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Um Conhecimento Encarnado e o Ensino da Psicologia Social

An Incarnate Knowledge and Social Psychology Teaching

Un Conocimiento Encarnado y la Enseñanza de la Psicología Social

Resumo

Este artigo tem como objetivo trabalhar com a concepção de “conhecimento encarnado” defendida por Ignácio Martín-Baró, estabelecendo relações entre este conceito e o campo da Psicologia Social. Num primeiro momento, fazemos uma pequena contextualização dos efeitos de uma greve universitária que durou quatro meses, considerando que os principais efeitos que devemos debater são aqueles que estão relacionados às experimentações do espaço educacional, assim como às ressonâncias das narrativas externas ao mundo universitário. Em seguida, mesclamos experiências do cotidiano da universidade com narrativas de diferentes atores sociais sobre a greve e a própria formação, a fim de desenvolver uma teoria analítica das práticas educacionais em Psicologia Social a partir de um diálogo com Ignácio Martín-Baró. Destacamos as três perguntas apresentadas pelo autor para problematizar a história da Psicologia Social: o que nos mantém unidos numa ordem social? O que nos integra à ordem estabelecida? O que nos libera da desordem estabelecida? Entre os diferentes conceitos criados pelo autor, privilegiamos a ideia de conhecimento encarnado, realidade vivida, realidade estudada e ação ideológica.

Palavras-chave:
Ignácio Martín-Baró; Práticas Educacionais; Psicologia Social; Processos de Formação; Conhecimento Encarnado

Abstract

This article aims to work with the conception of “incarnate knowledge” defended by Ignácio Martin-Baró establishing relationships between this concept and the field of Social Psychology. At first, we briefly contextualize the effects of a strike in the university environment that lasted four months, considering that the main effects that we should debate are those related to experimentations of the educational space and the resonances of the external narratives in the university world. Then, we blended experiences of the university’s quotidian with narratives of different social actors about the strike and the training itself to develop an analytic theory of the educational practices in Social Psychology from a dialog with Ignácio Martin-Baró. We highlight three questions presented by the author to challenge the history of Social Psychology: what holds us together in a social order? What integrates us into the established order? What frees us from the established disorder? Among the different concepts created by the author, we privileged the idea of incarnate knowledge, lived reality, studied reality, and ideological action.

Keywords:
Ignácio Martín-Baró; Educational Practices; Social Psychology; Training Processes; Incarnate Knowledge

Resumen

Este artículo pretende trabajar con la concepción de conocimiento defendida por Ignácio Martín-Baró, estableciendo relaciones entre este conocimiento y el campo de la psicología social. En un primer momento, hacemos una pequeña contextualización de los efectos de una huelga universitaria, que tuvo una duración de cuatro meses, considerando que los principales efectos los cuales debemos debatir son aquellos que están relacionados con las experimentaciones del espacio educacional, así como las resonancias de las narrativas externas al mundo universitario. A continuación, mezclamos experiencias de un cotidiano de la universidad con narrativas de diferentes actores sociales sobre la huelga y la propia formación, con la finalidad de desarrollar una teoría analítica de las prácticas educacionales en la psicología social a partir de un diálogo con Ignácio Martin-Baró. Destacamos las tres preguntas presentadas por el autor para problematizar la historia de la psicología social: ¿Qué nos mantiene unidos en el orden social establecido? ¿Qué nos integra al orden establecido? ¿Qué nos libera del desorden establecido? Entre los diferentes conceptos creados por el autor, privilegiamos la idea de un conocimiento encarnado, realidad vivida, realidad estudiada y acción ideológica.

Palabras-clave:
Ignácio Martín-Baró; Prácticas Educacionales; Psicología Social; Procesos de Formación; Conocimiento Encarnado

Introdução

Uma greve e seus ruídos

Em 2016, vivemos uma greve de professores, alunos e funcionários de universidades públicas que durou quatro meses. A interrupção das atividades acadêmicas foi acompanhada de ocupações do espaço das universidades com atos, acampamentos e ações na comunidade, atividades que trouxeram à superfície as relações entre os diferentes atores sociais e narrativas que revelaram as histórias vividas nos bastidores da universidade, no seio das famílias e no meio da cidade. Foi a surpresa e indignação de escutar falas tão desqualificadoras e duras sobre a universidade que tornaram necessária sua análise. Assim, resolvi tratar essas vozes como “provoca-ações” para fazer pensar o que fazemos enquanto “universitários” e, principalmente, para indagar em que momento perdemos o contato com a “realidade”.

Naquela época, eu realizava diários como forma de avaliação das disciplinas que administrava e para acessar o cotidiano da sala de aula. Por meio dos diários, queria também tentar acessar o conhecimento que se produzia nos interstícios das relações cotidianas da aula. Mas, quando retomamos as aulas depois da greve, nosso “novo” cronograma exigia que finalizássemos o “semestre” em duas semanas. Depois de uma greve e seus ruídos, pensei: não posso fingir que é possível ministrar um semestre em duas semanas. Decidi, então, escrever uma carta para as minhas turmas que pudesse mostrar a relação encarnada entre o que estávamos estudando e o que vivíamos. Como tínhamos apenas duas aulas até o fim do semestre, já que minha disciplina era administrada uma vez por semana, na primeira semana lemos a carta e conversamos sobre ela para que, na segunda, os alunos levassem para a aula uma carta-resposta.

