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O sentimento de vergonha em crianças e adolescentes com TDAH

El sentimiento de vergüenza en niños y adolescentes con TDAH

The feeling of the shame in children and adolescents with ADHD

Resumos

O presente estudo teve como objetivo compreender o julgamento do sentimento de vergonha em situações de violação às regras em crianças e adolescentes com diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). As situações de violação às regras envolviam os pais, o professor e os pares. Participaram do estudo 20 crianças e adolescentes de ambos os sexos, com idades entre 11 e 14 anos que cursavam entre o 5º e 8º anos do Ensino Fundamental II de uma escola da rede particular de ensino e de uma instituição destinada ao diagnóstico e tratamento de crianças com queixa escolar. Os participantes foram subdivididos em dois grupos: Grupo 1 (G1) constituído por 10 crianças e adolescentes com diagnóstico de TDAH, apresentação predominantemente combinada, e o Grupo 2 (G2), formado por 10 crianças e adolescentes sem queixas comportamentais. O desenvolvimento moral e a compreensão do sentimento de vergonha foram investigados por meio de histórias hipotéticas. Em relação ao nível de desenvolvimento moral, os resultados apontaram que os participantes dos dois grupos encontram-se na autonomia moral ou em transição entre a heteronomia e autonomia, sem diferença entre eles, o que impossibilita a comparação desses dados e os voltados para a avaliação do sentimento de vergonha. Os resultados obtidos evidenciaram também diferenças entre os grupos no que se refere à compreensão do sentimento de vergonha em situações de violação às regras e também em relação aos envolvidos nas histórias (pais, professor e pares).

Transtorno da falta de atenção com hiperatividade; vergonha; julgamento moral


El presente estudio tuvo como objetivo comprender el juicio del sentimiento de vergüenza en situaciones de violación a las reglas en niños y adolescentes diagnosticados con el Trastorno por Déficit de Atención e Hiperactividad (TDAH). Las situaciones de violación a las reglas involucraban a los padres, profesores y compañeros. Participaron del estudio 20 niños y adolescentes de ambos sexos, con edades entre 11 y 14 años que estaban entre el 5º y el 8º año de la Enseñanza Primaria II de una escuela de la red privada y de una institución destinada al diagnóstico y tratamiento de niños con quejas escolares. Los participantes se dividieron en dos grupos: Grupo 1 (G1) constituido por 10 niños y adolescentes con diagnóstico de TDAH, presentación predominantemente combinada; y el Grupo 2 (G2) con 10 niños y adolescentes sin quejas de comportamiento. El desarrollo moral y la comprensión del sentimiento de vergüenza fueron investigados mediante historias hipotéticas. En cuanto al nivel de desarrollo moral, los resultados indicaron que los participantes de los dos grupos se encuentran en la autonomía moral o en la transición entre la heteronomía y autonomía, sin diferencia entre ellos, imposibilitando la comparación de estos datos y los dirigidos para la evaluación del sentimiento de vergüenza. Los resultados obtenidos también evidenciaron diferencias entre los grupos en lo que se refiere a la comprensión del sentimiento de vergüenza en situaciones de violación a las reglas y también en relación a los involucrados en las historias (padres, profesores y compañeros).

Trastorno por déficit de atención con hiperactividad; vergüenza; juicio moral


The present study aimed to understand the judgment of the sense of shame in situations of violation of the rules in children and adolescents diagnosed with Attention Deficit and Hyperactivity Disorder (ADHD). The players of violation of the rules were parents, teachers and peers. The study included 20 children and adolescents of both sexes, aged between 11 and 14 years old who were enrolled between the 5th and 8th grade of a private middle school and in an institution for the diagnosis and treatment of children with school complaints. Participants were divided into two groups: Group 1 (G1) comprised of 10 children and adolescents diagnosed with ADHD, predominantly combined and Group 2 (G2) with 10 children and adolescents without behavioral complaints. The moral development and the understanding of the sense of shame were investigated by means of hypothetical stories. Regarding the level of moral development, the results indicated that the participants in the two groups are moral autonomy or in transition between heteronomy and autonomy, with no difference between them, which makes it impossible to compare these data and the review focused on the feeling of shame. The results showed differences between the groups in relation to understanding the sense of shame in situations of violation of the rules and also in relation to those involved in the stories (parents, teachers and peers).

Attention deficit disorder with hyperactivity; shame; moral judgment


ARTIGOS

O sentimento de vergonha em crianças e adolescentes com TDAH

The feeling of the shame in children and adolescents with ADHD

El sentimiento de vergüenza en niños y adolescentes con TDAH

Ana Paula Amaral FernandesI; Betânia Alves Veiga Dell'AgliII; Sylvia Maria CiascaIII

IPsicóloga, Pós-Graduação em Neuropsicologia Aplicada à Neurologia Infantil - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Brasil

IIPsicóloga, neuropsicóloga, pós-doutoranda pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, bolsista FAPESP, Brasil

IIIPsicóloga, neuropsicóloga, professora associada III em Neurologia Infantil, coordenadora do Ambulatório de Neuro-Dificuldades de Aprendizagem (DISAPRE), Faculdade de Ciências Médicas dda Universidade Estadual de Campinas, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Ana Paula Amaral Fernandes Av. Ironman Victor Garrido, 475, ap. 25 Bairro Urbanova - São José dos Campos-SP, Brasil CEP 12.244-392 E-mail: ana_amaral2006@hotmail.com

