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Sofrimento psíquico, acontecimento traumático e angústia pulsional

Psychic pain, traumatic event and neurotic anxiety

Sufrimiento psíquico, evento traumático y angustia pulsional

Resumos

O presente artigo aborda o sofrimento psíquico desencadeado por um acontecimento traumático, buscando, inicialmente, em uma perspectiva histórica, os elementos conceituais que concorrem para a delimitação do quadro clínico da neurose traumática no texto freudiano. Estuda, em seguida, sua conceituação no trabalho dos primeiros psicanalistas, em especial, Sandor Ferenczi e Karl Abraham, para então tomar alguns elementos conceituais da teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche visando a enriquecer sua compreensão. Ao lado da discussão teórica, são apresentados dois fragmentos clínicos no intuito de ilustrar as principais ideias defendidas ao longo do artigo e que se fundamentam, em seus pontos essenciais, na tese freudiana segundo a qual toda angústia ante um acontecimento traumático, desde que se desenvolve, subentende, invariavelmente, a angústia ante o ataque pulsional.

Neurose traumática; angústia; teoria da sedução generalizada


This article discusses the psychological distress triggered by a traumatic event and starts with a historical perspective in which Freud's conceptual contributions to the definition of the traumatic neuroses are presented. Next, the points of view of early psychoanalysts, especially Sandor Ferenczi and Karl Abraham, on the subject are taken into consideration. The contribution of Jean Laplanche's theory of generalized seduction to the understanding of the concept of trauma in psychoanalysis closes the theoretical part of the article. Two clinical reports are presented as illustrations of the main ideas defended by the author, according to which every anxiety created by a traumatic event always brings about anxiety due to the internal violence of the sexual drive. This hypothesis is entirely based on Freud's ideas about anxiety, which have been adopted by Laplanche.

Traumatic neurosis; anxiety; general seduction theory


Este artículo abarca el sufrimiento psíquico desencadenado por un evento traumático, buscando, inicialmente, en una perspectiva histórica, los elementos conceptuales que convergen para la delimitación del cuadro clínico de la neurosis traumática en el texto freudiano. Estudia, enseguida, su conceptuación en el trabajo de los primeros psicoanalistas, en especial Sandor Ferenczi y Karl Abraham, para así tomar algunos elementos conceptuales de la teoría de la seducción generalizada de Jean Laplanche, pretendiendo enriquecer su comprensión. Juntamente con la discusión teórica, son presentados dos fragmentos clínicos con el objetivo de ilustrar las principales ideas defendidas a lo largo del artículo y que, en sus puntos esenciales, se fundamentan en la tesis freudiana según la cual toda angustia delante de un evento traumático, desde que se desarrolla, sobrentiende, invariablemente, la angustia delante del ataque pulsional.

Neurosis traumática; angustia; teoría de la seducción generalizada


ARTIGOS

Sofrimento psíquico, acontecimento traumático e angústia pulsional

Psychic pain, traumatic event and neurotic anxiety

Sufrimiento psíquico, evento traumático y angustia pulsional

Maria Teresa de Melo Carvalho

Doutora em Psicanálise na Universidade de Paris VII; Professora do curso de especialização em teoria Psicanalítica da Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Maria Teresa de Melo Carvalho. Rua Bambuí, 25/1600, CEP 30210-490, Belo Horizonte-MG, Brasil. E-mail: mtmelocarvalho@terra.com.br

RESUMO

O presente artigo aborda o sofrimento psíquico desencadeado por um acontecimento traumático, buscando, inicialmente, em uma perspectiva histórica, os elementos conceituais que concorrem para a delimitação do quadro clínico da neurose traumática no texto freudiano. Estuda, em seguida, sua conceituação no trabalho dos primeiros psicanalistas, em especial, Sandor Ferenczi e Karl Abraham, para então tomar alguns elementos conceituais da teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche visando a enriquecer sua compreensão. Ao lado da discussão teórica, são apresentados dois fragmentos clínicos no intuito de ilustrar as principais ideias defendidas ao longo do artigo e que se fundamentam, em seus pontos essenciais, na tese freudiana segundo a qual toda angústia ante um acontecimento traumático, desde que se desenvolve, subentende, invariavelmente, a angústia ante o ataque pulsional.

Palavras-chave: Neurose traumática; angústia; teoria da sedução generalizada.

ABSTRACT

This article discusses the psychological distress triggered by a traumatic event and starts with a historical perspective in which Freud's conceptual contributions to the definition of the traumatic neuroses are presented. Next, the points of view of early psychoanalysts, especially Sandor Ferenczi and Karl Abraham, on the subject are taken into consideration. The contribution of Jean Laplanche's theory of generalized seduction to the understanding of the concept of trauma in psychoanalysis closes the theoretical part of the article. Two clinical reports are presented as illustrations of the main ideas defended by the author, according to which every anxiety created by a traumatic event always brings about anxiety due to the internal violence of the sexual drive. This hypothesis is entirely based on Freud's ideas about anxiety, which have been adopted by Laplanche.

Key words: Traumatic neurosis; anxiety; general seduction theory.

RESUMEN

Este artículo abarca el sufrimiento psíquico desencadenado por un evento traumático, buscando, inicialmente, en una perspectiva histórica, los elementos conceptuales que convergen para la delimitación del cuadro clínico de la neurosis traumática en el texto freudiano. Estudia, enseguida, su conceptuación en el trabajo de los primeros psicoanalistas, en especial Sandor Ferenczi y Karl Abraham, para así tomar algunos elementos conceptuales de la teoría de la seducción generalizada de Jean Laplanche, pretendiendo enriquecer su comprensión. Juntamente con la discusión teórica, son presentados dos fragmentos clínicos con el objetivo de ilustrar las principales ideas defendidas a lo largo del artículo y que, en sus puntos esenciales, se fundamentan en la tesis freudiana según la cual toda angustia delante de un evento traumático, desde que se desarrolla, sobrentiende, invariablemente, la angustia delante del ataque pulsional.

Palabras-clave: Neurosis traumática; angustia; teoría de la seducción generalizada.