Assim, nasceu o método que chamei de método das cartas. A partir dessa experiência, trocamos definitivamente os diários por cartas. A correspondência e a leitura das cartas foram experiências pedagógicas que marcaram profundamente a experiência da sala de aula depois de 2016. Assim, este relato que compartilho como proposta de artigo é a carta que escrevi aos meus alunos. Por meio dela, inauguramos uma dialogicidade baseada em uma textualidade fora dos instrumentos de avaliação - prova, trabalho e seminário, por exemplo. Meu objetivo não é falar do método das cartas, mas apresentar o texto-carta que foi disponibilizado para as turmas, em que privilegiei as interseções entre experiências, narrativas e o corpo teórico-conceitual.

Uma carta e o conhecimento encarnado

É preciso pensar para conhecer

Depois de tantos meses de greve, não é fácil pensar num reencontro. Trago um gosto do que poderia ter sido e não foi. Mas, também, sei que muita coisa aconteceu. Por isso escrevo cartas. Escrevo cartas para poder contar histórias que não passam na TV e não são postadas no Facebook. Escrevo cartas porque precisamos sair do circuito da simples informação para o contexto da narração. Assim, esta carta é para narrar o que foi feito deste semestre, um semestre que não tem seis meses, um tempo que foi estendido, ampliado e alterado pela lógica da greve. O semestre começou em março; estamos em outubro e ele não acabou. Mas quando acaba um semestre? Quando acaba uma aula? Quando começa uma formação? Quando começa uma vida profissional? Em que ponto acaba e começa um aluno e um professor? Este tempo não cronológico abriu minha memória e muitas coisas de ontem se transformaram em coisas de hoje.

Quando a rotina oficial foi interrompida, as fronteiras foram alteradas. Lembrei-me do dia da minha formatura. O discurso da turma não era um discurso, mas um programa de rádio. No programa, havia uma aula de dicção em que tínhamos que repetir a seguinte frase: “Semestre sem mestre, semestre é o mestre”. Nosso último semestre tinha sido marcado por uma greve e, por isso, descobrimos, ao final, que um processo de formação não é a administração de um depósito de ideias ou a escolha de uma escola ou linha de trabalho como se tivéssemos frequentado um supermercado de produtos acadêmicos; é um posicionamento ético e político, uma ética e uma política que nos traz a dimensão da autoria como responsabilidade e o compromisso com a transformação do mundo. O que aprendemos com este semestre?

Aprendi que o conhecimento não é um produto, mas um presente, e foi por meio de um presente que comecei nosso curso ou, melhor dizendo, começamos nosso percurso. No nosso primeiro encontro, compartilhei um livro que ganhei de presente de um aluno que hoje é estagiário. O livro, segundo ele, o fez se lembrar de mim e se chama A terra de mil povos: história indígena do Brasil contada por um índio. Ao trazer este presente para a aula também trouxe as pessoas que se presentificam em mim. Eu também sou essas pessoas representadas no aluno e no indígena, assim como na pessoa do aluno podemos encontrar a pessoa indígena e a pessoa professora. São presenças que revelam uma ausência: a ausência da história e tradição indígena na formação de um psicólogo. Tal ausência levanta uma pergunta: como a questão indígena é um tema que está garantido nas diretrizes e princípios pedagógicos do curso, mas não é trabalhada nas disciplinas? Para tentar responder a esta pergunta, tenho que recorrer a duas tradições: a indígena e a africana.

Para aprender o conhecimento ancestral, o indígena passa por cerimônias, celebrações e iniciações para limpar a mente e compreender o que nós chamamos de tradição. O ensinamento da tradição começa sempre pelo nome das coisas e o modo como são nomeadas (Jecupé, 2020Jecupé, K. W. (2020). A terra dos mil povos: História indígena brasileira contada por um índio. Peirópolis.).

Segundo Kaká Werá Jecupé (2020Jecupé, K. W. (2020). A terra dos mil povos: História indígena brasileira contada por um índio. Peirópolis., p. 11), um “guerreiro sem armas” ou, como gosta de se apresentar, um Txukarramãe, “uma palavra na boca pode proteger ou destruir uma pessoa”. Por isso, uma aula, que é um encontro em que se trabalha palavras, não pode se transformar nem em um blábláblá nem em ativismo sem reflexão. Uma aula não pode ser reduzida a um ato de depositar ideias de um sujeito sobre outro ou a uma simples troca de ideias a serem consumidas, tampouco a uma discussão polêmica que apenas mascara um ato de conquista do outro, porque, como afirma Paulo Freire (1975Freire, P. (1975). Pedagogia do oprimido. Paz e Terra., p. 93), “o diálogo é uma exigência existencial”. Esta exigência ressaltada por Paulo Freire faz eco com a tradição africana, que afirma: “Na África acreditamos que o pior mal é a ignorância. Isto é, não saber o que se passa com os outros. Temos provérbios que nos ensinam a não nos perdermos no olhar dos outros. Olhar, olhar bem para nos encontrarmos no olhar do outro” (Bernat, 2013Bernat, I. (2013). Encontros com o griot Sotigui Kouyaté. Pallas. , p. 39).

Para Sotigui Kouyaté (Bernat, 2013Bernat, I. (2013). Encontros com o griot Sotigui Kouyaté. Pallas. ), um Griot - ou contador de histórias -, a educação pode ser concebida de três maneiras: pela palavra, pelo olhar e pelo silêncio.

Retomando a pergunta e a tentativa de resposta, podemos ressaltar uma metodologia: para entender as ausências e presenças, necessitamos compreender que conhecer exige cerimônias, celebrações e iniciações, isto é, exige construir um caminho até a tradição. Mas este caminho não é direto; precisamos limpar a mente, o que é feito por meio do cuidado com o nome das coisas e o modo pelo qual são nomeadas, bem como pela sustentação do diálogo como exigência existencial. O diálogo é o que permite o indivíduo saber o que se passa com os outros sem se perder no olhar deles. Que nomes e modos de nomear descobrimos nesse ato de trabalhar palavras, olhares e silêncios? Para quais caminhos nosso olhar foi desviado? Quando o silêncio deixou de ser silenciamento?

