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Editorial

EDITORIAL

Desde algum tempo a Revista Psicologia em Estudo tem reservado o espaço do Editorial para apresentar questões relativas à produção de conhecimento em Psicologia. Quando recebi o convite para fazer este editorial, tive certa dificuldade de decidir como poderia contribuir para essa discussão, em primeiro lugar, porque não poderia falar de algo que fugisse ao escopo do meu trabalho, uma vez que seria desonesto falar do que desconheço, e em segundo lugar, porque estou consciente de que especificidades de minhas pesquisas dificilmente seriam do interesse de uma gama tão grande e diversa de leitores como a dos que acompanham as publicações de nossa revista. Decidi, então, falar de um assunto que, embora permeie tanto minhas pesquisas quanto minha atuação como professor, parece-me ter um alcance mais amplo: o papel da história na produção de conhecimento em Psicologia.

Comecei a estudar o assunto de maneira mais sistemática quando passei a ministrar a disciplina de História da Psicologia na UEM (atualmente chamada de Epistemologia e História da Psicologia). Todos os anos, mais cedo ou mais tarde, eu ouvia de algum aluno a ingrata pergunta: "Mas para que serve isso?", o que me obrigou a elaborar uma resposta cada vez mais clara e convincente. Além disso, mais ou menos na mesma época descobri um artigo bastante crítico sobre a produção de conhecimento em Psicologia1 1 Machado, A., Lourenço, O., & Silva, F. J. (2000). Facts, concepts, and theories: The shape of Psychology#039;s epistemic triangle. Behavior and Philosophy, 28, 1-40. , o qual me fez suspeitar que professores, pesquisadores e psicólogos poderiam compartilhar da mesma dúvida de meus alunos.

Em sua formação, geralmente o psicólogo tem o primeiro contato com a noção de história no contexto da discussão da pluralidade teórica da Psicologia, quando se avaliam principalmente as dificuldades em se lidar com essa diversidade. Também acredito que a história tem um papel importante no processo de aprender a lidar com a pluralidade do campo psicológico - afinal, ao estudar a história da Psicologia podemos descobrir que muitas teorias da "moda" não são mais do que reedições recortadas, e por vezes confusas, de discussões já encontradas nos pioneiros da Psicologia moderna. Por exemplo, toda a crítica pós-moderna do sujeito-substância, assim como a problemática da identidade decorrente dessa crítica, é praticamente o ponto de partida da Psicologia de William James. Da mesma forma, muitos dos problemas atuais apresentados na Psicologia como decorrentes da "sociedade pós-moderna" - como, por exemplo, o reducionismo materialista -, já vinham sendo violentamente combatidos por Wilhelm Wundt no século XIX.

Na realidade, a noção de história que eu gostaria de discutir não se restringe a isso. Retomando meu ponto de partida, gostaria de refletir sobre o papel da história na produção de conhecimento em Psicologia, o que pode ser convertido na pergunta: "Como a Psicologia entende a história?". Creio que uma resposta precisa demandaria uma pesquisa ampla e rigorosa, por isso o que eu farei aqui será apenas levantar algumas hipóteses, as quais poderão ser corroboradas ou desmentidas por investigações futuras.

Em primeiro lugar, boa parte da produção de conhecimento em Psicologia (e em muitas outras áreas) parece seguir uma inspiração "progressista" de história, na qual o presente constitui sempre um aprimoramento do passado. O resultado parece ser óbvio: se o presente é sempre melhor que o passado, podemos desprezar a tradição, mantendo nosso interesse no presente, ou, no máximo, no futuro, que sem dúvida será melhor ainda. Às vezes até um prazo de validade é dado para o conhecimento presente: cinco anos, que é o tempo em que um artigo científico ainda é contado na pontuação de um curriculum, ou que ainda pode constar na lista de "referências atuais" de outros artigos. Seguindo essa tendência, não raro vemos uma constante "redescoberta da roda": declarações "inovadoras" que já foram feitas há mais de um século.

Por outro lado, existem também na Psicologia aqueles que tentam combater essa visão de história como se fosse um passado morto. Neste caso a lógica progressista é subvertida, mostrando-se que o passado é sempre melhor que o presente. Nessa posição vemos uma inspiração "nostálgica", que resulta em uma defesa incondicional do passado, interditando qualquer possibilidade de aprimoramento do presente. Isso motiva uma questão clara: por que estudar a produção presente, se tudo que se diz hoje já foi dito no passado? Aqueles mais fiéis a essa inspiração acabam sendo aprisionados pelo passado, e o avanço de suas pesquisas torna-se sinônimo da descoberta de fontes cada vez mais antigas que já tratavam de determinado assunto.

