o primeiro destinado à redação do projeto e o segundo ao desenvolvimento e à escrita da monografia. Esse planejamento segue as orientações da maioria das universidades brasileiras.

A obra não trata da iniciação científica, um processo que não se resume a um encontro datado em dois semestres, como ocorre necessariamente em um trabalho de conclusão de curso. A iniciação científica é um processo de desenvolvimento da futura pesquisadora que atrai principalmente pessoas que desejem se formar como pesquisadoras e possivelmente prosseguir na carreira acadêmica com projetos de mestrado e doutorado. Essa relação de orientadora e orientanda pode até ser diferente da observada em um trabalho de conclusão de curso, mas é preciso considerar que o primeiro encontro entre essas chamadas figuras acontece de maneiras muito semelhantes: escolher a orientadora, o tema, a pergunta, o objeto, a literatura a ser investigada, a redação do projeto de pesquisa. É por isso que, mesmo tratando de uma relação com um contrato datado e específico, a obra retoma pontos básicos do relacionamento entre orientadora e orientanda em qualquer nível da formação em pesquisa.

Ao final da leitura do livro, fica a sensação de ouvir o outro lado, de saber como pensam as orientandas, o que elas poderiam destacar dessa relação, ou, em outras palavras, como seria a carta de uma orientanda para sua orientadora, que aspectos ela privilegiaria ou que pontos seriam elencados como fundamentais para o bom andamento do processo de escrita científica. Obviamente, as leitoras acabam assumindo ora o posicionamento da orientadora, concordando ou discordando de seu estilo e de suas orientações, ora o posicionamento da orientanda, suas angústias, perguntas, inexperiências, escolhas e percursos de pesquisadora ainda a serem escritos. O desejo ao final da leitura é justamente escrever uma resposta, tentar responder a algumas das questões apresentadas por Débora Diniz, ou simplesmente tornar públicas outras formas de condução do trabalho acadêmico e outras impressões sobre os encontros da e na pesquisa. Que o convite inaugurado por essa obra possa ser aceito por outras pesquisadoras e orientadoras no sentido de explorar uma das relações que mais contribuem para a construção da identidade profissional e para o fortalecimento da pesquisa científica. A exemplo desta, que outras cartas possam ser escritas.

Recebido em 07/09/2012

Aceito em 15/12/2013

  • Bakhtin, M. (1992). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1979).
  • Creswell, J. W. (2010). Projeto de Pesquisa: Métodos qualitativo, quantitativo e misto. (3a ed.) (M. Lopes, Trad.). Porto Alegre: Artmed.
  • Endereço para correspondência:
    Fabio Scorsolini-Comin
    Departamento de Psicologia
    Universidade Federal do Triângulo Mineiro
    Av. Getúlio Guaritá, 159, Abadia
    CEP:38.025-440, Uberaba-MG
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    Resenha da obra: Diniz, D. (2012).
    Carta de uma orientadora: o primeiro projeto de pesquisa. Brasília: Letras Livres.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jun 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 2013
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