O conceito de angústia constitui o objeto central do primeiro livro da série "Problématiques" de Jean Laplanche (1981), que reúne suas conferências na Universidade de Paris VII, no período de 1970 a 1992. Eleger a problemática da angústia como ponto de partida de seu ensino da Psicanálise na universidade atesta a importância que Laplanche confere a esse tema no âmbito da teoria psicanalítica. Encontramos na tese central do livro em questão o móbil dessa empreitada. Para resumi-la, abdicando-nos de detalhar sua complexidade, podemos dizer que ela reafirma e retrabalha uma das teses freudianas centrais sobre a angústia, expressa por Laplanche nos seguintes termos: "a angústia está intimamente ligada ao problema do recalcamento e é na medida em que as representações perigosas são recalcadas que elas suscitam a angústia" (Laplanche, 1981, 64, tradução nossa).

Ao defender essa tese, Laplanche (1981) coloca em relevo a originalidade da abordagem freudiana da angústia relativamente ao pensamento que o antecedeu, seja ele o pensamento filosófico ou o pensamento psicológico naquela vertente que se alinha às ciências da vida. Para dizer brevemente e, portanto, de forma imprecisa, porém suficiente para o nosso propósito, podemos asseverar que, para a psicanálise, a angústia configura-se ante um perigo pulsional e não ante o perigo de existir e nem ante o perigo real. Em sua conferência XXV do livro "Conferências introdutórias em psicanálise", Freud (1917/1976a) estabelece a distinção entre o conceito de Realangst e o de neurotische angst, na tentativa justamente de demarcar a especificidade do campo da psicanálise relativamente ao das ciências da vida. Tal distinção não pretende negar o impacto representado por um perigo real para o ser humano, mas afirmar a ideia central dessa conferência que, sintetizada por Laplanche, pode ser assim expressa: "toda angústia-real, desde que ela se desenvolve, subentende uma angústia neurótica" (Laplanche, 1981, p. 54, tradução nossa). Isto equivale a dizer que não há angústia independente da dinâmica pulsional, ou seja, ainda que o afeto de angústia possa ser desencadeado por um acontecimento que expõe o sujeito a um perigo real, esse afeto será alimentado e sustentado por um conflito pulsional. Tal proposição parece óbvia e consensual entre todos aqueles que lidam com a teoria psicanalítica. No entanto, podemos constatar que ela é constantemente desafiada pela categoria clínica das neuroses traumáticas com a qual Freud já se depara em suas primeiras incursões no campo das neuroses e que continua, ainda nos nossos dias, a suscitar embaraços sobre sua relação com o pulsional.

Não se trata aqui de colocar em discussão a neurose traumática enquanto categoria clínica. Trata-se, antes, de interrogar sobre sua relação com a sexualidade infantil ou com a dimensão pulsional do sofrimento psíquico. Mas por que trazer à tona, nesse momento, o tema das neuroses traumáticas? Em primeiro lugar pela atualidade do traumático na medida em que "o trauma é um tema que tem merecido, das mais diversas disciplinas, atenção cada vez maior" (Rudge, 2006, p. 7), conforme asseverou a organizadora da coletânea "Traumas", publicada em 2006. Seis anos depois, podemos reiterar a mesma afirmação. Nossa motivação maior, no entanto, reside no desafio de investigar qual seria o aporte da teoria da sedução generalizada à compreensão das neuroses traumáticas, uma vez que estas não foram explicitamente trabalhadas por Jean Laplanche.

TRAUMA E PULSÃO EM FREUD E SUA INTERPRETAÇÃO POR JEAN LAPLANCHE

A neurose traumática, assim nomeada e descrita em 1889, pelo neurologista alemão Hermann Openheim, é contemporânea da aurora da psicanálise, época em que o traumatismo era invocado para explicar a gênese de diversos quadros clínicos, inclusive o da histeria. É nessa mesma linha de pensamento que Freud irá subscrever a uma teoria traumática das neuroses, em suas primeiras formulações sobre a histeria e sobre as demais psiconeuroses de defesa.

A etiologia da neurose traumática é diretamente relacionada a um acontecimento traumático que, após um período de latência mais ou menos longo, desencadeia, no sujeito, intenso sofrimento psíquico em que se destaca o afeto de angústia, entre outras manifestações sintomáticas. Na esteira de Oppenheim, os primeiros neurologistas que abordaram esses quadros clínicos trabalhavam com a hipótese teórica de uma alteração física dos centros nervosos ou das vias nervosas periféricas que produziriam, secundariamente, as alterações centrais (Ferenczi, 1918/2011b). Ou seja, à força mecânica do trauma real corresponderia um dano também real do sistema nervoso. Mas, a hipótese de um traumatismo psíquico não tardou a se impor, na medida em que os sintomas, supostamente determinados por danos físicos, podiam ser eliminados pela via da sugestão (Ferenczi, 1918/2011b). Assim, a hipótese de um traumatismo psíquico na origem das neuroses, de um modo geral, ganhou força em autores como Charcot e Janet, aos quais se alinha Freud. Todavia, podemos vislumbrar, já nos "Estudos sobre a histeria" (Breuer & Freud, 1893-1895/1974), os germes de duas importantes transformações, operadas por Freud, no que se refere ao traumatismo. A primeira delas é a afirmação segundo a qual o trauma que se encontra na origem de uma psiconeurose é sempre um trauma sexual. A segunda se refere à temporalidade específica que caracteriza a concepção de trauma em sua teoria, uma vez que este não se define como a realidade do acontecimento exterior, mas como "sua representação, construída a posteriori e vivenciada como um corpo estranho interno" (Brette, 2005, p. 1930) de onde provém a excitação excessiva. Essas duas transformações inauguram a concepção propriamente psicanalítica do trauma.

Ora, a teoria traumática das neuroses teve vida curta na obra freudiana, sendo o trauma logo substituído pela pulsão nas elaborações sobre a etiologia das psiconeuroses. Não obstante, a noção de trauma esteve sempre presente no pensamento freudiano, deixando entrever tentativas renovadas de integração do fator traumático ao fator pulsional, conforme evidenciado por Melo Carvalho e Ribeiro (2006). O que se pode depreender dessas tentativas freudianas de pensar o trauma ao lado da pulsão é, por um lado, a ideia de que a pulsão contém o traumático em sua própria constituição e, por outro, que qualquer situação traumática é necessariamente habitada pela pulsão.

