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Encontros e confrontos entre a vida e o direito

Meetings and confrontations between life and law

Encuentros y enfrentamientos entre la vida y la ley

Resumos

Nosso objetivo é discutir os processos de objetivação, desqualificação e criminalização de uma comunidade tradicional de pescadores situada na orla urbana de Maceió, que trava uma luta contra a prefeitura municipal pelo direito à permanência e por investimentos nesse território. Com base nas pesquisas de Michel Foucault, propomos uma problematização dessas formas de objetivação, subjetivação e governo, analisando práticas e saberes que incidem sobre essa comunidade. Usamos registros produzidos em quatro anos de trabalho com essa comunidade, bem como documentos e materiais midiáticos que abordam o conflito. Discutimos a judicialização da vida em torno de dois aspectos: a) discursos que operam como condições de possibilidade para sustentar a proposta de remoção dessa comunidade de seu território; b) estratégias de resistência que afirmam a especificidade da vida nesse lugar. Trazemos esta situação para o debate sobre a judicialização da vida buscando não apenas problematizar as circunstâncias em que se passa a demandar mais intervenção jurídica no governo da vida, mas também afirmar que o que está em jogo nessa situação não é a mera aplicação e cumprimento da lei, e sim, os modos de vida dessa comunidade que confrontam a lógica de investimento e desenvolvimento urbano da cidade.

Justiça social; discriminação social; problemas sociais


Our aim is to discuss the processes of objectification, disqualification and criminalization of a traditional fishing community, located by the sea on the urban area of Maceió, that is fighting against the municipal government for the right to remain in this territory and for local public investments. Based on Michel Foucault's studies, we propose a problematization of these forms of objectification, subjectification and government, analyzing practices and knowledge that focus on this community. We use records produced in four years of work at this place, as well as documents and media materials that address the conflict. We discuss the judicialization of life, from two aspects: a) discourses that operate as conditions of possibility to sustain the proposal for removing this community of its territory; b) strategies of résistance that affirm the specificity of life in this place. We highlight this situation to the debate on the judicialization of life seeking not only to discuss the circumstances in which we come to require more legal intervention in the governance of life, but also to claim that what is at stake in this situation, is not merely the applying and the compliance with the law, but the ways of life of this community that confront the logic of investment and urban development of the city.

Social justice; social discrimination; social problems


Nuestro objetivo es discutir los procesos de objetivación, descalificación y criminalización de una comunidad tradicional de pescadores ubicada en la orilla del mar de un punto urbano de Maceió, que lucha contra la alcaldía por el derecho a la permanencia y por inversiones en este territorio. Basados en las investigaciones de Michel Foucault, proponemos una problematización de estas formas de objetivación, subjetivación y gobierno, analizando prácticas y saberes que inciden en esa comunidad. Utilizamos registros producidos en cuatro años de trabajo con el referido grupo social, así como documentos y materiales mediáticos que abordan el conflicto. Discutimos la judicialización de la vida alrededor de dos aspectos: a) discursos que operan como condiciones de posibilidad para sostener la propuesta de reubicación de esta comunidad de su territorio; b) estrategias de resistencia que afirman la especificidad de la vida en ese lugar. Presentamos esta situación para el debate sobre la judicialización de la vida intentando no sólo problematizar las circunstancias en que es necesario demandar más intervención jurídica en el gobierno de la vida, sino afirmar que lo que está en juego en esta situación no es la sencilla aplicación y cumplimiento de la ley, y sí los modos de vida de esa comunidad, los cuales confrontan la lógica inversionista y de desarrollo urbano de la ciudad.

Justicia social; discriminación social; problemas sociales


ARTIGOS TEMÁTICOS

Encontros e confrontos entre a vida e o direito1 1 Agradeço à comunidade, em especial ao Presidente da Associação de Moradores e Amigos do Jaraguá, Maria Enaura Alves do Nascimento, por nos permitir participar dessa trajetória de luta; e ao colega Marcos Ribeiro Mesquita, parceiro no trabalho de extensão desenvolvido com a comunidade. Mantenho o texto escrito na terceira pessoa do plural para incluir essas e outras vozes que participaram da produção dos questionamentos aqui expressos.

Meetings and confrontations between life and law

Encuentros y enfrentamientos entre la vida y la ley

Simone Maria Hüning

Docente pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Universidade Federal de Alagoas - Instituto de Psicologia - Campus A. C. Simões. Av. Lourival Melo Mota, S/N, Tabuleiro do Martins, CEP 57072-970, Maceió-AL, Brasil. E-mail: simonehuning@yahoo.com.br

RESUMO

Nosso objetivo é discutir os processos de objetivação, desqualificação e criminalização de uma comunidade tradicional de pescadores situada na orla urbana de Maceió, que trava uma luta contra a prefeitura municipal pelo direito à permanência e por investimentos nesse território. Com base nas pesquisas de Michel Foucault, propomos uma problematização dessas formas de objetivação, subjetivação e governo, analisando práticas e saberes que incidem sobre essa comunidade. Usamos registros produzidos em quatro anos de trabalho com essa comunidade, bem como documentos e materiais midiáticos que abordam o conflito. Discutimos a judicialização da vida em torno de dois aspectos: a) discursos que operam como condições de possibilidade para sustentar a proposta de remoção dessa comunidade de seu território; b) estratégias de resistência que afirmam a especificidade da vida nesse lugar. Trazemos esta situação para o debate sobre a judicialização da vida buscando não apenas problematizar as circunstâncias em que se passa a demandar mais intervenção jurídica no governo da vida, mas também afirmar que o que está em jogo nessa situação não é a mera aplicação e cumprimento da lei, e sim, os modos de vida dessa comunidade que confrontam a lógica de investimento e desenvolvimento urbano da cidade.