RESUMO

O presente estudo teve como objetivo compreender o julgamento do sentimento de vergonha em situações de violação às regras em crianças e adolescentes com diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). As situações de violação às regras envolviam os pais, o professor e os pares. Participaram do estudo 20 crianças e adolescentes de ambos os sexos, com idades entre 11 e 14 anos que cursavam entre o 5º e 8º anos do Ensino Fundamental II de uma escola da rede particular de ensino e de uma instituição destinada ao diagnóstico e tratamento de crianças com queixa escolar. Os participantes foram subdivididos em dois grupos: Grupo 1 (G1) constituído por 10 crianças e adolescentes com diagnóstico de TDAH, apresentação predominantemente combinada, e o Grupo 2 (G2), formado por 10 crianças e adolescentes sem queixas comportamentais. O desenvolvimento moral e a compreensão do sentimento de vergonha foram investigados por meio de histórias hipotéticas. Em relação ao nível de desenvolvimento moral, os resultados apontaram que os participantes dos dois grupos encontram-se na autonomia moral ou em transição entre a heteronomia e autonomia, sem diferença entre eles, o que impossibilita a comparação desses dados e os voltados para a avaliação do sentimento de vergonha. Os resultados obtidos evidenciaram também diferenças entre os grupos no que se refere à compreensão do sentimento de vergonha em situações de violação às regras e também em relação aos envolvidos nas histórias (pais, professor e pares).

Palavras-chave: Transtorno da falta de atenção com hiperatividade; vergonha; julgamento moral.

ABSTRACT

The present study aimed to understand the judgment of the sense of shame in situations of violation of the rules in children and adolescents diagnosed with Attention Deficit and Hyperactivity Disorder (ADHD). The players of violation of the rules were parents, teachers and peers. The study included 20 children and adolescents of both sexes, aged between 11 and 14 years old who were enrolled between the 5th and 8th grade of a private middle school and in an institution for the diagnosis and treatment of children with school complaints. Participants were divided into two groups: Group 1 (G1) comprised of 10 children and adolescents diagnosed with ADHD, predominantly combined and Group 2 (G2) with 10 children and adolescents without behavioral complaints. The moral development and the understanding of the sense of shame were investigated by means of hypothetical stories. Regarding the level of moral development, the results indicated that the participants in the two groups are moral autonomy or in transition between heteronomy and autonomy, with no difference between them, which makes it impossible to compare these data and the review focused on the feeling of shame. The results showed differences between the groups in relation to understanding the sense of shame in situations of violation of the rules and also in relation to those involved in the stories (parents, teachers and peers).

Keywords: Attention deficit disorder with hyperactivity; shame; moral judgment.

RESUMEN

El presente estudio tuvo como objetivo comprender el juicio del sentimiento de vergüenza en situaciones de violación a las reglas en niños y adolescentes diagnosticados con el Trastorno por Déficit de Atención e Hiperactividad (TDAH). Las situaciones de violación a las reglas involucraban a los padres, profesores y compañeros. Participaron del estudio 20 niños y adolescentes de ambos sexos, con edades entre 11 y 14 años que estaban entre el 5º y el 8º año de la Enseñanza Primaria II de una escuela de la red privada y de una institución destinada al diagnóstico y tratamiento de niños con quejas escolares. Los participantes se dividieron en dos grupos: Grupo 1 (G1) constituido por 10 niños y adolescentes con diagnóstico de TDAH, presentación predominantemente combinada; y el Grupo 2 (G2) con 10 niños y adolescentes sin quejas de comportamiento. El desarrollo moral y la comprensión del sentimiento de vergüenza fueron investigados mediante historias hipotéticas. En cuanto al nivel de desarrollo moral, los resultados indicaron que los participantes de los dos grupos se encuentran en la autonomía moral o en la transición entre la heteronomía y autonomía, sin diferencia entre ellos, imposibilitando la comparación de estos datos y los dirigidos para la evaluación del sentimiento de vergüenza. Los resultados obtenidos también evidenciaron diferencias entre los grupos en lo que se refiere a la comprensión del sentimiento de vergüenza en situaciones de violación a las reglas y también en relación a los involucrados en las historias (padres, profesores y compañeros).

Palabras-clave: Trastorno por déficit de atención con hiperactividad; vergüenza; juicio moral.

Os transtornos neuropsiquiátricos acometem a infância, e o mais frequentemente diagnosticado é o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), cujos sintomas se caracterizam por desatenção persistente e/ou hiperatividade/impulsividade. O índice de incidência gira em torno de 3 a 5% das crianças em idade escolar (Carregal & Moreira, 2011).

O TDAH, segundo os critérios do DSM-5, pode aparecer de três formas: 1- de apresentação predominantemente desatenta; de apresentação predominantemente hiperativa/impulsiva; e 3- de apresentação combinada - em que estão presentes os dois sintomas, desatenção e hiperatividade (Sibley, Waxmonsky, Robb & Pelham, 2013; APA, 2014). Com isso o impacto na vida da criança se diferencia. A apresentação predominantemente desatenta traz maiores prejuízos à aprendizagem, visto que a dificuldade recai sobre a atenção concentrada, função básica para todas as outras funções mentais. Na apresentação predominantemente hiperativa/impulsiva, o indivíduo apresenta maior prejuízo nas interações sociais, devido ao comportamento agitado, impulsivo e à dificuldade em seguir regras. Por fim, na apresentação combinada o prejuízo incide tanto na aprendizagem como nas interações sociais (Costa, Dorneles & Rohde, 2012; Santos & Vasconcelos, 2010).

A queixa mais frequente das crianças e adolescentes da apresentação hiperativa/impulsiva ou combinada é a dificuldade em seguir regras. Este fato pode estar relacionado com disfunções nas funções executivas - FEs (Capovilla, Assef & Cozza, 2007; Gonçalves et al., 2013). As FEs estão associadas à capacidade do sujeito de orientar-se de acordo com objetivos, com a realização de ações independentes, com o planejamento e monitoramento das ações. Disfunções podem provocar déficit no comportamento inibitório, na autorregulação, na capacidade preditiva e antecipatória de consequências (Capovilla et al., 2007; Gonçalves et al., 2013; Graeff & Vaz, 2006).

