Acessibilidade / Reportar erro

Eugenia X Ética<A NAME="n1"></A>

RESENHAS

Eugenia X Ética1 1 Habermas, Jürgen (2004). O Futuro da Natureza Humana: a caminho de uma eugenia liberal?. Tradução: Karina Jannini; revisão da tradução Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes.

Morgana Iglesias Costa

Graduada em Direito pela Universidade Paranaense-UNIPAR

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Morgana Iglesias Costa Rua Rodrigo Ayres de Oliveira, n. 1031 CEP 87880-000, Guairaçá-PR. E-mail: morgana_iglesias@hotmail.com

Jürgen Habermas nasceu na cidade de Düsseldorf, na Alemanha em 1929. Fez doutorado em Marburgo, foi professor de filosofia em Heidelberg e de filosofia e sociologia em Frankfurt. É autor de vasta obra, cujo principal eixo de discussão é a crítica ao tecnicismo e cientificismo, destacando-se três idéias fundamentais por ele defendidas, quais sejam: Teoria da Ação Comunicativa2 2 A Ação Comunicativa introduzida pela primeira vez na obra Teoria da Ação Comunicativa, publicada em 1981, pode ser delimitada como a teoria da sociedade moderna fundamentada por métodos da sociologia, filosofia social e filosofia da linguagem. Para Habermas a linguagem serve como garantia da democracia, uma vez que a própria democracia pressupõe a compreensão de interesses mútuos e o alcance de um consenso. Contudo, para que a linguagem assuma este papel democrático, é necessário que a comunicação seja clara. A distorção de palavras e de sua compreensão impede uma comunicação efetiva, o consenso e, portanto, a prática efetiva da democracia. ; a defesa da efetivação de uma esfera pública democrática, na qual os cidadãos, livres de domínio político, podem expor idéias e discuti-las; e por fim, a idéia de que as ciências naturais seguem uma lógica objetiva, enquanto as ciências humanas – uma vez que a sociedade e a cultura são baseadas em símbolos – seguem uma lógica interpretativa. Em suas obras Habermas abordou as ciências sociais e dedicou-se ao estudo do Direito. Entre elas se destacam: Mudança Estrutural da Esfera Pública. Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa (Strukturwandel der Öffenthichkeit), em 1962; Lógica das Ciências Sociais (Logik der Sozialwissenschaften), em 1967; Técnica e Ciência como "Ideologia" (Technik und Wissenschaft als "Ideologie") e Conhecimento e Interesse (Erkentniss und Interesse), ambas em 1968. É sua recente obra O Futuro da Natureza Humana: a caminho de uma eugenia liberal?, (Die Zukunft der menschlichen Natur: Auf Dem Weg Zu Einer Liberalen Eugenik?), publicada em 2001, traduzida por Karina Jannini, com revisão da tradução feita por Eurides Avance de Souza, que passo a resenhar. Ela é composta de quatro textos: o primeiro texto – Moderação justificada, questiona: existem respostas pós-metafísicas para a questão sobre a "vida correta"?. O segundo texto, intitulado – A caminho de uma eugenia liberal?, discute a autocompreensão ética da espécie. Textos que fazem parte do texto principal, que aborda a discussão desencadeada pela técnica genética: pode a filosofia se permitir a mesma moderação também em questões relativas à ética da espécie?. O terceiro texto – Posfácio ao texto principal, responde às primeiras objeções levantadas aos argumentos de Habermas; todavia, trata-se menos de uma revisão da intenção original do autor do que de seu esclarecimento. O quarto texto – Fé e saber, aborda uma questão que ganha uma nova atualidade no dia 11 de setembro: o que a secularização, que perdura nas sociedades pós-seculares, exige dos cidadãos de um Estado constitucional democrático e o que exige igualmente dos fiéis e dos não-crentes?

O Futuro da Natureza Humana é um livro que traz o resultado de alguns encontros de Habermas, o primeiro na conferência da Universidade de Zurique, em 09 de setembro de 2000, que teve como base o texto: Moderação Justificada. Nele o autor partiu da distinção entre a teoria kantiana da justiça e a ética do ser em si mesmo, de Kierkegaard, defendendo a idéia de que o pensamento pós-metafísico deve impor a si próprio uma moderação, quando se trata de tomar posições definitivas em relação a questões substanciais sobre a vida boa ou não-fracassada. Isso constituiu o pano de fundo que contrastou com uma outra questão, levantada perante a discussão desencadeada pela técnica genética, qual seja: pode a filosofia se permitir a mesma moderação também em questões relativas à ética da espécie? O texto principal constitui uma versão redigida da conferência Christian Woolf, proferida na Universidade de Marburgo em 28 de junho de 2001, que considerou a discussão sobre o tratamento que se deve dar à pesquisa e à técnica genética, que até então circulava em torno da questão do status moral da vida humana pré-pessoal, a qual não trouxe bons resultados. Com efeito, as pesquisas com embriões e o DGPI3 3 O diagnóstico genético pré-implantação permite a análise genética dos embriões antes de sua transferência para a cavidade uterina, que consiste na retirada com micropipeta de um ou mais blastômeros (célula do embrião), sem comprometimento do desenvolvimento do embrião. (diagnóstico genético de pré-implantação) acirram os ânimos, sobretudo porque são o exemplo de um perigo que se vincula à metáfora da "criação de humanos". Em contrapartida a isto, os objetivos terapêuticos, nos quais também todas as intervenções da técnica genética deveriam se pautar, impõem limites estreitos à ação humana, como na criação ou não de seres humanos, enfim a toda interferência. Um terapeuta, diz Habermas, tem que considerar a segunda pessoa e precisa poder contar com o seu consentimento.

