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Sofrimento Sociopolítico, Silenciamento e a Clínica Psicanalítica

Socio-Political Suffering, Silencing, and the Psychoanalytic Clinic

El Sufrimiento Sociopolítico, el Silenciamiento y la Clínica Psicoanalítica

Resumo

O campo da Psicologia produz saberes e discursos que referenciam as políticas públicas que alteram ou sedimentam o lugar social atribuído ao sujeito. Este artigo considera que há modalidades de gestão política, controle e exploração que incluem em sua estratégia de dominação promover a experiência do sofrimento, seja composta pela angústia, culpa, vergonha ou humilhação social. Tendo em vista essa premissa, formulamos as vicissitudes e especificidades da escuta de sofrimento sociopolítico advindo de posições socialmente desqualificadas devido a fatores econômicos, raciais, culturais, religiosos, de gênero, entre outros. A vicissitude clínica que nos norteia é o silenciamento derivado desse sofrimento. A escuta clínica de sujeitos sob o desamparo discursivo se ancora na constatação de que o sofrimento sociopolítico desarvora o sujeito de seu lugar de fala, promovendo o abalo narcísico e a eclosão da dimensão traumática - questão diagnóstica que deve ser levada em conta -, e pondo em jogo um possível conflito de lealdades quanto ao pacto social daquele que pratica a psicanálise, o que pode gerar sua resistência à escuta. Essas considerações clínicas não seriam possíveis sem superar uma dicotomia e um recalque: a questão da política na psicanálise. Tais concepções supõem repensar dimensões táticas, estratégicas e éticas no atendimento clínico psicanalítico. Abordaremos as artimanhas do poder que produzem o desamparo discursivo e a dimensão traumática, chegando finalmente a algumas considerações sobre o tratamento a ser dado ao sofrimento sociopolítico e as especificidades da escuta nesses contextos.

Palavras-chave:
Sofrimento; Desamparo Discursivo; Silenciamento; Traumático; Psicanálise

Abstract

The field of psychology produces knowledge and discourses that guide public policies and alter or consolidate the social place attributed to the subject. This article considers that there are modalities of political management, control, and exploitation which include in their own strategy of domination promoting the experience of suffering, whether comprising anguish, guilt, shame or social humiliation. In view of this premise, we formulate the vicissitudes and specificities of listening to socio-political suffering arising from socially disqualified positions due to economic, racial, cultural, religious and gender factors, among others. The clinical vicissitude that will guide us will be the silencing derived from this suffering. The clinical listening to subjects under discursive helplessness is anchored on the observation that sociopolitical suffering takes the subject out of his or her place of speech, promoting narcissistic shock and the emergence of the traumatic dimension - a diagnostic issue that should be considered - and raising a possible conflict of loyalties regarding the psychoanalyst’s social pact that can generate his or her resistance to listening. These clinical considerations would not be possible without overcoming a dichotomy and a repression: the question of politics in psychoanalysis. Such conceptions suppose rethinking tactical, strategic and ethical dimensions in psychoanalytic clinical care. We will approach the tricks of power that produce the discursive helplessness and the traumatic dimension, finally reaching some considerations about the treatment to be given to socio-political suffering and the specifics of listening in these contexts.

Keywords:
Suffering; Discursive Helplessness; Silencing; Traumatic; Psychoanalysis

Resumen

El campo de la Psicología produce conocimiento y discursos que son decisivos para las políticas públicas y para alterar o consolidar el lugar social atribuido al sujeto. Este artículo considera la existencia de modalidades de gestión política, control y explotación que incluyen, en su estrategia de dominación, promover la experiencia del sufrimiento, ya sea compuesta por angustia, culpa, vergüenza o humillación social. En vista de esta premisa, formulamos las vicisitudes y especificidades de escucha del sufrimiento sociopolítico que surge de posiciones socialmente descalificadas debido a factores económicos, raciales, culturales, religiosos y de género, entre otros. La vicisitud clínica que nos guiará es el silenciamiento derivado de este sufrimiento. La escucha clínica de los sujetos bajo impotencia discursiva está anclada en la observación de que el sufrimiento sociopolítico saca al sujeto de su lugar de discurso promoviendo el shock narcisista y la aparición de la dimensión traumática -un problema de diagnóstico que debe tenerse en cuenta-, y pone en juego un posible conflicto de lealtades con respecto al pacto social del psicoanalista, lo que puede generar su resistencia a la escucha. Estas consideraciones clínicas no serían posibles sin superar una dicotomía y una represión: la cuestión de la política en el psicoanálisis. Dichas concepciones suponen repensar las dimensiones tácticas, estratégicas y éticas en la atención clínica psicoanalítica. Se abordarán los trucos del poder para producir la impotencia discursiva y la dimensión traumática, llegando finalmente a algunas consideraciones sobre el tratamiento que se dará al sufrimiento sociopolítico y los detalles específicos de la escucha en estos contextos.