Palavras-chave: Justiça social; discriminação social; problemas sociais.

ABSTRACT

Our aim is to discuss the processes of objectification, disqualification and criminalization of a traditional fishing community, located by the sea on the urban area of Maceió, that is fighting against the municipal government for the right to remain in this territory and for local public investments. Based on Michel Foucault's studies, we propose a problematization of these forms of objectification, subjectification and government, analyzing practices and knowledge that focus on this community. We use records produced in four years of work at this place, as well as documents and media materials that address the conflict. We discuss the judicialization of life, from two aspects: a) discourses that operate as conditions of possibility to sustain the proposal for removing this community of its territory; b) strategies of résistance that affirm the specificity of life in this place. We highlight this situation to the debate on the judicialization of life seeking not only to discuss the circumstances in which we come to require more legal intervention in the governance of life, but also to claim that what is at stake in this situation, is not merely the applying and the compliance with the law, but the ways of life of this community that confront the logic of investment and urban development of the city.

Key words: Social justice; social discrimination; social problems.

RESUMEN

Nuestro objetivo es discutir los procesos de objetivación, descalificación y criminalización de una comunidad tradicional de pescadores ubicada en la orilla del mar de un punto urbano de Maceió, que lucha contra la alcaldía por el derecho a la permanencia y por inversiones en este territorio. Basados en las investigaciones de Michel Foucault, proponemos una problematización de estas formas de objetivación, subjetivación y gobierno, analizando prácticas y saberes que inciden en esa comunidad. Utilizamos registros producidos en cuatro años de trabajo con el referido grupo social, así como documentos y materiales mediáticos que abordan el conflicto. Discutimos la judicialización de la vida alrededor de dos aspectos: a) discursos que operan como condiciones de posibilidad para sostener la propuesta de reubicación de esta comunidad de su territorio; b) estrategias de resistencia que afirman la especificidad de la vida en ese lugar. Presentamos esta situación para el debate sobre la judicialización de la vida intentando no sólo problematizar las circunstancias en que es necesario demandar más intervención jurídica en el gobierno de la vida, sino afirmar que lo que está en juego en esta situación no es la sencilla aplicación y cumplimiento de la ley, y sí los modos de vida de esa comunidad, los cuales confrontan la lógica inversionista y de desarrollo urbano de la ciudad.

Palabras-clave: Justicia social; discriminación social; problemas sociales.

Neste trabalho propomos uma reflexão sobre estratégias biopolíticas mobilizadas em um contexto urbano contemporâneo. Inquietados pelo trabalho de Michel Foucault, que colocamos em diálogo com a Psicologia Social, levantamos questões produzidas com outras pessoas com quem compartilhamos campos de vida, luta e produção de conhecimento. Nosso cenário é constituído por uma comunidade tradicional de pescadores localizada na orla urbana de Maceió, onde parte de seus moradores luta com a administração pública municipal pelo direito à permanência nesse território, bem como por investimentos que garantam condições básicas de vida e cidadania no local (equipamentos de saneamento, segurança, saúde, educação, infraestrutura para o desenvolvimento da atividade pesqueira, etc. ).

Esse território, favelizado nas últimas décadas pelo abandono do poder público, é ocupado por pescadores artesanais há pelo menos 60 anos. Com o crescimento urbano da capital e sua entrada nos roteiros dos cruzeiros turísticos, a área, uma localização privilegiada, passou a ser foco de um projeto da prefeitura com o objetivo de embelezar a cidade e construir uma marina, projeto que implica a completa remoção dos moradores/pescadores que tradicionalmente habitam o lugar. Cabe ressaltar que, embora atualmente se fale da instalação de um centro de suporte à atividade pesqueira, negando-se a construção de uma marina, desde o início foi divulgado pela prefeitura um projeto que se referia à construção dessa marina, em conformidade com o que prevê o Plano Diretor do município de Maceió, no artigo 17, sobre as diretrizes do desenvolvimento turístico: "apoio à instalação de um terminal turístico no Porto de Maceió e estabelecimento de parcerias para implantação da Marina de Jaraguá" (Maceió, 2005, p. 16). Em vários momentos o prefeito em exercício na época em que o projeto ganhou maior repercussão pública anunciava que iria “acionar a polícia caso seja [fosse] necessário”, para remover os pescadores e colocar no lugar o “projeto de seus sonhos”, uma marina, para “melhorar o visual da cidade” (Oliveira, 2009, par. 1).

O novo local de moradia proposto pela prefeitura, para onde já foi transferida a maior parte da comunidade, situa-se a aproximadamente três quilômetros do local alvo da disputa:

... perto de uma indústria química, de onde, vez por outra, ocorrem vazamentos de substâncias tóxicas, provocando pânico e a evacuação obrigatória da vizinhança ... é separado da praia por uma avenida com quatro faixas de rolamento e fica em frente a um trecho de mar é aberto. Uma localização que dificulta a prática das diversas modalidades de pesca artesanal.... Em função do perigo iminente de vazamentos de gases venenosos, o mercado imobiliário não demonstra interesse pela região, inviabilizando o desenvolvimento da cidade no sentido orla-sul desde a instalação daquela indústria, em 1979 (Albuquerque, Peixoto & Albuquerque, 2012, p. 13-14).

Nessa disputa o aparelho judiciário foi acionado pela gestão municipal para promover a remoção da totalidade dessa população, com a instauração de um processo contra os moradores que permanecem na área, que passaram a ser nomeados invasores desse território. Esse mesmo aparelho é mobilizado por esses moradores como forma de resistência. Assim, através de dispositivos como leis, o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU), aliados a outras estratégias vinculadas principalmente à cultura, à tradição e à história da comunidade, temos o desenrolar de uma batalha entre, de um lado, um grupo de pessoas ligadas a um território pelo seu trabalho e modos de vida, e do outro, a gestão municipal, que, muito além de questões do direito, fala de formas de governo e regulamentação da vida.