Não é muito difícil perceber que essas duas visões compartilham uma mesma noção de história como sucessão linear de fatos. A diferença é que, enquanto os progressistas veem que o futuro é melhor que o passado, os nostálgicos invertem a ordem e buscam no passado o que já foi melhor. Além disso, em ambos os casos a direcionalidade da história só pode ser aceita mediante o desprezo por fatos que a contrariam. A visão dos progressistas só se sustenta se determinadas propostas do passado forem cabalmente ignoradas, permitindo que a produção atual seja vista como completamente original, como os exemplos citados alhures. Já no caso dos nostálgicos, o passado só pode ser melhor se ignorarmos os equívocos cometidos na história, bem como as diferenças culturais subjacentes a diferentes épocas. Como aceitar sem qualquer correção, por exemplo, concepções sobre o funcionamento do cérebro de uma época em que não se conhecia sequer o neurônio? Ou ainda, como falar do papel da interioridade e da introspecção em uma época em que os homens ainda não tinham a preocupação que têm hoje consigo mesmos?

Alguém poderia argumentar que uma alternativa seria buscar no passado um autor como referência para se falar de Psicologia; mas para que essa estratégia funcione - evitando o risco de, em algum momento, terminemos nos fragmentos dos pré-socráticos - todas as influências e afinidades anteriores devem ser "varridas para debaixo do tapete", de modo que a proposta do autor apareça como um oásis no grande deserto do pensamento psicológico que o antecedeu. Evidentemente, essa visão só pode ser defendida de maneira dogmática. Aqui temos, então, uma espécie de mistura das visões anteriores: o presente não precisa ser considerado porque o nosso autor favorito já disse isso de maneira mais clara e completa (o que, geralmente, não resiste a uma análise mais isenta do pensamento desse autor); e o passado só é considerado na medida em que é nele que encontramos nossa referência para falar de Psicologia. Tudo se passa como se nosso autor predileto tivesse escrito uma obra coesa e atemporal, no sentido de que captou com total precisão tudo que tinha a ser dito sobre o assunto, e o fez sem sofrer qualquer influência dos aspectos contingentes de seu tempo. Dessa forma, podemos dizer que essa terceira possibilidade acaba retirando a historicidade da história.

Acho que uma solução para esse impasse está no abandono da concepção linear de história. Em primeiro lugar, história é sinônimo de mudança - logo, quando falamos de produção de conhecimento estamos falando de um fenômeno histórico (exceto, talvez, quando "produção" é sinônimo de "repetição do que nosso autor favorito já falou"). Por outro lado, a noção de mudança não traz necessariamente consigo uma direcionalidade, algo que parece ser compartilhado tanto por progressistas quanto por nostálgicos. Assim, respondendo à questão que coloquei inicialmente, acredito que a história deveria ter um papel fundamental na produção de conhecimentos em Psicologia, o que depende do abandono de uma concepção linear de história. Assim, seríamos capazes de olhar para o passado sem o otimismo cego dos progressistas e sem o pessimismo paralisante dos nostálgicos. O passado em si mesmo não é melhor ou pior que o presente. A história é uma sucessão de transformações que muitas vezes superam o presente, mas em muitas outras criam formas de pensamento menos sofisticadas e claramente equivocadas2 2 Morin, E. (2011). Rumo ao abismo? Ensaios sobre o destino da humanidade. (E. A. Carvalho & M. P. Bosco, Trads.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. (Original publicado em 2007) . Assim, a história não nos dá um destino - ao contrário, deixa o futuro aberto para novas realizações e frustrações.

Aproveitemos, então, os caminhos abertos pelos artigos deste número. Boa leitura!

Carlos Eduardo Lopes

Editor de Seção

e-mail: caedlopes@gmail.com

  • 1
    Machado, A., Lourenço, O., & Silva, F. J. (2000). Facts, concepts, and theories: The shape of Psychology#039;s epistemic triangle. Behavior and Philosophy, 28, 1-40.
  • 2
    Morin, E. (2011). Rumo ao abismo? Ensaios sobre o destino da humanidade. (E. A. Carvalho & M. P. Bosco, Trads.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. (Original publicado em 2007)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Set 2011
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