Palabras clave:
Sufrimiento; Impotencia Discursiva; Silenciar; Traumático; Psicoanálisis

O sofrimento e seu impacto no diagnóstico e no atendimento clínico

O campo da psicologia produz saberes e discursos que serão referências decisivas para as políticas públicas e para o lugar social atribuído ao sujeito. Psicólogos e psicanalistas têm ampliado o escopo de suas práticas clínicas, não mais restritas a consultórios particulares, mas adentrando instituições públicas de saúde mental, de saúde em geral e de assistência social, tais como o Sistema Único de Saúde (SUS), Sistema Único de Assistência Social (Suas), Centros de Atenção Psicossocial (Caps), entre outras. Outros territórios se abriram.

O saber da psicologia também é convocado para se articular com o discurso jurídico e para resolver impasses em instituições educacionais - relativos a como educar, ensinar, disciplinar etc. Além disso, esse conhecimento é demandado em situações de violência, acidentes naturais ou urgências sociais, ou ainda na questão da imigração e refúgio. Foram desenhadas várias experiências de intervenção junto a comunidades nas quais o poder público está frequentemente ausente. E lá onde o sofrimento do sujeito se dá a ver, lá estão os psicólogos, muitos dos quais psicanalistas.

Nesses novos lugares de atuação, encontram-se seguimentos da população que, de alguma forma, são segregados do socius. Abrem-se questões para a clínica, em especial, sobre as particularidades das intervenções clínicas, quando os dilemas, conflitos e dores do sujeito são em grande parte decorrências de sua desqualificação no laço social. Ou ainda, perguntar-se sobre como se articulam as dores e amores da vida com os impasses na sobrevivência, assim como a exclusão dos bens materiais e culturais e a imposição das relações de submissão diante dos privilegiados.

A vicissitude clínica que nos norteia é o silenciamento observado em determinadas modalidades de sofrimento, advindas do modo como as pessoas estão situadas no laço social, nesses casos, em posições socialmente desqualificadas devido a fatores econômicos, raciais, culturais, religiosos, de gênero, entre outros. O sofrimento que silencia promove um impasse na clínica psicanalítica que é, essencialmente, um lugar de fala, a cura pela palavra - expressão de Bertha Pappenheim, paciente do médico vienense Josef Breuer, para se referir ao tipo de tratamento a que estava sendo submetida. Como situar o atendimento clínico considerando a incidência dos discursos sociais e políticos que estabelecem relações de poder e de governança devastadoras, sobretudo sobre os excluídos?

As práticas que desenvolvemos estão baseadas no desamparo discursivo, um nome para o silenciamento, que se ancora em duas premissas. A primeira é sobre a especificidade do sofrimento sociopolítico que desarvora o sujeito de seu lugar de fala, promovendo o abalo narcísico e a eclosão da dimensão traumática, questão diagnóstica que deve ser levada em conta. A segunda premissa articula o lugar de fala ao lugar de escuta e refere-se a que o desejo de analista pode vacilar, resultando na resistência do psicanalista em escutar o sofrimento do outro, por exemplo, quando a desqualificação social que abala o sujeito é vinda do grupo social a que pertence o psicanalista, gerando um conflito de fidelidade, seja por falta de reflexão histórica e social do contexto de sua prática, seja por uma formação em psicanálise precária.

Estas considerações clínicas não seriam possíveis sem se superar uma dicotomia e um recalque: a questão da política na psicologia e na psicanálise. Tais concepções supõem repensar dimensões táticas, estratégicas e éticas no atendimento clínico psicanalítico.

Este artigo traça um panorama das discussões em relação ao sofrimento e à produção do silenciamento, visitando brevemente alguns autores da psicologia social, da ciência política e da psicanálise, os quais, apesar da diferença epistêmica, convergem nas descrições do sofrimento social e nos ajudam construir nossa concepção clínica.

Pode-se dizer que todo sofrimento1 1 Não abordaremos nesse artigo o sofrimento por dores físicas. Algumas leituras são propostas, tais como associações da dor com o estado melancólico, inibições psíquicas e hipocondria. A dor é tomada como expressão de uma vivência traumática e não simbolizada. Ver, por exemplo: Santos & Rudge (2014). é psíquico. Pode-se dizer que todo sofrimento é social. Entendemos que o sofrimento abarca essas duas dimensões e que as nomeações refletem a ênfase que cada autor pretende dar. Em nosso caso, referindo-se à prática clínica, chamaremos de sofrimento sociopolítico. Na segunda parte deste artigo, abordaremos nossa tese sobre as artimanhas do poder e da dominação, o desamparo discursivo e a dimensão traumática, chegando finalmente a algumas considerações sobre o tratamento a ser dado ao sofrimento sociopolítico e as especificidades da escuta nesses contextos.

