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Os Efeitos do Racismo na Saúde Mental das Militantes Negras do MMNDS

The Effects of Racism on the Mental Health of Black MMNDS Militants

Efectos del Racismo en la Salud Mental de las Militantes Negras del MMNDS

Resumo

A presente produção versa sobre as consequências do racismo na saúde mental das mulheres negras integrantes do Movimento de Mulheres Dandara do Sisal (MMNDS), atuante no Território do Sisal, na Bahia. A intersecção de raça e gênero fomentou a organização do movimento, já que o gênero influi no racismo e a cor, no machismo; além do fato de as mulheres negras serem alvos de racismo e sexismo desde o período da escravização. A abordagem metodológica utilizada foi a descritiva-qualitativa, cujos métodos de coleta de dados foram entrevistas semiestruturadas com seis mulheres negras e observação participante de ações e atividades do movimento Dandara do Sisal. As entrevistadas relataram o racismo, a discriminação e o preconceito raciais que sofreram em suas trajetórias em diferentes espaços e instituições sociais: família, escola, universidade/faculdade, mercado de trabalho, dispositivos de saúde pública etc. Ser vítima de tais violências reflete negativamente na identidade negra, autoestima, subjetividade e saúde mental das atrizes sociais. Elas descreveram o sofrimento psíquico da exclusão social e a importância de estarem em movimento como estratégias de fortalecimento mental e enfrentamento ao racismo. Entende-se a Psicologia, enquanto ciência e profissão, como importante na luta antirracista, pois as consequências deletérias do racismo ameaçam a saúde mental e as subjetividades das mulheres e população negras.

Palavras-chave:
Saúde mental; Mulheres negras; Racismo; Movimento de mulheres negras; Território do Sisal

Abstract

This article discusses the consequences of racism on the mental health of black women members of the Dandara of Sisal Black Women Movement (MMNDS), which acts in the territory of Sisal, Bahia. The intersection of race and gender has fostered the movement’s creation due to the gender impacting racism and the race affecting the sexism; as well as the fact that black women are victim of racism and sexism since the period of slavery. The methodological approach was qualitative and descriptive, with data collection methods by semi-structured interviews with six black women activists and participant observation of the Dandara of Sisal movement actions and activities. The women reported the racism, racial discrimination and prejudice that they suffered in their lives in different spaces and social institutions: family, school, university, job market, public health mechanisms etc. Being victim of such violence reflects negatively on the black identity, self-esteem, subjectivity, and mental health of these social actresses. They described the psychic suffering of social exclusion and the importance of being in the movement as strategies for mental empowerment and fight against the racism. Psychology is understood, as science and profession, as important in the anti-racist cause, since the deleterious effects of racism threaten the mental health and the subjectivity of black women and people.

Keywords:
Mental health; Black women; Racism; Black women movement; Territory of Sisal

Resumen

Este texto se centra en las consecuencias del racismo en la salud mental de las mujeres negras miembros del Movimiento de Mujeres Negras Dandara do Sisal (MMNDS) que actúan en el Territorio do Sisal, en Bahía (Brasil). La intersección entre raza y género ha fomentado la organización del movimiento, ya que el género influye en el racismo, y el color en el machismo, además de que las mujeres negras han sido objeto de racismo y sexismo desde el período de la esclavitud. El enfoque metodológico utilizado fue descriptivo y cualitativo, para la recolección de datos se aplicaron entrevistas semiestructuradas con seis mujeres negras y la observación participante de acciones y actividades del movimiento Dandara do Sisal. Las entrevistadas denunciaron racismo, discriminación y discriminación racial, que sufrieron en sus trayectorias en diferentes espacios e instituciones sociales: familia, escuela, universidad/colegio, mercado laboral, dispositivos de salud pública, etc. Ser víctima de este tipo de violencia refleja negativamente en la identidad negra, la autoestima, la subjetividad y la salud mental de las actrices sociales. Las militantes describieron el sufrimiento psíquico de la exclusión social y la importancia de estar en un colectivo como estrategia para el fortalecimiento mental y la lucha contra el racismo. Se entiende que la Psicología, mientras ciencia y profesión, es importante en la lucha antirracista, ya que las consecuencias nocivas del racismo amenazan la salud mental y las subjetividades de las mujeres negras y la población negra.

Palabras clave:
Salud mental; Mujeres negras; Racismo; Movimiento de mujeres negras; Territorio do Sisal

Introdução

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) demonstra que 54,9% da população brasileira composta por negros (pretos e pardos) vivem num Estado nacional apartado racialmente (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2017Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2017). População chega a 205,5 milhões, com menos brancos e mais pardos e pretos. Agência IBGE Notícias. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18282-pnad-c-moradores.html
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). Indicadores socioeconômicos referentes a educação, renda e expectativa de vida entre as populações autodeclaradas negra e branca são desiguais, pois negros brasileiros têm desenvolvimento humano inferior ao de muitos países em desenvolvimento, a exemplo da África do Sul, que erradicou o regime do apartheid há menos de três décadas. Enquanto os autodeclarados brancos apresentam índices análogos aos da população dos países europeus, como a Bélgica (Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro.).

Essas disparidades configuram o Brasil como um país que perpetua valores racistas, que subjugam as mulheres e homens negros colocando-os em desvantagem social perante os brancos, apesar da formalização do fim da escravidão há 131 anos, em 1888. Essa formalização não foi acompanhada por reparação social aos ex-escravizados(as), o que fez perpetuar o racismo, as discriminações e os preconceitos raciais a seus descendentes, além de ter determinado as desigualdades raciais e condições desses sujeitos (M. L. Oliveira, Meneghel, & Bernardes, 2009Oliveira, M. L., Meneghel, S. N., & Bernardes, J. S. (2009). Modos de subjetivação de mulheres negras: Efeitos da discriminação racial. Psicologia & Sociedade, 21(2), 266-274. https://doi.org/10.1590/S0102-71822009000200014
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).

O racismo propõe-se a privilegiar uma determinada raça em detrimento de outra(s), a partir das características físicas dos sujeitos, ao naturalizar e explicar as alteridades sociais, econômicas e pessoais. O racismo tem três concepções interligadas: individualista, institucional e estrutural. A primeira concebe o racismo de forma “patológica” ou “irracional”, resumindo-o ao campo das práticas isoladas dos indivíduos e grupos e ignorando a estrutura da sociedade e suas instituições racistas. Assim, essa visão limita o racismo aos comportamentos imorais e patológicos dos sujeitos, ao ressaltar a natureza psicológica do fenômeno em detrimento de sua natureza política. A concepção institucional amplia o racismo no nível dos comportamentos das pessoas e grupos ao considerar o funcionamento das instituições nas relações raciais, em que conferem, intencionalmente ou não, privilégios ou desvantagens conforme a raça (Almeida, 2018Almeida, S. (2018). O que é racismo estrutural? Letramento.). A Comission For Racial Equality (1999 como citado em Werneck, 2005Werneck, J. (2005). Iniquidades raciais em saúde e políticas de enfrentamento: As experiências do Canadá, Estados Unidos, África do Sul e Reino Unido. In Fundação Nacional de Saúde (Org.), Saúde da população negra no Brasil: Contribuições para a promoção da equidade (pp. 315-386). Funasa; Ministério da Saúde., p. 340) define o racismo institucional como:

A incapacidade coletiva de uma organização de prover um serviço apropriado ou profissional para as pessoas devido à sua cor, cultura ou origem racial/étnica. Ele pode ser visto ou detectado em processos, atitudes e comportamentos que contribuem para a discriminação por meio de preconceito não intencional, ignorância, desatenção e estereótipos racistas que prejudicam determinados grupos raciais/étnicos, sejam eles minorias ou não.

As instituições estão inseridas numa dada estrutura social previamente existente, que condiciona suas atuações, desse modo, o racismo expresso nos espaços institucionais também integra as estruturas. Isso significa que o racismo é inerente à ordem social e que sua reprodução corriqueira ocorre na vida cotidiana, na política, no direito e na economia, o que explicita a concepção estrutural do racismo (Almeida, 2018Almeida, S. (2018). O que é racismo estrutural? Letramento.).

Prosseguindo com outras definições dos elementos que determinam a condição dos sujeitos negros no Brasil, o preconceito racial relaciona-se com o âmbito cognitivo e socioemocional, caracterizado por uma série de sentimentos e pensamentos pré-determinados e pejorativos atribuídos aos negros como grupo, a partir da introjeção de representações sociais estereotipadas deles, frutos de fatores históricos e sociais. Já a discriminação racial tem como requisito principal o poder, que designa qual raça terá vantagem ou desvantagem nas configurações sociais, políticas, econômicas, dentre outras. Desse modo, de acordo com a definição do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2017Conselho Federal de Psicologia. (2017). Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas(os)., p. 12), “a discriminação racial se refere a comportamentos de distinção com prejuízo para negros, podendo se manifestar como privação de direitos ou diferença de tratamento”.

A discriminação divide-se em direta e indireta. A primeira caracteriza-se pelo repúdio manifesto a sujeitos e grupos membros de uma determinada raça. Já a segunda é marcada pela ausência de intenção explícita em discriminar, mas envolve um processo de ignorar as condições específicas de grupos minoritários ou atribuí-las regras de “neutralidade racial” desconsiderando a existência de diferenças sociais decisivas (Almeida, 2018Almeida, S. (2018). O que é racismo estrutural? Letramento.).