Diante dessas questões, o objetivo deste trabalho é dar visibilidade e discutir os processos de objetivação dessa comunidade que operam como estratégias biopolíticas e perpassam por discursos de desqualificação e criminalização de determinados espaços e das pessoas que o habitam. Para tanto, seguindo as pistas das pesquisas de Michel Foucault, propomos uma problematização dessas formas de objetivação, subjetivação e governo, recorrendo à análise das práticas e saberes que incidem sobre essa comunidade, a partir de registros produzidos nos quatro anos de trabalho de extensão com ela, bem como de documentos e materiais midiáticos que abordam o conflito.

CONTEXTUALIZAÇÃO DO CONFLITO

Participar de reuniões e audiências públicas em instâncias jurídicas e políticas tornou-se tarefa cotidiana para um grupo de moradores da Vila de Pescadores de Jaraguá. Nessa reuniões e audiências, frequentemente homens e mulheres narram a riqueza de seu cotidiano, exibem certidões que registram como seu local de nascimento a praça vizinha à Vila, bem como fotografias de um espaço onde, por décadas, essas pessoas e suas famílias têm se dedicado à pesca e atividades afins. Assim, reivindicam o reconhecimento de sua existência imbricada na relação com um território e uma cultura específicos.

Nessa comunidade, segundo dados do Censo Social e Demográfico da Vila de Pescadores de Jaraguá realizado em 2006 por pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas, à época, 73% das famílias viviam de atividades de pesca e mariscagem e atividades correlatas (LACC/ICS/PROEX/UFAL, 2006). Em 2011 um parecer técnico-antropológico produzido a pedido do Ministério Público Federal reitera a atividade pesqueira como a principal atividade econômica na Vila, formando uma cadeia produtiva que envolve pescadores, marisqueiras, pombeiros e comerciantes (Brasil, 2011).

Na comunidade são fabricados artesanalmente barcos de pesca e desenvolvidas atividades culturais diversas, existindo inclusive, desde 2009, um ponto de cultura (Enseada das Canoas: Yar-á-guá cultural). Apesar dessas características, que comprovam residir aí um importante patrimônio histórico e cultural da cidade, além do abandono a que foi submetida a comunidade nas últimas décadas, mais recentemente esta tornou-se alvo do que Vasconcelos (2005) define como um projeto de turistificação local, reordenamento socioeconômico e exclusão social. Neste sentido, no Bairro do Jaraguá, onde se situa a Vila de Pescadores, foram realizadas obras como a revitalização de prédios, ruas e calçadas, sem nenhum investimento na melhoria das condições de vida desta comunidade. Para o autor, "distante da realidade que cerca o bairro, o projeto de revitalização fez-se isolado da imagem, da realidade social e das potencialidades culturais e históricas do lugar" (Vasconcelos, 2005, p. 56).

Para melhor dimensionar as forças que estão em tensionamento nesse conflito é importante destacar que a Vila está localizada em uma área que é apontada por muitos historiadores como ponto de origem da cidade (Albuquerque et al. , 2012). Essa área situa-se na orla urbana de Maceió, capital de Alagoas, em território da União, ao lado do porto, em um bairro histórico e muito próxima às áreas mais nobres da cidade. "Em Jaraguá, essa tensão é uma constante, afinal existe uma periferia com inúmeras necessidades incrustada no centro histórico revitalizado" (Vasconcelos, 2005, p. 56). Embora não seja "um 'bairro periférico' no espaço físico urbano ... podemos considerar que lá existe uma 'periferia social'" (Vasconcelos, 2005, p. 58), no sentido da deficiência de infraestrutura e equipamentos de serviços.

Atualmente a Vila figura no “Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil” desenvolvido pela Fiocruz (2010), que elenca, entre as situações de risco do local, a alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, a falta de atendimento médico, a piora na qualidade de vida e a falta de saneamento. Ironicamente, ao mesmo tempo em que é vista como palco de injustiça ambiental e de saúde, a comunidade é colocada como ré de uma ação de reintegração de posse movida pela prefeitura municipal em 2012, sendo aí nomeada, a despeito de sua relação histórica como lugar, de “Coletividade invasora da Favela do Jaraguá”. O referido mapa situa ainda uma cronologia do conflito entre os anos 2000 e o mês de fevereiro de 2010 que nos permite acompanhar alguns importantes acontecimentos nesse processo de disputa vivido pela da comunidade:

2000: Cerca de 400 famílias desabrigadas pelas enchentes são alocadas pela Secretaria Municipal de Habitação em área contígua à Comunidade Jaraguá. Segundo alguns analistas, é o início da favelização do local.

2004: União cede área da comunidade de Jaraguá à Prefeitura Municipal de Maceió. Acordo de cessão objetivava a reurbanização da área em até três anos [o projeto então apresentado previa a manutenção das moradias].

2007: Revogado o contrato de cessão da área. Imóvel retorna ao patrimônio da União.

04 de setembro de 2009: Prefeito de Maceió, Cícero Dias, assina ordem de serviço autorizando o início das obras da marina no local da atual comunidade de pescadores do Jaraguá.

...

13 de novembro de 2009: A Superintendência do Patrimônio da União em Alagoas (SPU) transfere para o município de Maceió a guarda provisória da área onde está localizada a Vila dos Pescadores, em Jaraguá.

...

04 de fevereiro de 2010: Ministério Público Federal (MPF) em Alagoas recomenda à Gerência Regional do Patrimônio da União que, antes da cessão, é preciso exigir da prefeitura o cumprimento da lei orgânica do Município de Maceió e da Lei 9. 636/98. O art. 111 da Lei Orgânica do Município de Maceió impõe a necessidade de consulta prévia aos moradores em caso remoção (Fiocruz, 2010, Acesso aos Mapas, Estado Alagoas, Contexto ampliado, par. 29).