A moral enquanto um sistema de regras sociais funciona como um regulador da conduta e garante bom convívio entre os indivíduos. Piaget (1932/1994) afirma que a essência da moralidade encontra-se no porquê de o indivíduo respeitar as regras. Para o autor, o respeito às regras está associado ao desenvolvimento da consciência moral, que acontece em duas fases: a da heteronomia e a da autonomia. Na heteronomia há a obediência à regra, mas sem consciência ou reflexão. No início do desenvolvimento infantil a criança se sente obrigada a seguir as regras por estas advirem de pessoas pelas quais ela sente respeito. O seguimento à regra acontece pelo amor à autoridade e pelo medo da punição (respeito unilateral). Na autonomia o indivíduo adquire a consciência moral, ou seja, atua de acordo com as regras, mas faz isso de forma reflexiva e questionadora. A autonomia, consequência da cooperação, pressupõe o respeito mútuo. Esta etapa do desenvolvimento moral significa, sobretudo, ser governado por si próprio (autogoverno), e nela o medo não é o de receber castigo, mas o de decair aos olhos da pessoa a quem se respeita (Piaget, 1932/1994).

Segundo Piaget (1932/1994), o desenvolvimento da moralidade se inicia no respeito absoluto e inquestionável à autoridade e caminha no sentido da autonomia moral, em que o respeito unilateral dirigido à autoridade pouco a pouco é substituído pelo respeito mútuo, que corresponde à regra interiorizada resultante de reflexão. Para Tugendhat (1993), a manutenção de regras e valores morais ocorre não pelo desejo de obter algum ganho ou proveito material, e sim, para preservar a identidade, que implica se situar perante valores e representações de si.

Quando as ações do indivíduo são incoerentes com a identidade ou as representações de si, nasce o sentimento de vergonha moral. A vergonha, como sentimento moral, está ligada à moral autônoma, pois ocorre pela incongruência entre o sistema de valores do indivíduo e sua ação. Assim, não existe a obediência a uma regra exterior, mas o respeito por um valor intrínseco à personalidade do indivíduo. Desta forma a vergonha moral é compreendida como um regulador da conduta (La Taille, 2002, 2004). Além da vergonha moral, La Taille (2002, 2004) aponta a vergonha não moral, ligada à moral heterônoma, e como exemplo cita a vergonha de exposição, quando o indivíduo se sente objeto do juízo alheio.

Diante do exposto, a questão central que norteou a presente pesquisa é: "Como crianças e adolescentes com TDAH julgam o sentimento de vergonha num contexto de violação às regras?". Desta questão geral decorreu outra: "Se o sentimento de vergonha é um regulador da conduta, como ele é compreendido pelas crianças e adolescentes com TDAH?".

O transtorno do déficit de atenção e hiperatividade é alvo de diversas pesquisas, uma vez que se configura como um dos que mais acometem a população infantil. Muitos são os assuntos estudados, entre eles: diagnóstico e avaliações cognitivas, sensoriais e neuropsicológicas no TDAH (Albuquerque, Maia, França, Mattos & Pastura, 2012; Caliman, 2008; Capovilla et al., 2007; Gonçalves et al., 2013; Huang-Pollock, Mikami, Pfiffner & McBurnett, 2009; Larroca & Domingos, 2012); desempenho acadêmico em crianças e adolescentes com TDAH (Burlison & Dwyer, 2013; Costa et al., 2012; Cunha, Silva, Lourencetti, Padula & Capellini, 2013; Seno, 2010); aspectos comportamentais, psicológicos e psicossociais no TDAH (Carregal & Moreira, 2011; Danckaerts et al., 2010; Rangel Júnior & Loos, 2011; Sena & Souza, 2010; Sprouse, Hall, Webster & Bolen, 1998; Wehmeier, Schacht & Barkley, 2010; Zambrano-Sanchez, Martínez-Cortés, Río-Carlos, Dehesa-Moreno & Poblano, 2012); porém não encontramos estudos nacionais e internacionais voltados para a compreensão do desenvolvimento moral em crianças e adolescentes com o transtorno.

Entre diversas outras dificuldades que envolvem as disfunções executivas, crianças e adolescentes com TDAH apresentam dificuldades de relacionamento, principalmente no respeito às regras e, consequentemente, à autoridade que a estabelece, sendo causa de discriminação e isolamento (Carregal & Moreira, 2011; Rangel Júnior & Loos, 2011; Sena & Souza, 2010; Wehmeier et al., 2010).

Com o presente estudo objetivamos analisar o julgamento do sentimento moral de vergonha em crianças e adolescentes com TDAH em situações de violação às regras. Além disso, buscamos relacionar o nível de desenvolvimento moral com o sentimento de vergonha relativo aos pais, professores e pares em crianças e adolescentes com TDAH e sem queixas comportamentais e analisar se há diferenças no tipo de julgamento moral do sentimento de vergonha em ambos os grupos.

MÉTODO

Este estudo é uma pesquisa que utilizou método quantitativo e qualitativo, sendo este último o Método Clínico de Piaget, que consiste em uma técnica especial de fazer falar livremente e em descobrir as tendências espontâneas com o intuito de situá-las dentro de um contexto mental, que no presente estudo foi o julgamento moral de vergonha. Para tanto, o experimentador deve saber observar, permitir que a pessoa fale, sem interromper e sem esgotar o assunto em questão. Ao mesmo tempo em que isso é feito é preciso saber o que se quer buscar, ter a cada instante uma hipótese de trabalho para controlar e checar por meio de argumentações e contra-argumentações (Piaget 1926/1994).

Com o projeto delineado, foi realizado o contato com o responsável pela escola e pela instituição. Com o consentimento para a realização da pesquisa, o projeto foi submetido à aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, que o aprovou mediante o protocolo n° 428.103.

