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RESENHAS

Corpo e conhecimento: uma visão psicanalítica1 1 Emir Tomazelli. (1998). Corpo e conhecimento: uma visão psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Roberto de Barros Freire

Professor Doutor do Departamento de Filosofia - ICHS, Universidade Federal de Mato Grosso

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rua 1, c/99, Residencial Santori, Boa Esperança 78068 - 720, Cuiabá - MT E-mail: teofrei@vsp.com.br

Eis um livro que desafia nossos conceitos e nos expõe diante de idéias e fatos que normalmente escamoteamos quando pensamos na aquisição ou construção do conhecimento . O leitor é convidado a entrar numa problemática que é envolvente, revoltante, estranha, escatológica, promíscua, libidinosa, perversa e perversora , assim como desafiante, curiosa, inteligente e sedutora. O conhecimento abandona a redoma da racionalidade pura, do autocontrole e autodomínio absoluto, e se mostra numa trajetória de promiscuidade com as coisas mais banais, com os sentimentos mais vicerais, com a realidade mundana de um corpo desejante, esquizóide, mesquinho, vulgar.

O autor nos coloca diante do fato de que o conhecimento não é algo em si mesmo, que tenha uma finalidade e um início no ato de conhecer, como coloca boa parte da tradição filosófica, mas algo secundário do movimento corporal de seres humanos, cujo princípio primeiro não é a dignidade ética, a precisão lógica ou a consistência epistemológica, mas a vontade mais reles de sobrevivência e da busca de prazer que realiza percursos nem sempre claros e distintos como gostariam os bons cartesianos.

Sem dúvida, um trabalho denso, cuja leitura envolvente, de inúmeras passagens perspicazes, nos leva a caminhos inimagináveis ,devido às grandes pontes e tessituras que traça entre pontos psicológicos, filosóficos, religiosos, literários e de experiência clínica e didática, revelando uma esmerada erudição em campos diversos do saber. Nesse contexto, não é uma obra de fácil absorção, pois exige do leitor o esforço de trafegar entre enxurradas de idéias e de abnegação de suas convicções para pacientemente seguir a trajetória do autor. Entretanto, a dificuldade do texto advém apenas do fato de que não foi escrito de forma a vulgarizar a ciência psicanalítica, mas sim, pressupõe o seu domínio e tem o psicanalista como seu interlocutor.

Em particular chama a atenção o estilo do texto, desenvolvido numa linguagem poética e metafórica, buscando a precisão de seus enunciados não através de rigorosa conceituação, mas antes através de imagens e jogos de linguagem. O lado estético do texto é um fator diferenciador desse trabalho científico, o que, aliás, é bastante coerente com as posições do autor, que salienta exatamente o lado estético no ato de apreensão da realidade e de produção do conhecimento, fenômeno negligenciado pela grande maioria de autores sobre a temática do conhecimento. Também é preciso salientar o lado apaixonado do autor com o seu objeto, envolvendo o leitor nas entranhas e interstícios do conhecer, onde, através de uma visão inteligente e uma abordagem direta, provoca questões e nos convida a pensar sobre ângulos não pensados do conhecimento, majoritariamente encarado sob uma perspectiva meramente mental. O conhecimento irá aparecer sob uma faceta de tristeza, uma forma de humor, enquanto um portador de uma razão instrumental, pragmática e doentia, mas também artística, mítica, fria e calculista, ao mesmo tempo em que profundamente humana , ou seja, interesseira , psicótica , fantasmagórica, assim como bela, delirante e inventiva . Enfim, temos que abandonar os lugares-comuns para absorver toda a profundidade que Emir Tomazelli nos coloca pacientemente no decorrer do seu texto.

O livro está dividido em cinco capítulo. O primeiro é de caráter introdutório ao problema, e nele se colocam alguns pressupostos teóricos; mas apresenta já uma série de conclusões e posições do autor; e o último é como uma tentativa de conclusão, porém sem a pretensão de apresentar um “final feliz” ou encerrar a questão levantada no decorrer de todo o texto. Os três capítulos que intermedeiam o primeiro e o último são compostos na forma de três ensaios, que tanto podem ser lidos independentementes como podem ser considerados como abordagem do fenômeno epistêmico sobre diversos ângulos que se complementam. Aliás, cada um dos capítulos tem a sua alma própria, levanta e discute questões epistemofílicas, e pode perfeitamente bem ser entendido em sua auto-referência, sem se direcionar aos restantes, ainda que haja chamadas para futuras abordagens de temáticas nos capítulos posteriores ou a retomada de questões de capítulos anteriores.