Um nome que identifico como importante neste processo é encarnado, conhecimento encarnado. Um conhecimento tem que ser vivo. Tem que ter corpo, carne. Tem que ser impuro, sujo de realidades. O trabalho de conhecer tem que ser sustentado pelas conexões e atravessamentos das condições reais de existência. Um conhecer que é criar e intervir só existe por meio do exercício do pensamento, uma vez que podemos conhecer sem pensar, mas não podemos pensar sem conhecer. É preciso pensar para conhecer. Quando apenas conhecemos de forma descarnada, o que fazemos é tatear o conhecimento produzido, estabelecido e dado. Reduzimos nossa capacidade de pensar ao ato de conhecer o que existe. Deixamos de olhar o que não foi pensado e, portanto, deixamos de ver o desconhecido e denegado. Por isso, Martín-Baró (2007Martín-Baró, I. (2007). Acción y ideologia: Psicologia social desde Centroamérica. UCA Editores.) afirma que não podemos reduzir o universo aos planetas que a astronomia mapeou, assim como não podemos reduzir a subjetividade ao que a Psicologia conhece sobre ela. Precisamos continuar pensando para onde nos leva este nome - subjetividade e estes modos de nomear a subjetividade. Quando continuamos pensando, criamos a possibilidade de perguntar: a Psicologia sempre existiu? A subjetividade só pode ser explicada pela Psicologia? O que denominamos fenômeno psicológico não tem história? O que significa compreender o sujeito a partir de uma dimensão psicológica?

Um desvio do olhar para entender a formação em Psicologia

Estas perguntas trazem a História para o campo da Psicologia e produz um desvio do olhar. Já não podemos olhar o campo da Psicologia como uma simples evolução natural do conhecimento científico aplicado ao fenômeno psicológico, pois tal desvio de olhar coloca outras perguntas: o que é ciência? Por que a ciência é o atual parâmetro para determinar qual conhecimento é fidedigno? Que tipo de ciência é a Psicologia? Todo conhecimento na Psicologia é ciência? O que a Psicologia fala para a ciência? Quais as relações entre contexto sócio-histórico e o surgimento do conhecimento científico? Por que produzir um conhecimento neutro, abstrato e universal sobre o fenômeno psicológico? Qual a relação entre fenômeno psicológico e os ideais do liberalismo? Como a naturalização do fenômeno psicológico produz sujeitos norteados por fracassos e sucessos? Como a dimensão subjetiva tratada como essência produz sofrimento psíquico? Como a Psicologia, ao constituir uma tradição classificatória, acaba por reforçar estigmas e desigualdades?

O alcance e sentido dessas perguntas dependem das relações que estabelecemos entre conhecer e pensar. Se acreditamos que se formar é aprender a lidar e manusear conhecimentos produzidos, nosso trabalho é identificar as perguntas que cada autor produz para construir suas teorias e entender as respostas. Por outro lado, se compreendemos que conhecer é aprender a pensar, nosso trabalho é fazer perguntas ao campo estabelecido e que partam do desconhecido.

Assim, não aplicamos uma teoria sobre a realidade, porque esta compreensão já é uma forma de entender o conhecimento, uma forma que trata o conhecimento como dado abstrato que orienta a prática. A prática, neste contexto, é apenas um suporte de uma teoria que dita regras e procedimentos.

Trazer para a realidade estudada sua dimensão vivida e encarnada é criar outras relações entre conhecimento e realidade. O conhecimento é uma dimensão material da realidade. Não reconhecer esta dimensão é deixar de perceber que existem vivências que são universalizadas e, ao serem tratadas como naturais, tornam-se parâmetros de avaliação da normalidade de outras vivências.

Quando entendemos a realidade do conhecimento no campo da Psicologia, abrimos a possibilidade de diferenciar o conceito de desenvolvimento do conceito de projetos de vida. O fenômeno psicológico, tratado como desenvolvimento de uma natureza interior independente e autônoma, reforça o conceito de esforço próprio. A ação do ser humano partiria de uma base biológica, psicológica e social. São características inatas (biológico e psicológico) que se relacionam com características adquiridas (social). O fenômeno psicológico seria constituído, então, por sensações, emoções e percepções, bem como pela memória, pela linguagem e pelo pensamento. Seriam estas características universais as que poderiam explicar o funcionamento do fenômeno psicológico.

O fenômeno psicológico relacionado aos projetos de vida nos remete a pensar em processos, construções e relações. Não se trata de um dado a ser decifrado, mas da descoberta dos sentidos produzidos e reproduzidos pelas normatividades. Não se trata, também, de manter uma hegemonia ou a conservação de valores dominantes, visto que não podemos homogeneizar para indiferenciar e ocultar contradições. A problematização do psicológico por meio dos sentidos e das normatividades introduz um ruído no conceito de desvio e introduz o outro possível.

Devemos, então, a partir de agora, valorizar a realidade vivida? A prática seria soberana? Não se trata de inverter a hierarquia entre a realidade vivida e estudada, mas romper com a concepção de que há semelhança entre teoria e prática. A realidade vivida não é igual ao ponto de vista daquele que vive; a realidade vivida não é reflexo do cotidiano. Não existe uma vivência mais verdadeira e que se contrapõe à falsidade de um real estudado. Não podemos sustentar relações sociais baseadas em experiências individuais intransferíveis, porque, partindo deste princípio, somente uma mulher pode compreender uma mulher, somente sendo louco para falar da loucura etc. Existe uma realidade complexa e contraditória que produz interpretações e busca de sentidos; porém, nem todas as interpretações são consideradas como do mesmo valor: o valor dos sentidos que circulam e constituem as relações sociais, por exemplo, são constituídos pelos jogos de poder.