Participaram do estudo 20 escolares de ambos os sexos, com idades entre 11 e 14 anos, que cursavam entre o 5º e 8º anos do Ensino Fundamental II de uma escola da rede particular de ensino e de uma instituição que faz diagnóstico e tratamento de crianças com queixa escolar: dificuldade de aprendizagem e problemas de comportamento. Os participantes foram subdivididos em dois grupos: Grupo 1 (G1), constituído por 10 crianças e adolescentes com diagnóstico de TDAH, apresentação predominantemente combinada; e Grupo 2 (G2), com 10 crianças e adolescentes sem queixa de problemas comportamentais. O grupo G1 foi composto de 80% (n=8) de crianças e adolescentes do sexo masculino e 20% (n=2) do sexo feminino. Desses, apenas 30% (n=3) são estudantes da escola e os outros participantes são da instituição, uma vez que não foi possível encontrar o número estipulado de participantes com diagnóstico. O grupo G2 foi composto por 40% (n=4) de participantes do sexo masculino e 60% (n=6) do sexo feminino. Todas as crianças e adolescentes deste grupo (n=10) são estudantes da escola.

Na escola, os professores de Matemática e Português indicaram os alunos que tinham diagnóstico de TDAH e alunos sem queixas comportamentais. Na instituição, a indicação das crianças e adolescentes com diagnóstico de TDAH foi realizada pelos educadores, que levaram em conta a faixa de idade.

Os pais dos participantes foram convocados para uma entrevista individual com os objetivos de orientar sobre os procedimentos do estudo e solicitar a permissão para que os filhos participassem da pesquisa como voluntários. Com a concordância, os pais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Com a permissão dos participantes e de seus responsáveis deu-se início à coleta de dados que foi realizada na própria escola e na instituição em horários previamente agendados para que não interferisse nas atividades normais. O tempo médio das entrevistas foi de 20 a 30 minutos com cada participante.

Todas as crianças e adolescentes com TDAH (escola e instituição) tiveram o diagnóstico realizado por uma equipe interdisciplinar ou um médico, mas para o presente estudo, solicitamos aos professores que preenchessem o questionário MTA-SNAP-IV (Swanson, Nolan and Pelhman Questionaire, usado no Multimodality Treatment Study), para diferenciarmos os grupos com TDAH e sem queixas comportamentais. O questionário é de domínio público e foi construído a partir dos sintomas do TDAH apresentados no Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais IV (DSM-IV). A versão em português foi validada por Mattos, Serra-Pinheiro, Rohde e Pinto (2006). O instrumento é constituído de vinte e seis itens, os quais devem ser avaliados de acordo com quatro critérios: nem um pouco, só um pouco, bastante e demais. O questionário MTA-SNAP-IV apresenta nove itens para avaliação dos sintomas de desatenção (de 1 a 9), nove de hiperatividade/impulsividade (de 10 a 17), e oito relacionados ao transtorno desafiador opositor (de 18 a 26). A apresentação predominantemente combinada pode ser identificada através da avaliação das respostas obtidas nos itens de 1 a 18 (Mattos et al., 2006). Será utilizado o termo apresentação, e não subtipo em concordância com os critérios atuais propostos pelo DSM-5 (APA, 2014).

Para identificar uma apresentação predominante é necessário somar os pontos obtidos em cada conjunto de sintomas (desatenção, hiperatividade/impulsividade, combinado e transtorno desafiador opositor) e dividir o resultado pelo número de itens daquele conjunto de sintomas. Cada resposta equivale a um número de pontos: "nem um pouco" = 0 (zero), "só um pouco" = 1 (um), "bastante" = 2 (dois) e "demais" = 3 (três).

Escores maiores que 2,56 na subescala de desatenção indicam um número de sintomas maior que o esperado. Na subescala de hiperatividade/impulsividade, escores acima de 1,78 indicam um número de sintomas maior que o esperado para a idade. A apresentação combinada pode ser identificada quando os escores superam 2,00. Escores superiores a 1,38 na subescala do transtorno desafiador opositor indicam a presença de sintomas compatíveis com o transtorno.

O nível de desenvolvimento moral dos participantes foi investigado por meio de duas histórias hipotéticas propostas por Piaget (1932/1994), as quais foram denominadas de histórias de Piaget, para diferenciá-las das elaboradas pelas pesquisadoras. Tais histórias inserem-se na investigação da noção de justiça na criança e foram escolhidas por permitirem situar as crianças e os adolescentes nos diferentes níveis evolutivos propostos pelo autor e por envolverem, de alguma forma, o desrespeito à autoridade. A justificativa para avaliar o nível de desenvolvimento moral é que este permite compreender se as respostas dos dois grupos são compatíveis ou não com o mesmo nível evolutivo. Neste caso, se houver diferenças, estas recairão sobre o julgamento do sentimento de vergonha.

Uma das histórias de Piaget consiste na desobediência do menino à solicitação da mãe para comprar pão. O menino argumenta que aquela atividade o aborrece e na hora do jantar não há pão na mesa. O pai descontente tenta punir o filho da forma mais justa e pensa em três punições: proibir o divertimento; privar o filho de comer o pão, uma vez que resta um pouco no armário, mas não há o suficiente para todos; e fazer ao menino a mesma coisa, ou seja, não haveria punição imediata, mas quando o filho lhe pedisse um favor o pai não o faria, e assim o filho poderia ver quanto é desagradável não prestar favor uns aos outros. O menino aceita, mas dias depois precisa de um favor e o pai lhe lembra o ocorrido e não ajuda o filho. A pergunta feita é: - Qual é a mais justa destas três punições? A outra história utilizada para avaliar o desenvolvimento moral envolvia duas filhas: uma obediente e uma desobediente. A mãe gostava da que era mais obediente e dava-lhe os maiores pedaços de doce. A pergunta feita após a história era: - O que você acha disso?