Jean Laplanche retomou a teoria traumática das neuroses em sua versão propriamente freudiana, também conhecida como teoria da sedução, e reinterpretou-a em sua teoria da sedução generalizada. Ao ressaltar a articulação original entre acontecimento traumático e fantasia presente na teoria da sedução freudiana, Laplanche valorizou e acentuou a ideia de que a pulsão contém o traumático em sua constituição mesma. Ele irá colocar em relevo a situação de passividade da criança ante o adulto, definindo-a mais precisamente como a passividade da criança em relação à mensagem de natureza sexual vinda do mundo adulto. Este é, pois, o sentido específico do trauma sexual constitutivo da pulsão: a sedução da criança pela mensagem sexual do adulto é geradora do trauma interno, equivalente ao ataque pulsional. Podemos ainda dizer que o caráter traumático da constituição do psiquismo é uma premissa universal, condição inelutável dessa constituição (Laplanche, 1986/1992a).

A natureza desse primeiro depósito, dessa primeira inscrição da mensagem sexual do outro é diversa daquela de uma simples percepção objetiva. Como mensagem enigmática, essa primeira inscrição interpela a criança e impõe-se a ela como inscrição a traduzir, a ser transcrita. A tentativa de domínio da excitação desencadeada por essa inscrição se faz, portanto, por um processo tradutivo, equivalente ao processo de recalcamento, segundo o modelo freudiano da carta 52, enviada a Fliess (Laplanche, 1986/1992a). Interessa-nos lembrar aqui o caráter necessariamente parcial dessa tradução cujos resíduos constituem o conteúdo recalcado. Lembremos também que o processo tradutivo originário é correlativo da clivagem do psiquismo: de um lado está o Eu, que contém as traduções, e do outro o Inconsciente, que guardará os restos não traduzidos (Laplanche, 1987).

Retomemos agora as neuroses traumáticas. Os traumas que as constituem são diversos, indo desde os acidentes e guerras, nas primeiras descrições do quadro, até as catástrofes naturais, passando também pela perda de entes queridos, entre outros. Aqui o sentido do termo trauma não provém do interior do campo psicanalítico, mas é o sentido corrente, do senso comum. Embora o abuso sexual esteja incluído entre as situações desencadeadoras da neurose traumática, não se trata, em geral, de trauma sexual, strictu senso. Voltamos assim à nossa questão inicial: como conceber a relação dessas neuroses com a sexualidade? Qual o papel da pulsão no desenvolvimento desses quadros clínicos? Mesmo que admitamos, de saída, que toda situação traumática é invariavelmente habitada pela pulsão, é necessário explicitar o sentido dessa proposição para não recairmos em um simples chavão.

NEUROSES TRAUMÁTICAS E SEXUALIDADE

Se a teoria traumática das neuroses, elaborada por Freud, colocou a sexualidade no coração das neuroses de transferência, o seu papel nas neuroses traumáticas permaneceu no horizonte do pensamento deste autor, mas não foi trabalhado em uma teoria consistente. Não obstante, algumas passagens do texto freudiano apresentam indicações que ainda hoje são consideradas fundamentais para se compreender as neuroses traumáticas. A principal delas encontra-se em "Além do princípio de prazer" (Freud, 1920/2006) em que os sonhos repetitivos, recorrentes nos quadros de neurose traumática, servem como demonstração do fenômeno da compulsão à repetição. O caráter repetitivo desses sonhos, ou pesadelos, revela a fixação ao trauma e teria por função fazer surgir a angústia no lugar do susto ou pânico do momento do acidente. Essa espécie de preparação para o trauma revelaria a tentativa de dissolver aos poucos a excitação excessiva, fracionando-a, ou ligando-a a representações.

Além das ideias retomadas acima, destacaremos uma passagem do pequeno texto de Freud (1919/1976b), escrito como introdução ao livro "A psicanálise das neuroses de guerra", que reúne as contribuições de alguns de seus discípulos apresentadas no V Congresso Internacional de Psicanálise, em 1918. Neste texto, Freud distingue as neuroses traumáticas das neuroses de transferência dizendo o seguinte:

As neuroses traumáticas e as neuroses de guerra podem proclamar em voz muito alta os efeitos do perigo mortal e podem ficar em silêncio ou falar apenas em tom surdo dos efeitos da frustração no amor. Mas, por outro lado, as neuroses de transferência comuns, (...) não dão valor etiológico ao fator de perigo mortal que, na antiga categoria das neuroses, desempenham um papel tão importante (Freud, 1919/1976b, p. 262).

Mas, logo em seguida, ele expressa a expectativa, e mesmo a convicção, de que possam ser superadas as dificuldades teóricas que se erguem no caminho de uma hipótese unificadora, no sentido da compreensão de ambos os quadros clínicos pela teoria da libido.

Avançando no mesmo sentido dessa hipótese unificadora, encontra-se o texto de Karl Abraham (1918/2010), "Contribuição à psicanálise das neuroses de guerra". Trata-se de um texto notável, por vários motivos. Em primeiro lugar pela sua firme convicção na possibilidade de demonstrar o papel do inconsciente e da sexualidade nas neuroses traumáticas, mas também pela sutileza de suas observações clínicas e de sua análise das vinhetas apresentadas visando essa demonstração. Devemos destacar ainda sua lucidez ao defender o método psicanalítico no tratamento das neuroses traumáticas, método que privilegia a singularidade do sofrimento psíquico do sujeito em suas determinações pulsionais, para além dos sintomas desencadeados pelo trauma.

Dito isto, vejamos uma importante conclusão a que chegou e que, segundo afirma, coincide com ideias de Ferenczi (1918/2011b), obtidas de forma independente. Eis a conclusão: "o efeito freqüente do traumatismo sobre a sexualidade é o de desencadear uma modificação regressiva em direção ao narcisismo" (Abraham, 1918/2010, p.47). Entretanto, ele acrescenta que o traumatismo não age dessa forma para alguns pacientes, o que o leva a postular uma predisposição individual, ficando claro, ao longo de sua exposição, que essa predisposição individual é determinada pela história libidinal do sujeito.