Contudo, apesar de tais desigualdades e opressões raciais demonstradas pelos indicadores, advindas do racismo, discriminação e preconceito contra os negros, no país persiste a falsa ideia de democracia racial. Suposta democracia conquistada por meio da miscigenação racial, que teria proporcionado igualdade de direitos a todos os brasileiros, de modo que não existiria racismo no Brasil. Esse falseamento da realidade racial brasileira tem o propósito de desracializar o país ao não discutir politicamente as diferenças interraciais, o que limita a igualdade racial para a população negra e privilegia material e simbolicamente os brancos (Hasenbalg, 1979Hasenbalg, C. (1979). Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Graal.; Hasenbalg & Silva, 1990Hasenbalg, C., & Silva, N. V. (1990). Raça e oportunidades educacionais no Brasil. Cadernos de Pesquisa, (73), 5-12.).

A intersecção entre raça e gênero intensifica as opressões contra as mulheres negras, pois o gênero influencia o racismo, que as aflige desde o período colonial, visto que suas ancestrais escravizadas foram expostas a muitos tipos de trabalho além da exploração de seus corpos, ao serem abusadas e violentadas sexualmente para satisfação de seus senhores e de outros homens. Essas opressões históricas marcam o psíquico e influenciam a saúde mental das mulheres negras, a exemplo das militantes do Movimento de Mulheres Negras Dandara do Sisal (MMNDS), localizado no município Serrinha/BA, inserido no Território do Sisal (TS).

Essa conjuntura desfavorável para a população negra, em específico para suas mulheres, impulsionou o surgimento do MMNDS, em 2011, a fim de lutar e resistir contra o racismo, que atinge suas atrizes sociais e outras mulheres negras do TS. O MMNDS é uma organização da sociedade civil feminina e negra, composta, em média, por 30 mulheres autodeclaradas negras. A localização principal encontra-se no município de Serrinha, porém, sua atuação amplia-se ao longo do território, por meio dos núcleos femininos nos municípios de Lamarão, Queimadas e Teofilândia, bem como nas comunidades remanescentes quilombolas Sítio Santana/Lamarão e Lagoa do Curralinho/Serrinha.

Metodologia

A presente produção decorre da pesquisa com o MMNDS, realizada entre 2018 e 2019, cujo objetivo principal foi analisar as experiências e vivências de racismo entre mulheres negras participantes do movimento. Para alcançá-lo utilizou-se da abordagem qualitativa-descritiva caracterizada por conhecer, descrever e interpretar a realidade sem alterá-la, a partir da inter-relação entre o pesquisador e os sujeitos na produção de conhecimento (L. F. L. Campos, 2015Campos, L. F. L. (2015). Métodos e técnicas de pesquisa em Psicologia. Editora Alínea.).

A produção deste artigo compôs-se por revisão bibliográfica das categorias gênero, raça/etnia, movimentos sociais, feminismo negro, saúde mental e racismo, em livros, dossiês, artigos científicos, anais e outros materiais. Ademais, a realização de entrevistas semiestruturadas com seis militantes e observação participante das ações e atividades do movimento foram métodos que integraram a produção dos dados.

Segundo Lüdke e André (1986Lüdke, M., & André, Μ. E. D. A. (1986). Pesquisa em educação: Abordagens qualitativas. EPU.), o usufruto da entrevista como ferramenta de coleta dos dados possibilita o acesso às informações desejadas com distintos interlocutores, sobre diferentes temáticas. Ao longo de sua realização há flexibilidade para revisões, correções, elucidações e adaptações. Sendo assim, as entrevistas semiestruturadas com as ativistas do Dandara do Sisal foram norteadas por um roteiro pré- elaborado e aberto, que possibilitou adaptação dos itens a cada entrevista, através da solicitação de mais detalhes quanto às narrativas de cada militante.

A quantidade das entrevistas fundamentou-se na disponibilidade das mulheres negras em participar do estudo e no critério de saturação dos dados, conforme a repetição dos dados obtidos (Fontanella, Ricas, & Turato, 2008Fontanella, B. J., Ricas, J., & Turato, E. R. (2008). Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: Contribuições teóricas. Cadernos de Saúde Pública, 24(1), 17-27. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2008000100003
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). As informações coletadas nas entrevistas foram transcritas na íntegra e submetidas à análise de conteúdo (Bardin, 1977Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Edições 70 Ltda.; C. J. G. Campos, 2004Campos, C. J. G. (2004). Método de análise de conteúdo: Ferramenta para a análise de dados qualitativos no campo da saúde. Revista Brasileira de Enfermagem, 57(5), 611-614. https://doi.org/10.1590/S0034-71672004000500019
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).

Por se tratar de pesquisa com seres humanos, o projeto foi submetido à avaliação do Conselho de Ética da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e aprovado sob o parecer n. 2.760.162 e CAAE: 85469618.4.0000.0053. O estudo também se amparou pela Resolução n. 510, de 07 de abril de 2016 (Ministério da Saúde, 2016Ministério da Saúde. (24 maio 2016). Resolução n. 510, de 7 de abril de 2016. Ética na Pesquisa na área de Ciências Humanas e Sociais. Diário Oficial da União. http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf
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), que regulamenta e normatiza as pesquisas com humanos na área de Ciências Humanas e Sociais. Assim, elaborou-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), destinado principalmente para as entrevistas, que informava sobre o estudo e seus objetivos, destino e responsáveis; o cuidado com as informações coletadas e fidedignidade em suas transcrições; a possibilidade de desistência da participação a qualquer sem prejuízo à militante; dentre outros informativos. Também houve a confecção do Termo de Autorização de Uso de Imagem, para o registro fotográfico das integrantes, ações e atividades do movimento, que integrou os apêndices do estudo.

Conforme a Ética em Pesquisa com Seres Humanos, o direito ao anonimato foi salvaguardado caso as entrevistadas manifestassem o desejo de preservar sua imagem e nome. A pesquisa propôs-se a visibilizar a atuação MMNDS, no Território do Sisal e na Bahia, ao nominar suas ativistas negras como constam nas pautas de reivindicação do movimento. Isso porque as mulheres afirmam a importância de elas e outros sujeitos negros dizerem seus nomes e sobrenomes em todos os espaços onde estão presentes, para que o racismo não o faça por eles, como afirmou a entrevistada Cleuza Juriti (38 anos, pedagoga e ativista): “É importante a gente afirmar nosso nome e sobrenome”.

O método observação participante ocorreu em dois momentos: o ato público “Pela Vida das Mulheres e Meninas e Fim da Violência de Gênero”, organizado pelo movimento em parceria com outras organizações da sociedade civil e administração pública, em Serrinha; e a sessão de fotos com as integrantes, na praça Morena Bela em Serrinha, promovida pela pesquisadora para o site institucional1 1 O site institucional foi confeccionado pela pesquisadora para o movimento, a fim de colaborar com a divulgação e o acesso das informações sobre o MMNDS, na internet. Endereço de acesso ao site: https://dandarasisal.wixsite.com/mmnds. e materiais do movimento. As visitas ao município para realização das entrevistas e participação dos eventos do MMNDS foram registradas no diário de campo, ferramenta constituída a cada encontro. O conteúdo do diário foi aproveitado como complemento para os dados coletados em entrevistas.

Dandaras: apresentação das guerreiras

As mulheres entrevistadas têm histórias de vida que se assemelham pela condição de ser negra e mulher na sociedade brasileira. Porém, todas têm particularidades que singularizam suas vivências e experiências. Assim, a seguir apresenta-se brevemente as representantes do Dandara do Sisal que contribuíram com esta pesquisa:

Cleuza Juriti de Souza, uma das fundadoras do movimento, natural e residente de Serrinha, mãe de três filhas e avó de três meninas. Tem 38 anos, é separada do pai das suas filhas, assume a chefia da família, posição essa que ela não está preocupada em delegar para uma figura masculina, seja de seu ex-companheiro ou outro, conforme o padrão social de família define. Juriti é pedagoga formada pela UNEB, campus de Serrinha, e especialista em Gestão Pública, formações que a fez ocupar cargos públicos, como assessora do secretário de Direção do Desenvolvimento Social do município. No entanto, hoje sua ocupação não é remunerada; ela atua como formadora e ativista do Dandara do Sisal. Sua atuação em movimentos sociais não se resume ao MMNDS: antes da criação dele, ela já participava dos movimentos negros e mistos da cidade. Sua continuação nessas organizações mistas é caracterizada por fazer o recorte de gênero nas reuniões e ações propostas.

Figura 1
Cleuza Juriti de Souza

Para Juriti, participar do Dandara do Sisal primeiramente é um fortalecimento de si mesma e também se traduz na possibilidade de ajudar outra mulher, companheira de luta. De acordo com ela, o movimento:

Nos norteia, não só no olhar meu quanto a pessoa que sofreu racismo, que tá tentando achar uma metodologia de sair, mas eu também vou ouvir outras pessoas que passou pelo processo ou às vezes passa e nem sabe que tá passando, porque não conhece o racismo (Cleuza Juriti de Souza).

Estar no movimento possibilita que ela fale sobre si, sobre ser mulher negra, e denuncie o racismo que suas ancestrais não puderam denunciar, como ela relatou: “Se minha mãe prendeu, eu posso hoje falar”.