Para a avaliação do sentimento moral de vergonha, foram construídas três histórias hipotéticas inspiradas em Piaget (1932/1994), as quais foram denominadas situações passíveis de vergonha. Com as histórias visou-se compreender como se dá o sentimento moral de vergonha quanto à violação às regras em situações envolvendo os pais, os professores e os pares. O objetivo foi verificar se existe discrepância no juízo moral envolvendo pessoas que desempenham papéis diferentes no relacionamento com o participante, conforme se segue:

RELAÇÃO COM OS PAIS: Um garoto (uma garota) mora com seus pais e um irmão (uma irmã) dois anos mais novo (nova). Os pais estabeleceram que cada sábado um dos filhos (uma das filhas) ficaria encarregado (a) de limpar o quarto de bagunça, mas toda a semana em que era a vez do garoto (da garota), ele(a) não cumpria a regra e saia para jogar futebol (passear) com os amigos (as amigas). Na primeira vez o pai explicou, dizendo que era importante colaborar com as tarefas de casa para não sobrecarregar ninguém. Na segunda, ficou muito bravo e disse que, se não cumprisse com a tarefa doméstica, não iria mais sair para jogar bola (passear) até que arrumasse o quarto. As conversas não surtiam efeito, e na terceira vez o pai, indignado, acabou perdendo a cabeça e o(a) xingou de preguiçoso(a), irresponsável e egoísta e no final perguntou ao filho (à filha): "Você não se envergonha de nunca ajudar a sua família?". Pergunta: "O que você acha disso? Por quê?"

NA RELAÇÃO COM A PROFESSORA: No início das aulas a professora de Matemática sempre propõe um desafio e solicita aos alunos que realizem esta tarefa individualmente em silêncio. Um aluno nunca cumpre o que é solicitado e, ao invés de fazer a tarefa, perturba os colegas e se envolve com outras atividades. A professora explica-lhe repetidas vezes sobre a importância da realização da tarefa para a sua aprendizagem e a importância do silêncio para a aprendizagem dos colegas. Disse-lhe que não poderia abrir mão desta regra porque o que estava em jogo era o bom estudo de todos. As tentativas de fazê-lo compreender a necessidade das regras não surtiam efeito. Um dia o garoto estava mais agitado e extrapolou na bagunça, desrespeitando mais uma vez a regra. A professora então disse a ele perante toda a classe: "Você não se envergonha de nunca cumprir a regra do bom estudo?". Pergunta: "O que você acha disso? Por quê?".

NA RELAÇÃO COM OS PARES: Uma menina conta à sua amiga um segredo muito importante e pede a ela que não o conte a ninguém, porque a revelação desse segredo poderia prejudicá-la. A amiga, que empenhou a sua palavra, não consegue se segurar, quebra a regra da promessa e conta a outra menina o segredo que lhe fora confiado. A revelação desse segredo provocou muitos problemas para a menina, que foi conversar com a amiga e disse: "Por você não ter cumprido com o nosso combinado você me prejudicou. Você não se envergonha do que fez?". Pergunta: "O que você acha disso? Por quê?".

Aplicamos as três histórias a cinco adolescentes antes da coleta de dados propriamente dita, para verificarmos se eles compreendiam a situação e se as respostas eram compatíveis com os objetivos do estudo. Além disso, este procedimento permitiu à pesquisadora (primeira autora) ter experiência na aplicação tendo em vista a complexidade do método clínico.

Os dados das entrevistas foram analisados qualitativamente. As respostas dos participantes foram gravadas e transcritas na íntegra. As categorias foram predefinidas, quando da definição dos instrumentos. Quanto ao nível de desenvolvimento moral, optamos por utilizar as propostas por Piaget: heteronomia, autonomia e transição; sobre a vergonha definimos vergonha moral e não moral de acordo com a definição de La Taille (2002; 2004). Quando os dados divergiam da definição das categorias predefinidas estas eram citadas e explicadas nos resultados. As respostas foram categorizadas por dois pesquisadores de forma independente e deveria ter 100% de concordância no que se refere à escolha da categoria e à justificativa desta escolha. No caso de discordância, foi solicitado o julgamento de um terceiro pesquisador que conhece o tema.

Os resultados dos dois grupos (G1 e G2) foram apresentados de forma comparativa a fim de permitir a análise das semelhanças e diferenças entre os dois grupos. Além disso, foi feita análise de frequência absoluta (n) e relativa (%) para permitir verificar a existência de alguma tendência em cada grupo que fosse diferenciador entre eles.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Comparação entre os subtipos (ou apresentação) do TDAH nos dois grupos

Pelos critérios propostos pelo MTA-SNAP-IV foi possível verificar a presença ou ausência de sintomas característicos do TDAH. No grupo G1 todos os participantes tiveram escores da apresentação predominantemente combinada, apesar de nem todos apresentarem escore para desatenção e apenas um não ter apresentado critério para hiperatividade/impulsividade. Destes, 40% (n=4) preencheram o critério para comportamento opositor desafiante (tabela 1). Segundo Santos e Vasconcelos (2010), os prejuízos psicossociais são maiores quando da presença deste comportamento. No grupo G2 nenhum dos participantes apresentou escores compatíveis com TDAH.

Os resultados obtidos pelo questionário MTA-SNAP-IV confirmaram o diagnóstico de TDAH realizado anteriormente por especialistas, e os dados serviram de base para a diferenciação dos grupos de crianças e adolescentes com diagnóstico de TDAH e sem queixas comportamentais.

Nível de desenvolvimento moral - histórias de Piaget

Para identificar o nível de desenvolvimento moral usamos três categorias, seguindo a definição de Piaget: heteronomia, transição e autonomia.