Emir Tomazelli nos coloca que entende o conhecimento como uma relação estética entre sujeito e objeto, valorizando sua imagem e força sensorial . O conhecimento seria uma produção de pensamentos que sucede a um encontro com a beleza ou a feiúra do objeto. E conhecido, entende-o o autor como morto, definido. O objeto está estancado num conceito que cristaliza algo que deveria estar num movimento perpétuo: “conhecer é morrer diante de sua lúcida definição”. Captura e encurralamento dos objetos, eis o que promove o conhecimento, o que o leva a concluir que o mesmo é basicamente triste quando acontece, pois o objeto será o continente que acolherá a evacuação desesperada da pulsão. O acúmulo de sabedoria é também um acúmulo de tristeza, e quem aumenta a ciência, aumenta a dor. Além disso, se coloca como quem comunga idéias com Melanie Klein, Freud e Piaget; porém, por se apropriar de noções amplas e genéricas, se declara antes um simpatizante do que um filiado daqueles pensadores. Na verdade, parece haver uma apropriação de conceitos desses pensadores para o desenvolvimento de um caminho próprio de reflexão. Os textos citados por vezes parecem pretextos para colocação de observações próprias, servindo como inspiração para ousar olhar mais à frente.

As formas primitivas do conhecimento advêm de um corpo inconsciente de sua função cognitiva e de sua potencialidade. Segundo Tomazelli, há três diferentes realidades fundamentais do sujeito: o psíquico, o corpo e a ação, isto é, a idéia, o afeto e o conhecimento. O conhecimento é um ato de criar objetos ideográficos, signos, imagens evacuadas das víceras. Eis por que o autor afirma que estamos condenados a conhecer, a produzir compulsivamente o saber e a ausência de conhecimento, temendo o que vamos descobrir ao procurar saber. Mais do que corpos teóricos, temos secreções de conhecimentos. Uma penetração e uma abertura, mas simultaneamente esquecimento e fuga. O conhecimento é uma captura, um apossamento, e sendo assim, é também destruição, asfixia, identidade cristalizada e morta.

As ações deixam resíduos em nosso ser, mas esses estão inconscientes, escondidos, subjugados. O corpo que age carrega consigo restos dormentes de história e do contexto cultural que não aquele em que se vive, fazendo com que o tempo da ação psíquica transcenda o tempo da ação presente. Entre o que se faz e o que se pensa fazer há uma distância marcada por restos psíquicos que nem são lembrados, nem podem ser esquecidos, mas estão presentes e ausentes simultaneamente: presentes como motor da ação, ausentes porque se desconhece o motivo último dessa ação realizada. A ação cuja origem está no corpo é cega, surda e muda, estando fadada a uma condenação, pois é entendida como originária de algo externo e demoníaco. A culpa é imputada a um outro, omitindo-se nossa participação no ato epistemofílico. Como toda ação tem um lado erótico e libidinoso de prazer e jogo de interesses, o gesto de curiosidade carrega em si culpas por algo não consentido pelo conjunto de forças sociais. O conhecedor seria um voyeur, alguém que se deleita em ver as ações e os gestos de intimidade das outras coisas ou pessoas. Conhecer não é ter o domínio de uma área do saber ou do universo, mas antes ousar penetrar na intimidade própria ou alheia em busca de prazeres inconfessos. A sexualidade e a nudez do ato cognitivo findam vestidas e transmutadas num gesto solene de arrogância de sabedoria que esconde no esquecimento o ato primário dos interesses viscerais de alguém que se satisfaz com os olhos. No ato epistemológico há um auto-erotismo, uma sexualidade roubada do primeiro encontro com o objeto, que é o que permite a conexão entre um prazer próprio do corpo e um prazer próprio do encontro com o objeto.

O corpo físico e psíquico é tocado pelo mundo dos objetos. A primeira causa do ato cognitivo é o objeto; a outra aquilo sobre o que se deposita nosso ódio, ou seja, nosso afeto vivido no encontro com o objeto. A causa torna-se a abertura do eu para o mundo, devido à excessiva presença do outro no eu. Isso promove o entristecimento, que é quem abre os caminhos para a ação cognitiva, promovendo a criação simbólica que dá realidade ao “porta-memórias” que o corpo é, unificando o ser e o objeto como resultado do instinto epistemofílico que está associado ao desejo de tomar posse. “O eu só pode ser se ao outro possuir e, ao outro possuindo, ao outro conhecer: ‘sim, ele sou eu!” Disso se conclui que conhecer pode ser entendido como a capacidade de perder a identidade, tomando a identidade do outro como própria, para si.

Ao término da leitura ficamos como que incomodados por questões cujas respostas não se apresentam facilmente. Aliás, mais que oferecer respostas, o autor parece querer mostrar que nossas perguntas é que parecem equivocadas. Afora outros inúmeros méritos, esse livro parece conter o dom de provocar nossa reflexão para escaparmos de lugares-comuns e penetrarmos em selvas antes nunca penetradas. Contrariamente ao que se pensa, a importância de um livro não é dada pela quantidade de adeptos que angaria, mas antes pelas polêmicas e problemas que provoca e levanta, fazendo com que nossa reflexão não fique estagnada. Nesse sentido, não se pode ignorar esse trabalho original e brilhante a respeito de uma temática de fundamental importância: o conhecimento.

Recebido em 02/04/2002

Revisado em 23/04/2002

Aceito em 30/05/2002

  • Endereço para correspondência
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    Emir Tomazelli. (1998). Corpo e conhecimento: uma visão psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Dez 2004
    • Data do Fascículo
      Jun 2002
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