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As escolhas do século XXI

EDITORIAL

As escolhas do século XXI

Maria Lúcia Boarini

O terceiro milênio inicia marcando com nitidez as escolhas realizadas pela sociedade humana. Aqui estamos nos referindo ao acontecimento de 11 de setembro no World Trade Center, em Manhattan, e em Washington, nos Estados Unidos, e a retaliação empreendida por este país contra o Afeganistão, que abriga o suposto responsável por esse ato terrorista. Sem a pretensão de adentrar neste assunto, pelo menos dois pontos, em termos de procedimento, devemos ressaltar: primeiro a revanche se deu sem provas, pelo menos de provas que convencessem a comunidade internacional. Por outro lado, a se pensar no principio que determinou a resposta americana, parece que a maior potencia econômica mundial da atualidade, para determinados assuntos continua se orientando pela Lei de Talião que determina “olho por olho, dente por dente”.

Mas se estes atentados são chocantes, incompreensíveis, sobretudo pelas vidas perdidas, há outros terrorismos que acontecem diariamente, dos quais nem sequer tomamos conhecimento, como, por exemplo, a fome no mundo. Por alto e só levando-se em conta as grandes tragédias localizadas (Ucrânia/1932-1933; China/1959; Biafra/1967-1979), o século 20 registrou por volta de 37 milhões de mortes causadas pela fome. E a sociedade do século 21, dando continuidade a este mórbido espetáculo, assiste no Afeganistão “... pais dando capim para seus filhos porque não dispõem de outro alimento”1 1 "O fato foi relatado à Folha pelo antropólogo inglês Werner Nijman, 44, que viveu seis anos na região e é hoje consultor de ONGs que atuam na Ásia Central (...) Para a FAO (Organizaçao das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) o desastre pode atingir 7,5 milhões de afegãos que necessitam desesperadamente de ajuda alimentar...". Leite Neto, A - A fome anunciada. 7,5 milhões precisam de comida no Afeganistão. Folha de S.Paulo. Caderno Mundo. 28/10/2001. p. A 24. .

Numa outra dimensão, de caráter sorrateiro, em comparação com os fatos citados anteriormente, temos, no Brasil, encaminhamentos igualmente paralisantes, na verdadeira acepção da palavra, promovidos pelo governo de plantão, os quais não deixam de ter seu lado trágico e invasor. O pacote antigreve do funcionalismo público dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário lançado pelo Governo Federal, no último dia 13 de novembro, é deveras ilustrativo desta questão. Para Rubens Approbato Machado, Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, esta é uma determinação oportunista e autoritária na medida em que “... mudam-se decisões judiciais e alteram-se competências constitucionais de acordo com as conveniências de momento dos governantes”2 2 O Povo. OAB considera pacote oportunista e autoritário. Fortaleza/Ceará. 16/11/2001. p.10 . Como afirmamos inicialmente, o revanchismo e a violência, como procedimento, parecem estar entre as principais escolhas da sociedade humana que já tem mais de 2001 anos de “civilização” (sic). Como diz o psicanalista Emir Tomazelli “o patamar evolutivo dos movimentos de massa é um patamar muito precário, muito pobre. É essa primitividade ética o que define atitudes como a retaliação, o talião”. Concordando, ou não, com Tomazelli o fato é que de situações tão invasivas e tão comuns como as que vivemos na atualidade, o homem pode não sair ileso. Profundas marcas em seu corpo e em seu psiquismo podem ser o indesejável resultado. A autonomia do individuo pode ser uma das categorias mais prejudicadas na sociedade contemporânea e a loucura pode aí encontrar um terreno propício a sua edificação.

E ao nos reportarmos à “figura maior da desrazão”, como a denomina Nalli (um dos autores deste número), não podemos deixar de comemorar, ainda que com reservas, a aprovação da Lei n. 10.216 de 9 de abril de 2001 que “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”. As reservas se justificam pelo considerável atraso em sua tramitação e aprovação (11 anos) e alguns resquícios de conservadorismo que continua mantendo. Sob a nossa ótica, a promulgação desta lei traz ares de vitória, porque a vitória só se consolidará quando não houver mais nenhum ser humano preso por ser um doente mental

Tendo este cenário como pano de fundo (ou é a própria figura?) e nos limites da nossa competência seguimos reunindo um grupo de profissionais da área de Ciências Humanas que através deste periódico cientifico, dispõem-se a socializar suas idéias, seus estudos, suas inquietações. São autores que revelam preocupação com o homem em suas múltiplas facetas e assim nos trazem reflexões valiosas. Impulsionados pela inquietação, produzem e socializam suas idéias e propostas de encaminhamento. Desta forma contribuem para a construção deste mosaico que é o conhecimento. Este pode ser um caminho para a reversão das escolhas que pontuamos inicialmente, até porque nada se altera espontaneamente. Como diria o velho e brilhante poeta brasileiro Gonçalves Dias (1823-1864): “A vida é luta renhida. Viver é lutar”.

P.S.: Visando facilitar a consulta técnica/editorial algumas alterações foram introduzidas nas “Instruções aos Autores”. Estas alterações estão disponíveis nas páginas 151-156 deste número.

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    "O fato foi relatado à
    Folha pelo antropólogo inglês Werner Nijman, 44, que viveu seis anos na região e é hoje consultor de ONGs que atuam na Ásia Central (...) Para a FAO (Organizaçao das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) o desastre pode atingir 7,5 milhões de afegãos que necessitam desesperadamente de ajuda alimentar...". Leite Neto, A - A fome anunciada. 7,5 milhões precisam de comida no Afeganistão.
    Folha de S.Paulo. Caderno Mundo. 28/10/2001. p. A 24.
  • 2
    O Povo. OAB considera pacote oportunista e autoritário. Fortaleza/Ceará. 16/11/2001. p.10
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jan 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2001
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