Outra fundadora do Dandara do Sisal e também integrante dos movimentos negros e mistos de Serrinha, desde 2003, é Ivoneide Silva Bispo, 45 anos, mãe de cinco filhos, dos quais três são biológicos e dois, adotivos. Um de seus filhos adotivos é autista e pessoa com deficiência; ela faz questão de o incluir na sociedade e de que esta não o discrimine; por isso não é raro vê-los juntos em atividades do movimento e outros eventos sociais. Ela é soteropolitana, mudou-se para Serrinha quando criança com seus pais e irmãos, quando aqueles procuravam condições melhores para criar os cinco filhos, dos quais Ivoneide é a mais velha. Ser a primogênita a atribuiu responsabilidades desde muito cedo, como trabalhar em casa de família e construir família com seu ex-marido e pai de seus filhos biológicos quando tinha entre 13 e 14 anos.

Figura 2
Ivoneide Silva Bispo

Atualmente, ela também assume a chefia familiar, apesar de ter quatro filhos rapazes maiores de idade e de se relacionar com outro companheiro. O padrão de família imposto pela sociedade também a preocupou na decisão de separar-se do ex-marido, principalmente quanto à criação dos filhos e à falta de apoio de seus familiares. Após a separação, ela percebeu que poderia criar muito bem seus filhos sem a presença do pai no mesmo lar e que a mulher, independentemente de estar morando ou não com uma figura masculina, merece e deve ser respeitada. Apesar da infância e juventude simples e com poucas oportunidades, ela continuou seus estudos e graduou-se em Administração pela UNEB, campus de Serrinha, mas ainda não se encontra no mercado de trabalho formal exercendo sua profissão. Para conseguir uma renda ela vende roupas, acessórios e calçados em seu bazar, cujo fornecimento advém de doações de amigos, vizinhos e conhecidos.

Estar no movimento de mulheres negras a fortalece por meio dos conhecimentos e das experiências proporcionadas por ele, principalmente quando sua atuação, através do Dandara do Sisal, ajuda e muda a vida de outras mulheres de forma positiva, o que para Ivoneide é muito gratificante. Contribuir para o bem-estar de outras mulheres é um retorno seu ao movimento, que também a ajudou.

Ele [o movimento] traz fortalezas pra nossas vidas, a partir do momento que a gente começa adquirir conhecimentos, experiências próprias. E aí a gente consegue se libertar de muita coisa, eu consegui me libertar através do movimento de muita coisa que eu passei na minha vida, de família, de trabalho, de religião (Ivoneide Bispo).

Ser mãe de uma pessoa com deficiência não é exclusividade de Ivoneide: Sidmara Conceição Assis é mãe de uma menina de cinco anos com traço da microcefalia, além de mais três filhos. Ela tem 34 anos, é solteira, natural de Feira de Santana/BA, estudou até o Ensino Fundamental I e trabalha como empregada doméstica. A participação de Sidmara em movimento social é a mais recente de todas as entrevistadas, pois tinha um ano como integrante do Dandara do Sisal. Sua atuação também não é tão presente quanto a das demais devido a suas dificuldades de estar nas reuniões e ações do movimento, pois necessita trabalhar e cuidar de seus filhos, principalmente sua caçula com deficiência. Mas Sidmara pretende atuar mais conforme suas possibilidades, principalmente por considerar importantes as ações do MMNDS em ajudar as mulheres e combater o racismo em Serrinha/BA.

Figura 3
Sidmara Conceição Assis

O combate ao racismo também faz parte da atuação de Wilma dos Santos Rodrigues, a mais nova das entrevistadas, que tem 26 anos, é mãe de três filhos, separada, natural de Serrinha, estudante de Pedagogia na UNEB e Agroindústria no Instituto Federal Baiano, ambos do mesmo município, autônoma e quilombola urbana da comunidade Novo Horizonte, antigo Matadouro. As experiências de racismo e misoginia contribuíram para Wilma participar definitivamente em 2013 do Dandara do Sisal e dos outros movimentos negros de Serrinha já citados, bem como elaborar as consequências dessas opressões: “Depois que eu descobri o movimento que me ajudou a melhorar quanto pessoa, pra transformar, mudar aquela revolta que havia dentro de mim [risos]”. A militante também desenvolve ações voltadas para os jovens periféricos no projeto “Fala aí, jovem”, que se propõe a estabelecer um bate-papo com eles em suas comunidades.

Figura 4
Wilma dos Santos Rodrigues

Integrar o Dandara do Sisal e poder fortalecer outras mulheres negras do Território do Sisal, para Wilma Rodrigues, é gratificante e significativo, por proporcionar uma autorrealização ao se descobrir como mulher negra, além de retornos positivos de suas ações por meio dos relatos e agradecimentos das mulheres. Essas vivências advindas do MMNDS a impulsionam com suas companheiras a continuar, formar mais pessoas multiplicadoras nas comunidades do território, porque segundo ela “a gente sozinha também não consegue fazer muita coisa”.

Descobrir-se mulher negra a partir do movimento é vivência compartilhada por Taise da Conceição Santos Oliveira, 39 anos, mãe de duas crianças, casada, natural de Salvador/BA, enfermeira graduada pela UEFS, especialista em Obstetrícia e gestora de saúde na Base Regional de Saúde de Serrinha. Taise conheceu o Dandara do Sisal a partir do convite feito pelo movimento para falar sobre a saúde da população negra, mais especificamente da mulher, no Novembro Negro. Após o primeiro contato e seu encantamento com o MMNDS, ela aceitou o convite para ser integrante em 2014, pois é uma organização na qual se sente representada como mulher e negra.

Figura 5
Taise da Conceição Santos Oliveira

Apesar de o Dandara do Sisal ser o primeiro movimento social de que participa, o ativismo político negro não lhe é novidade, pois em toda sua vida teve o pai, ativista em movimentos sindicais, como exemplo. Ela levanta a bandeira do Dandara do Sisal em todos os espaços onde se faz presente, seja na família, religião e trabalho, como afirma: “Eu me comprometi, né, a ser militante quanto Dandara em todos os espaços que eu esteja”. Por isso, sua prática profissional e seu ativismo estão interligados. Essa atuação profissional e social é fruto da contribuição do MMNDS ao fazê-la compreender as especificidades da Saúde da População Negra, especificamente a da Mulher Negra, o que a tornou mais atenta à assistência e aos atendimentos oferecidos por ela e seus colegas para esses públicos.

Outra profissional de saúde compôs as entrevistas: Maria Ângela Silva Lima de Jesus, 45 anos, agente comunitária de saúde, mãe de dois rapazes, casada, natural de Feira de Santana/BA e licenciada em Geografia pela Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC). Ela integra o movimento há quatro anos e o conheceu por meio das ações realizadas nas escolas de Serrinha. Devido à necessidade de ajudar as mulheres em situações de violência da comunidade quilombola Lagoa do Curralinho em Serrinha, onde ela atua e convive como profissional, Maria Ângela decidiu participar do MMNDS. A possibilidade de ajudar outras mulheres e descobrir meios para tal torna sua experiência dentro do Dandara do Sisal mais positiva: “Pra mim é um momento muito bom, porque a cada encontro que eu vou, eu descubro novas formas de ajudar outras pessoas. Achava que tinha que permanecer naquele mesmo jeito, e agora não, eu sei me defender até mesmo”.

Estar no movimento contribuiu como suporte ao exercício da maternidade, pois Maria Ângela educa seus dois filhos a não se tornarem cidadãos racistas, violentos e/ou misóginos, já que são valores que ela não tolera.

Figura 6
Maria Ângela Silva Lima de Jesus

Assim, o movimento Dandara do Sisal compõe-se por mulheres negras protagonistas de suas histórias, que lutam por si e pelos seus em diferentes espaços. Mulheres negras que consideram o MMNDS uma oportunidade de aprender e crescer como sujeitos ao serem representadas, fortalecidas e acolhidas intragrupo em suas especificidades.

Peles negras marcadas pelo racismo

Apesar das singularidades nas vivências das militantes, o racismo é experiência comum entre elas e outras mulheres negras no Brasil. A raiz da subjugação de raça e gênero dessas mulheres é histórica, desde a escravidão entre os séculos XVI e XIX. As heranças desse período, no imaginário da sociedade brasileira, são as representações e os estereótipos construídos sobre o corpo das mulheres negras: empregada doméstica, mãe preta e mulata - os três vinculados à imagem servil desses sujeitos (Cardoso, 2014Cardoso, C. P. (2014). Amefricanizando o feminismo: O pensamento de Lélia Gonzalez. Revista Estudos Feministas, 22(3), 965-986. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300015
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; Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro.).

A empregada doméstica atribui ao corpo das negras a função do trabalho manual, precário e desvalorizado. A mãe preta representa o sujeito que amamenta e sustenta, isto é, cuida da necessidade de todos, principalmente dos mais poderosos, da branquitude. A mulata significa a hipersexualização e erotização da mulher negra, um corpo designado a satisfazer os desejos sexuais de outros. Apesar de ser um estereótipo racista, a categoria mulata, comparada às anteriores, tem referência positiva no imaginário social brasileiro, pois, como afirma Moreira (2018Moreira, N. R. (2018). A organização das feministas negras no Brasil. Edições UESB., p. 36), “...a mulata representa a identidade mestiça requerida pela nação brasileira, mesmo que recaia sobre ela o estereótipo da sexualidade”.

Essas concepções e estereótipos influenciam negativamente no usufruto e acesso desses sujeitos a diferentes esferas sociais, tais como segurança, saúde, educação, trabalho etc., conforme as narrativas das entrevistadas sobre suas experiências de racismo. Os relatos têm pluralidades, visto que ser mulher e negra as une na questão racial concomitante ao gênero, entretanto, as falas são singulares quando comparadas às das companheiras.

