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Relacionamentos Afetivo-Sexuais de Mulheres Encarceradas em Presídios Mistos Brasileiros

Affective-Sexual Relationships of Incarcerated Women in Brazilian Mixed Prisons

Relaciones Afectivo-Sexuales de Mujeres Encarceladas en Prisiones Mixtas Brasileñas

Resumo

Este artigo pretende discutir os relacionamentos afetivo-sexuais de mulheres aprisionadas a partir de seis estudos de caso com reclusas em um presídio misto brasileiro de pequeno porte. Utilizaram-se como instrumentos entrevistas semiestruturadas, analisadas a partir da criminologia crítica feminista e da teoria do apego de John Bowlby. Os relacionamentos afetivo-sexuais da vida adulta foram compreendidos a partir das vivências da infância, marcadas pela insatisfação de suas necessidades afetivas, violências múltiplas, rompimentos de vínculos afetivos e desejo de constituição de uma família entendida como tradicional. Na prisão, enfrentam limitações para o contato, rompimentos e, algumas vezes, o fortalecimento dos relacionamentos. Em todos os casos analisados, aspiram reiterar a função do ser mulher por meio da constituição de uma família para a obtenção do reconhecimento enquanto sujeito. Evidenciou-se a necessidade de questionamento das normativas sociais de gênero, das restrições ao contato impostas nas prisões e da atual política de encarceramento brasileira.

Palavras-chave:
Aprisionamento; Relacionamentos Afetivo-Sexuais; Gênero; Teoria do Apego

Abstract

This study aims to discuss imprisoned women’s affective and sexual relationships based on six case studies with female prisoners in a small Brazilian mixed prison. The instruments used were semi-structured interviews, analyzed according to critical feminist criminology and attachment theory, by John Bowlby. The affective-sexual relationships in adulthood were understood based on childhood experiences, marked by the lack of satisfaction of their affective needs, multiple violence, disruption of affective bonds, and the desire of constituting what is deemed as a traditional family. In prison, they face contact limitations, breakups and, sometimes, strengthening of the relationships. In all the cases analyzed, they aspire to reiterate the function of being a woman by establishing a family to obtain recognition as a subject. This research made apparent the need for questioning social gender normativities, restrictions on contact imposed within prisons, and current Brazilian incarceration policy.

Keywords:
Imprisonment; Affective-Sexual Relationships; Gender; Attachment Theory

Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir sobre las relaciones afectivo-sexuales de las mujeres encarceladas en base a seis estudios de caso con prisioneras en una pequeña prisión mixta de Brasil. Se utilizaron como instrumentos entrevistas semiestructuradas, analizadas con base en la criminología feminista crítica y la teoría del apego, por John Bowlby. Las relaciones afectivo-sexuales en la edad adulta pueden entenderse a partir de las experiencias infantiles, marcadas por la insatisfacción de sus necesidades afectivas, la violencia múltiple, la ruptura de los lazos afectivos y el deseo de formar una familia entendida como tradicional. En prisión, enfrentan limitaciones en el contacto, rupturas y, a veces, el fortalecimiento de las relaciones. En todos los casos analizados, aspiran a reiterar la función de ser mujer mediante el establecimiento de una familia para obtener el reconocimiento como sujeto. La necesidad de cuestionar las normas sociales de género, las restricciones al contacto impuestas en las cárceles y la actual política de encarcelamiento brasileña se hicieron evidentes.

Palabras clave:
Encarcelamiento; Relaciones afectivo-Sexuales; Género; Teoría del Apego

Introdução

A prisão apresenta-se como um espaço majoritariamente masculino em âmbito mundial. No Brasil, a população prisional totaliza 748.009 pessoas, das quais 36.929 são mulheres, ou seja, apenas 4,94% do número total de pessoas aprisionadas (Ministério da Justiça, 2019Ministério da Justiça. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). (2019). https://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias
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). Embora as taxas de criminalidade feminina requeiram atenção, o fato de existirem mais homens detidos do que mulheres acarreta a invisibilização de suas especificidades (Codd, 2008Codd, H. (2008). In the shadow of prison: Families, imprisonment and criminal justice. Routledge.).

Ao serem aprisionadas, as mulheres enfrentam uma dupla punição, pelo crime cometido e por transgredirem prescrições sociais de gênero que atribuem a elas características como docilidade, submissão e passividade, atributos de esposas e mães dedicadas (Carvalho & Mayorga, 2017Carvalho, D. T. P., & Mayorga, C. (2017). Contribuições feministas para os estudos acerca do aprisionamento de mulheres. Revista Estudos Feministas, 25(1), 99-116. https://doi.org/10.1590/1806-9584.2017v25n1p99
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; Cunha, 2018Cunha, M. I. (2018). On stage and off: The shifting relevance of gender in women’s prison. In S. Gomes & V. Duarte (Eds.), Female crime and delinquency in Portugal: In and out of the criminal justice system (pp. 57-74). Palgrave Macmillan.). Os estudos acerca dessa temática também sofrem impactos de normativas tradicionais de gênero que levam em consideração a mulher reclusa principalmente como mãe (Cunha & Granja, 2014Cunha, M. I., & Granja, R. (2014). Gender asymmetries, parenthood and confinement in two Portuguese prisons. Champ Pénal, 11. https://doi.org/10.4000/champpenal.8809
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), o que pode levar à supressão dos demais aspectos do cumprimento da pena, como o exercício da sexualidade na prisão (Constant, 2013Constant, C. (2013). Sexe(s) derrière les barreaux : Inégalités d’ accès à la visite intime et hétérogénéité des pratiques sexuelles. Rita, 6.; Figueiredo & Granja, 2020Figueiredo, A. C. C., & Granja, R. P. G. (2020). Laços familiares e afetivo-sexuais de mulheres nas prisões brasileiras e portuguesas. Subjetividades, 20(3), Artigo e10358. http://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i3.e10358
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).

O controle e repressão sexual que caracterizam as instituições prisionais incidem, sobretudo, sobre a mulheres. A partir da reclusão, a intimidade é transposta do domínio privado para o público, o que pode potencializar situações de vulnerabilidade ou, paradoxalmente, gerar benefícios para elas, como a interrupção temporária de ciclos de violência (Comfort, 2008Comfort, M. (2008). Doing time together: Love and family in the shadow of the prison. The University of Chicago Press.; Granja, Cunha, & Machado, 2012Granja, R. P. G., Cunha, M. I., & Machado, H. (2012). Intimidades em (des)conexão com a prisão: As relações amorosas de mulheres antes e durante a reclusão [Apresentação de trabalho]. VII Congresso Português de Sociologia: Sociedade, Crise e Reconfigurações, Porto, Portugal. https://bit.ly/3fMHNGG
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). Mesmo com inúmeras barreiras, buscam-se estratégias para a manutenção dos vínculos afetivo-sexuais no cárcere (Comfort, 2008; Figueiredo & Granja, 2020Figueiredo, A. C. C., & Granja, R. P. G. (2020). Laços familiares e afetivo-sexuais de mulheres nas prisões brasileiras e portuguesas. Subjetividades, 20(3), Artigo e10358. http://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i3.e10358
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).