As situações de guerra, bem como as demais situações traumáticas, submetem os sujeitos a condições extremas e a exigências extraordinárias, nas quais se é forçado a renunciar a todos os privilégios que alimentam o narcisismo. No caso da guerra, em particular, as situações de agressão às quais o sujeito é submetido e também aquelas que ele tem que perpetrar acirram as ameaças das pulsões parciais masoquistas e sádicas, o que também vem desequilibrar o narcisismo. Outro fator salientado por Abraham (1918/2010) para mostrar o papel da predisposição individual nas neuroses de guerra é a convivência masculina quase exclusiva a que são submetidos os soldados. Neste caso, a proximidade forçada e repetida com outros homens pode representar um incremento da força das pulsões homossexuais recalcadas e ameaçar o equilíbrio narcísico dos sujeitos que já são instáveis a esse respeito. O equilíbrio narcísico é também evidentemente ameaçado pelos efeitos de uma explosão, de um ferimento etc., de forma que a segurança narcísica dá lugar ao sentimento de impotência e desencadeia a neurose (Abraham, 1918/2010).

Ao concluir sua exposição, Abraham afirma: "Os dados que relatei mostram claramente que as neuroses de guerra permanecem incompreensíveis se não se leva em conta a sexualidade" (Abraham, 1918/2010, p. 55). De fato, suas observações são bastante incisivas sobre isso e alinham-se à segunda conclusão que salientamos anteriormente sobre a relação entre trauma e pulsão na obra de Freud, isto é, que toda situação traumática é necessariamente habitada pela pulsão. Vimos também como Abraham indica a importância da referência ao narcisismo na compreensão das neuroses traumáticas, mas foi certamente Ferenczi (1918/2011b) que conferiu um papel de destaque à relação entre neurose traumática e narcisismo. Antes de passarmos às contribuições deste autor, e no sentido de reiterar as observações de Abraham, convidamos o leitor a acompanhar um breve relato clínico que ilustra o movimento de uma paciente desde a angústia mobilizada por um acontecimento traumático até a angústia pulsional.

DA ANGÚSTIA MOBILIZADA POR UM ACONTECIMENTO TRAUMÁTICO À ANGÚSTIA PULSIONAL EM UMA BREVE ILUSTRAÇÃO CLÍNICA

A paciente, que chamaremos de Luiza, contava aproximadamente 23 anos de idade quando foi vítima de um assalto no quarto do hotel onde se hospedara numa viagem de férias. Ela própria se presenteara com essa viagem para compensar a tristeza pelo término de um namoro e o que deveria ser uma viagem dos sonhos, pois visitaria um lugar que há muito desejava conhecer, transformou-se em repetidos pesadelos com o momento traumático: a porta que se abria e o assaltante mascarado que entrava com uma faca na mão. Luiza não foi agredida ou ferida, pois cedeu às exigências que ele lhe fez de entregar seu dinheiro e os objetos que ia nomeando. Nos seus pesadelos, o principal elemento era a porta que se abria. "Você deixou a porta aberta", lhe dissera o assaltante para justificar a forma pela qual conseguira entrar no quarto e, certamente, para afastar a suspeita de que ele possuía uma cópia da chave. Ela, por sua vez, tinha quase certeza de que havia trancado a porta e, nas várias vezes em que pensava no fato, tentava em vão reconstituir o momento em que isso se dera. Esse incidente interrompeu, obviamente, sua viagem de férias e levou-a de volta à casa dos pais, com os quais ainda vivia, e mais ainda, ao quarto dos pais que, muito tocados pelo ocorrido, permitiram e até incentivaram esse comportamento regressivo da filha. No desenrolar das sessões, a repetição dos relatos sobre a cena traumática começou a ceder lugar a outros conteúdos: a relação com o ex-namorado, o ressentimento pelo rompimento do namoro por parte dele, o quanto se apegara a ele a quem via como alguém forte, decidido e, em certo sentido, como uma figura protetora. Passava-lhe frequentemente pela cabeça a ideia de que se ainda estivesse com ele, não teria sofrido o assalto. A falta do namorado contribuiu para que se intensificasse, nesse momento, a dependência afetiva dos pais, que trouxe consigo a ambivalência. Em relação ao pai queixava-se principalmente pelo fato de ele não se empenhar tanto na condução das providências necessárias para mover um processo contra o hotel onde aconteceu o assalto. Em relação à mãe, começou a queixar-se do excesso de sua presença. Vinha notando, mesmo antes do episódio traumático, que sua mãe insistia em estar perto dela, insistia em saber sobre sua vida afetiva, como se quisesse, por meio dela, compensar um relacionamento muito insatisfatório com o marido, sobretudo do ponto de vista sexual. Isso vinha incomodando Luiza, pois ela preferia não compartilhar certos assuntos com a mãe. À medida que foi conseguindo superar a angústia e ficar livre dos pesadelos, passou a dormir no seu próprio quarto, mas a mãe, ainda preocupada, sempre entrava para ver se tudo estava bem, se ela estava conseguindo dormir. Surpreende-se então trancando à chave a porta de seu quarto antes de se deitar, o que não era um hábito seu. Relaciona isso com o trauma deixado pelo assalto. Mas o que vinha elaborando nas sessões levou-a a refletir sobre sua relação com a mãe, a partir do seguinte pensamento: – "Tem horas que acho que estou trancando a porta para que minha mãe não entre, depois que fui deitar. Ela chega a me incomodar com sua preocupação".

Nesse caso, vemos se configurar o movimento que vai da angústia mobilizada pelo acontecimento traumático à angústia ante o perigo representado pela ameaça pulsional, ou seja, pelos conteúdos recalcados, ligados à sexualidade infantil. Para indicar, de forma breve, as fontes dessa angústia pulsional, sem entrar em mais detalhes do caso, poderíamos localizá-la no investimento libidinal deixado livre pela perda do amor do namorado, bem como no excesso da presença materna e na fragilidade da intervenção paterna. Três fontes da angústia que estão ligadas entre si na medida em que a perda do amor do objeto suscita movimentos pulsionais e traz à tona um material infantil que exige um trabalho de ligação. No caso, um material infantil claramente ligado à relação com as figuras parentais e poderíamos mesmo dizer com sua vivência edípica e as mensagens sexuais ligadas a ela, ou seus restos não-traduzidos que se atualizam. Sim, pois podemos supor que o pedido reiterado ao pai para que ele tomasse as providências necessárias a fim de mover um processo contra o hotel traz consigo um apelo ao pai como aquele que poderia barrar o excesso de excitação advindo da presença materna e suas mensagens sexuais enigmáticas, mas também o excesso de sua própria presença (do pai), quando este se fragiliza, deixando tênues as barreiras estabelecidas pela vivência edípica, isto é, a barreira da diferença entre gerações (quando os pais se infantilizam junto com ela) e a barreira da proibição do incesto (quando a deixam compartilhar seu leito).