Os corpos das atrizes sociais são constantemente alvos do racismo, seja ele manifestado de forma velada com olhares e expressões ou explícita em violações físicas, falas pejorativas e micro agressões, conforme as integrantes compartilharam, a exemplo de Taise Oliveira (39 anos, enfermeira e gestora em Saúde Pública): “Muitos [racismos] são velados, né, mas muitas vezes você é julgada pelo seu modo de vestir, pela sua característica, pelo seu cabelo [ênfase da entrevistada]”; e Ivoneide Bispo (45 anos, administradora e autônoma):

O meu cunhado, que é casado com essa irmã minha caçula, ele começou também a me machucar. Ele que era pior, porque eu não podia chegar na casa de mãe e ele vinha pra cima de mim assim com meu cabelo e passava a mão.

O ambiente familiar, de acordo com o relato de Ivoneide Bispo, é um espaço onde as mulheres negras estão suscetíveis à reprodução do racismo, assim como nos espaços educacionais, desde a educação básica até a pós-graduação. As práticas do racismo advêm tanto de estudantes/colegas quanto de profissionais das instituições. A militante Wilma Rodrigues (25 anos, estudante e autônoma) conhece bem essa realidade, pois a comunidade remanescente quilombola Novo Horizonte e outros bairros periféricos dos municípios são marginalizados e os estudantes negros residentes nessas localidades são alvos de discriminações raciais pelo corpo docente. Conforme a entrevistada:

Os professores discriminavam muito o bairro, porque é um bairro periférico, aí fica falando que os meninos eram tudo rebelde, adquiriram, botaram uma fama no bairro, e chamavam muito a gente de cabelo duro, que o cabelo da gente não é bonito (Wilma Rodrigues, 25 anos).

Outra vivência de cunho racial sofrida por ela, juntamente com a irmã e prima, ocorreu quando as três brincavam na frente da escola e o porteiro negro da instituição as comparou negativamente com urubus que sobrevoavam no céu:

Teve um caso também de racismo que eu passei na escola, já foi no Ginásio, no Ensino Médio, na entrada assim do Fundamental II já. E aí o porteiro negro também, tava eu, minha irmã, minha prima, a gente brincando próximo ao portão e ele veio falar “Oh, tá vendo ali?!” apontou pro céu e aí tinha um monte de urubu sobrevoando, e aí ele “Tá vendo ali, ali ó, os parentes de vocês, batam asas e vá se juntar aos parentes de vocês” (Wilma Rodrigues, 25 anos).

Nas Instituições de Ensino Superior (IES), apesar dos avanços com as políticas de ações afirmativas, como cotas para negros, quilombolas, indígenas, pessoas de baixa-renda e demais minorias políticas, episódios de racismo e opressões não são raros. A fundadora Cleuza Juriti (38 anos, pedagoga e ativista), ao cursar a pós-graduação em Gestão Pública, foi questionada por um colega branco sobre a escolha de curso, que para ele aquele não era um curso para negros, pois o exercício de funções e cargos de gerência apenas competem aos brancos. De acordo com a entrevistada:

Teve outra questão na universidade, que foi um dos colegas, aí já foi na pós [pós-graduação], que ele chegou a dizer que eu não tinha, que eu era uma mulher negra que eu não tinha que tá fazendo pós em Gestão Pública, que é que um negro queria fazendo pós em Gestão Pública (Cleuza Juriti, 38 anos).

Carneiro (2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro.) faz uma pertinente consideração sobre a não aceitação da branquitude quando negras e negros não se encontram em situação de subalternidade:

Para alguns brancos (e outros que assim se supõem), parece só haver um jeito suportável de ser negro: aquele ligado ao fracasso, à vulnerabilidade, ao servilismo, à dependência e à inferioridade introjetada. Negros e negras fortes, altivos e vencedores parecem um insulto para esses brancos (Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro., pp. 124-125).

O atendimento omisso, violento ou ausente no campo da saúde integra as vivências de racismo, discriminação e preconceito raciais das militantes do movimento Dandara do Sisal. A problemática da Saúde Pública brasileira referente à assistência das mulheres negras no processo gravídico-puerperal fez de Wilma Rodrigues (25 anos, estudante e autônoma) vítima de violência obstétrica ao dar à luz a seu primeiro filho, visto que as enfermeiras negligenciaram sua dor e condição pós-parto, baseadas no julgamento racista de que negros são fortes e aguentam dor:

Passei racismo no momento do parto do meu primeiro filho, que eu sentia muita dor, eu senti muita dor, demorei pra ter meu filho, e as enfermeiras falando comigo o tempo todo “Bora, força, força. Bora que pra fazer você num teve dor, num teve isso, bora. Uma menina dessa, já viu gente morena num aguentar dor, gente de sua cor aguenta”. Então, eu sentindo dor, fraca já, com a pressão baixíssima e elas o tempo todo no meu ouvido falando aquilo, tava me transtornando de verdade. Eu tive hemorragia pós-parto, eu tive que usar fralda descartável e num teve ninguém pra me vestir, eu fraquíssima que não consegui comer após o parto. Eu tive o meu filho quinze para as três da tarde, fiquei com fome o dia todo até o outro dia de manhã, num teve ninguém pra me ajudar a vestir a fralda, eu vesti a fralda sozinha, abri a fralda na cama, vesti. Nem deixaram a minha mãe entrar pra me ajudar, não me colocaram no soro que o médico prescreveu que me ia colocar o soro e dar um medicamento pra ajudar a estancar o sangue, a amparar mais o sangue, não me deram, então eu fiquei lá a Deus dará, no hospital (Wilma Rodrigues, 25 anos, grifos nossos).

As mulheres negras, pobres, adolescentes, prostitutas, usuárias de drogas, vivendo em situação de rua, encarceradas, dentre outras, estão mais suscetíveis a omissão de socorro e negligência por parte da equipe de saúde (Diniz et al., 2015Diniz, S. G, Salgado, H., Andrezzo, H. F, Carvalho, P. G, Carvalho, P. C., Aguiar, C. A, & Niy, D. Y. (2015). Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: Origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development, 25(3), 377-384. https://doi.org/10.7322/jhgd.106080
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). O recorte racial revela que as mulheres negras grávidas recebem menos assistência e recursos quando comparadas às mulheres brancas, visto que são as menos informadas sobre aleitamento e menos acompanhadas no período gravídico-puerperal, assim como dedica-se a elas menos tempo de atendimento e anestesiadas (Assis, 2018Assis, J. F. (2018). Interseccionalidade, racismo institucional e direitos humanos: Compreensões à violência obstétrica. Serviço Social & Sociedade, (133), 547-565. https://doi.org/10.1590/0101-6628.159
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).

A Saúde da População Negra é posta em risco por outros critérios arbitrários e raciais no atendimento dos sujeitos negros: por preferência racial no momento da assistência, a população branca é privilegiada ante a negra. Conforme relatou a integrante Sidmara Assis (34 anos, ensino fundamental incompleto e empregada doméstica), no episódio em que ao buscar atendimento no hospital, sua vez de ser atendida foi negada em benefício de uma pessoa branca nas mesmas condições de saúde:

Já sofri [racismo] em hospital, já sofri tá numa fila esperando, às vezes esperar uma coisa, a pessoa chegar assim mais branco do que eu me olhar torto... Eu cheguei pra ser atendida, aí quando eu tava pra ser atendida chegou uma mais, que a pessoa vê mesmo, né, que é mais branca, que tem mais condições, eles já não me atenderam, né, botaram ela na minha frente. Eu fui embora nesse dia, não quis nem ser atendida (Sidmara Assis, 34 anos).

A perpetuação do racismo nos relatos das militantes também ocorre no mercado de trabalho desde a busca de emprego, em que, devido ao racismo, descarta-se o currículo da mulher negra, mesmo que ela preencha as competências profissionais necessárias para o cargo. Segundo Carneiro (2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro., pp. 114-115), “...negros com as mesmas habilitações que os brancos são preteridos em processos de seleção e, quando igualmente empregados, ganham menos pelo exercício das mesmas funções”. Essa exclusão no mercado de trabalho faz as mulheres negras representarem o maior segmento de desempregados ou trabalhadores mais vulneráveis e em relações precárias de trabalho (Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro.; E. Santos, Diogo, & Schucman, 2014Santos, E, Diogo, M., & Schucman, L. (2014). Entre o não lugar e o protagonismo: Articulações teóricas entre trabalho, gênero e raça. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 17(1), 17-32. https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v17i1p17-32
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).

A hostilidade no ambiente de trabalho contra esse segmento perpetua-se quando já estão alocadas, principalmente quando elas exercem cargo ou função de gerência, pois há resquícios da escravidão no imaginário social, que concebe o lugar da população negra em funções servis, precárias, braçais e de baixa qualificação (Soares, 2000Soares, S. S. D. (2000). O perfil da discriminação no mercado de trabalho: Homens negros, mulheres brancas e mulheres negras. Ipea.). Conforme relatou Taise Oliveira (39 anos, enfermeira), atualmente gestora de Saúde Pública no município: “Você estar na gestão, a pessoa achar que você é [riso] da limpeza ou procurar saber, você se apresentar, procurar saber quem é o chefe, né”.