Tendo em vista as informações supramencionadas, realizou-se uma pesquisa com o objetivo de discutir os relacionamentos afetivo-sexuais de mulheres aprisionadas, a qual culminou neste artigo, embasado na tese de doutoramento de uma das autoras, que também atuou como psicóloga do sistema prisional no estado de Minas Gerais, quando identificou, nos atendimentos realizados às mulheres, queixas referentes ao abandono de seus parceiros, à separação após a reclusão de ambos ou às dificuldades para a manutenção da afetividade e sexualidade na prisão.

A investigação foi realizada em um presídio misto, localizado no interior de Minas Gerais, com capacidade para 118 pessoas, mas onde cerca de 270 encontravam-se reclusas. Havia apenas uma cela feminina e duas alas masculinas, e alguns espaços de circulação e o pátio eram compartilhados por homens e mulheres, em horários alternados. A infraestrutura precária possibilitava o contato entre as pessoas reclusas por meio da comunicação oral e envio de bilhetes, ainda que proibidos pela administração prisional.

Os dados da pesquisa foram analisados qualitativamente a partir da teoria do apego, de John Bowlby, e da criminologia crítica feminista. Optou-se pela utilização da primeira alicerçada na compreensão de que as vinculações afetivas, ou seja, as relações relativamente duradouras de afetividade com figuras significativas, podem impactar o desenvolvimento e a maneira como os indivíduos interpretam o mundo ao longo da vida, assim como seus relacionamentos afetivos adultos (Bowlby, 1969/1990Bowlby, J. (1990). Apego: A natureza do vínculo (Vol. 1). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1969)). Adotou-se também a criminologia feminista, que aproxima correntes feministas da criminologia crítica (Weigert & Carvalho, 2020Weigert, M. A. B., & Carvalho, S. (2020). Criminologia feminista com criminologia crítica: Perspectivas teóricas e teses convergentes. Revista Direito e Práxis, 11(3), 1783-1814. https://dx.doi.org/10.1590/2179-8966/2019/38240
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). Esta questiona estruturas de poder e a seletividade penal diante de um recorte de classes, visibilizando as especificidades de gênero e concebendo o sistema penal como mais um mecanismo de controle exercido sobre as mulheres, através da imposição de um padrão de normalidade (França, 2014França, M. H. O. (2014). Criminalidade e prisão feminina: Uma análise da questão de gênero. Ártemis, 18(1), 212-227.). Portanto, buscou-se abarcar as especificidades e os processos de vinculação de cada história, assim como as relações sociais produtoras de dominação e opressão, construindo um diálogo entre trajetórias únicas e estruturas macrossociais.

Através da literatura e com a análise dos casos, compreendemos os relacionamentos afetivo-sexuais na vida adulta a partir das vivências das participantes durante a infância, na qual as necessidades afetivas não foram satisfeitas, enfrentaram violências múltiplas e rompimentos sucessivos dos vínculos afetivos.

Método

Este artigo intenciona discutir os relacionamentos afetivo-sexuais de mulheres aprisionadas. Efetuou-se uma pesquisa qualitativa (Guba & Lincoln, 1994Guba, E. G., & Lincoln, Y. S. (1994). Competing paradigms in qualitative research. In N. K. Denzin & Y. S. Lincoln (Orgs.), Handbook of qualitative research (pp. 105-117). Sage.), na qual foram realizados seis estudos de caso com mulheres aprisionadas que estivessem em um relacionamento afetivo-sexual ou que tenham sido reclusas enquanto estivessem no relacionamento, independentemente do estado civil ou da orientação sexual. Como instrumento, utilizaram-se os dados de entrevistas semiestruturadas efetuadas durante o mês de junho de 2017. Assim, as informações apresentadas refletem a realidade do momento das entrevistas.

As participantes foram selecionadas aleatoriamente; o perfil delas revelou diversidade e será brevemente apresentado, com a utilização de nomes fictícios:

  1. Amanda: solteira, 33 anos, branca, ensino médio incompleto. Foi presa acusada de tráfico de drogas com o seu companheiro. Trata-se de sua terceira reclusão, é presa provisória e encontra-se reclusa há quatro meses. Teve diversos relacionamentos esporádicos e cinco filhos foram gerados nessas circunstâncias, com os quais não teve contato.

  2. Gislene: legalmente casada (separada do cônjuge desde os 16 anos), 36 anos, branca, ensino fundamental incompleto. Foi condenada a cinco anos e seis meses de pena de prisão por tráfico de drogas. Está reclusa há dois anos e seis meses. Embora seja sua primeira reclusão, tinha contato com o contexto da criminalidade. Tem três filhos, com os quais mantém o vínculo. Após o aprisionamento, um relacionamento íntimo foi rompido e engajou-se em um novo relacionamento afetivo.

  3. Paola: solteira, 32 anos, branca, ensino fundamental completo. Presa provisoriamente há dois meses sob a acusação de tráfico de drogas, sua décima terceira reclusão. Teve diversos relacionamentos afetivo-sexuais esporádicos e concebeu seis filhos, com os quais não teve contato. Mantém relacionamento afetivo com dois irmãos, e um deles encontra-se recluso no mesmo estabelecimento prisional.

  4. Cláudia: divorciada, 53 anos, branca, ensino fundamental incompleto. Foi presa sob acusação de proveito da prostituição alheia. Trata-se da sua primeira reclusão, é presa provisória e encontra-se reclusa há três meses. Tem sete filhos, dos quais sempre cuidou, e iniciou um namoro com um homem que conheceu na prisão.

  5. Elisa: solteira, 34 anos, branca, ensino superior incompleto. Foi presa com Cláudia, sua mãe, ambas acusadas de proveito da prostituição alheia. É sua primeira reclusão, é presa provisória e encontra-se reclusa há três meses. Teve relacionamentos íntimos duradouros e tem três filhos, que eram cuidados por ela. Estava namorando quando foi aprisionada, mas jamais recebeu carta ou visita do namorado.

  6. Karen: casada, 35 anos, branca, ensino médio incompleto. Foi presa acusada de estupro de vulnerável com o companheiro. É a primeira reclusão de ambos, condenados a oito anos de pena de prisão e reclusos há dez meses. Teve relacionamentos afetivo-sexuais duradouros, dos quais foram gerados três filhos, cuidados por ela. Após uma relação extraconjugal do companheiro, a amante acusou o casal de ter estuprado sua filha, acarretando a prisão dos dois. Eles casaram-se legalmente na prisão.

Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, demonstrando estar de acordo com o fim da pesquisa. O projeto foi aprovado pela Secretaria de Administração Prisional e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUC Minas. Por motivos éticos, não será revelada a localidade do presídio em que foi realizada a pesquisa.

As entrevistas foram transcritas, seus principais pontos, anotados e transformados em texto. Realizou-se a leitura exaustiva do material, criando-se um resumo de cada relato. A análise foi dividida nas seguintes fases: apreciação crítica do material; decomposição dos elementos essenciais; agrupamento e classificação; análise final (Lakatos & Marconi, 2003Lakatos, E. M., & Marconi, M. A. (2003). Fundamentos de metodologia científica (5a ed.). Atlas.). Os dados foram interpretados a partir dos referenciais teóricos supracitados.