A esta cronologia gostaríamos de acrescentar outros elementos. Em março de 2010 foi publicado um edital de processo licitatório visando à execução de um “Trabalho Técnico-Social para o Projeto de Urbanização da Vila dos Pescadores do Bairro de Jaraguá – Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Urbanização Regularização e Integração de Assentamentos Precários” (Prefeitura Municipal de Maceió, 2010), que será objeto de análise nesse trabalho. Em maio de 2012 foi transferida grande parte dos moradores que assinaram acordo com a prefeitura para os apartamentos de um condomínio construído especificamente com a finalidade de realocação dessas pessoas. Não temos condições aqui de fazer uma análise aprofundada das circunstâncias pelas quais as pessoas assinaram o acordo (falta de vinculação de alguns com a comunidade - como no caso das pessoas levadas para lá por ocasião da enchente; expectativa de uma vida melhor nos apartamentos; medo de uma retirada violenta ou de ficarem sem nenhum local de moradia, etc. ); porém gostaríamos de destacar que, em 2010, cerca de 130 famílias participaram de um abaixo-assinado, organizado pela Associação de Moradores e dirigido à Superintendência do Patrimônio da União solicitando a cessão de uso do território para fins de moradia, expressando seu desejo de permanecer na comunidade (em conformidade com a Medida Provisória n. º 2. 220, de 4 de setembro de 2001 (Brasil, 2001). Atualmente, cerca de 60 famílias resistem na luta pela permanência e muitos dos que foram transferidos expressam sua insatisfação e desejo de retornar.

Voltemos a maio de 2012. Nesse ano foi firmado um termo de ajustamento de conduta pela prefeitura diante do MPF, com o compromisso da prefeitura de respeitar a moradia daqueles que não desejassem sair do local. Pouco mais de um mês depois a prefeitura entrou com a mencionada ação de reintegração de posse. Após a remoção de parte das famílias e demolição de suas casas, quase todo o entulho gerado permaneceu no local. Foi suspensa a coleta de lixo e não houve fiscalização para coibir a construção de novos barracos por pessoas estranhas à comunidade, o que evidencia mais uma vez a deliberada produção de um território inóspito e perigoso.

é a partir desses elementos brevemente expostos que nos aproximamos da temática da judicialização da vida, em torno de dois eixos de reflexão e análise que expressam o que chamamos de encontros e confrontos da vida com o direito. Inicialmente, colocaremos em discussão discursos que operam como condições de possibilidade para a proposta de remoção dessa comunidade de seu território tradicional; em seguida abordaremos as estratégias de resistência que insistem em afirmar a especificidade da vida nesse lugar.

DISCURSOS QUE SUSTENTAM A PROPOSTA DE REMOÇÃO

A despeito de ser essa uma comunidade tradicional de pesca artesanal, dos registros que apontam seu valor cultural e histórico e da existência de leis que garantiriam o direito de permanência dessas pessoas nesse território, para sustentar o projeto de remoção dos moradores, os gestores do município ignoram esses aspectos e acionam discursos relativos ao risco, perigo, segurança e ameaça ao desenvolvimento da cidade. Tais discursos incidem tanto sobre o lugar como sobre as pessoas e seus modos de vida, e, além de desqualificarem os moradores, operam na produção de um conflito entre os interesses daqueles que lutam pela permanência nesse território, daqueles que já mudaram para os apartamentos construídos pela prefeitura e do restante da cidade. Nesse sentido, a luta dos que permanecem passa a ser constituída como um entrave não apenas à construção da área de suporte à atividade pesqueira (irônica e paradoxalmente dita viável a partir da retirada dos pescadores desse lugar). A existência dessas pessoas passa a ser caracterizada como elemento gerador de insegurança e violência e impeditivo do desenvolvimento urbano da região.

Na construção de uma suposta inviabilidade de essas pessoas permanecerem nesse território, acionam-se, por um lado, argumentos relativos às condições de insalubridade da área, atribuídos a condições precárias de infraestrutura e saneamento. Nas manifestações da prefeitura sobre a comunidade, frequentemente esta é reduzida a um espaço de acúmulo de lixo. Tais argumentos são esdrúxulos, pois, embora se tente atribuir tais condições de insalubridade aos maus hábitos da população, é evidente sua produção pelo descaso do poder público municipal em oferecer serviços básicos como, por exemplo, a coleta regular do lixo que tanto contribuiu para a favelização dessa área. Por outro lado, além desses discursos que apelam para riscos ambientais, talvez de forma ainda mais incisiva, circunscreve-se um perigo em torno de quem são as pessoas que vivem ali e seus modos de vida. A despeito da afirmação da própria comunidade sobre seus modos de vida e atividades, bem como dos estudos que enfatizam que esta se constitui, em sua grande maioria, por pessoas ligadas à atividade pesqueira, é frequente tais sujeitos serem qualificados como traficantes, prostitutas e assaltantes, atribuindo-se a eles a inviabilidade de desenvolvimento socioeconômico do bairro histórico no qual estão inseridos. Constitui-se assim, um intenso e evidente processo de desqualificação dessas pessoas e de suas formas de vidas, a produção de um lixo humano, que acaba tornando aceitável e até desejável a arbitrariedade das ações que buscam a remoção da totalidade dessa população da referida área.