O conteúdo da primeira história versou sobre a noção de justiça retributiva, a partir das sanções expiatórias ou por reciprocidade. As sanções expiatórias partem da moral heterônoma e as sanções por reciprocidade indicam uma evolução para a autonomia moral. A segunda história não apresenta nenhuma falta específica, mas coloca em conflito a justiça retributiva e a distributiva. A justiça retributiva, que pressupõe a necessidade de sanção diante da falta, aponta para a heteronomia moral, enquanto a justiça distributiva, que visa à igualdade, é considerada moralmente autônoma (Piaget 1932/1994). As categorias foram assim definidas:

1. Heteronomia: as respostas consideraram a sanção expiatória (não permitir à criança se divertir) como a mais justa. Um exemplo desse tipo de resposta foi apresentado por FER (13 anos, sexo feminino, G2): "A do carrossel... na verdade, eu acho que o pai deveria ter tirado o videogame". No inquérito, os participantes eram levados a avaliar a forma como a mãe punia a filha desobediente. Aqueles que indicaram que a mãe estava correta (dar mais doces para a filha obediente e menos para a filha desobediente) consideraram que a sanção expiatória era a mais adequada. Como exemplo, temos a resposta de PED (13 anos, sexo masculino, G1): "Punição, se ela não faz por onde ela não deve receber doce igual à irmã"; e de KAI (12 anos, sexo masculino, G1): "Se a desobediente melhorar ela vai ganhar o mesmo tanto".

2. Transição: nesta categoria, os participantes oscilavam entre respostas tipicamente heterônomas e aquelas com características autônomas. Ficou evidente essa oscilação na resposta de CAR (12 anos, sexo masculino, G1): "...tem que dar amor pras duas, não dar mais doce pra uma e menos pra outra... claro, a obediente tem que ganhar mais doce, mas a outra vai ficar excluída. A desobediente merece punição... acho que a mãe tá certa..."; e de CAM (12 anos, sexo feminino, G2): "Por um lado eu acho que está certo, por outro eu acho que está errado; porque, não é justo dar só pra uma e não dar para a outra. Por outro lado, a filha desobediente tem que ter uma punição".

3. Autonomia: na primeira história, as sanções por reciprocidade apontam a evolução da heteronomia para a autonomia (não permitir ao filho comer o pão e não lhe prestar um favor). A adolescente NAT (14 anos, sexo feminino, G2) justifica a sua escolha pela sanção por reciprocidade: "Porque ele não ajudou os pais, então ele não deveria ser ajudado". Já na segunda história, os participantes que não concordaram com a mãe apontaram a justiça distributiva, que indica a autonomia moral como a melhor maneira de educar a filha. CAI (12 anos, sexo masculino, G2) afirma que não deve haver desigualdade: "Eu acho que não, porque, mesmo ela sendo desobediente, eu acho que não tem que dar atenção e doce mais para uma do que pra outra, tem que dar pras duas".

Encontramos semelhanças quando comparamos os dois grupos. Em todas as categorias do nível evolutivo do desenvolvimento moral os dados são parecidos. Grande parte dos participantes dos dois grupos encontra-se na categoria "autonomia" (n=4 no G1 e n=5 no G2), seguidos por aqueles que apresentam características do nível de transição moral (n=3 nos dois grupos), e finalmente, por aqueles com respostas heterônomas (n=1 no G1 e n=2 no G2).

A discrepância encontra-se num dado que está fora das categorias levantadas. Tivemos no grupo de crianças e adolescentes com TDAH, participantes (n=2) que apresentaram respostas morais sem argumentação. Objetivamente, essas respostas correspondem àquelas consideradas autônomas, mas quando se solicitou a esses participantes que justificassem sua resposta, estes não o conseguiam e pareciam não querer argumentar. Essa postura é chamada por Piaget (1926/1994) de conduta de não importismo, que se caracteriza por condutas de aborrecimento ou de nenhum esforço, porque a criança responde sem refletir e de qualquer maneira, sem ao menos procurar se divertir ou até mesmo construir um mito.

A falta de envolvimento, a baixa tolerância, a facilidade de se cansar diante das tarefas e a tendência a realizar atividades superficialmente, características apresentadas pelas crianças e adolescentes com TDAH, são frequentemente relatadas por educadores e pesquisadores (Graeff & Vaz, 2006; Seno, 2010). Tal postura pode decorrer dos déficits nas funções executivas que prejudicam a atenção, a autorregulação, a concentração e a capacidade de avaliação crítica (Cunha et al., 2013; Graeff & Vaz, 2006). Aspectos emocionais podem corroborar este quadro. A criança e o adolescente com TDAH geralmente têm uma vida acadêmica de fracassos que acaba por imprimir uma autoimagem e autoestima muito negativas (Carregal & Moreira, 2011; Rangel Júnior & Loos, 2011; Wehmeier et al., 2010). Dessa forma, esta criança ou adolescente teria dificuldades em acreditar em sua capacidade de solucionar problemas e de se desempenhar de maneira satisfatória. A postura de não importismo pode ser uma maneira de se proteger da frustração de tentar se empenhar em uma tarefa e fracassar. Macedo (1996), ao analisar as condutas propostas por Piaget em um contexto de tarefa escolar, enfatiza que essa conduta reflete um investimento afetivo que prioriza o afastamento e uma atitude cognitiva de subutilização do conhecimento disponível. Crianças que apresentam tais condutas desistem diante da menor dificuldade, respondem qualquer coisa e de qualquer forma. Esta é a estratégia mais simples e imediata para ficar livre do conflito. Importante observar que esta conduta foi exclusiva dos participantes com TDAH.

Percebemos por estes dados que existem muitas semelhanças entre os dois grupos, e apenas uma diferença exclusiva do grupo com TDAH; mas quando passamos para a avaliação do sentimento de vergonha as discrepâncias aumentam, fato que talvez tenha ocorrido porque as histórias de Piaget já traziam as opções de respostas, sendo necessário apenas escolhê-las.