Resultados e Discussão

Através da análise das histórias de vida das entrevistadas, foi possível identificar similaridades e diferenças entre os relatos, chegando a um significado mais global de experiências singulares, trazendo uma perspectiva integrativa e analítica desses. Empregaram-se três organizadores dos relatos: histórico de vida e de relacionamentos afetivo-sexuais; a vida afetiva e sexual na prisão; expectativas futuras.

Histórico de Vida e de Relacionamentos Afetivo-Sexuais

Durante a infância, notou-se a ausência persistente de respostas por parte da figura de apego. Para Bowlby (1969/1990)Bowlby, J. (1990). Apego: A natureza do vínculo (Vol. 1). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1969), a partir da vinculação afetiva com a figura de apego são constituídos padrões de apego e modelos internos de funcionamento que guiam as percepções individuais, emoções, pensamentos, assim como as expectativas acerca de relacionamentos futuros. Assim, o vínculo afetivo com as figuras de apego na infância poderá impactar a capacidade de manutenção de relações futuras mutuamente gratificantes, embora possam ocorrer mudanças (Bowlby, 1979/2001Bowlby, J. (2001). Formação e rompimento dos laços afetivos. Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1979)). Em todas as histórias, os padrões apresentados pelos cuidadores podem ter impossibilitado a formação de um padrão de apego seguro, visto que foram frequentes situações de rejeição, descontinuidade da parentalidade e abandono.

Na vida adulta, as entrevistadas buscam por um parceiro que sirva como um porto seguro, fonte de cuidado, afeto, apoio emocional e satisfação sexual (Hazan & Shaver, 1987Hazan, C., & Shaver, P. (1987). Romantic love conceptualized as an attachment process. Journal of Personality and Social Psychology, 52(3), 511-524. https://doi.org/10.1037/0022-3514.52.3.511
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). Entretanto, não encontram o esperado e deparam-se com consecutivas frustrações e falta de respostas às suas necessidades afetivas. As vinculações afetivas iniciais das entrevistadas, nas quais estava ausente a constituição de base segura, auxilia na compreensão dos relacionamentos na vida adulta pouco gratificantes.

O rompimento de vínculos afetivos aconteceu desde a infância da maioria das participantes (Amanda, Cláudia, Gislene e Paola), que passaram por processos de separação e luto pela perda materna em suas trajetórias. Segundo Bowlby (1969/1990)Bowlby, J. (1990). Apego: A natureza do vínculo (Vol. 1). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1969), a perda durante a infância, a partir da separação entre crianças e suas mães ou outras figuras de apego, pode gerar sentimentos de desamor, rejeição e intensificação do conflito de ambivalência, e a impossibilidade de expressar abertamente os impulsos para reaver a pessoa perdida pode dificultar um resultado favorável diante do luto (Bowlby, 1979/2001Bowlby, J. (2001). Formação e rompimento dos laços afetivos. Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1979)), o que possivelmente aconteceu nos casos analisados, trazendo implicações.

A decisão pela saída do lar durante a infância/adolescência, ainda que temporariamente, foi percebida em todos os casos, e levou a novos rompimentos de vínculos, conforme demonstra a fala de Amanda: “Faz dez anos que eu não vejo o meu pai. Esses dias, eu estava triste, pensando. Eu imagino como que ele deve sofrer, né? Porque sem saber onde eu tô, se eu morri, se eu tô viva”. Já na vida adulta, o rompimento de vínculos afetivos repete-se sucessivamente e há fluidez nos relacionamentos amorosos (Giddens, 1993Giddens, A. (1993). A transformação da intimidade: Sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Editora Unesp.).

Todas as entrevistadas apresentaram o desejo de terem tido uma família conforme o modelo tradicional e idealizado, ou seja, composta por um homem, uma mulher e pelo menos um filho, que coabitam e seguem as regras sociais, cabendo ao homem a função da provisão das necessidades básicas da família (Féres-Carneiro, Ponciano, & Magalhães, 2007Féres-Carneiro, T., Ponciano, E. L. T., & Magalhães, A. S. (2007). Família e casal: Da tradição à modernidade. In C. Cerveny (Org.), Família em Movimento (pp. 23-36). Casa do Psicólogo.). Corroborou-se a necessidade de vida íntima e valorização da família tradicional no contexto brasileiro (Giddens, 1993Giddens, A. (1993). A transformação da intimidade: Sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Editora Unesp.) e nas prisões (Cúnico, Strey, & Costa, 2019Cúnico, S. D., Strey, M. N., & Costa, A. B. (2019). Quem está no comando? Mulher de bandido e os paradoxos da submissão. Revista Estudos Feministas , 27(2), Artigo e54483. https://dx.doi.org/10.1590/1806-9584-2019v27n254483
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), tendo sido construída uma expectativa de amor romântico centrada na crença de que a vida íntima e o parceiro ideal são necessários para uma vida feliz (Amorim & Stengel, 2014Amorim, A. N., & Stengel, M. (2014). Relações customizadas e o ideário de amor na contemporaneidade. Estudos de Psicologia (Natal), 19(3), 179-188. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2014000300003
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; Giddens, 1993). Karen, por exemplo, descreveu: “A minha vida inteira eu busquei isso: o grande amor da minha vida”. Da mesma forma, Gislene apontou: “Porque o que eu sempre quis mesmo foi uma família: uma mãe, um pai, os filhos”.

Trajetórias de sofrimento, segregação e sentimento de desqualificação por não atenderem às prescrições sociais de gênero podem ter intensificado esse desejo. Em um contexto marcado pela exclusão social, invisibilidade, negligência, escassas possibilidades de acesso a recursos econômicos, educacionais ou culturais, são perceptíveis tentativas de serem vistas e reconhecidas. Ao desejarem cuidar do lar, revelam uma adesão ao papel social esperado para as mulheres, construído, sobretudo, com o intuito de controle das mulheres no contexto brasileiro (Davis, 2016Davis, A. (2016). Mulheres, raça e classe. Boitempo.; Miyamoto & Krohling, 2012Miyamoto, Y., & Krohling, A. (2012). Sistema prisional brasileiro sob a perspectiva de gênero: Invisibilidade e desigualdade social da mulher encarcerada. Direito, Estado e Sociedade, 40, 223-241.). Por meio da maternidade e constituição de uma família, tentam adequar-se à função do “ser mulher”, aos moldes ontológicos do que é enquadrado enquanto humanidade (Cunha, 2014Cunha, M. I. (2014). The ethnography of prisons and penal confinement. Annual Review of Anthropology, 43, 217-233. https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-102313-030349
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).