Embora tais enunciados desqualificadores circulem como veículos midiáticos nas reuniões entre as partes envolvidas promovidas pelas diversas instâncias jurídicas, gostaríamos de destacar um documento publicado pela própria prefeitura de Maceió, no qual se inscrevem esses discursos. Esse documento é um edital para processo licitatório visando à execução do “Trabalho Técnico Social para o Projeto de Urbanização da Vila dos Pescadores do Bairro de Jaraguá”, publicado em 2010 (Prefeitura Municipal de Maceió, 2010), contendo em anexo um termo de referência em que se buscava fornecer informações e orientações às empresas interessadas em apresentar propostas para a execução do referido empreendimento. Esse termo de referência menciona um "diagnóstico socioeconômico" (p. 11) no qual são destacadas as características que colocariam as famílias dessa comunidade em situação de risco social. Tal documento, embora se refira a um projeto de urbanização da Vila de Pescadores e admita ser privilegiada a localização da área e ter ela sido ocupada há cerca de quarenta anos por pescadores (dado que diverge dos relatos de moradores e historiadores), trata rapidamente de caracterizá-la como uma favela, destacando o caráter de invasão ilegal de terrenos, a pobreza e vulnerabilidade da população (Prefeitura Municipal de Maceió, 2010). Assim, define como características relevantes dessa vulnerabilidade:

  • No aspecto de chefe de família - a predominância da mulher como chefe de família, muitas vezes, se torna motivo de desestruturação familiar, pela falta do suporte básico no desenvolvimento dos filhos;

  • No aspecto educacional - das 148 crianças com faixa etária para a educação infantil, apenas 59 encontram-se na escola e ou creche;

  • No universo de 583 pessoas, 309 não concluíram o ensino fundamental, fator que impossibilita a inserção no mercado de trabalho numa sociedade cada vez mais regida pelo conhecimento.

  • No aspecto trabalho - das 450 famílias existentes na VILA [

    sic], 422 recebem apenas até um salário mínimo/mês. Essa renda extremamente baixa é compatível com o nível educacional e a falta de qualificação profissional. A falta desses dois instrumentos básicos para a competitividade no mercado de trabalho decorre para um número bastante significativo de pessoas sem vínculo empregatício como: pescadores, autônomos de ocupações muito simples, proprietários de minúsculos negócios, vendedores ambulantes e biscateiros (Prefeitura Municipal de Maceió, 2010, p. 11).

Podemos encontrar nesse material o mesmo caráter grotesco que Foucault (2001) atribui aos textos psiquiátricos/penais analisados na obra “Os anormais”, no sentido de esse discurso "deter por estatuto efeitos de poder de que sua qualidade intrínseca deveria privá-los" (p. 15), e "a maximização dos efeitos do poder a partir da desqualificação de quem os produz" (p. 15). Afirma o autor:

O poder político, pelo menos em certas sociedades, em todo caso na nossa, pode se atribuir, e efetivamente se atribuiu, a possibilidade de transmitir seus efeitos, e muito mais que isso, de encontrar a origem dos seus efeitos num canto que é manifestamente, explicitamente, voluntariamente desqualificado pelo odioso, pelo infame, pelo ridículo (Foucault, 2001, p. 15).

Esses aspectos grotescos evidenciam-se pelos elementos tidos como fatores de risco e pela implicação direta do próprio poder público na produção dos índices que são usados aí para, simultaneamente, desqualificar e justificar a ação de remoção dessas pessoas. Nesse sentido podemos destacar que, embora esses indicadores sejam usados para caracterizar o risco dessa comunidade, nota-se que essa situação não possui nada de particular em relação ao que se tem produzido no Estado e no município de modo geral. Nos últimos anos Alagoas tem alcançado alguns dos piores índices de desenvolvimento humano e social em pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (Brasil, 2010), indicando, entre outros aspectos, a baixa renda e pauperização da população em associação com elementos de exclusão e violência, sobretudo racial.

Também merece destaque a taxa de analfabetismo da população acima de 15 anos,, que em 2010 chegou a 24,3%. Com base em dados relativos ao ano de 2007 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), do IBGE (Brasil, 2007), Silva, Hüning e Mesquita (2012) registram que 60,42% da população se encontram em situação de pobreza, sendo vissível a desigualdade econômica: "1% da população é considerada rica (cerca de 30 mil pessoas) e detém 28,4% da renda; e a outra [parte] (cerca de 1,5 milhão de pessoas) são pobres e participam de apenas 14% da renda do estado" (Silva et al. , 2012, p. 141), evidenciando que "o Estado não tem garantido de forma efetiva os direitos sociais básicos dessa população" (p. 142).

Desse modo, verifica-se uma "indignidade do poder" (Foucault, 2001, p. 17) e a inevitabilidade do poder, "que pode funcionar com todo seu rigor e na ponta extrema da sua racionalidade violenta, mesmo quando está nas mãos de alguém efetivamente desqualificado" (Foucault, 2001, p. 17). Assim, o mesmo Estado que negligencia não apenas os direitos sociais, mas o próprio direito de existência dessas pessoas, é também responsável por quatro fatores de exclusão, conforme a Prefeitura Municipal de Maceió (2010, p. 11):

- exclusão relativa (grifo no original), que diz respeito a uma condição econômica precária que possibilita apenas uma reprodução biológica extremamente débil, nisto residindo a questão central da não autonomia, pois a população sempre vai depender da Assistência Social e das “benesses do poder político”;

- exclusão da possibilidade(grifo no original) - decorrente do fato de, por ser uma vila em condições precárias, encontrar-se segregada do convívio maior da Cidade;

- exclusão da representação(grifo no original), pois seus interesses e necessidades não são relevantes para a intervenção estatal, haja vista que desde 1985 os planejamentos se reeditam e não saem do papel;

- exclusão integrativa(grifo no original), que se refere à precária inserção no mercado de trabalho, decorrente da lógica de acumulação neoliberal, que se baseia numa cultura elitista e provedora da desigualdade social.