Sofrimento e produção do silenciamento

A questão do sofrimento encontra-se presente em vários campos do conhecimento - na filosofia, sociologia, medicina e ética - que tratam, por diferentes vieses, o sofrimento e sua etiologia múltipla social, econômica, orgânica, cultural, racial, moral, comportamental, psíquica etc. Desse vasto campo, recortaremos, a partir da psicanálise, as incidências da exclusão social na constituição do sujeito e seu sofrimento.

A obra de Freud e dos autores que a desdobraram é extensa e revela os dilemas e reflexões perante o sofrimento, a psicopatologia e suas inflexões na clínica e na teoria psicanalítica. Apesar de ser um termo recorrente na psicanálise, sofrimento não tem estatuto de conceito, sendo expresso por meio da temática da angústia, do mal-estar, do desamparo, do estranho ou infamiliar, assim como pelo eixo constituinte do psiquismo, representado pelo princípio do prazer/desprazer.

Na clínica, Freud logo se deparou com o sofrimento advindo do imperativo categórico da moral sexual e lhe deu estatuto de estrutura, como superego. Abordou o complexo de Édipo remetendo-se às tragédias Édipo Rei e Hamlet, ambas abordando a luta mortal da sucessão do poder. Desenvolveu vários textos sobre esse tema, mas é em O mal-estar na civilização, de 1930, que apresentou a conhecida tese de que a civilização impõe ao homem restrições quanto à sexualidade e agressividade, em troca da pertença e proteção da vida em comum, afirmando que “o homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança” (Freud, 1930/1996Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização. In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (C. M. Otitica & V. Ribeiro, Trads., Vol. 21, pp. 73-148). Imago. (Trabalho original publicado em 1930), p. 119). Diz também:

O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução . . .; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro (Freud, 1930/1996Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização. In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (C. M. Otitica & V. Ribeiro, Trads., Vol. 21, pp. 73-148). Imago. (Trabalho original publicado em 1930), p. 84, grifo nosso).

Sobre essa relação, acrescenta:

Os homens não são criaturas gentis . . .; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos devem-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante em potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo - Homo homini lupus (Freud, 1930/1996Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização. In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (C. M. Otitica & V. Ribeiro, Trads., Vol. 21, pp. 73-148). Imago. (Trabalho original publicado em 1930), p. 116).

Nesse cenário, pode-se perceber que nem todos pagam o mesmo preço pela civilização. Todos têm restrições pulsionais exigidas pela civilização em troca da proteção e pertença, mas uma parcela da população tem maior proteção, menores restrições e menos infortúnios, enquanto outra parcela, explorada, tem menor proteção, maiores restrições e maiores sofrimentos, o que inclui o tema da desigualdade no sofrimento e no mal-estar. A desigualdade aqui referida é questão bastante diversa da noção da diferença, tematizada na psicanálise como diferença sexual, desejo e singularidade. De acordo com o filósofo Rouanet (1993Rouanet, S. P. (1993). Mal-estar na modernidade. Companhia das Letras.), “os sofrimentos e privações impostos às classes oprimidas constituiriam um Unbehagen (mal-estar) intenso e ameaçador, causador de grande parte da frustração pulsional na maioria da população” (p. 115).

O debate sobre sofrimento social ganha força com os estudos dos processos de naturalização do sofrimento e a perda do sentido da vida, que propiciam o silenciamento dos trabalhadores (Werlang & Mendes, 2013Werlang, R., & Mendes, J. M. R. (2013). Sofrimento social. Serviço social e sociedade, (116), 743-768. https://doi.org/10.1590/S0101-66282013000400009
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). A vulnerabilidade dos indivíduos no mercado de trabalho, somada ao enfraquecimento das proteções, podem instaurar o que Castel (1995/1998Castel, R. (1998). As metamorfoses da questão social: Uma crônica do salário (Iraci Domenciano Poleti, Trad.). Vozes. (Trabalho original publicado em 1995)), sociólogo francês, chama de processo de desfiliação, ou seja, a ausência de “inscrição do sujeito em estruturas portadoras de sentido” (p. 536). Este indivíduo “desfiliado” fica em uma zona intermediária, já que não é totalmente excluído, mas está distante do centro de coesão e decisão. Uma zona de espera e suspensão sem tempo definido, o que, pode-se dizer, transfere a vulnerabilidade social para o próprio sujeito.