Assim, todas parecem ter crenças cristalizadas acerca dos papéis de gênero (Carvalho & Mayorga, 2017Carvalho, D. T. P., & Mayorga, C. (2017). Contribuições feministas para os estudos acerca do aprisionamento de mulheres. Revista Estudos Feministas, 25(1), 99-116. https://doi.org/10.1590/1806-9584.2017v25n1p99
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; Cunha, 2018Cunha, M. I. (2018). On stage and off: The shifting relevance of gender in women’s prison. In S. Gomes & V. Duarte (Eds.), Female crime and delinquency in Portugal: In and out of the criminal justice system (pp. 57-74). Palgrave Macmillan.) e, no que se refere ao papel feminino, prepondera a visão da mulher como aquela que deve desempenhar o papel de cuidadora da família e da casa, além de ter características como docilidade, passividade e fidelidade. A cultura patriarcal aparece enraizada desde a infância das entrevistadas (Pimentel, 2016Pimentel, E. (2016). As marcas do patriarcado nas prisões femininas brasileiras. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas, 2(2), 169-178.), o que é reforçado diante da frustração por não terem tido mães com as características esperadas.

O mito da madrasta malvada permeia as trajetórias de Amanda e Paola, que relatam a dor vivenciada durante o convívio com essas mulheres. Serem preteridas com relação aos filhos delas, privadas da possibilidade de receberem a mesma alimentação e carinho, deixaram marcas nas participantes, o que se relaciona à afirmação de Bowlby (1979/2001)Bowlby, J. (2001). Formação e rompimento dos laços afetivos. Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1979) de que a frustração recorrente das necessidades da criança de amor e atenção pode ocasionar ansiedade e sentimento de rejeição. Terem convivido com mulheres que não apresentaram as características almejadas tanto socialmente (cuidado com a casa e família, docilidade e passividade) quanto pessoalmente (satisfação de necessidades afetivas) parece ter sido extremamente penoso e frustrante para as entrevistadas, que passaram a sonhar em desenvolver atributos diferentes dos observados.

Quanto ao papel masculino, por um lado, esperam dos homens a provisão financeira atrelada ao modelo de família tradicional (Féres-Carneiro et al., 2007Féres-Carneiro, T., Ponciano, E. L. T., & Magalhães, A. S. (2007). Família e casal: Da tradição à modernidade. In C. Cerveny (Org.), Família em Movimento (pp. 23-36). Casa do Psicólogo.), dedicação ao relacionamento conjugal e demonstração de amor incondicional por suas companheiras. Tais expectativas podem estar relacionadas à idealização paterna manifestada por todas as participantes, com exceção de Karen. Na maior parte dos casos, a idealização supracitada parece decorrer das ocasiões nas quais as mães optaram por deixar o lar e, diante disso, os pais passaram a serem vistos como homens que sofriam por amor, o que justificava qualquer erro cometido por eles. Suas crenças acerca dos pais podem ter colaborado para futuras buscas relacionadas ao amor-paixão romântico com a mitificação do parceiro (Smigay, 2000Smigay, K. E. V. (2000). Relações violentas no espaço da intimidade: Drama privado ou tragédia pública? [Tese de doutorado não publicada]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.). Ao mesmo tempo, em algumas situações, pode tratar-se de um mecanismo de defesa para o enfrentamento das adversidades, uma estratégia para não entrarem em contato com o sofrimento, característica relacionada ao padrão de apego evitativo (Karen, 1994Karen, R. (1994). Becoming attached: First relationships and how they shape our capacity to love. Oxford University Press.).

Por outro lado, contraditoriamente, as entrevistadas observaram comportamentos de homens durante a infância que podem ter contribuído para a naturalização dessas condutas, influenciando seus relacionamentos afetivos futuros. Esses também aparecem ligados ao papel masculino prescrito para os homens em nossa sociedade, tais como: agressividade, violência, ingestão de bebida alcóolica e infidelidade conjugal (Welzer-Lang, 2001Welzer-Lang, D. (2001). A construção do masculino: Dominação das mulheres e homofobia. Revista Estudos Feministas , 9(2), 460-482. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2001000200008
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).

Violências múltiplas são vivenciadas quando crianças e adolescentes: psicológica, física, sexual e financeira. Foi perceptível a coexistência de diferentes formas de violência interativa ou cumulativamente e seus impactos (Hope, Bryan, Trickett, & Osborn, 2001Hope, T., Bryan, J., Trickett, A., & Osborn, D. R. (2001). The phenomena of multiple victimization: The relationship between personal and property crime risk. The British Journal of Criminology, 41(4), 595-617.). A violência de gênero articula-se a fatores de risco como pobreza, etnicidade, local de residência e moradia em locais populosos, que se interseccionam (Akotirene, 2019Akotirene, C. (2019). Interseccionalidade. Jandaíra.; Smigay, 2000Smigay, K. E. V. (2000). Relações violentas no espaço da intimidade: Drama privado ou tragédia pública? [Tese de doutorado não publicada]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.). Foram citados como agressores mães, madrastas, pais, tios, pais adotivos e outros familiares. A importância de se discutir a violência doméstica e implementar políticas públicas que viabilizem o rompimento efetivo dos ciclos de violência foram evidenciadas.

Relacionamentos íntimos da vida adulta também são marcados por violências múltiplas, com dificuldade de se romper o relacionamento violento quando questões afetivas e eróticas estão presentes, além da percepção do mito do amor como consolidador do vínculo (Smigay, 2000Smigay, K. E. V. (2000). Relações violentas no espaço da intimidade: Drama privado ou tragédia pública? [Tese de doutorado não publicada]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.), conforme exemplifica a fala de Karen: “Eu tive relacionamento que eu vim a ter agressão e aí, aceitei. Traição, entendeu? Aí, eu entendi que, às vezes, não é da forma que a gente pensa. A gente estando dentro do contexto, muda totalmente a forma de pensar”.

Destaca-se a violência do Estado, tão presente na vida dessas mulheres. O descumprimento da Constituição em todas as suas dimensões (Pires, 2018Pires, T. (2018). Cartas do cárcere: Testemunhos políticos dos limites do Estado Democrático de Direito. In T. Pires & F. Freitas (Orgs.), Vozes do cárcere: Ecos da resistência política (pp. 166-212). Kitabu.) é observado nessas trajetórias de vida, nas quais faltam oportunidades de acesso à educação, saúde ou condições minimamente dignas e humanas. Corroborou-se a tese de que os principais atingidos pela seletividade penal são os indivíduos que agregam vulnerabilidades e processos cumulativos de exclusão social (Borges, 2019Borges, J. (2019). Encarceramento em massa. Jandaíra.; Carvalho & Mayorga, 2017Carvalho, D. T. P., & Mayorga, C. (2017). Contribuições feministas para os estudos acerca do aprisionamento de mulheres. Revista Estudos Feministas, 25(1), 99-116. https://doi.org/10.1590/1806-9584.2017v25n1p99
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; Davis, 2018Davis, A. (2018). Estarão as prisões obsoletas? Difel.). Notou-se ainda como faltou suporte nas políticas públicas em relação às violências vividas.

Relacionamentos hierárquicos (Del Priore, 2006Del Priore, M. (2006). História do amor no Brasil. Contexto.) são observados no histórico de relacionamentos afetivos dessas mulheres. Para aquelas que já tinham familiaridade com o contexto criminal, essas questões são intensificadas. As questões do “aval” - uma autorização escrita a punho pelo ex-companheiro liberando a mulher para novos relacionamentos - e da interdição - que proíbe a mulher até mesmo de se corresponder com outros homens na prisão -, foram observadas, conforme relatou Paola: “Ele [o ex-companheiro] me interditou aqui, não deixou eu corresponder com ninguém”. Notou-se no discurso das participantes que tais práticas não são questionadas, mas naturalizadas.