E conclui:

Dessa forma, esta população não tem autonomia (significa não ter acesso a um mínimo de sobrevivência e não usufruir de segurança pessoal); não tem desenvolvimento humano (não possui a possibilidade de, enquanto cidadão, desenvolver o seu potencial de capacidade humana); e não tem qualidade de vida (significa não dispor da possibilidade de usufruir da riqueza social e tecnológica produzida na sociedade)(Prefeitura Municipal de Maceió, 2010, p. 11; todos os itálicos são destaques nossos).

Recorremos à extensa referência ao texto do documento em questão para dar visibilidade à visão dos discursos oficiais dessa população como um inimigo interno da cidade, em que o racismo de Estado serve de suporte para determinadas estratégias de controle biopolítico constituídas nesse espaço urbano (Foucault, 1999). Segundo o pensamento de Foucault, o aparecimento de uma biopolítica da espécie humana no final do século XVIII e início do século XIX, com formas de regulamentação da vida cada vez mais voltadas a "intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no 'como' da vida" (p. 295) coloca questões sobre como exercer o direito de matar e a função do assassínio. "Como, nessas condições, é possível, para um poder político, matar, reclamar a morte, pedir a morte, mandar matar, dar a ordem de matar, expor à morte não só seus inimigos mas mesmo seus próprios cidadãos?" (Foucault, 1999, p. 304).

A esse questionamento Foucault responde que se dá pela intervenção de um racismo que permite a separação entre aqueles que devem viver e os que devem morrer, classificando, distinguindo, hierarquizando, qualificando como bons ou maus grupos no interior de uma mesma população. Mais do que isso, matar o outro considerado inferior significa "deixar a vida em geral mais sadia, mais sadia e mais pura. " (Foucault, 1999, p. 304). Para o autor, "a raça, o racismo, é a condição da aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização" (p. 306). Explica o autor:

é claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc. (Foucault, 1999, p. 306).

Retomemos então o texto do documento que colocamos em análise (Prefeitura Municipal de Maceió, 2010), materialidade desse biopoder que constitui grupos como inferiores e expõe uma guerra do Estado contra seus próprios cidadãos e entre estes, para destacar a caracterização das pessoas e seus modos de vida em um item denominado “Expressões identificadas”. Sobre essas expressões se propõe a intervenção/solução da municipalidade sintetizada pela proposta de expulsão dessas pessoas do local onde habitam e sua realocação em apartamentos em outra área. Por tratar-se de uma lista extensa de características, mencionaremos apenas algumas das utilizadas: comunidade parcialmente organizada, com traços de apatia, passividade e isolamento; relacionamento interpessoal agressivo e violento; frágeis vínculos familiares/desestruturação familiar; desconfiança; individualismo; moradias precárias; falta de arborização; falta de saneamento; uso de bebidas, de drogas; comportamentos agressivos; isolamento social; predominância do trabalho informal; predominância de mulheres como chefes de família; insuficiente escolaridade dos chefes de família; falta de transporte escolar; diminuição da atividade de pesca enquanto profissão/ocupação, principalmente para a nova geração da comunidade (jovens/filhos de pescadores); etc.

Muitos desses aspectos, se não fossem tão violentos nos modos como objetivam essas pessoas em um discurso do Estado, fariam rir diante da discrepância do que afirma quem lá vive e do que se pode acompanhar em seu cotidiano. O modo como são caracterizadas as relações familiares, de renda e trabalho, a convivência comunitária e a organização política (consolidada em uma associação de moradores atuante), se não podem ser enquadrados em uma moral hegemônica, tampouco podem, sem que se cometa um assassínio dessas formas legítimas de vida, reduzir-se a tais expressões. Soma-se a isso o fato de se atribuírem à comunidade fatores claramente relacionados à competência do Estado (políticas públicas de educação, segurança, saúde, infraestrutura), que são nesse espaço, particularizados como discrepantes de uma realidade local supostamente ideal. Note-se que, segundo o IBGE (Brasil, 2010), apenas 26,2% dos domicílios particulares do Estado contam com saneamento considerado adequado; a taxa de analfabetismo da população acima de 15 anos, em 2010, chegou a 24,3%; a PNDA, com dados relativos ao ano de 2009 no Estado de Alagoas, indica que apenas 48% das pessoas acima de 10 anos sentiam-se seguras em relação à cidade em que residiam (Brasil, 2009). Por sua vez, o Mapa da Violência 2012 aponta Alagoas como o estado com a maior taxa de homicídios no Brasil em 2010, sendo Maceió a capital com a maior taxa de homicídios nesse mesmo período (Waiselfisz, 2011). Esses discursos oficiais nos permitem evidenciar o racismo da objetivação dessa comunidade, quando sua caracterização é feita como se os problemas a ela atribuídos se constituíssem como uma exceção no cenário local.

Assim, entendemos que, fundamentalmente, teríamos que perguntar: qual a especificidade das intervenções propostas (entre elas a formação de comissões, oficinas, palestras, etc. ) para solucionar os problemas elencados, que justifique que só possam ocorrer pela remoção dessa comunidade para outro espaço? Ou, como a retirada dessa comunidade de seu território poderia contribuir no enfrentamento dos muitos problemas identificados, como a organização, a apatia, a passividade, a agressividade, a violência, a desestruturação familiar, a desconfiança, o individualismo... ?

Finalmente, gostaríamos de destacar aquilo que é apresentado nesse documento como sendo os efeitos esperados da intervenção proposta:

EFEITO ECONÔMICO – diz respeito à melhoria econômica da comunidade, no tocante a renda, inserção no mercado de trabalho, qualificação profissional e capacidade de autossustentabilidade.