Habermas inicia a obra reforçando a preocupação de Kierkegaard relativa à dependência da constituição da noção do sujeito como ele mesmo (subjetividade humana) em relação ao outro. É sobre essa paradoxal dependência que a liberdade pode ser fundada em sua real expressão4 4 Referindo-se ao filósofo dinamarquês, Habermas diz: "O fracasso desesperado desse último ato de força do querer ser si mesmo totalmente obstinado por si mesmo move o espírito finito para uma transcendência de si mesmo e para um reconhecimento da dependência em relação a um outro, em que a própria liberdade se funda." p. 13. . O indivíduo já nasce em uma comunidade lingüística de cujos conceitos não pode escapar, e é nessa relação que sua identidade pode forjar-se. O sujeito não tem liberdade sobre o modo como se posiciona para dizer sim ou não, para dizer o que interessa ou não ao seu projeto de vida. Os processos de "autocompreensão do sujeito como um si mesmo, pertencente a uma determinada espécie" não podem ser controlados por ele. Sua liberdade, traduzida por pretensões morais, será limitada pela exigência de justificação frente a uma comunidade moral. Requerida reciprocamente, tal justificação precisa estruturar-se num logos, na língua comum a todos os falantes e ouvintes5 5 "Enquanto seres históricos e sociais encontramo-nos desde sempre num mundo da vida estruturado lingüisticamente. Já nas formas de comunicação, por meio das quais nos entendemos uns com os outros sobre os acontecimentos do mundo e sobre nós mesmos, deparamos com um poder transcendental. (...) Nenhum participante individual pode controlar a estrutura ou mesmo o desenrolar dos processos de compreensão e de autocompreensão. O modo como os falantes e ouvintes fazem uso de sua liberdade de comunicação para tomar posição favorável ou contrária não é uma questão de arbítrio subjetivo. Com efeito, são livres apenas graças à força vinculante das pretensões, que necessitam de justificativas e são reivindicadas reciprocamente por tais falantes e ouvintes. No logos da língua, personifica-se um poder do intersubjetivo, que é anterior à subjetividade dos falantes e a sustenta." p.15-16. . Nessa perspectiva, o indivíduo não pode presumir sua existência, a não ser no contexto de conceitos preestabelecidos, nos quais o próprio ser se define e autocompreende. Nesse sentido o filósofo é convocado a tomar posição quanto a questões de conteúdo dessa natureza, na qual se pode intervir para direcionar resultados. No "Posfácio" ao texto principal, redigido entre 2001 e 2002, resultado da discussão sobre "O Futuro da Natureza Humana", num colóquio coordenado por Ronald Dworkin e Thomas Nagel, intitulado Law, Philosophy & Social Theory, que responde às primeiras objeções aos argumentos de Habermas, mas, ao mesmo tempo também o leva a revê-los, argumentando que mesmo quando reconhece mais uma necessidade de explicação do que de revisão, ele toma cada vez mais consciência do caráter filosoficamente imenso da discussão que se refere aos fundamentos naturais da autocompreensão de pessoas que agem com responsabilidade. O texto "Fé e saber", base do discurso de Habermas, quando recebeu o Prêmio da Paz dos Editores Alemães, aborda uma questão que ganhou notoriedade no dia 11 de setembro de 2001: o que a "secularização", que perdurou nas sociedades pós-seculares, exige dos cidadãos de um Estado constitucional democrático, e o que exige igualmente dos fiéis e dos não-fiéis? Sobre os acontecimentos de 2001, coloca novamente em questão as relações entre fé e saber na Modernidade. A visão moderna de que a religião deve ser excluída da esfera pública encontra resistências, que sugerem um outro cenário para um mundo pós-secular. Para o autor, os acontecimentos de 11 de setembro tocaram "uma corda religiosa no âmago da sociedade secular", levando a um incremento do sentimento e da prática religiosos em escala mundial. Uma reação religiosa a outra reação do mesmo tipo: aquela dos tradicionalistas em face do avanço inexorável da secularização. Mesmo na Europa a secularização ainda gera sentimentos ambivalentes. Aqui o autor antecipa sua tese: "Quem quiser evitar uma guerra entre as civilizações precisa se lembrar da dialética inacabada do nosso próprio processo ocidental de secularização"(p.137). A consciência do fracasso desse processo, segundo ele, leva então a uma sociedade pós-secular. Enquanto a sociedade secular lida com a religião por processos de substituição e apropriação de conteúdos religiosos, a pós-secular admite a persistência do religioso e a coexistência pacífica das esferas de sentido. Habermas dirige sua atenção à comunidade política e ao senso comum (algo compartilhado por esta comunidade e que é influenciado tanto pela ciência como pelas idéias religiosas), que na Modernidade se tem esclarecido pela ciência. Frente às tentativas contemporâneas de naturalizar a intencionalidade e a moral (temática analisada na primeira parte do livro), ele defende a autonomia da esfera política relativamente à descrição científica, assim como esta esfera tem se emancipado da tutela da religião. Mas a recíproca também é verdadeira: não só a ciência proclama sua autonomia em relação a ingerências políticas, mas também a religião protesta contra o avanço da secularização na esfera pública: "O Estado liberal, por sua vez, desperta nos fiéis a suspeita de que a secularização ocidental poderia ser uma via de mão única, que deixaria a religião à margem"(p.145). Por outro lado, indica que existe a possibilidade de uma tradução eficiente, que transforme valores de uma religião específica em valores públicos, comuns a todos. Esta possibilidade é respaldada pela própria experiência histórica do Ocidente, que pode reconhecer as raízes religiosas das instituições modernas.