Julgamento do sentimento de vergonha - situações passíveis de vergonha

Para a análise das três histórias usamos duas categorias amplas: vergonha não moral e vergonha moral. A vergonha não moral neste contexto está mais ligada à exposição, ao sentimento de ser objeto do juízo alheio e à possibilidade de ser ridicularizado (La Taille, 2004). Quando avaliamos o sentimento de vergonha diante da violação às regras envolvendo os pais, a vergonha não moral apareceu como um sentimento associado à exposição. Podemos perceber isto pela resposta de PED (13 anos, sexo masculino, G1), o qual disse que sentiria vergonha se o pai gritasse com ele: "Se tivesse alguma visita em casa" e de VIN (11 anos, sexo masculino, G2) que também relaciona a vergonha à exposição: "Ficou com vergonha porque com certeza tinha alguém perto, né?".

A vergonha moral, por sua vez, decorre de o indivíduo ter feito algo que ele próprio condena e por isso se envergonha (La Taille, 2002, 2004). Na história envolvendo os pais, podemos observar a vergonha moral na resposta de TAM (12 anos, sexo feminino, G2), que, ao lhe ser perguntado se a personagem sentiu vergonha do pai, responde: "Acho que ela ficou com vergonha do que ela fez". A mesma adolescente, na história envolvendo a professora, aponta a vergonha como reguladora do comportamento, característica típica da vergonha moral: "Porque se ele faz bagunça ele não deve sentir vergonha dela chamar a atenção dele".

Ao compararmos as respostas dos dois grupos, encontramos diferenças em relação às categorias vergonha não moral e vergonha moral, e também em relação às histórias.

Nas histórias envolvendo os pais e os pares, os resultados foram parecidos no grupo dos participantes sem queixas comportamentais. Em ambas as histórias prevaleceu a vergonha moral (n=5 e n=6, pais e pares, respectivamente), apesar da pequena diferença numérica para a vergonha não moral (n=4 e n=3, pais e pares, respectivamente). Fica evidente que o sentimento de vergonha está presente na vida dessas crianças e adolescentes, tanto a vergonha moral como a não moral.

No grupo com TDAH houve diferença entre as respostas quando as histórias envolviam os pais e os pares. Na relação com os pais, o sentimento de vergonha não moral e moral apareceram na resposta de apenas um participante em cada categoria; já na história envolvendo os pares, houve aumento de respostas na categoria vergonha moral (n=2), mas principalmente na vergonha não moral (n=4).

É possível verificar que, para estas crianças e adolescentes, o sentimento de vergonha, tanto não moral quanto moral, é pouco relatado na relação com os pais, mas aparece com maior frequência numa situação envolvendo os pares. Podemos supor que a fase de desenvolvimento em que estão entrando ou já se encontram (adolescência) pode influenciar esses dados, uma vez que é notória a importância do papel dos pares nesse momento da vida. Além disso, é importante ressaltar a dificuldade destas crianças e adolescentes em estabelecer vínculos sociais.

A amizade em crianças com TDAH foi objeto de estudo de Sena e Souza (2010). Em seu estudo as autoras apontam que a amizade tem função protetora contra a vitimização de crianças, independentemente do número de amigos. O amigo, ainda que seja único, pode trazer alívio aos efeitos negativos que foram gerados pelo menosprezo e isolamento dos pares. Para as autoras, dentre todas as dificuldades a serem enfrentadas pelas crianças com TDAH, as que se referem às relações interpessoais com os amigos são as que geram mais angústia. No caso das crianças e adolescentes com TDAH, o relacionamento entre pares é reconhecido como insatisfatório e marcado pela exclusão e rejeição (Wehmeier et al., 2010). Podemos generalizar esta angústia para a adolescência, em que já é conhecida a importância do juízo dos pares e o medo do isolamento.

Fica evidente a importância dos amigos também através dos dados da história envolvendo o professor. Neste caso, não houve diferenças significativas quando comparamos os dois grupos. Tivemos exatamente o mesmo número de participantes (n=8) nos dois grupos apontando a vergonha não moral como sentimento da personagem, como podemos perceber pelas respostas de LUC (14 anos, sexo masculino, G1): Ah, isso aí já aconteceu comigo, isso aí eu acho muito ruim. Quando aconteceu depois todo mundo começou a zoar comigo, isso aí é muito ruim. E também eu acho que ele se sentiu bastante envergonhado, tipo, falar isso na frente da sala inteira...; e de CAM (12 anos, sexo feminino, G2): Vergonha de todo mundo, porque a professora brigando com ele na frente da classe, todo mundo escutando. A vergonha apareceu explicitamente e de forma contundente na maioria dos relatos. Acreditamos que isso ocorreu por um ponto específico da história: a professora chama a atenção do aluno diante de toda a sala. Este ponto foi determinante para que esse número expressivo de participantes indicasse a vergonha não moral, mais especificamente, a vergonha da exposição, como o sentimento experimentado. Estar sob o olhar e juízo dos colegas parece motivo de apreensão e de vergonha pelos participantes. Embora esta análise possa implicar a vergonha moral, por estar relacionada de certa forma à humilhação, as crianças e adolescentes não sentiram vergonha de quebrar a regra do bom estudo, percebendo apenas o olhar alheio, mais especificamente, o dos pares.