Sendo assim, ao afirmar que não vemos a América Latina nos livros de psicologia estadunidense é um modo de expandir a pergunta para as condições reais de existência como constitutivas do ato de conhecer. O caminho não é adequar o conhecimento à realidade latino-americana, pois isto seria diversificar conteúdos. O que Martín-Baró (2007Martín-Baró, I. (2007). Acción y ideologia: Psicologia social desde Centroamérica. UCA Editores.) indica é a necessidade de rever o que é conhecer. Caso contrário, ler autores que falam de outras realidades não agregaria nenhum valor, pois somente autores nacionais ou autores que trabalhassem temas nacionais seriam autores válidos. As perguntas dirigidas ao conhecimento e suas relações com os jogos de poder nos remetem à responsabilidade com relação aos efeitos e à vida que está sendo produzida e reproduzida. Que tipo de vida estes saberes produzem ou impossibilitam?

Quando indagamos sobre que vida criamos ou que vida obstaculizamos, estamos introduzindo a Psicologia no campo da política, porque inevitavelmente nos deparamos com desigualdades, opressões, injustiças, exclusões e gestões da vida. E é nesse lugar que talvez a América Latina possa fazer diferença, na medida em que ao olhar para suas contradições torna possível transformar sua realidade.

O conhecimento encarnado, história e ação enquanto ideológica

Estes jogos de poder e saber e as interpelações que a América Latina impõe são o terreno explorado por Martín-Baró (2007Martín-Baró, I. (2007). Acción y ideologia: Psicologia social desde Centroamérica. UCA Editores.) quando discute as diferenças entre os conceitos de influência social e de ação ideológica. O primeiro conceito pertence à Psicologia Social estadunidense e o segundo conceito à Psicologia Social latino-americana. Ao compararmos esses dois conceitos a partir da relação entre poder e saber, podemos especular que entender o poder por trás do conceito de influência é diferente de entender o poder exercido pela ideologia e suas funções psicológicas. A influência sugere uma atitude de persuasão e convencimento de uma pessoa com relação à outra. Uma ação ideológica trata de uma interpretação que oculta as contradições da realidade em vez de proporcionar um conhecimento que gera consciência crítica.

A persuasão fala da possibilidade de ser influenciado por alguém a ponto de alterar sua conduta. Esta mudança pode ser feita em função de uma apreensão avaliativa, ou seja, depende de a ação ser socialmente importante ou significativa. Porém, este raciocínio demonstra um mecanismo, mas não revela como se constitui o sistema de valoração que gera a avaliação e que produz o que é socialmente importante, bem como seleciona qual comportamento deve ser reforçado pela capacidade persuasiva. A situação de constrangimento social ou de coação social não pode somente ser avaliada a partir dos efeitos e eficácia; é necessário indagar “o que se facilita e o que se dificulta em uma determinada sociedade ou grupo social num determinado momento histórico e numa determinada pessoa” (Baró, 2007, p. 16). A questão não seria, assim, colocar o foco na atitude de reforçar ou de inibir um comportamento porque este está adequado ou inadequado ou porque o comportamento é eficiente ou ineficiente, visto que uma ação está denotada por alguns conteúdos valorados e referentes, historicamente, a uma estrutura social.

“Porque somos parte de uma história, nos movimentamos em situações e circunstâncias, atuamos sobre as redes de múltiplas vinculações sociais; a importância e o significado de nossas ações são fruto de um conflito de interesses” (Martín-Baró, 2007Martín-Baró, I. (2007). Acción y ideologia: Psicologia social desde Centroamérica. UCA Editores., p. 10). O interesse não é uma vontade de uma pessoa que subjuga a vontade de outro indivíduo. O poder das relações interpessoais é insuficiente para compreender as funções psicológicas da ideologia. Os interesses são modos de sociabilidade que sustentam relações de dominação.

Para entender os modos de sociabilidade que sustentam relações de dominação, necessitamos inverter as relações entre ideias e realidade. As ideias não são o resultado de um esforço intelectual ou de uma observação científica, pois dependem de condições sociais e históricas. Ou seja, as ideias com as quais pretendemos explicar a realidade precisam ser elas mesmas explicadas pela realidade. Mas como a realidade explica as ideias? Quando perguntamos sobre o modo real que homens reais produzem suas condições reais de existência, as perguntas estão direcionadas para as relações sociais como relações de produção. Entretanto, um produto não é somente a roupa que vestimos e o calçado que usamos; é também a maneira como experienciamos sentimentos: a maneira como amamos, a forma como pensamos, o modo como percebemos o mundo. Por que alguns percebem os negros como pessoas feias e perigosas? Por que as mulheres são vistas como mais sensíveis que os homens? Um homem pode ser mãe? No amor existe violência? Por que os pensamentos das crianças são caracterizados como imaturos?

Indagar sobre as relações de produção é aprender a compreender as mediações e as contradições. Além disso, ver as mediações é ultrapassar a compreensão imediata, é não se contentar com as explicações dadas. Por isso, ao perguntar “o que é uma greve?”, devolvo outra pergunta: o que faz uma greve? Muitas respostas são difundidas e repetidas nesse momento em que paramos a máquina de diplomas: “A greve é um direito, mas é um desrespeito com os alunos”; “Os alunos são prejudicados porque os conteúdos ficam comprometidos”; “Professor universitário ganha bem e faz greve para aumentar salário”; “Faz greve quem não gosta de trabalhar”; “Funcionário público é cheio de regalias e privilégios” etc.