No caso de Luiza, não é difícil notar o movimento que vai desde a angústia ante o acontecimento traumático até a angústia ante o perigo pulsional, expressando-se em suas manifestações sintomáticas pelo movimento que vai dos pesadelos repetidos com a porta que se abre até o comportamento, também compulsivamente repetido, de trancar a porta do quarto antes de se deitar, para evitar a entrada da mãe. Em relação ao processo de elaboração psíquica da excitação desencadeada pelo trauma, podemos dizer que Luiza não tardou muito a recuperar sua autoconfiança e a poder redirecionar aos objetos seu investimento afetivo; retomou sua relação com "as amizades", como ela dizia, mas também seus estudos e trabalho. Isto indica, nos termos de Abraham (1918/2010), que seu equilíbrio narcísico foi reconquistado levando ao desaparecimento da angústia, diferentemente dos casos em que prevalece a compulsão à repetição, atestando a dificuldade da ligação da excitação desencadeada pelo evento traumático, o que abordaremos posteriormente. Por ora, retomaremos o papel do narcisismo nas neuroses traumáticas, a partir do texto de Ferenczi (1918/2011b).

NEUROSES TRAUMÁTICAS E NARCISISMO

O texto de Ferenczi, acima mencionado, não é menos notável do que aquele de Abraham (1918/2010), iniciando-se com uma criteriosa revisão crítica de parte da vasta literatura já então disponível sobre tais neuroses. Seu principal objetivo ao empreender tal revisão é assinalar a importância que o fator psíquico foi ganhando nas conclusões dos neurologistas sobre as neuroses traumáticas, sendo que alguns dentre eles chegaram a retomar certas proposições freudianas e até mesmo a admitir o caráter inconsciente da determinação de alguns quadros clínicos, o que o leva a concluir essa revisão crítica com uma surpreendente afirmação: "Podem constatar, senhoras e senhores, que as experiências fornecidas pelo estudo das neuroses de guerra conduziram-nos, pouco a pouco, mais longe do que a descoberta do psiquismo: elas quase levaram os neurologistas a descobrir a psicanálise" (Ferenczi, 1918/2011b, p. 22).

Ferenczi deixa claro que o que permaneceu rejeitado pelos autores que se aproximaram da psicanálise foi o papel da sexualidade na determinação das neuroses. E podemos dizer que enquanto Abraham buscou acentuar a presença das moções pulsionais inconscientes nas manifestações das neuroses traumáticas, ele irá sublinhar aí o papel do narcisismo e da regressão, não perdendo de vista, no entanto, a relação do narcisismo com a sexualidade. Segundo sua hipótese, o sujeito traumatizado teria perdido sua autoconfiança e por isso retira seu investimento libidinal e seu interesse dos objetos para reinvestir o Eu. Vários dos sintomas comuns a esse quadro clínico viriam indicar uma hipersensibilidade do Eu, tais como os sintomas motores e sensoriais (astasia, tremores, paralisias, a hiperestesia de todos os órgãos dos sentidos) e também os sonhos de angústia e os transtornos de caráter como a irritabilidade, os acessos de cólera e ainda transtornos como a hipocondria (Ferenczi, 1918/2011b). Aponta ainda a presença de manifestações que denotariam uma regressão ao narcisismo infantil. Alguns comportamentos que, segundo ele, atestariam essa regressão são comuns nos quadros de neurose traumática, tais como a importância desmedida concedida à alimentação, os acessos de raiva, a necessidade de ser mimado e condoído, a recusa de trabalhar e a demanda de ser cuidado como criança (Ferenczi, 1918/2011b).

A referência ao narcisismo, assim formulada, continuará aparecendo, reiteradamente, na literatura psicanalítica sobre as neuroses traumáticas. Michèle Bertrand (2002), por exemplo, nos fala da importância que essa noção adquiriu na compreensão desses quadros clínicos. Ela afirma:

Trata-se, certamente, de sintomas que advém de uma grave injúria narcísica. Por um lado, eles atestam a gravidade da invasão que provoca a perda de toda autoconfiança, de toda autoestima. Por outro, eles constituem um arranjo da situação para que o sujeito possa sobreviver: é isso o que visa a clivagem, o sentimento de desrealização; é também o que visa o delírio, geralmente de perseguição, que sobrevém após um grave traumatismo. Todos esses sintomas constituem tentativas para manter uma consistência mínima do Eu e para manter, do lado de fora, o processo de destruição (Bertrand, 2002, p. 107).

Como compreender essa injúria narcísica ocasionada pelo trauma, sem perder de vista o caráter pulsional do narcisismo? Ou, dito de outra forma, como manter a referência ao narcisismo sem perder de vista o papel da sexualidade nas neuroses traumáticas? Para prosseguirmos em nossa argumentação, é fundamental, portanto, precisar o que entendemos por regressão ao narcisismo em decorrência de uma injúria narcísica.

Foi inicialmente na abordagem dos fenômenos psicóticos que Freud (1914/2004) introduziu a ideia de um retorno sobre o Eu do investimento libidinal. Na verdade, ele observou que esse retorno ao narcisismo se dá também nos quadros neuróticos, mas, ao mesmo tempo, reconheceu que os neuróticos conservam, na fantasia, o vínculo erótico com as pessoas e as coisas, o que não se dá na psicose. Comentando essa formulação freudiana, na tentativa de esclarecer a diferença, então tornada clássica, entre o que se passa na neurose e na psicose, relativamente ao retorno da libido ao Eu, Laplanche afirma o seguinte:

Se a introversão pode explicar certos tipos ou certas fases da existência neurótica, ela é incapaz de, por si mesma, esclarecer a reinversão operada pela psicose, essa espécie de mundo que ela cria para além do espelho: mesmo se há, em seguida, a recriação de um novo mundo fantasmático, é a partir de uma retração radical que a nova elaboração vai se realizar. Num primeiro tempo, é, antes de tudo, na esfera do ego e unicamente nessa esfera que se produz a tentativa de "ligação" da energia libidinal liberada pelo fim de mundo e isto sob duas formas aparentemente bem diferentes: o delírio de grandeza e a hipocondria. Mas, quer o limite do ego se estenda até os espaços cósmicos, ou, ao contrário, se recolha às dimensões do órgão doente, quer a libido seja mais ou menos bem controlada, ou, ao contrário, flutuante, colocando o sujeito na iminência de transbordamento pela angústia, o combate psicótico, em seu início, se apresenta sempre como uma tentativa desesperada para demarcar novamente um certo território (Laplanche, 1970/1985, p.74, grifos nossos).