EFEITO POLíTICO – significa alteração da organização coletiva, mobilização, adquirindo a capacidade de lutar pelos direitos de cidadania emancipada, como também a capacidade de trabalhar em REDE SOCIAL.

EFEITO IDEOLóGICO - refere-se ao campo da elevação da consciência na direção da criatividade, havendo um desvendamento da realidade (Prefeitura Municipal de Maceió, 2010, p. 15; todos os itálicos são destaques nossos).

Produz-se aí uma verdade do Estado sobre a forma como são concebidas as pessoas e seus modos de vida nessa comunidade, promovendo a inferiorização biológica e social por processos que, de certo modo, legitimam e justificam a imposição da violência. São fundamentais aqui as noções de risco e perigo a partir das quais se podem acionar discursos e práticas em nome de uma segurança para a cidade e até mesmo para as próprias pessoas que aí residem (Foucault, 2008a). Racismo e criminalização das condutas e dos hábitos tornam possível que o Estado sustente tais práticas e discursos sobre seus cidadãos, acenando com proposições higienistas no governo contemporâneo da cidade.

PRÁTICAS DE RESISTÊNCIA E PERCURSOS PELO DIREITO E PELA VIDA

A desqualificação política e social dessas pessoas, nesse e em outros documentos produzidos pelo poder público municipal, assim como declarações concedidas e veiculadas pela mídia local, ignora a potente rede que se articula em um movimento de resistência, e é aí caracterizada como apática e passiva. Mesmo diante das diversas formas de violência impostas a esta comunidade com o intuito de, com sua remoção, efetivar um projeto de embelezamento e limpeza da orla urbana da cidade, parte de seus moradores tem conseguido não apenas resistir à expulsão de seu território, mas reafirmar seu modo de vida particular, tanto por via jurídica quanto pelo que chamaremos aqui de estratégias de expressão e produção da vida.

No que concerne ao campo jurídico, desde o início do conflito o MPF tem acompanhado a situação da comunidade em âmbito extrajudicial, garantindo que não haja a remoção forçada, em conformidade com o que prevê a Lei Orgânica do Município de Maceió (Maceió, 2003). Em 2009, com o aumento da pressão da prefeitura pela retirada das famílias, a Associação de Moradores e Amigos do Jaraguá (AMAJAR) procurou a Defensoria Pública da União (DPU) para uma representação da comunidade; no entanto, nesse primeiro momento as ações da DPU ocorreram no sentido de orientação da comunidade, em conformidade com o que vinha sendo feito pelo MPF. Até então, o que se tinha eram reuniões entre a comunidade, MPF, Superintendência do Patrimônio da União (SPU) e representantes da prefeitura municipal. O conflito tomou uma forma propriamente jurídica em 2012, com a alegação de invasão e a ação de reintegração de posse movida pela prefeitura.

Assim, temos uma situação de conflito que se configurou principalmente a partir dos anos 2000 e se exacerbou em 2009, sendo levada à instância jurídica em 2012 pela prefeitura sob a acusação de invasão do território pela comunidade. A busca da garantia de direitos no âmbito jurídico segue como uma defesa contra essa acusação. Assim, um longo processo histórico de criminalização converte-se numa ação jurídica que busca incriminar as pessoas que aí residem para viabilizar o projeto político dos gestores municipais. A acusação de invasão é apenas uma das formas de tentar inscrever essa comunidade como criminosa, em um processo que se baseia, sobretudo, em acusações morais sobre a conduta dessas pessoas, que passam a ser definidas como uma coletividade invasora, constituída por criminosos, ainda que potenciais.

Por sua vez, na defesa da comunidade, a DPU aciona dispositivos jurídicos que garantem a proteção às comunidades tradicionais, como o “Decreto n. º 5. 051, de 19 de abril de 2004, que Promulga a Convenção n. º 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais” (Brasil, 2004). Do ponto de vista legal, de acordo com a própria DPU, trata-se do reconhecimento e da garantia de direitos a partir de tratados sobre direitos humanos fundamentais que têm caráter de norma supralegal. Assim, não seria o caso de permitir a ocupação desses locais tradicionais pelos povos protegidos pela convenção, mas de reconhecer os direitos de tais comunidades. Por fim, ainda que se colocasse em questão o reconhecimento da condição de comunidade tradicional, a DPU recorre à “Medida Provisória nº 2. 220, de 4 de setembro de 2001” (Brasil, 2001), que dispõe sobre a concessão de uso especial:

Art. 1º. Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural (Brasil, 2001, Capítulo I - da Concessão de Uso Especial, para. 1)

No momento da produção deste texto a disputa jurídica está em andamento e os argumentos utilizados pela autora reiteram os aspectos de um racismo de Estado que ignora os dispositivos jurídicos capazes de protegeri o direito de permanência dessa comunidade. Por outro lado,, embora a judicialização do conflito seja atualmente uma das principais batalhas impostas a esta comunidade na luta pelos seus direitos, as estratégias de luta mobilizadas por esta, assim como sua própria vida, escapam dessa captura. Produzem-se aí outras formas de resistência que, rompendo com a lógica da garantia de direitos e enfrentando os discursos de criminalização, organizam-se em torno de ações e relações que afirmam a singularidade da vida nesse lugar.

A autoafirmação de uma cultura própria tem perpassado as ações de resistência, pelo desenvolvimento de atividades de arte e cultura diversas, como exposições de fotografia e pintura produzidas através das atividades do Ponto de Cultura, a constituição de grupos de música e dança, a produção de um dossiê sobre o patrimônio imaterial da comunidade, a organização de um museu de periferia e a participação e exercício de representação em fóruns públicos, de cultura e cidadania. Além disso, a comunidade reafirma a valorização da vida, recusando as formas pelas quais é objetivada nos discursos oficiais.