Nesses casos, além do racismo, elas também são alvos do machismo, pois o binômio da divisão sexual e social do trabalho demarca que gerenciar, comandar e ordenar, na sociedade brasileira, são tarefas masculinas, principalmente dos homens brancos. Às mulheres são relegadas as funções de cuidado e reprodução: dedicar-se ao esposo, filhos, casa etc. (Lusa, 2012Lusa, M. (2012). Relações de gênero no campo: A superação dos papéis tradicionais como desafio à proteção social básica e o papel dos assistentes sociais. Gênero, 13(1), 93-107.).

A identidade racial das atrizes sociais também é alvo de ataques, pois as mulheres têm deslegitimada a autodeclaração como mulheres negras/pretas por seus entornos sociais, dentre eles familiares negros, por meio da tentativa de embranquecê-las com afirmações de que elas são morenas ou pardas - inclusive aquelas com tonalidade de pele retinta. A ativista negra Ivoneide Bispo (45 anos, administradora e autônoma) expressa a violência de que foi vítima ao se aceitar e reconhecer como mulher negra a partir de sua inserção nos movimentos sociais negros de Serrinha:

Através do Instituto eu entrei no movimento negro, que faço parte também do Movimento Negro... Eu comecei a me aceitar como mulher negra, eu parei de pranchar o meu cabelo, de alisar o meu cabelo, de escovar o meu cabelo, e aí eu comecei a sofrer o preconceito dentro da própria família... Tanto que no início até minha mãe dizia pra mim que eu não era filho de negro, minha mãe tem uma tonalidade de pele mais escura que a minha, e ela me chamava que eu não era filha de negro (Ivoneide Bispo).

Schucman, Mandelbaum e Fachim (2017Schucman, L. V., Mandelbaum, B., & Fachim, F. L. (2017). Minha mãe pintou meu pai de branco: Afetos e negação da raça em famílias interraciais. Revista de Ciências Humanas, 51(2), 439-455. https://doi.org/10.5007/2178-4582.2017v51n2p439
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), ao estudarem sobre as famílias inter-raciais e a negação da negritude e ancestralidade negra dentro desses núcleos familiares, abordam a participação nos movimentos sociais negros como fator para os sujeitos afirmarem-se como negros a partir de identificações com a cultura negra, assim como ocorreu com Ivoneide Bispo após o ingresso nas organizações negras. De acordo com os autores, a negação da cor e da ancestralidade de negras e negros por parte dos familiares deve-se às tentativas destes de afastar aqueles que amam dos estereótipos negativos e racistas construídos sobre os negros no Brasil, isto é, de que são sujeitos preguiçosos, feios, agressivos, ignorantes, menos inteligentes, ladrões, prostitutas etc. Contudo, negar é reforçar tais estereótipos, pois retira o familiar autodeclarado da categoria, mas mantém os conceitos negativos sobre o signo negro intacto.

Tal negação da negritude por negros reflete o sucesso dos mecanismos de embranquecimento brasileiro via miscigenação, que é incentivada e celebrada, desde o fim da escravidão: “A fuga da negritude é a medida da consciência de sua rejeição social e o desembarque dela sempre foi incentivado e visto com bons olhos pela sociedade” (Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro., p.73). Negros com cabelos mais lisos, tonalidade da pele menos retinta, olhos azuis ou verdes, celebram sua mestiçagem contra a identidade negra, ao se declararem como morenos, pardos2 2 Apesar de a classificação pardos estar englobada na categoria racial negros, junto com pretos, conforme os censos do IBGE, seu uso pode carregar a problemática da tentativa de embranquecimento por aqueles que não se reconhecem como negros. Essa rejeição à negritude pode ser analisada como alienação da identidade racial daqueles que se autodeclaram como pardos (Munanga, 1999; G. M. Silva & Leão, 2012). ou brancos, e são legitimados ou “promovidos” a essas categorias por seu entorno social. “E o acordo tácito é que todos façam de conta que acreditam” (Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro., p. 64).

A dor do racismo: os efeitos da discriminação na saúde mental da mulher negra

Porque sofrer preconceito é uma violência, sofrer racismo é uma violência que dói” (Ivoneide Bispo, 45 anos, administradora e autônoma). Ser negra e negro no Brasil é estar suscetível ao racismo, ao preconceito, às discriminações e todas as outras violências correlacionadas, desde o nascimento até a morte, principalmente se for decorrente do extermínio da população negra e periférica. Os danos psíquicos nas vítimas dessas violências juntam-se a tantos outros já denunciados, pois o racismo, a discriminação e o preconceito raciais impactam na subjetividade e autoestima negra, por gerarem sofrimento psíquico (Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro.).

Tais prejuízos são efeitos de construções sociais, nas quais tanto a identidade racial3 3 Janet Helms (1990, p. 3) a define como “Um sentimento de identidade coletiva ou grupal baseado em uma percepção de estar compartilhando uma herança racial comum com um grupo particular... é um sistema de crenças que se desenvolve em reação a diferenciais percebidos no pertencimento a grupos raciais”. e quanto a cultural4 4 Stuart Hall (1990 como citado em Woodward, 2014) aborda concepções distintas de identidade cultural: a primeira é referente à legitimação identitária de um grupo por meio de um suposto e autêntico passado comum a todos. Esse passado valida a identidade que esses grupos reivindicam. A segunda concepção visa identidade cultural como fluida: “uma questão de ‘tornar-se’ quanto de ‘ser’”. Ou seja, ao reivindicar uma identidade, os indivíduos a reconstroem, atribuindo-lhe novos significados. de brancos e negros formulam-se por meio da diferença e são frutos das representações simbólicas e da linguagem. As práticas de significação e os sistemas simbólicos formam as representações; assim, por meio dos significados que os indivíduos proporcionam às práticas e relações sociais, eles se posicionam como sujeitos dando sentido às experiências e a aquilo que são. Cada contexto e cultura tem forma particular de representar, mas uma identidade é sempre produzida em relação à outra diferente, pois a identidade depende da diferença para ser concebida. Consequentemente, as práticas de significação fabricam significados que envolvem relações de poder, cuja marcação simbólica define quem é excluído ou incluído (Woodward, 2014Woodward, K. (2014). Identidade e diferença: Uma introdução teórica e conceitual. In T. T. S. Silva (Org.), S. Hall & K. Woodward, Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais (15a ed., pp. 07-72). Editora Vozes.).

Destarte, a ordem do sistema social baseia-se em oposições binárias, que dividem o mundo em “nós” e “eles”. Tal classificação não é simétrica, pois uma categoria sempre é privilegiada e positivada, enquanto a outra é negativada, conforme afirma T. T. S. Silva (2014Silva, T. T. S. (2014). A produção social da identidade e da diferença. In T. T. S. Silva (Org.), S. Hall, & K. Woodward, Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais (15a ed., pp. 73-102). Editora Vozes.) ao se referir ao filósofo Jacques Derrida:

Para o filosofo francês Jacques Derrida, as oposições binárias não expressam uma simples divisão do mundo em duas classes simétricas: em uma oposição binária, um dos termos é sempre privilegiado, recebendo um valor positivo, enquanto o outro recebe uma carga negativa. As relações de identidade e diferença ordenam-se, todas, em torno de oposições binárias: masculino/feminino, branco/ negro, heterossexual/ homossexual (T. T. S. Silva, 2014Silva, T. T. S. (2014). A produção social da identidade e da diferença. In T. T. S. Silva (Org.), S. Hall, & K. Woodward, Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais (15a ed., pp. 73-102). Editora Vozes., p. 83).

Aproximando a reflexão dos autores aos brancos e negros brasileiros, a escravização dos negros por mais de 300 anos acarretou ao campo simbólico e material a concepção de que há raças superiores e inferiores, em que os brancos e sua cultura são considerados a norma, a principal referência para as outras raças. Logo, a identidade branca constrói-se positivamente no Brasil.

A ‘brancura’ passa a ser parâmetro de pureza artística, nobreza estética, majestade moral, sabedoria científica etc. Assim o branco encarna todas as virtudes, a manifestação da razão, do espírito e das ideias: a cultura, a civilização, isto é, a própria humanidade (Nogueira, 2016Nogueira, I. B. (2016). A saúde psíquica da população negra. In R. M. S. Oliveira (Org.), Cenários da saúde da população negra no Brasil: Diálogos e pesquisas (pp. 17-24). EDUFRB; Fino Traço., p. 21).

Concomitantemente, o negro e seu corpo desviam da norma social, na medida em que o corpo negro, refém das malhas da cultura, representa o outro, isto é, aquilo que extravasa e tende ao excesso. A princípio, esse corpo é excluído dos valores intelectuais e morais associados ao seu oposto, o branco.

O racismo e a hierarquização entre os corpos influem negativamente na subjetividade da população negra, pois como afirma o CFP (2017Conselho Federal de Psicologia. (2017). Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas(os).) na referência Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas(os):

Voltando à discussão sobre racismo, naquela escala hierárquica, e em relação aos diferentes âmbitos da vida, ao grupo racial negro (preto e pardo) historicamente tem sido atribuído os lugares mais desqualificados e, ao grupo racial branco, o topo da hierarquia. Esse escalonamento marca suas identidades e seus modos de vida, pois, se o topo, portanto, o ideal, está associado à população branca, ela tem maior probabilidade de constituir-se subjetivamente de forma afirmativa, já a população negra é comumente assolada por uma luta constante e, às vezes, inglória, contra o sentimento de inferioridade e, junto com ele, o de culpa por não corresponder àquele suposto ideal, bem como pelo sentimento de angústia por persistentemente passar por situações de opressão (CFP, 2017Conselho Federal de Psicologia. (2017). Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas(os)., pp. 10-11).