Afirmações como estas, que são tratadas como opiniões ou constatações, não ajudam a pensar os motivos pelos quais surge uma greve nem colabora para avaliar uma greve. Precisamos ultrapassar os sentidos comuns e imediatos que estão atrelados a essas afirmações. Para isso, é necessário quebrar as palavras e evidenciar suas contradições e conflitos para que, por meio deste exercício, talvez seja possível tornar um pouco mais compreensível as mediações que constituem o campo da educação e do trabalho.

Com relação à primeira frase, poderíamos perguntar: como o exercício de um direito pode gerar desrespeito? Alguns diriam que o desrespeito passa por dois caminhos, sendo o primeiro o motivo pelo qual os professores fazem greve - salário -, o que desrespeita os alunos. Já o segundo seria: os professores desrespeitam os alunos quando fazem greve porque comprometem o conteúdo em função do pouco tempo de reposição disponível e do intervalo de quatro meses sem aula, o que gera a perda da continuidade.

Poderíamos começar problematizando o que é direito. Direito não é lei, mas a garantia de direitos. Por isso, quando uma pessoa ou uma categoria luta pela garantia de direitos, ela está lutando pelo direito de todos. Se uma pessoa não tem direitos, ninguém tem. Lutar por direitos individuais não é garantir direitos, mas privilégios. O direito, portanto, deve ser sempre coletivo, conforme os autores que se orientam pelas premissas do pluralismo jurídico, como Antonio Carlos Wolkmer, defendem. Nesse sentido, a luta pelos direitos de um professor inclui o aluno, porque é uma luta pelo direito à educação, um direito constitucional. Desqualificar a luta dizendo que o professor está interessado em dinheiro é perder a dimensão das diferenças e contradições existentes entre dinheiro e salário. O salário é o resultado de um trabalho remunerado. Logo, dizer que salário é dinheiro é considerar o professor um mercenário e retirá-lo da categoria de trabalhador. Quando reproduzimos esta afirmação, perdemos a possibilidade de compreender as mediações que existem entre o trabalho diário produzido pelo professor/trabalhador e o salário/trabalho remunerado. O professor universitário tem três compromissos básicos: formação, pesquisa e extensão. Para cumprir com este compromisso, ele é convocado a ter uma dedicação exclusiva. Tal tripé diz respeito a um trabalho que não se reduz à sala de aula, pois envolve princípios. Temos por princípio formar profissionais que tenham capacidade de saber pensar e produzir um conhecimento comprometido com a realidade a qual está inserido. Portanto, o professor não é um operador de conteúdos, tampouco o aluno um administrador de conteúdos ofertados. A formação não é um ato de receber para saber aplicar, mas uma forma de agir, de estar no mundo a partir de um campo de atuação profissional.

Mesmo considerando a dimensão financeira do trabalho do professor, poderíamos refletir sobre várias questões, sendo a dedicação exclusiva - não poder fazer nenhum trabalho exceto o magistério na universidade a qual está vinculado - uma delas. Porém, a cada ano a inflação é maior do que o reajuste salarial. Isto significa que o salário está sendo consumido aos poucos pela inflação e diminuindo o poder aquisitivo do trabalhador, e a defasagem não pode ser coberta por outros serviços porque nós professores estaríamos deixando de cumprir com a regra de dedicação exclusiva. Às vezes, isso acaba acontecendo. Entretanto, o salário do professor universitário, como o de qualquer trabalhador, tem uma base e acréscimos a partir de qualificações. Ou seja, temos um salário-base e, somado a ele, valores associados a cursos de especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Na realidade, em torno de 50% do salário é proveniente dos acréscimos, ou seja, não são garantidos como salários e estes ganhos podem ser retirados. Logo, existe um salário real e um salário precarizado. Atualmente, os novos professores contratados não poderão se aposentar com o valor integral de seu salário, apenas com a base, perdendo 50% de seu poder aquisitivo. Ademais, podemos cogitar que a exigência de qualificação gera um tempo grande de investimento na carreira. Para poder participar de um concurso para professor universitário, tive que investir em 13 anos de estudos: cinco anos de graduação, dois anos de especialização, dois anos de mestrado e quatro anos de doutorado. Quando os oito anos de qualificação especializada passam a ser uma exigência nos concursos, mas são tratados como um acréscimo no salário em vez de constitutivos do salário, o que temos é exploração de trabalho.

Com relação ao conteúdo, seja pelo ponto de vista da quantidade ou do ponto de vista do tempo dedicado a ele, nos defrontamos com outra realidade oculta: a corresponsabilidade. Quando colocamos que nosso trabalho é ensinar a pensar, temos que ter em mente que não se pode pensar sem conteúdo. Porém, não é um conteúdo que faz alguém aprender a pensar. Acreditar e defender que a greve compromete o conteúdo faz com que não percebamos que o conteúdo está sendo tratado como um produto. Ao ser tratado como mercadoria, a educação se transforma somente numa habilitação competente de profissionais para serem inseridos - diga-se adaptados - ao mercado. O trabalho perde sua função social, assim como o mercado perde sua dimensão social. Não trabalhamos somente para garantir nossa subsistência ou alcançar uma realização pessoal, pois o nosso trabalho envolve responsabilidades sociais.