Nos relacionamentos afetivos, ciúme e objetificação da mulher por parte dos parceiros são frequentes. Paola, por exemplo, relata o fato de o ex-companheiro ter assassinado seu amigo por ter se relacionado sexualmente com ela: “Eu tinha que ter dado graças a Deus de eu ter ficado viva porque ele ia me matar também”. Exigências de que a mulher permaneça em âmbito doméstico são relatadas até mesmo com admiração por algumas participantes. Provavelmente visando corresponder às prescrições sociais de gênero que impõem às mulheres o cuidado da casa e aos homens a provisão financeira, acabam aceitando essa situação sem refletirem sobre a hierarquização dos relacionamentos. Restritas ao âmbito privado, acabam sendo lançadas à invisibilidade social (Miyamoto & Krohling, 2012Miyamoto, Y., & Krohling, A. (2012). Sistema prisional brasileiro sob a perspectiva de gênero: Invisibilidade e desigualdade social da mulher encarcerada. Direito, Estado e Sociedade, 40, 223-241.).

Assim como observado nas relações familiares durante a infância, casos extraconjugais foram enfrentados pela maioria das mulheres nos relacionamentos afetivo-sexuais adultos. Não apenas os homens foram infiéis nos relacionamentos vivenciados, pois quatro mulheres contaram terem sido infiéis. Contudo, enquanto a infidelidade masculina parece ser um comportamento esperado (Figueiredo & Souza, 2015Figueiredo, A. C. C., & Souza, R. M. (2015). As perdas ambíguas e a infidelidade conjugal. In G. Casellato (Org.), O resgate da empatia: Suporte psicológico ao luto não reconhecido (pp. 49-69). Summus.), as mulheres que tiveram casos extraconjugais, em seus discursos, buscam justificar-se, como Karen explicou: “A mulher, quando ela trai, ela trai ou para se vingar mesmo, ou para satisfazer alguma coisa que o marido não está satisfazendo dentro de casa, entendeu?”.

Os relacionamentos afetivos aconteceram sem tempo para planejamento ou elaboração, mas buscando satisfações imediatas. Amanda e Paola, por exemplo, embora sonhassem desde a infância em constituir uma família tradicional, acabavam se envolvendo em relacionamentos esporádicos, que visavam o prazer instântaneo e o uso de drogas, como relatou Amanda: “Tudo pelo dinheiro e o uso do crack. Eu levava crack pra gente usar. Se não tivesse isso, eu não queria encontrar. Era assim. Era o pior relacionamento que existia”.

Filhos também foram gerados sem planejamento, conforme o relato de todas as mulheres. Destaca-se a afirmação de Paola: “Eu, com onze anos, ao invés de estar com uma boneca na mão, eu tava com uma criança”. Mesmo as mulheres que não enfrentaram situações tão complexas quanto à de Paola tiveram gestações não planejadas. Seria, mesmo que inconscientemente, um desejo de constituição da família tradicional e adequação ao papel de gênero? Ou o desejo de uma vivência afetiva significativa? Ou uma tentativa de reparação de suas mães?

Corroborou-se o fato de as mulheres encarceradas se culparem não apenas pelo crime cometido, mas por acreditarem que falharam como mulheres e em suas responsabilidades maternais, já que muitas delas não cuidaram de seus filhos (Cunha, 2018Cunha, M. I. (2018). On stage and off: The shifting relevance of gender in women’s prison. In S. Gomes & V. Duarte (Eds.), Female crime and delinquency in Portugal: In and out of the criminal justice system (pp. 57-74). Palgrave Macmillan.; Cunha & Granja, 2014Cunha, M. I., & Granja, R. (2014). Gender asymmetries, parenthood and confinement in two Portuguese prisons. Champ Pénal, 11. https://doi.org/10.4000/champpenal.8809
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). Normativas de gênero que impõem à mulher o papel da maternidade interseccionam-se aos valores morais e religiosos internalizados, impactando os processos de subjetivação.

A repetição intergeracional foi notável na vida adulta. A maioria das entrevistadas demonstrou julgamento moral com relação às atitudes das suas mães, especialmente nos casos em que estavam inseridas na prostituição, tornaram-se alcoolistas, toxicodependentes ou não exerceram a maternagem. Por outro lado, a maioria delas repetiu os mesmos padrões comportamentais. Também ocorre repetição ao se analisar a dinâmica de funcionamento dos relacionamentos amorosos e as escolhas dos seus parceiros, maioritariamente infiéis, violentos, alcoolistas e/ou toxicodependentes.

Tal fato pode ser compreendido a partir da influência das primeiras experiências sociais, pois somos atraídos por pessoas que apresentam características similares à figura de apego na infância com base na acessibilidade e intimidade (Hazan & Shaver, 1987Hazan, C., & Shaver, P. (1987). Romantic love conceptualized as an attachment process. Journal of Personality and Social Psychology, 52(3), 511-524. https://doi.org/10.1037/0022-3514.52.3.511
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). Nos casos analisados, relacionamentos não satisfatórios puderam ser mantidos com parceiros que demonstravam padrão de apego semelhante ao do cuidador do sexo oposto durante a infância (Collins & Read, 1994Collins, N. L., & Read, S. J. (1994). Cognitive representations of attachment: The structure and function of working models. In K. Bartholomew & D. Perlman (Eds.), Attachment processes in adulthood (pp. 53-90). Jessica Kingsley.). As consecutivas experiências de abandono, rejeição e perdas ao longo da vida podem ter impactado as vivências amorosas desde a escolha dos parceiros até a permanência em vínculos pouco gratificantes e prejudiciais.

A representação negativa do sexo desde a infância ou adolescência também foi observada no relato das participantes, especialmente daquelas que sofreram violência sexual. Destaca-se o caso de Paola que, aos nove anos, teve sua primeira experiência sexual durante um programa, tendo sentido desprazer e vergonha: “Eu não gostei, não gostei. Porque depois ele saiu contando pra todo mundo e eu tomei raiva dele”. Essas experiências podem ter influenciado os relacionamentos futuros. Como ter uma relação sexual prazerosa quando o sexo se iniciou como forma de violência e/ou exploração?

Em seus discursos, o sexo parece ser mais desejado por homens que por mulheres. Os relacionamentos afetivos pautam-se na ideia de troca, na qual o homem responsabiliza-se pelo sustento material e a mulher utiliza o sexo como moeda básica (Paz, 2009Paz, S. R. (2009). “A caravana do amor”: Um estudo sobre reciprocidades, afetos e sexualidade em um estabelecimento prisional que comporta homens e mulheres em seu interior [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pelotas]. Repositório institucional UFPel. https://bit.ly/3Tf8C4H
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). Os aspectos positivos do sexo não surgem nas falas das mulheres espontaneamente, desvelando os valores morais internalizados e as implicações sócio-históricas da repressão do desejo sexual de mulheres (Carvalho & Mayorga, 2017Carvalho, D. T. P., & Mayorga, C. (2017). Contribuições feministas para os estudos acerca do aprisionamento de mulheres. Revista Estudos Feministas, 25(1), 99-116. https://doi.org/10.1590/1806-9584.2017v25n1p99
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; Cunha, 2018Cunha, M. I. (2018). On stage and off: The shifting relevance of gender in women’s prison. In S. Gomes & V. Duarte (Eds.), Female crime and delinquency in Portugal: In and out of the criminal justice system (pp. 57-74). Palgrave Macmillan.).