Além das categorias apresentadas, observou-se nas respostas uma tendência significativa: boa parte dos participantes do grupo com TDAH não citou a vergonha como um sentimento provável diante dos conflitos envolvendo os pais (n=5) e os pares (n=4). É possível relacionar estes dados à dificuldade de reconhecer e interpretar emoções que acometem crianças e adolescentes com TDAH. Essa dificuldade foi observada nos estudos de Fonseca, Seguier, Santos, Poinso e Deruelle (2009) e Sprouse et al. (1998). No estudo de Fonseca et al. (2009), os autores observaram que crianças com TDAH apresentaram maior dificuldade em reconhecer emoções faciais e interpretar emoções em situações do dia a dia, o que demonstra déficit geral na interpretação emocional. Nas narrativas das crianças e adolescentes, percebeu-se um repertório emocional pobre, em que na maior parte das vezes apenas dois sentimentos foram associados às situações propostas: tristeza e mágoa. Para os participantes, esses eram os sentimentos que acometiam os personagens diante de variadas situações. Muitas vezes notava-se que o sentimento não era exatamente aquele, mas o desejo e ansiedade de se livrar daquela tarefa e a dificuldade de refletir e identificar a emoção da personagem provocavam uma resposta rápida e fácil.

Na história envolvendo a professora e a exposição diante dos pares, outro sentimento moral foi identificado além da vergonha: a humilhação (n=2 no grupo G1 e n=1 no grupo G2). Muitas vezes a vergonha é confundida com a humilhação, assim como na resposta de LUC (14 anos, sexo masculino, G1), o qual respondeu que a personagem ficou com vergonha, mas sua explicação indica humilhação: Parecia que estava dando uma rebaixada na pessoa, sei lá, não sei explicar... desprezando. La Taille (2004) esclarece as semelhanças e diferenças entre vergonha e humilhação. Ambos levam a pessoa a sentir-se inferiorizada, tal como ocorre na vergonha de ser exposto; a diferença reside no fato de que, na vergonha, a pessoa compartilha a imagem negativa que lhe foi imposta, enquanto na humilhação esta imagem não é aceita. No caso de ser aceita, têm-se somados os sentimentos de humilhação e vergonha.

Nos relatos encontramos o sentimento de injustiça associado à humilhação. O participante fazia questão de dizer que a personagem estava sendo vítima de uma injustiça praticada pelo professor. Interessante perceber que os sentimentos de humilhação e injustiça, ligados à ação do outro sobre a personagem, foram mais percebidos que o sentimento de vergonha, que requer autorreflexão e está associado ao relacionamento interpessoal.

Os resultados, no geral, demonstraram sutis diferenças entre os grupos, as quais puderam ser notadas quando nos propusemos a analisar a diferença na qualidade das respostas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo permitiu-nos observar diferenças na compreensão do sentimento de vergonha em crianças e adolescentes sem queixas comportamentais e com TDAH diante de situações de violação das regras. O nível de desenvolvimento moral dos participantes foi semelhante nos dois grupos, o que impossibilitou fazer associações e comparações entre estes dados e aqueles referentes à avaliação do sentimento de vergonha. A maior parte das crianças e adolescentes encontra-se no nível de autonomia moral e em transição entre a heteronomia e a autonomia.

Na avaliação do sentimento de vergonha observamos algumas discrepâncias. No grupo das crianças e adolescentes sem queixas comportamentais, os sentimentos de vergonha moral e não moral foram citados nas três histórias (pais, professor e pares). Dessa forma, pudemos perceber que a vergonha é parte integrante do repertório emocional destas crianças e adolescentes. Em situações de violação das regras, estes demonstram envergonhar-se de não cumprir com o compromisso assumido. Quanto ao grupo de crianças e adolescentes com TDAH, a vergonha apareceu substancialmente apenas nas situações envolvendo os pares. Nestas situações a vergonha moral e a não moral foram citadas pela maior parte dos participantes deste grupo. O sentimento de vergonha não moral aparece com maior frequência do que o de vergonha moral. Ficou evidente a preocupação de ser alvo do juízo alheio, ser ridicularizado e perder a amizade dos colegas, sem considerar as suas próprias ações, que seriam violar a regra moral (vergonha não moral). O medo de ser excluído e isolado permeou todas as histórias, confirmando os dados da literatura (Sena & Souza, 2010).

Apesar de os dados deste estudo demonstrarem diferenças importantes entre as crianças e adolescentes com e sem TDAH em relação ao sentimento moral de vergonha, o tamanho da amostra não permite generalizações. Outra limitação do estudo encontra-se na heterogeneidade dos grupos, formados por crianças e adolescentes de uma escola particular e de uma instituição que faz diagnóstico e tratamento de crianças com queixa escolar, cujos participantes, em sua maioria, eram estudantes de escolas públicas. É preciso refletir melhor sobre se há diferenças no âmbito das questões educacionais ou se as diferenças recaem apenas sobre o transtorno ou ambos.

Como as crianças e adolescentes com TDAH apresentam muitas dificuldades relacionais por causa das características do transtorno, é de suma importância ampliar os estudos sobre a compreensão desse fenômeno psíquico e sua relação com a moralidade, mais especificamente a relação entre a dificuldade de respeitar regras e o sentimento de vergonha moral, uma vez que este seria um regulador de conduta. A falta de pesquisas nessa área dificulta uma ação mais eficaz no desenvolvimento moral dessas crianças e adolescentes, já que a construção da moral autônoma depende da qualidade de relação estabelecida com o meio, quesito muitas vezes prejudicado nesse público.

Compreender a relação entre o sentimento moral de vergonha e o TDAH pode contribuir para o aprimoramento do trabalho com crianças e adolescentes com o transtorno, tanto na orientação de pais e educadores quanto no trabalho clínico. Um trabalho eficaz poderia reduzir os casos de preconceito e isolamento social, além de melhorar relações familiares e sociais. Ampliar o conhecimento sobre as variáveis que influenciam o nível de desenvolvimento moral das crianças e adolescentes com TDAH e sua relação com o sentimento de vergonha moral pode ajudar na construção de estratégias educacionais e sociais.

Recebido em 30/04/2014

Aceito em 30/07/2014

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Out 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      30 Abr 2014
    • Aceito
      30 Jul 2014
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