Os caminhos de uma psicologia que se diz social: os atravessamentos da história, da política e da ética

Aqui faz-se necessário retomar outra pergunta: Qual a relação dessa discussão com a Psicologia? Necessitamos voltar a Martín-Baró (2007Martín-Baró, I. (2007). Acción y ideologia: Psicologia social desde Centroamérica. UCA Editores.) e, a partir dele, tentar pensar os efeitos de outro nome: o social. Não cabe nesse momento problematizar o que é social - poderia ser um caminho, mas este caminho vai ser trilhado em outra disciplina de Psicologia Social. Necessitamos, primeiramente, perguntar por que acrescentar ao nome Psicologia um sobrenome Social. Mas, mais do que buscar uma teoria do que existe, devemos indagar pela teoria do que fazemos, ou seja, devemos interrogar como se constroem os conhecimentos sobre uma psicologia que se diz social e não nos preocuparmos em definir o que é uma Psicologia Social.

Os caminhos de uma psicologia que se diz social, como ressaltado anteriormente, coloca no campo da Psicologia atravessamentos da História, da Política e da Ética, e por isso a necessidade de revisar as responsabilidades sociais da psicologia a partir de psicologismos e sociologismos. Estes dois conceitos nos ajudam a olhar para uma “história oficial da psicologia social” sem que acreditemos estar recuperando documentos que provam e revelam como tudo começou e quem são os autores de referência. Como afirma Martín-Baró (2007Martín-Baró, I. (2007). Acción y ideologia: Psicologia social desde Centroamérica. UCA Editores.), não se trata de identificar períodos sucessivos, mas enfoques fundamentais que tomam corpo num determinado momento e em determinadas circunstâncias históricas.

Uma formação universitária não pode ser reduzida a uma realização pessoal nem a uma simples inserção no mercado, porque, no primeiro caso, estamos reduzindo o trabalho a um percurso pessoal e individual que diz respeito somente àquele que trabalha e, no segundo, estamos reduzindo o trabalho à adaptação a uma dimensão da estrutura social dada: o mercado. O reducionismo da vida à dimensão psicológica trata os problemas sociais como problemas de pessoas, caráter, personalidade e vontade. O reducionismo da vida às estruturas sociais seria o mesmo que afirmar que uma pessoa é apenas uma expressão de forças estruturais ou sistêmicas. Em ambos os caminhos, o reducionismo aposta na intocabilidade do sistema social e na passividade do indivíduo. O que resta é um processo de acomodação, conformidade, submissão e obediência, seja uma acomodação às estruturas sociais, seja uma submissão às necessidades subjetivas. Afinal, é muito diferente falar de mudança social e de mudança de atitudes. Quando falamos de mudança de atitude, estamos focalizando a intervenção sobre o sujeito: ele tem que alterar as suas características a fim de manter a estabilidade social. Porém, quando falamos de mudança social, estamos falando que “toda ação consiste em um fazer, um produzir ou gerar algo e este produto afeta a totalidade social” (Sève, 1973, citado por Baró, 2007, p. 20).

Portanto, quando a Psicologia que se diz social nos convoca a tensionar as relações entre o indivíduo e sociedade, ela está abrindo um caminho para perguntar sobre o papel político e social do psicólogo. Não é uma vocação, não é uma profissão; é um trabalho que, segundo Martín-Baró (2007Martín-Baró, I. (2007). Acción y ideologia: Psicologia social desde Centroamérica. UCA Editores.), deveria favorecer a construção de processos de libertação, mas também tem servido para produzir mecanismos de controle social.

Martín-Baró (2007Martín-Baró, I. (2007). Acción y ideologia: Psicologia social desde Centroamérica. UCA Editores.) evidencia que a psicologia que se diz social coloca a própria Psicologia em questão, convocando o campo para assumir os problemas éticos que lhe dizem respeito. Ao tentar problematizar a história da psicologia que se diz social, ele apresenta uma diferença entre a tradição filosófica e a Psicologia Social em sua acepção moderna. Afirma, ainda, que existem quatro fatos históricos que instauram esta diferença e provocam uma discussão sobre história a partir de três perguntas - expostas mais adiante - sobre a ordem e desordem estabelecida: maior consciência sobre as diferenças entre os grupos humanos, uma concepção secularizada do ser humano, a Revolução Industrial e o desenvolvimento de uma nova metodologia.

A tradição filosófica destacada por Martín-Baró (2007Martín-Baró, I. (2007). Acción y ideologia: Psicologia social desde Centroamérica. UCA Editores.) está associada a reflexões sobre a ação social dos seres humanos. O estudioso chama a atenção para o papel da educação na formação do cidadão destacado por Platão e evidencia, por meio de Maquiavel, Hobbes e Rousseau, como um momento de grave crise política faz surgir hipóteses explicativas que tratam das relações entre poder, leis e violência, que ora dizem que o homem é o lobo do homem, ora que o mundo é um meio que corrompe o homem. Os três pensadores tentam, na realidade, criar uma compreensão racional para as convulsões sociais de sua época, em que a norma social já não estava funcionando e evidenciava uma ruptura social entre projetos e possibilidades (Martín-Baró, 2007). Tal ruptura foi traduzida por Marx como conflito de interesses associados à configuração de uma sociedade que passa a ser constituída por uma divisão social de classes. Portanto, para Marx, a ideia de uma solução de conflitos por meio de um contrato social é uma ficção que oculta as relações de exploração e as novas regras de dominação. Para entender estas ideias, temos que utilizar a estratégia da inversão: não utilizar as ideias para explicar a crise, mas utilizar a realidade em crise para explicar o surgimento dessas ideias.