A Vida Afetiva e Sexual na Prisão

Na prisão, crenças cristalizadas acerca dos papéis de gênero parecem ser intensificadas, e o papel de cuidadora atribuído exclusivamente às mulheres justifica a ausência dos parceiros (Granja, 2015Granja, R. P. G. (2015). Para cá e para lá dos muros: Relações familiares na interface entre o interior e o exterior da prisão [Tese de doutorado, Universidade do Minho]. Repositório institucional Uminho. https://bit.ly/3RPSx4v
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; Lemgruber, 2010Lemgruber, J. (2010). A dona das chaves: Uma mulher no comando das prisões do Rio de Janeiro. Record.), e muitas mulheres sequer esperam pela visita deles.

Aquelas que iniciaram novos relacionamentos durante a reclusão fizeram-no com homens também reclusos. Ao contrário de homens aprisionados, que têm a oportunidade de conhecer e iniciar relacionamentos com mulheres que se encontram em liberdade e se disponibilizam a enfrentar as dificuldades impostas através dos muros prisionais, encontrar homens livres com a mesma disponibilidade é raridade (Lemgruber, 2010Lemgruber, J. (2010). A dona das chaves: Uma mulher no comando das prisões do Rio de Janeiro. Record.).

Durante o encarceramento, persistem os relacionamentos hierárquicos. Quando no mesmo estabelecimento prisional, os homens tendem a controlar os comportamentos das parceiras, e o risco de infidelidade torna-se uma preocupação obsessiva, tendo em vista a própria socialização carcerária, que induz à afirmação da virilidade dessa forma (Touraut, 2012Touraut, C. (2012). La famille à l’épreuve de la prison. Presses Universitaires de France.). Ressalta-se que a pesquisa que embasou este artigo foi realizada em um presídio misto, um ambiente voltado para os homens, no qual eles possuem um lugar central como medida das relações, e as interdições sobre o corpo feminino são ampliadas e a mulher, subjugada a uma orientação androcêntrica nas práticas e dinâmicas institucionais (Colares & Chies, 2010Colares, L. B. C., & Chies, L. A. B. (2010). Mulheres nas so(m)bras: Invisibilidade, reciclagem e dominação viril em presídios masculinamente mistos. Revista Estudos Feministas , 18(2), 407-423. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2010000200007
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; Davis, 2018Davis, A. (2018). Estarão as prisões obsoletas? Difel.).

Quando ambos os parceiros se encontram na mesma unidade prisional, os relacionamentos são marcados pela busca de estratégias para o enfrentamento da separação física e rompimento de barreiras (Granja, 2015Granja, R. P. G. (2015). Para cá e para lá dos muros: Relações familiares na interface entre o interior e o exterior da prisão [Tese de doutorado, Universidade do Minho]. Repositório institucional Uminho. https://bit.ly/3RPSx4v
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). Formas permitidas pela administração prisional, como a troca de correspondência, são valorizadas, conforme descrito por Amanda: “Nossa, na hora que chega… chega o dia de receber carta, chega a carta dele… nossa, é uma alegria! Nossa, parece que a gente até desmaia de tanta felicidade!”. São ainda procurados meios que ultrapassem as normas, como bilhetes e comunicação através das janelas da cela.

É possível que os obstáculos impostos ao contato íntimo possam favorecer a dissolução de relacionamentos que existiam antes da reclusão (Matos & Machado, 2007Matos, R., & Machado, C. (2007). Reclusão e laços sociais: Discursos no feminino. Análise Social, 42(185), 1041-1054.; Paz, 2009Paz, S. R. (2009). “A caravana do amor”: Um estudo sobre reciprocidades, afetos e sexualidade em um estabelecimento prisional que comporta homens e mulheres em seu interior [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pelotas]. Repositório institucional UFPel. https://bit.ly/3Tf8C4H
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), o que deve ser analisado a partir da dinâmica previamente existente entre o casal (Granja, 2015Granja, R. P. G. (2015). Para cá e para lá dos muros: Relações familiares na interface entre o interior e o exterior da prisão [Tese de doutorado, Universidade do Minho]. Repositório institucional Uminho. https://bit.ly/3RPSx4v
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). Três mulheres foram presas com seus parceiros, mas apenas uma enfrentou o rompimento do relacionamento após a reclusão. Além dos motivos intrínsecos à relação, obstáculos para a intimidade e a inexistência de apoios institucionais facilitadores do contato entre casais podem ter influenciado a ruptura.

Para os outros casais, a prisão redefiniu as questões de intimidade, complexificando os relacionamentos, além de fortalecê-los (Comfort, 2008Comfort, M. (2008). Doing time together: Love and family in the shadow of the prison. The University of Chicago Press.; Granja, 2015Granja, R. P. G. (2015). Para cá e para lá dos muros: Relações familiares na interface entre o interior e o exterior da prisão [Tese de doutorado, Universidade do Minho]. Repositório institucional Uminho. https://bit.ly/3RPSx4v
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; Touraut, 2012Touraut, C. (2012). La famille à l’épreuve de la prison. Presses Universitaires de France.), como nos casos de Amanda e Karen, em que a comunicação e afetividade foram intensificadas após o aprisionamento, demonstradas através das cartas românticas, bilhetes, troca de olhares e nas visitas sociais. O fato de terem um ao outro como apoio parece ter colaborado para a aproximação, como descreveu Karen: “E depois que isso tudo aconteceu, que a gente veio preso, mudou mil vezes, entendeu? Então, assim, a gente se uniu muito mais, o amor aumentou muito mais, entendeu? A união”.

Corroborou-se que a reclusão acaba por favorecer a expressão de sentimentos e a responsividadade emocional dos parceiros (Comfort, 2008Comfort, M. (2008). Doing time together: Love and family in the shadow of the prison. The University of Chicago Press.; Touraut, 2012Touraut, C. (2012). La famille à l’épreuve de la prison. Presses Universitaires de France.). Foi perceptível que, quando mantidos no mesmo estabelecimento prisional, um parceiro pode oferecer suporte ao outro e projetos futuros podem ser elaborados de maneira conjunta. Os relacionamentos afetivos foram percebidos como fonte de força para suportarem a realidade, proporcionando pequenos momentos de alegria.