Desse modo, às negras e aos negros é relegada a experiência de sofrer o próprio corpo, experiência que irá configurar a dimensão psíquica e condição subjetiva desses sujeitos de formas particulares, como afirma Nogueira (2016Nogueira, I. B. (2016). A saúde psíquica da população negra. In R. M. S. Oliveira (Org.), Cenários da saúde da população negra no Brasil: Diálogos e pesquisas (pp. 17-24). EDUFRB; Fino Traço.). A falsa ideia da democracia racial e o pacto narcísico da branquitude reforçam as consequências psicológicas do racismo. Esse pacto caracteriza-se pelo silêncio, omissão e distorção dessa opressão internalizados nas relações sociais entre negros e não negros, de modo que há um acordo tácito entre os brancos para não se conceberem como racializados e isentarem-se da responsabilidade sobre a subalternização da negritude e o favorecimento de sua brancura (Bento, 2014Bento, M. A S. (2014). Branqueamento e branquitude no Brasil. In I. Carone & M. A. Bento (Orgs.), Psicologia social do racismo: Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil (pp. 25-57). Editora Vozes.; Piza, 2014Piza, E. (2014). Porta de vidro: Entrada para a branquitude. In I. Carone & M. A. Bento (Orgs.), Psicologia social do racismo: Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil (pp. 59-90). Editora Vozes.).

O racismo enquanto potência aniquilante e aniquiladora constitui-se como agravante para o sofrimento e adoecimento psíquico da população negra brasileira, já que ele exclui e oprime esses sujeitos nas conjunturas sociais, históricas, econômicas e políticas, negando condições dignas de subsistência e suprimindo perspectivas de futuro promissor; igualmente, internaliza figuras negativas e inferioriza essa população (J. A. Santos, 2018Santos, J. A. (2018). Sofrimento psíquico gerado pelas atrocidades do racismo. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), 10(24), 148-165.). E. Pinto, Isabelle, Lisboa e Mendes (2016Pinto, E., Isabelle, C., Lisboa, G., & Mendes, R. O. (2016). Autonarrativas e os impactos do racismo na saúde mental da população negra: Uma reflexão. In R. M. S. Oliveira (Org.), Cenários da saúde da população negra no Brasil: Diálogos e pesquisas (pp. 67-96). EDUFRB; Fino Traço., p. 92) complementam os efeitos psicossociais do racismo ao afirmarem que “A pessoa que sofre racismo e exclusão social experimenta os sentimentos mais profundos de ofensa, humilhação, vergonha e dor. O racismo nega às pessoas o usufruto do direito de serem consideradas totalmente humanas”.

A repercussão dessa opressão na saúde mental aproxima-se dos relatos das mulheres negras entrevistadas. Ser vítima de racismo por conta de sua pele, características, heranças e cultura, para a significativa parcela das atrizes sociais, é uma experiência dolorida, fonte de tristeza e sofrimento, que muitas vezes as levam às lágrimas e ao isolamento social, a fim de evitar os agressores e a repetição da violência. A dor do racismo acentua-se quando a opressão advém de pessoas significativas e com quem haja vínculos, como familiares e amigos, pois deles se espera suporte, afeto e proteção das mazelas do mundo. Conforme o relato de Taise Oliveira (39 anos, enfermeira e gestora em Saúde Pública), “É difícil, né, às vezes dói”, dor também experienciada por Ivoneide Bispo (45 anos, administradora e autônoma), ao narrar que:

É uma coisa muito dolorida, quando a mulher ou o homem negro vai aceitar a sua origem, a sua raiz, quando o preconceito ele vem doendo quando ele vem da própria família... É dolorido, é dolorido demais, você chora as noites, você sofre da sua família, com os seus amigos, na rua (Ivoneide Bispo).

A violência traumatiza e deixa sequelas na subjetividade das mulheres negras, que não são evitadas com desculpas nem decisões jurídicas de punição: “O racismo, ele deixa sequelas. A desculpa muitas vezes não me se serve, não me serve no momento de racismo” (Cleuza Juriti, 38 anos, pedagoga e ativista). Desse modo, o sofrimento em ser alvo da violência racial vulnerabiliza mais as mulheres negras, em diferentes âmbitos de seu aparelho psíquico, como no humor, na autoestima, nos sentimentos, nas ações, dentre outros componentes da subjetividade humana. O aparelho psíquico é a condição do desenvolvimento mental humano, das habilidades e discernimento do pensamento como um todo, não apenas o intelectual formal, e sim as emoções, medos, ansiedades, sentimentos, instintos, códigos sociais, cognitivos e linguísticos (R. Oliveira, 2016Oliveira, R. (2016). Psicanálise e psicologia social: Identidade da criança negra. In I. Oliveira & M. Pessanha (Orgs.), Curso ERER/CEAD, Educação e Relações Raciais, Cursos de Educação à Distância (Vol. 2). Editora Universidade Federal Fluminense.). Não raro, as tristezas advindas da opressão racial desenvolvem-se em depressão e outros transtornos psiquiátricos.

O lugar reservado na sociedade brasileira para a mulher negra passa por rejeição de suas características, podendo levar a intensa dificuldade de organização psíquica saudável, ou mesmo no extremo de não aceitação de si mesma, baixa autoestima, danos na formação identitária, depressão e transtornos psiquiátricos (Prestes & Vasconcellos, 2013Prestes, C. R. S. (2013). Feridas até o coração, erguem-se negras guerreiras. Resiliência em mulheres negras: Transmissão psíquica e pertencimentos [Dissertação de mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo]., p. 2).

A influência do racismo na saúde mental das mulheres negras confirma-se no relato da fundadora do Dandara do Sisal, Cleuza Juriti (38 anos, pedagoga e ativista): “O racismo também, ele também nos mata, ele também nos deixa depressivo”. A estimativa apurada de quantas negras e negros são portadores de transtornos mentais é impossibilitada pela não coleta devida dos dados, visto que a cor dos indivíduos atendidos e pesquisados não é registrada nem analisada criticamente. Portanto, há carência de estudos e dados quantitativos sobre a saúde mental da população negra.

No Brasil onde a maioria da população é composta por afrodescendentes não se têm dados precisos sobre a incidência de transtornos mentais, no entanto, pode-se afirmar que muitos vivem em um contínuo sofrimento mental, pois são carentes as condições de subsistência e é ampla a falta de perspectivas de vida futura e ao internalizar figuras negativas, alguns afrodescendentes passam a ter transtornos de pensamento e de comportamento, sentimentos inferiores, comportamentos isolados, entendido por muitos como timidez ou agressividade (J. A. Santos, 2018Santos, J. A. (2018). Sofrimento psíquico gerado pelas atrocidades do racismo. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), 10(24), 148-165., p. 151).

Duvidar de sua própria inteligência e capacidade de conquistar algo ou concluir uma tarefa integra o rol das consequências do racismo, pois as mulheres negras, por seu gênero e raça, muitas vezes são desacreditadas, questionadas e diminuídas por uma sociedade racista que, desde o período escravagista, dualizam-nas racialmente: corpo separado de mente. Assim, seus corpos e mentes são estigmatizados, submetendo-as, no imaginário social, ao atributo de seres instintivos, irracionais, úteis apenas para servir no sexo e nas tarefas domésticas (Moreira, 2018Moreira, N. R. (2018). A organização das feministas negras no Brasil. Edições UESB.).

As atrizes sociais do movimento relataram como o racismo as fez se sentirem diminuídas e incapazes intelectualmente, assim como igualmente gerou autocobranças excessivas diante do fracasso. A autora e psicanalista Neusa Souza (1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro: As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Graal.) aborda que a população negra, na busca de reconhecimento e tentativa de se afastar das construções negativas sobre sua imagem, consciente ou inconscientemente, exige-se de forma exaustiva e cruel ser o(a) melhor aluno(a) e trabalhador(a), ou mais bonito(a) e sensual. O CFP (2017Conselho Federal de Psicologia. (2017). Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas(os).) ratifica a excessiva autocobrança dos negros por meio da identidade grupal. Por um lado, se um(a) branco(a) comete deslize, fracassa, será julgado em sua individualidade. Por outro lado, o(a) negro(a) “é julgado(a) pelo fato de ser negro(a), o equívoco é automaticamente transferido para todo e qualquer negro(a). São ocasiões em que se pensa: ‘só podia ser negro(a)’. Nesse caso, o(a) negro(a) torna-se portador(a) da vergonha de todos os(as) negros(as)” (CFP, 2017Conselho Federal de Psicologia. (2017). Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas(os)., p. 32). Tais consequências do racismo confirmam-se na fala de Ivoneide Bispo (45 anos, administradora e autônoma) sobre sua graduação em Administração e tais sequelas:

Aquilo foi me trancando, foi me prejudicando, entendeu? Foi me prejudicando, que até então se eu pudesse falar ali aquilo me travava, até hoje sinto essa dificuldade. Eu sei que tiveram falas que me trancou, eu já trabalhei isso em mim, mas é uma coisa que fica registrado, não consigo, não consegue sair. Foram muitas dúvidas e falas que eu olhava assim pra pessoa e baixar assim a cabeça, e chegar ali e dizer que eu não sou capaz. Mas eu sou, entendeu? Até hoje isso me travou... E foi isso que aconteceu, levantei a cabeça e passei, que eu já no final não precisava mais nem fazer provas, porque eu corri nos meus seminários, nas minhas provas, fui fazendo, e a última prova que eu fiz nem precisava, que eu sabia que eu não precisava. Imagina a situação que eu tava fazendo pra tirar 9, 10, que eu tava passando de tirar 9 e 10 em prova. Prova que era uma folha de ofício pra você responder, entendeu? E eu tirar 9/10, e eu me perguntava “Meu Deus, eu tirei isso de onde?” sabe? Que eu achava que ia chegar ali num ia responder, ia tirar o básico pra conseguir passar... Mas é isso, eu sou capaz (Ivoneide Bispo, 45 anos).