Martín-Baró (2007Martín-Baró, I. (2007). Acción y ideologia: Psicologia social desde Centroamérica. UCA Editores.) apresenta alguns fenômenos históricos da segunda metade do século XIX para definir as diferenças entre a tradição filosófica que explica ações sociais dos homens de uma tradição moderna da Psicologia Social. O processo de colonização de outros povos transformou os efeitos das viagens. A viagem colonizadora produziu um questionamento da natureza humana centrada numa visão etnocêntrica que justifica e legitima a dominação de um povo sobre outro. É uma pergunta antropológica e, portanto, fundamentada no deslocamento de uma visão teocêntrica para uma visão antropocêntrica. É o homem livre que exige outro conhecimento sobre o mundo, uma visão secularizada do ser humano. Esta visão coincide com a revolução industrial do capitalismo: foi uma revolução porque produziu uma nova organização social e gerou grande miséria, proveniente da desconstrução da estrutura comunal e familiar, alterando tradições, costumes e hábitos de comportamento, e grande fluxo migratório, que acabou por gerar novas dicotomias: cidade e campo; colônia e colonizador; trabalhador e dono do dinheiro. O sujeito passa a ser autônomo, tendo que produzir seu sustento. E este sustento não poderia ser alcançado pelas atividades produtivas familiares, porque havia a necessidade de administrar toda uma população faminta e necessitada. A produção tinha que ser em massa e, com isso, a natureza se transformou em matéria-prima e o conhecimento em instrumento para controlar e transformar a natureza em produtos de necessidade. Este contexto histórico de radical perturbação produzida pela revolução industrial foi o gestor da preocupação com a manutenção de uma sociedade unida.

Foi neste contexto e das questões que ele gerou que surgiu a Psicologia Social como um campo que privilegia as relações entre indivíduo e sociedade como problemática central. Na realidade, a psicologia é convocada a dar conta dos conflitos sociais, das rupturas estruturais e a se constituir como um conhecimento fundamentado numa metodologia de intervenção social, em que são identificados os problemas e produzidas as soluções.

Somente a partir dessas considerações podemos jogar com as perguntas que Martín-Baró (2007Martín-Baró, I. (2007). Acción y ideologia: Psicologia social desde Centroamérica. UCA Editores.) faz para trabalhar a história da Psicologia social. As perguntas são provocações que de alguma forma nos ajudam a compreender como se dão as relações entre educação, formação, trabalho e responsabilidade social. Segundo Martín-Baró (2007), no campo da Psicologia Social, os fundamentos podem ser identificados a partir de três perguntas: a) o que nos mantém unidos numa determinada ordem social?; b) o que integra as pessoas na ordem social estabelecida?; c) o que nos liberta da desordem estabelecida?

Dentro de uma realidade constituída por rupturas de normatividades e mudanças nas formas de produzir as condições reais de existência, para onde nos leva o conhecimento orientado por estas perguntas? Cada pergunta nos remete a três campos da Psicologia Social - entende-se campo como posicionamento ético-político.

Existe uma produção na Psicologia Social que traz como fundamento subentendido a questão de uma sociabilidade que deve ser orientada pela manutenção e constituição de uma união - advinda de uma ordem estabelecida - entre os indivíduos que compõem a sociedade. A ordem estabelecida é o que garante a união dos indivíduos e, portanto, uma sociabilidade que é homogênea e não gera problemas. Entretanto, a ideia de união ainda possibilita levantar hipóteses sobre a constituição do indivíduo a partir do seu pertencimento e de jogos de reconhecimento/identificação, que são sempre relacionais. Mas estas relações entre indivíduo e sociedade não são naturais; são histórico-sociais e culturais.

Outra perspectiva é aquela orientada pela ideia de integração a uma ordem estabelecida. Também existe nesta perspectiva uma centralidade na ordem estabelecida, mas faz-se necessário diferenciar união de integração. A diferença se encontra na “inquestionabilidade da ordem social a qual se encontra todo o social” (Martín-Baró, 2007Martín-Baró, I. (2007). Acción y ideologia: Psicologia social desde Centroamérica. UCA Editores., p. 34). A pergunta deixa de ter como foco a ordem e passa para a garantia funcional do estabelecido. Não estamos falando de uma ideia de pertencimento e da necessidade de reconhecimento social; a ideia de integração, segundo Martín-Baró (2007), diz respeito a uma compreensão que se orienta pela investigação do que devemos fazer para que qualquer indivíduo se integre harmoniosamente na ordem estabelecida. Trata-se de identificar quais as necessidades da ordem social estabelecida, e a função da Psicologia seria satisfazer essas necessidades e requisitos adaptando os indivíduos e grupos às formas existentes de vida.

Nessas perspectivas não existe a possibilidade de questionar a ordem estabelecida. Cabe destacar que tampouco se trata de entender que problematizar a ordem estabelecida significa a ausência de ordem ou norma. A necessidade da ordem pode ser compreendida a partir da exigência de uma normatividade que oriente a sociabilidade; porém, normatividade não é sinônimo de normalidade. A ordem estabelecida ser tratada como algo a ser garantido não é a mesma coisa que a garantia de uma normatividade. Uma coisa é criar normas, outra é obedecer a uma normalidade. Na normalidade, o normal é imperativo.