Evidenciou-se a interferência nos relacionamentos, corpos e comportamentos pela facção criminosa dominante na instituição prisional, o Primeiro Comando da Capital (PCC), um grupo articulado e organizado para o planejamento de ações criminosas que também dita as regras de conduta na prisão. A lógica de gênero e as marcas do patriarcado estão intensamente presentes nesse contexto, no qual os homens encontram-se em uma posição de dominação e as mulheres, de subordinação. O sexismo da lógica patriarcal de estruturação social é reafirmado por meio das regras institucionais e por aquelas ditadas pelas facções criminosas, que despontam o controle sobre os corpos femininos nas prisões (França, 2014França, M. H. O. (2014). Criminalidade e prisão feminina: Uma análise da questão de gênero. Ártemis, 18(1), 212-227.; Pimentel, 2016Pimentel, E. (2016). As marcas do patriarcado nas prisões femininas brasileiras. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas, 2(2), 169-178.). Abrir mão dos próprios desejos parece ser comum num ambiente em que devem obedecer às normas da facção. Por outro lado, também surgem movimentos de luta para viverem conforme almejam a partir da autorização da facção, conforme descrito por uma das participantes, que, com a ajuda do líder do PCC, conquistou o direito de viver novos relacionamentos, o que estava sendo impedido pelo ex-companheiro. Aparece também a questão da ordem trazida pela facção, preenchendo lacunas estatais, como afirmou Karen: “Pelo menos eles seguram um pouco as coisas dentro da cadeia”.

No que se refere ao exercício da sexualidade na prisão e, especificamente, às visitas íntimas, foi notável que ainda são muitas as restrições enfrentadas neste âmbito. O art. 544 dos Regulamentos e Normas de Procedimento do Sistema Prisional de Minas Gerais (Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais, 2016Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais. Regulamentos e normas de procedimento do sistema prisional de Minas Gerais (ReNP). (2016). https://bit.ly/3Tf4jGT
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) assegura o direito à visita íntima no estado. Não obstante, esse tipo de visitação é vedado aos namorados(as). A exigência do casamento legal ou da união estável reconhecida em cartório acaba por dificultar a garantia desse direito, especialmente devido à necessidade de a documentação ser providenciada por familiares que estão em liberdade, mas que frequentemente abandonam as mulheres encarceradas ou não têm recursos financeiros para ajudar, conforme explicou Karen: “Às vezes, muitas delas não têm ninguém lá fora que faça todo esse processo, entendeu? Então, assim, eu acho que deveria ser uma coisa um pouco mais facilitada”.

O casamento legal chega a ser cogitado até para que a visita social ocorra, embora não conste como exigência para tal, de acordo com o regulamento (Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais, 2016Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais. Regulamentos e normas de procedimento do sistema prisional de Minas Gerais (ReNP). (2016). https://bit.ly/3Tf4jGT
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), como contou Gislene: “Eu queria até casar para poder nós sair juntos. Nossa, olha só!”. Tais casos revelam como ainda se busca adequar o comportamento das mulheres ao código moral que rege as relações heterossexuais legitimadas, a partir de um modelo binário de gênero (Colares & Chies, 2010Colares, L. B. C., & Chies, L. A. B. (2010). Mulheres nas so(m)bras: Invisibilidade, reciclagem e dominação viril em presídios masculinamente mistos. Revista Estudos Feministas , 18(2), 407-423. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2010000200007
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), enfatizando a necessidade de revisão das normas prisionais e de que sejam cumpridas no cotidiano.

Exigem-se ainda exames médicos para a verificação de infecções sexualmente transmissíveis (IST), acarretando a dependência de que sejam realizados no estabelecimento prisional ou da escolta para a realização externa, o que frequentemente não acontece. Quando o parceiro está em liberdade, ele também precisa realizá-los, o que torna a visita íntima quase uma utopia para as mulheres.

Karen, a única mulher que tinha o direito de visita íntima assegurado, destaca a dimensão afetiva e a possibilidade de refúgio em meio a um ambiente altamente estressor, o que corrobora o encontrado por Granja (2015Granja, R. P. G. (2015). Para cá e para lá dos muros: Relações familiares na interface entre o interior e o exterior da prisão [Tese de doutorado, Universidade do Minho]. Repositório institucional Uminho. https://bit.ly/3RPSx4v
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). Embora a visita não aconteça com as condições mínimas necessárias para a privacidade, sentia-se mais protegida do que em sua cela, descrevendo a visita íntima como um “momento de paz e prazer ao mesmo tempo”.

Algumas entrevistadas reconhecem suas necessidades sexuais e dificuldades enfrentadas diante da abstinência sexual, como elucida a fala de Gislene: “Ai, é difícil! Socorro! Nossa, é muito difícil, viu, senhora?”. Especialmente ao falarem a respeito das outras mulheres aprisionadas, reconhecem que o sexo pode fazer falta, mas tendem a negar os próprios desejos, o que pode estar relacionado aos históricos de vida na área sexual das participantes e à internalização de valores impostos socialmente, que exigem da mulher a valorização da afetividade e negação da sexualidade (Cunha & Granja, 2014Cunha, M. I., & Granja, R. (2014). Gender asymmetries, parenthood and confinement in two Portuguese prisons. Champ Pénal, 11. https://doi.org/10.4000/champpenal.8809
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).

Apenas uma participante afirmou ter tido relacionamentos homoafetivos na prisão. Paola destacou a dimensão afetiva dos relacionamentos que teve com outras mulheres, por considerá-las carinhosas e compreensivas. Mesmo tendo descrito maior satisfação com elas, suas expectativas futuras são direcionadas para a heteroafetividade. Seu discurso corroborou que o que é visto como adequado na sexualidade humana são formas de normatividade ainda vinculadas à matriz heterossexual (Cavalcante, Gomes, & Moreira, 2017Cavalcante, L. M., Gomes, C. A. R., & Moreira, L. E. (2017). Uma análise das construções de gênero na jurisprudência alagoana. Revista Polis e Psique, 7(2), 63-83.), além de ter demonstrado que a vida afetiva e sexual na prisão é perpassada por questões históricas, culturais e relações de poder que impactam processos de subjetivação (Foucault, 1977Foucault, M. (1977). História da sexualidade I: A vontade de saber. Graal.).

Expectativas Futuras

As mulheres entrevistadas almejam ter suas necessidades afetivas supridas por um parceiro amoroso. Recorrentemente desabastecidas de afeto, desde as primeiras relações estabelecidas em suas vidas, sonham em ter alguém que sirva como um porto seguro, provedor de apoio emocional e cuidado (Hazan & Shaver, 1987Hazan, C., & Shaver, P. (1987). Romantic love conceptualized as an attachment process. Journal of Personality and Social Psychology, 52(3), 511-524. https://doi.org/10.1037/0022-3514.52.3.511
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).

As aspirações acerca dos relacionamentos afetivo-sexuais que surgiram na infância continuam presentes, destacando-se o desejo de constituição de uma família tradicional e idealizada, com a presença do amor romântico (Amorim & Stengel, 2014Amorim, A. N., & Stengel, M. (2014). Relações customizadas e o ideário de amor na contemporaneidade. Estudos de Psicologia (Natal), 19(3), 179-188. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2014000300003
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; Giddens, 1993Giddens, A. (1993). A transformação da intimidade: Sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Editora Unesp.), expectativa mantida e associada à possibilidade de reconhecimento social e vida feliz, conforme demonstrado pela afirmação de Elisa: “Eu sempre tentei, tentei. Eu acho que eu vou ter uma hora, que tem que dar certo, né? Deu ser feliz, deu encontrar a pessoa certa”.