O que assinalamos nessa passagem é o caráter radical do recolhimento da libido ao Eu que se opera na psicose, entendido por Laplanche como a tentativa desesperada de delimitar, novamente, as fronteiras psíquicas de tal forma que elas possam conter o excesso pulsional desencadeado pelo fim do mundo, isto é pela perda do investimento no objeto. Entendemos que a perda do objeto somente desencadeia um excesso pulsional porque ela é, ao mesmo tempo, uma perda do Eu. Cada objeto investido libidinalmente é um objeto identificatório no sentido em que ele faz parte da trama de representações que constituem o tecido egoico. O investimento de um objeto de amor significa sempre um contrainvestimento, pois por trás do objeto de amor se perfila, invariavelmente, o objeto da pulsão parcial perversa e polimorfa que deve permanecer recalcado. A perda do objeto de amor implica, pois, na esgarçadura da trama egoica e na inevitável invasão do Eu pelas pulsões parciais. E isso vale para qualquer sujeito. O que irá constituir a diferença entre uns e outros no sentido de um retorno ao Eu mais radical, a ponto de podermos falar de uma regressão ao narcisismo, será a possibilidade ou não de reinvestir as fronteiras egoicas e bloquear a invasão pulsional, com menor prejuízo da homeostase psíquica e, portanto, da possibilidade de re-enviar a libido de volta aos objetos.

Como transpor essas conclusões para o domínio das neuroses traumáticas? Lembremos que a referência ao narcisismo a propósito das neuroses de guerra já estava presente em Freud (1920/2006), quando este ressalta o aspecto econômico do trauma cuja força mecânica geraria um quantum de excitação sexual, excessivo ante o despreparo do aparelho psíquico. A excitação assim gerada se afigura livre, sem possibilidade de escoamento, a não ser que um sobreinvestimento da instância egoica possa ligá-la. Trata-se, então, também nestes casos, da necessidade de um trabalho de ligação do Eu no sentido de conter uma excitação sexual aumentada. Mas a que se deve esse aumento da excitação sexual? Trata-se de uma mera transformação da força mecânica em excitação sexual, como na teoria da coexcitação? Ora, é evidente que qualquer situação traumática desestabiliza o equilíbrio da instância egoica e isso para além da constatação corriqueira de que o trauma é invasão abrupta, que provoca susto ou pânico. O que parece comum às diversas situações traumáticas, desde as grandes catástrofes naturais ou as catástrofes humanas, como os genocídios ou atentados, e também os acidentes individuais, até as perdas, como o exílio ou a morte de um ente querido, entre outras, é a ruptura do tecido de representações que até então sustentavam o Eu. O que fica patente nesse recolhimento narcísico do traumatizado não seria a tentativa desesperada para demarcar novamente o território do Eu? Mas essa tentativa é dificultada dos dois lados: do lado do mundo exterior que o confrontou com uma realidade até então encoberta pelas ilusões constitutivas e necessárias, tais como a ilusão do amparo do outro, da possibilidade de escapar dos perigos mortais, do pertencimento a uma comunidade, da confiança no semelhante etc. Do lado do mundo interno, as excitações ameaçadoras, porém até então contidas, aproveitam-se dessa vulnerabilidade para invadir o território do Eu. Sem o apoio das ilusões que recobrem o mundo exterior, as excitações pulsionais, aquelas que estão no fundamento da constituição subjetiva, sobrepõem-se ao traumatismo, exigindo um trabalho de contenção. Foi nesse sentido que salientamos anteriormente que toda situação traumática é necessariamente habitada pela pulsão sexual, o que é mostrado, de forma incisiva, no texto de Abraham (1918/2010) sobre as neuroses de guerra.

Entretanto, o trauma parece tirar de cena a sexualidade, ficando em primeiro plano a retirada do investimento dos objetos e a volta sobre o Eu. O momento de reinvestimento dos objetos, da recolocação em cena da sexualidade, já indicaria a via de uma possível superação (Bertrand, 2002). Esse trabalho de reinvestimento revela-se mais ou menos oneroso de acordo com cada situação singular. Abraham (1918/2010) ressaltou o fator da predisposição individual, Mas talvez devamos acrescentar a essa conclusão que a intensidade da situação traumática, no sentido de seu poder de devastação das balizas do Eu, é também um fator que não deve ser menosprezado ao se considerar a dificuldade de elaboração psíquica.

As últimas considerações levam-nos até um tema que não se pode negligenciar quando se trata das neuroses traumáticas, isto é, o tema da compulsão à repetição. Da mesma forma que o trauma parece tirar de cena a sexualidade, ele tira de cena o princípio de prazer. Em muitos casos, sua elaboração mostra-se dificultada por uma recalcitrante repetição das reminiscências do acontecimento traumático, o que nos leva a tratar, em seguida, da relação entre neuroses traumáticas e pulsão de morte.

NEUROSES TRAUMÁTICAS E PULSÃO DE MORTE

Com a publicação de "Além do princípio de prazer" (Freud, 1920/2006), a noção de compulsão à repetição passará a ser referência obrigatória na literatura psicanalítica a respeito do trauma, a partir da hipótese freudiana sobre a função da repetição dos sonhos de angústia, recorrentes nos sujeitos traumatizados. Duas questões desafiam-nos a partir dessa hipótese freudiana. A primeira delas se refere à natureza da excitação que invade o psiquismo exigindo o trabalho de ligação. A segunda se referre à função da repetição e seus fracassos no restabelecimento do equilíbrio perturbado da economia psíquica.