A fala dessa entrevistada demonstra as marcas simbólicas do racismo. O trauma da violência contra si e seus semelhantes afeta os sentimentos e comportamentos da mulher e da população negras, pois sentir indignação e vontade de reagir à opressão com atitudes firmes e também violentas não são incomuns. Conforme explicitam E. Pinto et al. (2016Pinto, E., Isabelle, C., Lisboa, G., & Mendes, R. O. (2016). Autonarrativas e os impactos do racismo na saúde mental da população negra: Uma reflexão. In R. M. S. Oliveira (Org.), Cenários da saúde da população negra no Brasil: Diálogos e pesquisas (pp. 67-96). EDUFRB; Fino Traço., p. 76): “A experiência de racismo é geradora de sofrimento que pode se transformar em revolta impulsionadora, individual ou coletivamente, da superação de barreiras impostas pela exclusão racial”.

A militante Wilma Rodrigues (25 anos, estudante e autônoma) contou seus sentimentos e comportamentos no enfrentamento ao racismo; seu primeiro relato refere-se à enfermeira que a violentou no parto de seu primeiro filho: “Hoje eu olho pra enfermeira que fez meu parto, mora no mesmo bairro que eu, me dá vontade de dar um murro na cara”. O segundo envolve sua indignação por presenciar violências raciais no cotidiano e o cansaço dos métodos passivos e acadêmicos no combate ao racismo, como ela pontuou:

Então são essas coisas que vêm nos indignando todo dia, todo dia, a mim pior, porque eu sou a mais revoltada mesmo do grupo [riso] e eu não me controlo, abro a boca mesmo e meto o pau e falo, porque eu tô cansada desse negócio de “Ah, vamos dialogar de uma forma mais acadêmica” assim dita “Não, vamos conversar, temos que olhar as palavras que fala”. Eu cansei disso, sinceramente (Wilma Rodrigues, 25 anos).

Dandara do Sisal como mecanismo de fortalecimento subjetivo das atrizes sociais

A superação das mulheres negras diante das mazelas do mundo é ancestral e as militantes, diante das vulnerabilidades psicológicas às quais estão submetidas devido a sua raça e gênero, consideram o MMNDS uma oportunidade para atenuá-las. O movimento representa a luta contra as opressões e o fortalecimento das subjetividades das militantes, visto que as proporciona um espaço de acolhimento entre suas semelhantes, para dividir e elaborar seus sofrimentos; discutir o racismo; obter informações de enfrentamento ao racismo. De acordo com as participantes: “Depois que eu descobri o movimento que me ajudou a melhorar quanto pessoa, pra transformar, mudar aquela revolta que havia dentro de mim” (Wilma Rodrigues, 25 anos, estudante e autônoma); e “Então o movimento me fortalece, eu mesmo me fortaleço muito com o Movimento de Mulheres Negras Dandara do Sisal, porque as minhas companheiras fazem com que eu me fortaleça a cada dia” (Cleuza Juriti, 38 anos, pedagoga e ativista).

M. L. Oliveira et al. (2009Oliveira, M. L., Meneghel, S. N., & Bernardes, J. S. (2009). Modos de subjetivação de mulheres negras: Efeitos da discriminação racial. Psicologia & Sociedade, 21(2), 266-274. https://doi.org/10.1590/S0102-71822009000200014
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) consideram os Movimentos de Mulheres Negras representantes da resistência ao reivindicarem direitos e combaterem as desigualdades raciais e sociais que atingem as mulheres negras, ao aspirarem uma sociedade mais igualitária. Ademais, os movimentos são espaços de solidariedade, confiança e representação para as mulheres, visto que as trajetórias e os interesses das ativistas têm pontos em comum. Tokita (2013Tokita, M. (2013, 10-13 set.). Mulheres negras. V Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina: “Revoluções nas Américas: Passado, presente e futuro”.) também ratifica a solidariedade entre essas mulheres organizadas ou não:

São mulheres que estão em solidariedade umas com as outras, sempre que alguma delas passa por algum problema, todas são acionadas para pensar na resolução. A filha matriarca não se lamenta por cuidar dos sobrinhos, e as mães, sempre que possível estão em sua casa, discutindo, juntas, a educação dos pequenos. E, esta mesma relação existente na casa, se estende para as vizinhas (também negras), todas juntas, se cuidam e criam relações possíveis de amor e respeito (Tokita, 2013Tokita, M. (2013, 10-13 set.). Mulheres negras. V Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina: “Revoluções nas Américas: Passado, presente e futuro”., p. 126).

O cuidado mútuo e o autocuidado entre as militantes negras do Dandara do Sisal são potências para o enfrentamento das mazelas que atingem as mulheres negras, ao proporcionarem espaço para repouso, convivência, trocas de experiências, possibilidade de escuta e ressignificação de vivências (Prestes, 2018Prestes, C. R. S. (2018). Estratégias de promoção da saúde de mulheres negras: Interseccionalidade e bem viver [Tese de doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo].). A fundadora Cleuza Juriti (38 anos, pedagoga e ativista) reforça essas funções do movimento no seguinte relato: “O movimento foi criado por essa necessidade mesmo de discutir especificamente as mulheres negras, o objetivo maior é o de discutir a vida das mulheres negras, lutar pelo bem viver, pelo bem-estar dessas mulheres”. A fala de Cleuza reflete um dos importantes marcos para os movimentos de mulheres negras no Brasil: a Marcha das Mulheres Negras em 2015, cujo lema foi “Contra o racismo, a violência e pelo bem viver”.

O bem viver citado pela fundadora e pelo lema aproxima-se do conceito desenvolvido pelo economista equatoriano Alberto Acosta (2016Acosta, A. (2016). O bem viver: Uma oportunidade para imaginar outros mundos. Editora Elefante.), que se trata de um projeto libertador, tolerante e alternativo ao colonialismo e capitalismo, inspirado principalmente na filosofia de vida dos indígenas andinos e amazônicos. O Bem Viver refere-se a uma vida equilibrada e sustentável, sem excessos, em que é necessário superar o divórcio entre ser humano e natureza, assim como considerar ambos sujeitos de direito. A harmonia proposta estende-se para as relações entre seres humanos e seres humanos, comunidades e comunidades, em que para garantir uma vida digna a todos é indispensável repensar o Estado como plurinacional e intercultural, e não mais como Estado-nação e monocultural. Esse projeto fundamenta-se na descolonização e despatriarcalização da sociedade.

Apesar de as integrantes do Dandara do Sisal considerarem o movimento importante na promoção da saúde mental, elas não descartam a necessidade de ajuda profissional, para escutar suas demandas, seus sofrimentos e auxiliá-las na elaboração dos traumas e sequelas causadas pelo racismo em suas subjetividades. A inserção de profissionais da saúde mental no movimento é uma das aspirações e necessidades pontuadas nas falas das militantes, a fim de acolherem as integrantes e as mulheres negras do Território do Sisal. Conforme Cleuza Juriti (38 anos, pedagoga e ativista):

A gente conseguir até ajudar as outras companheiras né,... também que elas necessitam, tem muitas de nossas companheiras que é do movimento de mulheres, que tá dentro da organização que precisa desse acolhimento, como até da escuta, né, até da própria escuta [profissional].

Buscar ajuda profissional e no movimento para evitar o adoecimento psíquico, não se resume a fortalecer somente a si, mas se configura em um dos compromissos das militantes com as mulheres negras, que necessitam do Dandara do Sisal para enfrentarem as discriminações raciais e de gênero. Segundo a militante Wilma Rodrigues (25 anos, estudante e autônoma), ela precisa estar forte psicologicamente para ajudar outras companheiras e servir como exemplo de superação às mulheres negras, que sofrem e adoecem no âmbito psíquico devido ao racismo:

Não fico guardando isso pra mim até porque esses sentimentos negativos adoecem. Mas eu só vou trabalhando mesmo a questão pra não ficar presa nisso, pra não acabar me prejudicando psicologicamente, porque a gente vai ficar bem pior ainda. Eu acho que com o meu psicológico forte [risos], centrada, eu vou poder contribuir bem mais com outras pessoas do que com meu psicológico abalado por qualquer outro. Essas questões assim pequenas, que eu não vou conseguir falar pra outras pessoas, né, como se portarem, como trabalharem também essa questão, superar essa questão, se eu tô com o meu psicológico abalado, se eu não conseguir superar aquilo, como é que eu vou passar pro meu colega, passar pro meu próximo, pra que ele deve superar?! Num tem... Já não vou me prendendo muito a essas questões, mas fica lembrança, fica a revolta (Wilma Rodrigues, 25 anos).

O relato da fundadora Cleuza Juriti (38 anos) ratifica a importância do Movimento de Mulheres Negras Dandara do Sisal no fortalecimento de sua subjetividade e saúde mental, para que a possibilite também fortalecer as mulheres negras do movimento e da sociedade.