As participantes buscam adequar-se aos moldes de “ser mulher” e viverem de acordo com os ideais de maternidade e família socialmente construídos, centrais para o reconhecimento da mulher a partir de uma normalização de gênero feminino. Ora, sendo o gênero um dado normativo dos processos ontológicos da humanidade, o controle é exercido ao ser negada a existência de mundos com diferentes pressuposições ontológicas. Diante de uma realidade marcada pela segregação, as entrevistadas aspiram reiterar a função do ser mulher para a obtenção do reconhecimento enquanto sujeito (Butler, 2015Butler, J. (2015). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? Civilização Brasileira.).

Ambicionam finalmente desempenhar o papel feminino associado ao cuidado com a casa e os filhos (Carvalho & Mayorga, 2017Carvalho, D. T. P., & Mayorga, C. (2017). Contribuições feministas para os estudos acerca do aprisionamento de mulheres. Revista Estudos Feministas, 25(1), 99-116. https://doi.org/10.1590/1806-9584.2017v25n1p99
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; Cunha, 2018Cunha, M. I. (2018). On stage and off: The shifting relevance of gender in women’s prison. In S. Gomes & V. Duarte (Eds.), Female crime and delinquency in Portugal: In and out of the criminal justice system (pp. 57-74). Palgrave Macmillan.). Todas têm filhos e apenas uma delas não comenta sobre os filhos gerados ou desejo de ter mais algum, parecendo tentar evitar a dor que sentiria ao se aprofundar nesta temática. As demais mulheres, tanto as que desempenhavam a maternagem previamente ao encarceramento quanto as que não o faziam, pretendem fazê-lo após a conquista da liberdade. Dentre elas, três intencionam uma nova gestação, conforme relatou Karen: “A gente quer ter mais um filho e curtir esse filho do princípio pra frente, entendeu? Assim, a gestação, bebezinho, ver crescer, tudo certinho”.

No que se refere ao papel masculino, continuam esperando dos homens a provisão financeira (Féres-Carneiro et al., 2007Féres-Carneiro, T., Ponciano, E. L. T., & Magalhães, A. S. (2007). Família e casal: Da tradição à modernidade. In C. Cerveny (Org.), Família em Movimento (pp. 23-36). Casa do Psicólogo.). Algumas não têm a intenção de trabalhar, como Amanda e Paola. As demais, mesmo que pretendam exercer alguma atividade laboral, anseiam por um parceiro provedor, cabendo a elas apenas um auxílio.

Almejam parceiros que apresentem um amor incondicional e dedicação ao relacionamento afetivo, mas algumas temem que esse desejo não se concretize e lutam internamente para não criarem expectativas que possam ser frustradas. Mesmo quando dados da realidade indicam que dificilmente será alcançado um futuro normativo após a liberdade (Comfort, 2008Comfort, M. (2008). Doing time together: Love and family in the shadow of the prison. The University of Chicago Press.), estão presentes fantasias e idealizações acerca de mudanças no comportamento dos companheiros que levem à estabilidade conjugal.

As mulheres entrevistadas parecem sobrepor a busca pelo parceiro ideal e o sonho da família tradicional a qualquer outra aspiração. Assim, as expectativas referentes aos relacionamentos afetivo-sexuais, enfatizadas neste estudo de acordo com seu objetivo, são também ressaltadas pelas próprias mulheres privadas de liberdade. Ao vislumbrarem a vida fora dos muros prisionais pensam primordialmente em se adequarem às prescrições sociais de gênero, tornando-se donas de casa e esposas dedicadas, acreditando em um parceiro salvador que possa proporcionar uma mudança em suas vidas e preencher suas necessidades afetivas sempre buscadas. Sonham em serem saciadas daquilo de que mais têm fome: afeto.

Considerações Finais

A partir da discussão apresentada, foi estabelecido um entrelaçamento entre os processos de vinculação das entrevistadas e as estruturas sociopolíticas que contribuem para as violências de gênero e de Estado enfrentadas, que produzem dominação, opressão e segregação dessas mulheres. Por meio da articulação entre a teoria do apego e a criminologia crítica feminista, foram abarcados os diferentes campos imbricados nos processos de subjetivação: político, econômico, social, cultural, intersubjetivo e subjetivo. Dessa forma, buscou-se visibilizar a complexidade que perpassa as histórias retratadas.

Cada trajetória é marcada por situações de invisibilidade, negligência, exclusão e escassas possibilidades de acesso aos recursos econômicos, educacionais ou culturais. As violências intensificadas no cárcere estiveram presentes por toda a vida. As primeiras relações com os cuidadores não propiciaram gratificação das necessidades afetivas ou ofereceram elementos para a constituição de base segura, o que impactou os relacionamentos afetivos na vida adulta, que seguiram os mesmos padrões relacionais, caracterizados por hierarquização e violência. Frustraram-se consecutivamente por não conseguirem uma suposta “readequação” ao papel social de gênero destinado à mulher, o que poderia contribuir para a obtenção de reconhecimento enquanto sujeito.

Na prisão, enfrentaram o abandono, as limitações para o contato, a ressignificação e, em alguns casos, o fortalecimento de relacionamentos. Assim, as dinâmicas dos relacionamentos sofreram uma pluralidade de implicações. As necessidades afetivas sobrepõem-se às sexuais nas narrativas das participantes, indicando a busca por afeto que as acompanha, além de uma adesão às normativas de gênero que levam à repressão do desejo sexual da mulher.

As histórias evidenciaram a constante busca pela satisfação afetiva dessas mulheres e levantaram questionamentos acerca das prescrições sociais de gênero, das restrições ao contato impostas nas prisões e da atual política de encarceramento brasileira, reflexo dos processos de segregação presentes. Ratificou-se a necessidade de mudanças que incorram na garantia do livre exercício da sexualidade nas prisões, em condições de privacidade e independentemente da orientação sexual ou estado civil, sem que a política leve à reprodução de valores heteronormativos e hierárquicos. Sugerem-se novas discussões acerca dessa temática e o desenvolvimento de políticas públicas e ações que visem à proteção dos direitos das mulheres aprisionadas, enquanto este modelo de privação de liberdade perdurar.

A violação de direitos observada provoca reflexões acerca da necessidade de transformações sociais e problematização acerca da política de encarceramento em massa brasileira, que tem como alvo determinadas mulheres, aquelas que enfrentam violências múltiplas ao longo da vida. Espera-se que suas histórias de vida contribuam para ações que possibilitem justiça social, igualdade e liberdade.

Referências

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  • Amorim, A. N., & Stengel, M. (2014). Relações customizadas e o ideário de amor na contemporaneidade. Estudos de Psicologia (Natal), 19(3), 179-188. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2014000300003
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  • Borges, J. (2019). Encarceramento em massa. Jandaíra.
  • Bowlby, J. (1990). Apego: A natureza do vínculo (Vol. 1). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1969)
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2020
  • Aceito
    31 Mar 2021
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