Comecemos então pela primeira questão: qual a natureza da excitação que invade o psiquismo exigindo o trabalho de ligação? Qual sua relação com a sexualidade infantil ou, mais geralmente, com a pulsão? Tratar-se-ia da excitação sexual gerada como coexcitação a partir da força mecânica do trauma, como chegou a propor Freud (1920/2006)? Ou seria a energia própria da pulsão de morte aquela que é desencadeada nessas situações? Essas questões têm, a nosso ver, importância decisiva para se resguardar a especificidade da abordagem psicanalítica do traumatismo e pensamos que a interpretação laplancheana da teoria pulsional em Freud abre-nos, sobre isso, uma via de abordagem bastante fecunda, original e única dentre os pós-freudianos. Para retomar essa interpretação, em poucas palavras, destacaremos inicialmente uma passagem de "Vida e morte em psicanálise" na qual Laplanche afirma o seguinte: "é a sexualidade que representa o modelo de toda pulsão e é, provavelmente, a única pulsão propriamente dita" (Laplanche, 1970/1985, p. 17). Esta tese, reafirmada ao longo de todo esse livro e sustentada pela análise dos principais textos freudianos sobre o conceito de pulsão, desemboca na concepção do dualismo pulsional em termos da oposição entre pulsão sexual de vida e pulsão sexual de morte. A passagem seguinte explicita o sentido desta oposição:

Enquanto que, desde as origens da psicanálise, a sexualidade era, em sua essência, hostil à ligação, princípio de "desligamento" ou de desencadeamento (Entbindung) que só podia se ligar pela intervenção do ego, o que surge com Eros é a forma ligada e ligadora da sexualidade, posta em evidência pela descoberta do narcisismo. É essa sexualidade investida no seu objeto, presa a uma forma, que sustém doravante o ego e a própria vida, assim como este ou aquele modo de sublimação. Face a este triunfo do vital e do homeostático, tratava-se para Freud, e dentro da necessidade estrutural de sua descoberta, de reafirmar, não somente em psicanálise, mas mesmo em biologia, mediante uma superação categórica dos cortes epistemológicos, uma espécie de antivida como sexualidade, gozo, negativo, compulsão de repetição" (Laplanche, 1970/1985, p. 126-127, grifos no original).

Nessa perspectiva, a excitação que mobiliza a compulsão à repetição, postulada em "Além do princípio de prazer" (Freud, 1920/2006), não seria outra senão aquela advinda da pulsão sexual de morte, isto é, dos conteúdos sexuais infantis recalcados, naquilo que eles comportam de mais rebelde às tentativas de ligação. Com isso em mente, retomaremos agora nossa última questão, qual seja, a função da repetição e o motivo de seus fracassos nas tentativas de restabelecimento do equilíbrio da economia psíquica, perturbado pelo traumatismo.

TRAUMATISMO E TRADUÇÃO

Um pequeno fragmento clínico, relatado por Bertrand (2002), pode ajudar-nos a melhor formular nossa questão. Trata-se do caso de um menino de dez anos de idade cuja família foi dizimada pelo genocídio acontecido em Ruanda, em 1994. Ele foi o único sobrevivente dentre os seis irmãos; seu pai também foi morto, sua mãe conseguiu fugir, porém nunca mais foi encontrada e ele foi resgatado por um tio materno com quem passou a viver, foi encaminhado para tratamento no "Centro Nacional de Traumatismos de Kigali". Parecia uma criança normal, mas apresentava graves sintomas que se repetiam várias vezes ao dia: seus olhos se reviravam, ela caía no chão e urinava. Depois de muito tempo de atendimento, sem conseguir qualquer progresso com essa criança, a equipe de tratamento reúne-se e discute o caso, recuperando novos dados de sua história bem como da situação traumática vivida por ela. A par dessa história, encontram sentido para as manifestações sintomáticas repetitivas da criança. Os olhos revirados teriam a ver com o fato de que os agressores perfuraram os olhos do pai ao assassiná-lo, o que teria sido presenciado pela criança. O urinar, que também se repetia insistentemente, estaria ligado à expressão linguística "chorar com seu ventre" (Bertrand, p. 110), própria do seu dialeto, utilizada para designar uma dor extrema, impossível a expressar. Depois dessa mobilização da equipe, o tratamento ganha novo fôlego e torna-se possível iniciar, com a criança, um processo de reconstrução de sua história o que leva, entre os demais ganhos, ao desaparecimento dos sintomas.

Tomando emprestado esse fragmento de caso, retomemos nosso argumento. Duas questões entrelaçam-se aqui. A primeira delas se refere à relação daquilo que se repete com o processo de simbolização e a segunda nos leva a interrogar sobre o fracasso reiterado das tentativas de ligar o excesso de excitação. Ou seja, como entender as manifestações repetitivas dessa criança, claramente ligadas ao trauma sofrido, junto ao fato de que tais repetições não desembocam em uma liquidação da excitação?

A noção de fixação ao trauma é geralmente invocada quando se aborda esse processo de repetição. Uchitel (2001), por exemplo, afirma que "o conceito de fixação enriquece a compreensão do trauma. O trauma impede as transcrições (...)" (p. 51). Referindo-se também à noção freudiana de fixação ao trauma, Borges e Cardoso consideram que "o momento propulsor do trauma permanece como que congelado no psiquismo, sob a forma de impressões traumáticas, verdadeiro 'corpo estranho interno' cujo retorno dar-se-á sob a forma de repetições inevitáveis" (Borges & Cardoso, 2011, p. 106).

A constatação de uma fixação no momento traumático leva, inevitavelmente, à interrogação a respeito da relação de tais impressões traumáticas com o domínio do sentido, da representação ou das cadeias associativas. Sobre esse ponto, as autoras acima citadas apresentam também pontos de vista semelhantes. Uchitel (2001) afirma que "o sonho traumático, por exemplo, reimprime a situação do acidente, mas não o representa, simplesmente o apresenta" (p.75). Borges e Cardoso (2011), por sua vez, afirmam que "o que estaria no cerne das neuroses traumáticas é justamente essa impossibilidade de veiculação do vivido de terror sob uma forma representacional" (p.112).