Um bom exemplo de pergunta que orienta determinado campo da Psicologia Social se encontra em propostas desenvolvidas no campo da psicologia social estadunidense que tentam dar conta de alguns problemas sociais: a integração dos imigrantes; a integração do trabalhador às exigências do capitalismo; os efeitos da guerra. No que toca à imigração, observa-se estratégias de aculturamento para socialização; já no referente ao segundo fenômeno, vemos uma busca de maior benefício e eficiência. No terceiro aspecto, destacamos o conceito de mudança de atitudes. Nos três casos, são os indivíduos que constituem o problema a ser superado: o imigrante, o trabalhador e o soldado. A divulgada teoria sobre “dinâmica de grupos” traduz as microestruturas como reflexos das macroestruturas, em que as forças a serem trabalhadas sempre são empenhadas na direção de integrar os indivíduos aos grupos sem considerar o caminho das forças e dos processos que podem nos levar a mudar os grupos ou aos grupos transformarem outros grupos. O conflito é visto como algo negativo que deve ser suprimido e superado.

É justamente o conceito de conflito que se torna uma ferramenta importante para abrir outro caminho para o campo da Psicologia Social, que se orienta por uma outra pergunta: o que nos liberta da desordem estabelecida? Esta pergunta se estrutura a partir de outros nomes: libertação e desordem. O que seria uma desordem estabelecida? Seria uma ordem instituída, porém conflituosa? A normatividade social é constitutivamente estruturada por um conflito? O que norteia as relações sociais são os conflitos? De qual desordem devemos nos libertar?

De acordo com Baró (2007), existe um marco social, mas este é criticável e contingente na medida em que se sustenta pela negação de possibilidades. Por isso, é mais importante saber como as pessoas podem mudar a ordem estabelecida, se libertar das relações de dominação que geram subalternidades e exclusões e construir uma ordem mais justa. A psicologia entra nesse processo por meio de um trabalho que evidencia os mecanismos pelos quais os imperativos sociais são interiorizados.

Nossas perguntas devem nos levar para além de nós mesmos

Por isso, voltemos ao começo. Quais os prejuízos de uma greve? O primeiro deles é não ter consciência de que temos pré-juízos. O segundo é não questionar estes juízos predeterminados. E o terceiro é não criar uma compreensão que ultrapasse as frases prontas. O mais importante é tomar consciência das perdas e dos ganhos. Estamos perdendo direitos. A maioria dos movimentos sociais está lutando para garantir que não sejamos destituídos desses direitos conquistados. O mundo do trabalho está sendo pressionado a voltar para condições precárias. Não há estabilidade no emprego: um trabalhador é demitido porque está há muito tempo na empresa e fica muito caro manter seus direitos, troca-se um profissional experiente por cinco inexperientes em contrato temporário etc. A precariedade diminui o risco de “rebeliões” e “reivindicações” que interrompem o bom andamento da produtividade. Uma greve é um ganho quando diminuímos a perda, mas também quando denunciamos que não estamos conseguindo avançar em novas conquistas, que serão o nosso legado para as novas gerações. A greve não é sinônimo de crise traduzida por prejuízos e a crise econômica e política se concretizam nas relações cotidianas do trabalho e da educação, exigindo um posicionamento ético-político. Dizer que as atitudes do professor e do aluno em greve são geradoras da crise na educação é afirmar que somos nós que criamos os problemas no campo do ensino. Nossas perguntas devem nos levar para além de nós mesmos.

Por outro lado, estranhamente, em diferentes momentos da greve, ouvi diferentes atores que compõem a universidade dizendo que estavam tendo tempo para viver a vida, ler, estudar, escrever… Falas que me fazem perguntar: que universidade estamos construindo? Uma universidade em que as pessoas sentem que não há vida ou uma universidade que consome a vida de quem nela trabalha ou estuda? Uma universidade em que não se estuda, lê ou escreve? O que são todos esses artigos publicados, capítulos de livros que se devoram, trabalhos que são escritos? Que palavras são essas que habitam o nosso cotidiano acadêmico? Perder a potência das palavras, a força de um pensamento, é algo muito grave para uma formação. Fazer uma formação constituída de palavras mortas é um passo para se tornar um profissional que mata as palavras.

Lembro que em uma de nossas aulas, um aluno colocou com todo seu coração algumas questões: “A universidade é elitista. Como podemos transformar isto? Como podemos trazer o mundo lá de fora para dentro da sala de aula?”, e completou dizendo que estava “perguntando sinceramente o que podemos fazer”. Eu fiquei muito sensibilizada com esta fala, principalmente por notar a necessidade do aluno de afirmar que estava sendo sincero. Ele demarcou algo muito importante: defender a sinceridade significa que muitas mentiras e falsas perguntas são ditas numa aula. Desta experiência, fica esse desejo de que sejamos mais compromissados com a busca por uma real produção de conhecimentos que, ao serem sinceros, possam nos conectar com a realidade. E que essa conexão seja da ordem de um conhecimento encarnado que transforme a realidade. Como diria Chico Buarque (1989Buarque, C. (1989). Uma palavra [Música]. In Uma palavra. Marola.): “Palavra boa / Não de fazer literatura, palavra / Mas de habitar / Fundo / O coração do pensamento, palavra”.

Espero, sinceramente, que a greve tenha sido um momento de silêncio, não de silenciamento. Um momento de silêncio em que possamos ter exercitado o olhar e as palavras. Um exercício que irá trazer para a universidade a vida, pois a destruição sempre estará à espreita.

Referências

  • Bernat, I. (2013). Encontros com o griot Sotigui Kouyaté. Pallas.
  • Buarque, C. (1989). Uma palavra [Música]. In Uma palavra. Marola.
  • Freire, P. (1975). Pedagogia do oprimido. Paz e Terra.
  • Jecupé, K. W. (2020). A terra dos mil povos: História indígena brasileira contada por um índio. Peirópolis.
  • Martín-Baró, I. (2007). Acción y ideologia: Psicologia social desde Centroamérica. UCA Editores.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2020
  • Aceito
    09 Jun 2021
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