O movimento, ele me ajudou muito, me ajuda a todos os momentos, até mesmo no momento que bate o desânimo, a solidão, ele vem e diz “Não, você não pode, porque tem outras mulheres que precisa de você”, então o movimento pra mim é extremamente importante (Cleuza Juriti, 38 anos).

O desejo de ajudar e ser ajudada entre as mulheres do movimento Dandara do Sisal significa, conforme Barreto (2002Barreto, M. (2002). A humilhação na saúde do trabalhador. In B. B. Sawaia & M. R. Namura (Orgs.), Dialética exclusão/inclusão: Reflexões metodológicas e relatos de pesquisas na perspectiva da Psicologia Social Crítica. Cabral Universitária., p. 136), um meio de romper com a servidão, a subjugação das mulheres negras, “evidenciando uma vontade de superar a humilhação individual com uma ação que seja reconhecida pelo coletivo”.

Considerações finais

O sistema racial brasileiro se configura como apartado racialmente, de modo que a população negra se encontra em significativa desvantagem comparativamente aos brancos. A intersecção de gênero nesse segmento torna as mulheres negras mais suscetíveis à marginalização, pois elas são duplamente subjugadas pelo racismo e machismo. Alvos de ambas as opressões, as militantes negras do Dandara do Sisal, ao longo de suas trajetórias, enfrentaram-nas em diferentes espaços e instituições sociais: família, educação, saúde, mercado de trabalho, dentre outros.

Os efeitos do racismo, preconceito e discriminação raciais se fazem presentes na condição material de vida das mulheres, como na negação de direitos, na desigualdade de oportunidades; bem como no campo simbólico, ao ameaçarem sua identidade negra, autoestima, subjetividade e saúde mental (Tavares & Kuratani, 2019Tavares, J. S. C., & Kuratani, S. M. de A. (2019). Manejo clínico das repercussões do racismo entre mulheres que se “tornaram negras”. Psicologia: Ciência e Profissão, 39. https://doi.org/10.1590/1982-3703003184764
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). Contudo, a resistência ancestral das mulheres negras se faz presente no Movimento de Mulheres Negras Dandara do Sisal, pois por meio de estratégias antirracistas as militantes denunciam e expõem as desigualdades raciais; reivindicam os direitos e melhores condições de vida para a população negra; (re)afirmam as identidades raciais e étnicas do sujeito mulher negra.

A solidariedade, a confiança e a representatividade intragrupo no Dandara do Sisal também se caracterizam como estratégias de enfrentamento ao racismo que as atinge. Ao se reunirem, as ativistas têm acesso a um espaço que as permite compartilhar suas dores, alegrias, identidades, culturas, dentre outros aspectos subjetivos sobre serem mulher e negra no Território do Sisal.

No campo psicossocial compreende-se essa luta negra e feminina como um dos efeitos do racismo caracterizado como crescimento e questionamento, segundo Costa (2012Costa, E. S. (2012). Racismo, política pública e modos de subjetivação em um quilombo do Vale do Ribeira [Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo].), em que sujeitos negros inseridos em contextos culturais e políticos contra o racismo, bem como acolhidos em ambientes familiares e amistosos, reconhecem a influência da subjugação racial sobre suas vidas e constroem recursos psíquicos e sociais para enfrentá-lo (CFP, 2017Conselho Federal de Psicologia. (2017). Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas(os).).

O enfrentamento e a busca por mudanças estruturais na sociedade se tornam possíveis por meio da consciência da dominação racial dos negros, da valoração da cultura negra e do sentimento de pertença ao seu corpo e grupo racial, que são estimulados em coletivos negros, como o MMNDS. Os movimentos sociais negros têm importante função na aceitação e pertencimento à negritude desses sujeitos, ao resgatarem a cultura negra, a história negada e distorcida por brancos e a significativa contribuição da população negra para a construção do Brasil (Prestes, 2013Prestes, C. R. S., & Vasconcellos, E. (2013). Mulheres negras: Resistência e resiliência ante os efeitos psicossociais do racismo. Pambazuka News, 63. https://bit.ly/3n2IKvp
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). Consequentemente, sentir-se pertencente ao grupo racial negro possibilita aos sujeitos construírem positivamente e de forma saudável suas identidades pessoais e coletivas, conforme Ansara (2008Ansara, S. (2008). Memória política, ditadura militar e repressão no Brasil. Juruá.).

Assim, a atuação do movimento reflete em suas integrantes ao proporcionar subsídios para que elas combatam o racismo na vida pessoal e pública e para que igualmente tenham um espaço que as acolha e fortaleça diante das opressões. Conforme Cardoso (2013Cardoso, C. P. (2013, 16-20 set.). A construção da identidade feminista negra: Experiências de mulheres negras brasileiras. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10. http://www.fg2013.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/20/1373240696_ARQUIVO_textoClaudiaPonsCardosoST092.pdf
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), a solidariedade presente nos Movimentos de Mulheres Negras no Brasil e noutras diversas formas de organizações femininas negras, constitui-se na resistência aos processos de dominação patriarcais e racistas, desde o período escravagista até os dias atuais.

Desse modo, as atrizes sociais, em conjunto e baseadas em seus lugares de fala, assumem voz ativa ao refletirem e produzirem enunciados sobre a condição da mulher negra no Território do Sisal. O lugar de fala refere-se às condições sociais impostas aos sujeitos de acordo com a raça, gênero, classe, geração, território, entre outros elementos, que se entrecruzam sem predominância de um sobre o outro. Tais condições diferenciam as experiências e vivências de distintos grupos ao permitir ou não que eles acessem lugares de cidadania e oportunidades (M. L. Oliveira et al., 2009Oliveira, M. L., Meneghel, S. N., & Bernardes, J. S. (2009). Modos de subjetivação de mulheres negras: Efeitos da discriminação racial. Psicologia & Sociedade, 21(2), 266-274. https://doi.org/10.1590/S0102-71822009000200014
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; C. J. Pinto, 2003Pinto, C. J. (2003). Uma história do feminismo no Brasil. Editora Fundação Perseu Abramo.; Ribeiro, 2017Ribeiro, D. (2017). O que é lugar de fala? Letramento; Justificando.).

O combate às iniquidades raciais não deve apenas estar no escopo de organizações sociais negras, pois a voz do Movimento de Mulheres Negras Dandara do Sisal necessita ser reforçada por outras, sobretudo pela voz da Psicologia, ciência e profissão, na medida em que os efeitos deletérios do racismo influenciam na saúde mental e construções históricas e sociais conformam subjetividades e sujeitos. Não existe ciência e profissão neutras e à parte da realidade social. O compromisso da Psicologia, a favor da luta antirracista e outras que buscam condições dignas para aqueles em desvantagens sociais nas relações de poder, deve estar presente desde a formação dos profissionais, nas grades curriculares, conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia (Ministério da Educação, 2011Ministério da Educação. (16 mar. 2011). Resolução n. 5, de 15 de março de 2011. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia, estabelecendo normas para o projeto pedagógico complementar para a Formação de Professores de Psicologia. Diário Oficial da União. http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=7692-rces005-11-pdf&Itemid=30192
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  • 1
    O site institucional foi confeccionado pela pesquisadora para o movimento, a fim de colaborar com a divulgação e o acesso das informações sobre o MMNDS, na internet. Endereço de acesso ao site: https://dandarasisal.wixsite.com/mmnds.
  • 2
    Apesar de a classificação pardos estar englobada na categoria racial negros, junto com pretos, conforme os censos do IBGE, seu uso pode carregar a problemática da tentativa de embranquecimento por aqueles que não se reconhecem como negros. Essa rejeição à negritude pode ser analisada como alienação da identidade racial daqueles que se autodeclaram como pardos (Munanga, 1999Munanga, K. (1999). Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade nacional versus identidade negra. Vozes.; G. M. Silva & Leão, 2012Silva, G. M, & Leão, L. T. S. (2012). O paradoxo da mistura: Identidades, desigualdades e percepção de discriminação entre brasileiros pardos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 27(80), 117-133. https://doi.org/10.1590/S0102-69092012000300007
    https://doi.org/10.1590/S0102-6909201200...
    ).
  • 3
    Janet Helms (1990Helms, J. E. (Org.). (1990). Black and white racial identity: Theory, research and practice. Greenwood., p. 3) a define como “Um sentimento de identidade coletiva ou grupal baseado em uma percepção de estar compartilhando uma herança racial comum com um grupo particular... é um sistema de crenças que se desenvolve em reação a diferenciais percebidos no pertencimento a grupos raciais”.
  • 4
    Stuart Hall (1990 como citado em Woodward, 2014Woodward, K. (2014). Identidade e diferença: Uma introdução teórica e conceitual. In T. T. S. Silva (Org.), S. Hall & K. Woodward, Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais (15a ed., pp. 07-72). Editora Vozes.) aborda concepções distintas de identidade cultural: a primeira é referente à legitimação identitária de um grupo por meio de um suposto e autêntico passado comum a todos. Esse passado valida a identidade que esses grupos reivindicam. A segunda concepção visa identidade cultural como fluida: “uma questão de ‘tornar-se’ quanto de ‘ser’”. Ou seja, ao reivindicar uma identidade, os indivíduos a reconstroem, atribuindo-lhe novos significados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2020
  • Aceito
    14 Jul 2021
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