A VIDA DESINVESTIDA DAS POPULAÇÕES E O RACISMO DE ESTADO

Ao trazermos esta situação para um debate sobre a judicialização da vida buscamos não apenas problematizar as circunstâncias em que se passa a demandar mais intervenção jurídica no governo da vida, mas afirmar que o que está em jogo e mobiliza a ação judicial na situação em questão não é meramente a aplicação e o cumprimento da lei, mas os modos de vida dessa comunidade, que se confronta com determinada lógica de investimento e desenvolvimento urbano da cidade. Temos aqui a reunião dos elementos elencados por Foucault (2008a) ao propor a genealogia do Estado moderno: "sociedade, economia, população, segurança, liberdade" (p. 476).

Buscamos também evidenciar os limites do discurso da garantia de direitos, já que esses só são possíveis desde que o Estado os garanta. O que temos visto é que, mesmo com a ativação de todos os dispositivos legais mencionados, esbarra-se no argumento de que não pode haver interferência do Poder Judiciário no projeto político da cidade, de que a lei não pode se impor ao projeto político da cidade. Assim, o interesse pela exploração econômica tende a prevalecer. No contexto local, tais estratégias biopolíticas trazem marcas históricas de uma lógica que pode ser chamada de monocultura da vida, com referência às heranças da constituição do estado pela monocultura da cana-de-açúcar, em um processo histórico de exposição de certas populações a riscos e à manutenção da pobreza e da desigualdade social que se exacerbam nas formas contemporâneas de governo (Silva & Hüning, 2013). Tais formas de exercício de poder criminalizam a pobreza e produzem vidas descartáveis e indesejáveis na paisagem urbana da capital turística que se divulga como a “mais bonita do nordeste, o paraíso das águas”.

Entendemos que o conflito apresentado reúne pessoas que não interessam ao Estado, um tipo de atividade humana que também não interessa ao Estado e um espaço urbano de valor econômico muito alto para ser ocupado por essas pessoas. Tal postura sustenta um argumento de uma suposta inutilidade das pessoas que tornam-se inconvenientes diante da utilidade do espaço em disputa. Explica Foucault (2008a, p. 60):

... por conseguinte, é esse problema da utilidade, da utilidade individual e coletiva, da utilidade de cada um e de todos, da utilidade dos indivíduos e da utilidade geral, é esse problema que vai ser finalmente o grande critério de elaboração dos limites do poder público e de formação de um direito público e de um direito administrativo. Entramos, a partir do início do século XIX, numa era em que o problema da utilidade abrange cada vez mais todos os problemas tradicionais do direito.

A produção de uma verdade sobre esse território - que o reduz a uma zona de perigo e insegurança - e a desqualificação da vida das pessoas que aí residem são estratégias para justificar a limpeza e desocupação da área, para atrair turistas. De acordo com o secretário municipal de habitação em exercício em 2009, a comunidade estaria atrapalhando a visão do mar. Sobre o projeto de uma marina naquele lugar disse aquele secretário: "Vai ser a coisa mais linda do mundo. Todos esses barcos grandes de turismo que não têm onde ancorar e acabam por ancorar no porto, agora terão um local próprio" (Oliveira, 2009, par. 6).

Podemos pensar que o que caracteriza essa comunidade como tradicional é exatamente o que diverge e afronta um modo de vida e de governo que luta por escapar às capturas do poder econômico, o qual se constitui por outros elementos. A presidente da associação de moradores refere-se com frequência à avenida que passa em frente à comunidade como um “ muro invisível” [ sic]. Para ela, essa avenida é um muro que os separa da cidade, tornando-os invisíveis para quem aí passa, e ao mesmo tempo marca um vida singular no seu interior. Não obstante, esse muro invisível não impede que a lógica neoliberal do Estado penetre nessa comunidade, seja pela produção de sua favelização, seja pela forma como se diagnostica a realidade socioeconômica, apontando a necessidade de se construir uma forma de autonomia que atenda a um tipo específico de mercado de trabalho. Assim, na realidade, o que aqui se constata é um processo de urbanização que deve se efetivar simultaneamente por um desocupação física do espaço considerado nobre e por uma educação moral para o trabalho e o convívio na cidade. Objetivar esses sujeitos pela desqualificação de suas vidas e incriminá-los permite que se busque exterminá-los da vida visível da cidade. A aceitação desses discursos se potencializa pela produção massiva da violência e da insegurança na cidade, particularmente no bairro em que se situa a comunidade, e fundamenta-se na naturalização da desigualdade social, que permite que aceitemos e demandemos para essas pessoas soluções e formas de intervenção que não aceitaríamos para nossas vidas. Por isso é preciso perceber que o que leva essas pessoas a resistir é bem mais do que o direito a uma moradia e que suas estratégias estão muito além da esfera jurídica, elas nos falam de uma relação ética com a vida.

REFERÊNCIAS

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Recebido em 20/10/2013

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  • Endereço para correspondência

    Universidade Federal de Alagoas - Instituto de Psicologia - Campus A. C. Simões.
    Av. Lourival Melo Mota, S/N,
    Tabuleiro do Martins, CEP 57072-970,
    Maceió-AL, Brasil.
    E-mail:
  • 1
    Agradeço à comunidade, em especial ao Presidente da Associação de Moradores e Amigos do Jaraguá, Maria Enaura Alves do Nascimento, por nos permitir participar dessa trajetória de luta; e ao colega Marcos Ribeiro Mesquita, parceiro no trabalho de extensão desenvolvido com a comunidade. Mantenho o texto escrito na terceira pessoa do plural para incluir essas e outras vozes que participaram da produção dos questionamentos aqui expressos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Nov 2014
    • Data do Fascículo
      Set 2014

    Histórico

    • Aceito
      21 Set 2014
    • Recebido
      20 Out 2013
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