O que julgamos importante salientar aqui, muito mais do que a oposição entre apresentação e representação, é a exclusão do vivido traumático relativamente a uma rede de sentidos e sua repetição como tentativa de captura da excitação excedente, como propôs Freud (1920/2006). No caso acima reportado, a equipe que tratava a criança descobriu sentidos para dois de seus sintomas, o que nos leva a indagar: estaríamos, então, diante de sintomas de conversão que veiculariam sentidos inconscientes, como na histeria? Em várias das observações de Ferenczi (1916/2011a), sobre os neuróticos de guerra, este autor constatou a presença de sintomas motores e sensoriais que considerou equivalentes aos sintomas de conversão histérica. Mas, no caso da criança de Kigali, bem como em outros casos em que há repetições insistentes e pontuais, em sonhos ou na vigília, de manifestações sintomáticas corporais, claramente ligadas à cena traumática, poderíamos tratá-las invariavelmente como sintomas de conversão? A nosso ver, o revirar os olhos, o cair no chão e o urinar, repetidos pela criança, não seriam equivalentes a um sintoma histérico, isto é, eles não seriam substitutos simbólicos de um conteúdo recalcado. Eles simplesmente atualizariam o horror e o pânico vividos pela criança e suas reações instintivas de medo, completamente subtraídas de sentido, ou, ainda, poderíamos supor que eles colocariam em cena restos da vivência traumática, fragmentos da cena presenciada e percebida. O que não significa que menosprezamos sua função na elaboração do trauma, mas salientamos, antes, a importância de se considerar o potencial desagregador de certas situações traumáticas que ocasionam verdadeira clivagem do psiquismo. A criança de Kigali, em seu comportamento aparentemente normal, era repetidamente surpreendida pelos sintomas descritos acima, como se, a cada momento, tentasse integrar em seu Eu uma parte de suas vivências que resistia a uma transcrição. Foi somente com a ajuda de seus terapeutas no resgate de sua história e na construção de sentidos, que ela iniciou o processo de ligação das impressões traumáticas.

Tal resistência à entrada numa cadeia de representações de certas impressões traumáticas levou Cardoso (2011) a propor a categoria de mensagem antienigmática como aquela mensagem que seria veiculada pela vivência traumática. Esta autora afirma:

Assim, caberia examinar o estatuto singular das mensagens que estariam em jogo nas neuroses traumáticas, entendendo que um acontecimento externo, possível desencadeador de um estado traumático, se apresenta ao sujeito como elemento que se impõe ao seu psiquismo, que o invade qual mensagem, neste caso, mensagem "ultraclara", poder-se-ia dizer, antienigmática (Cardoso, 2011, p. 76).

Por nossa parte, pensamos que o acontecimento traumático expõe de forma ultraclara o desamparo do sujeito, ameaçando, de fato, sua integridade vital e consequentemente a integridade do Eu. Mas por que essa ameaça à vida, uma vez passada, não se torna passado, por que não pode ser acolhida nas redes de representações que constituem a história do sujeito? Podemos esboçar duas vias de respostas que indicam os dois lados de um mesmo processo. A primeira delas focaliza o Eu como instância tradutora e a outra se dirige para as mensagens veiculadas pela situação traumática, ou atualizadas por ela. Do lado da instância tradutora, podemos conceber que, num primeiro momento, ela é completamente posta fora de ação, pelo próprio choque, com o excesso de excitação que ele introduz. Num segundo momento, aquele da repetição das impressões traumáticas que não leva, todavia, à sua transcrição, faltam os assistentes de tradução. O garoto de Ruanda, com seis anos à época do genocídio, perdeu de fato os pais que, certamente, eram seus objetos de amor, no sentido tanto da contenção física quanto da sustentação do seu narcisismo, e nesse sentido, objetos que lhe ofereciam possibilidades de traduções, constitutivas tanto de seu Eu corporal quanto de sua história, de suas memórias, ligadas no Eu instância. Por parte daqueles que o acolheram e da sociedade à qual pertencem faltam também assistentes de tradução. Como traduzir um genocídio, resguardando a possibilidade de confiança no ser humano? Ora, a história tem mostrado que os genocídios constituem traumas para a humanidade cujo processo de redução, de elaboração, se faz lentamente e sem possibilidade de esgotamento.

Na outra via de acesso à questão dos sucessivos fracassos das tentativas de tradução das impressões traumáticas, é importante ressaltar a força desagregadora das mensagens sexuais enigmáticas que são atualizadas pelo trauma. Face ao acontecimento traumático, o sujeito encontra-se completamente desamparado, o que reproduz necessariamente a situação de passividade originária. Retomando as palavras de Laplanche (1986/1992a), podemos dizer que o trauma é arrombamento extenso de um invólucro e isto torna homólogos o acontecimento traumático atual e a situação de sedução originária, ligados pela noção de perfurar, arrombar, penetrar, em que se faz presente à penetração da mensagem sexual do outro na superfície corporal da criança.

No caso dos atos de crueldade, perpetrados na ocasião do massacre em Ruanda, concordamos com a designação de mensagem ultraclara para caracterizá-los, no tanto em que o sadismo é ali explícito, impedindo que estes atos sejam metaforizados. Entretanto tais atos não deixarão de evocar mensagens sexuais, anteriormente implantadas ou intrometidas (Laplanche, 1992b; 2007), que veiculam pulsões parciais perversas e polimorfas do outro, inclusive pulsões sádicas inconscientes. Foi nesse mesmo sentido que afirmamos anteriormente que as excitações pulsionais, aquelas que estão no fundamento da constituição subjetiva, sobrepõem-se ao traumatismo exterior, tornando mais oneroso o trabalho de contenção da excitação por ele desencadeada. Ante o ataque vindo de fora e aquele reativado no interior, o Eu, como instância tradutora e recalcante, deverá ser capaz de recompor suas fronteiras em um renovado trabalho de tradução para então retomar seu posto defensivo, deixando em um território estrangeiro interno os restos não-traduzidos ou até mesmo aquelas mensagens rebeldes a qualquer tentativa de tradução.

Recebido em 19-07-2012

Aceito em 22-11-2012

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  • Endereço para correspondência

    Maria Teresa de Melo Carvalho. Rua Bambuí, 25/1600, CEP 30210-490, Belo Horizonte-MG, Brasil.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Set 2012

    Histórico

    • Recebido
      19 Jul 2012
    • Aceito
      22 Nov 2012
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