O tema é muito atual e a leitura da obra nos permite refletir sobre os caminhos e limites da religião na nossa sociedade. Religião e política são hoje muito ligadas e não podem ser consideradas separadamente. É uma leitura recomendável.

Recebido em 18/07/2005

Aceito em 30/08/2005

  • Endereço para correspondência

    Morgana Iglesias Costa
    Rua Rodrigo Ayres de Oliveira, n. 1031
    CEP 87880-000, Guairaçá-PR.
    E-mail:
  • 1
    Habermas, Jürgen (2004).
    O Futuro da Natureza Humana: a caminho de uma eugenia liberal?. Tradução: Karina Jannini; revisão da tradução Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes.
  • 2
    A Ação Comunicativa introduzida pela primeira vez na obra Teoria da Ação Comunicativa, publicada em 1981, pode ser delimitada como a teoria da sociedade moderna fundamentada por métodos da sociologia, filosofia social e filosofia da linguagem. Para Habermas a linguagem serve como garantia da democracia, uma vez que a própria democracia pressupõe a compreensão de interesses mútuos e o alcance de um consenso. Contudo, para que a linguagem assuma este papel democrático, é necessário que a comunicação seja clara. A distorção de palavras e de sua compreensão impede uma comunicação efetiva, o consenso e, portanto, a prática efetiva da democracia.
  • 3
    O
    diagnóstico genético pré-implantação permite a análise genética dos embriões antes de sua transferência para a cavidade uterina, que consiste na retirada com micropipeta de um ou mais blastômeros (célula do embrião), sem comprometimento do desenvolvimento do embrião.
  • 4
    Referindo-se ao filósofo dinamarquês, Habermas diz: "O fracasso desesperado desse último ato de força do querer ser si mesmo totalmente obstinado por si mesmo move o espírito finito para uma transcendência de si mesmo e para um reconhecimento da dependência em relação a um outro, em que a própria liberdade se funda." p. 13.
  • 5
    "Enquanto seres históricos e sociais encontramo-nos desde sempre num mundo da vida estruturado lingüisticamente. Já nas formas de comunicação, por meio das quais nos entendemos uns com os outros sobre os acontecimentos do mundo e sobre nós mesmos, deparamos com um poder transcendental. (...) Nenhum participante individual pode controlar a estrutura ou mesmo o desenrolar dos processos de compreensão e de autocompreensão. O modo como os falantes e ouvintes fazem uso de sua liberdade de comunicação para tomar posição favorável ou contrária não é uma questão de arbítrio subjetivo. Com efeito, são livres apenas graças à força vinculante das pretensões, que necessitam de justificativas e são reivindicadas reciprocamente por tais falantes e ouvintes. No logos da língua, personifica-se um poder do intersubjetivo, que é anterior à subjetividade dos falantes e a sustenta." p.15-16.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jan 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005
    Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, CEP: 87020-900, Maringá, PR - Brasil., Tel.: 55 (44) 3011-4502; 55 (44) 3224-9202 - Maringá - PR - Brazil
    E-mail: revpsi@uem.br