Nesse tema, ressaltamos dois processos descritos por Dejours (1992Dejours, C. (1992). A loucura do trabalho: Estudo de psicopatologia do trabalho. Cortez.), psiquiatra e psicanalista francês, sobre o sofrimento no trabalho: a culpa do trabalhador pelo próprio sofrimento, interiorizando o processo de dominação; e o processo de cristalização, que pode tornar o trabalhador insensível àquilo que justamente lhe traz sofrimento. Dessa forma, o trabalhador pode negar o sofrimento, tanto de si como do outro, calando-se. Pode-se detectar a naturalização do sofrimento e o silenciamento, nossos temas.

A psicóloga social Sawaia (1987Sawaia, B. B. (1987). A consciência em construção no trabalho de construção da existência [Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo].) inclui o sofrimento ético-político sob a concepção marxista de compreensão da sociedade conflituosa, especificamente na vivência dos sujeitos no processo de luta de classes. Diz: “O sentimento não é a forma embrionária da consciência, é seu elemento constitutivo” (Sawaia, 1987Sawaia, B. B. (1987). A consciência em construção no trabalho de construção da existência [Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]., p. 298). Ela incorpora o conceito de sofrimento ético-político na categoria dialética exclusão/inclusão e destaca a máscara da inclusão, a inclusão perversa. Trata-se de uma inclusão que perverte a imagem do sujeito no coletivo e a compreensão da imagem do coletivo na vivência dos indivíduos. Na compreensão espinosiana, Sawaia (2009Sawaia, B. B. (2009). Psicologia e desigualdade social: Uma reflexão sobre liberdade e transformação social. Psicologia & Sociedade, 21(3), 364-372. https://doi.org/10.1590/S0102-71822009000300010
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, 2011Sawaia, B. B. (2011). Da consciência à potência de ação: Um movimento possível do sujeito revolucionário na psicologia social. In W. Galindo & B. Medrado (Orgs.), Psicologia Social e seus movimentos: 30 anos de Abrapso (pp. 35-52). Editora UFPE.) destaca a relação entre sofrimento ético-político e autonomia, enfatizando a dimensão ética dos afetos quando se opera um abaixamento de potência, proveniente da passividade, da servidão ou da heteronomia. Sofrimento, ética e política se articulam, assim como demonstraremos na psicanálise.

Outras tradições epistemológicas ganham relevância em nosso tema de articulação entre psicanálise, sofrimento e política. Arendt (1958/1983Arendt, H. (1983). A condição humana (Roberto Raposo, Trad.). Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1958)), Foucault (1976/1993Foucault, M. (1993). História da sexualidade I: A vontade de saber (M. T. da C. Albuquerque & J. A. G. Albuquerque, Trads.). Graal. (Trabalho original publicado em 1976)) e Agamben (1995/2002Agamben, G. (2002). Homo sacer: O poder soberano e a vida nua (Henrique Burigo, Trad.). Editora UFMG. (Trabalho original publicado em 1995)) convergem para demonstrar como o poder abala a potência da experiência compartilhada que escreve a história do sujeito e da comunidade. Examinamos “as estratégias de poder e os impasses do sujeito contemporâneo nestes tempos sombrios em que a felicidade segue o imperativo do gozo, mortífero para o desejo, aproximando vida e morte, ou pior, mais da morte do que da vida” (Rosa, Vicentin, & Carmo, 2009Rosa, M. D., Vicentin, M. C. G., & Carmo, V. (2009). Viver em tempos sombrios: do gozo à experiência compartilhada. Psicologia em Revista, v. 2, p. 51-68., p. 51). Destacamos as estratégias que incidem sobre o sentido da vida, a relativização da existência compartilhada e a fragilização da experiência que marca a historicização do sujeito.

A reflexão crítica de Arendt (1958/1983Arendt, H. (1983). A condição humana (Roberto Raposo, Trad.). Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1958)), e posteriormente de Agamben (1995/2002Agamben, G. (2002). Homo sacer: O poder soberano e a vida nua (Henrique Burigo, Trad.). Editora UFMG. (Trabalho original publicado em 1995)), toma a distinção grega entre zoé e bios, na qual bios seria o reino da ética e da moral em que se manifesta o juízo, representando o modo de viver dentro de um grupo que depende da linguagem; já zoé seria a vida nua, a vida natural e biológica comum a todos os homens, ou seja, a mera existência. O Homo Sacer, figura do direito romano arcaico, demonstraria que a vida nua é o lugar onde a vida foi excluída por sua inclusão, onde só o direito pode alcançar o vivente. O poder jurídico torna o vivente excluído, aniquilado e matável, o que baseia a tese do autor que considera presente a manifestação do Estado de Exceção no Estado Democrático de Direito.

A inserção da vida natural no centro das estratégias políticas do mundo ocidental é tematizada por Foucault (1976/1993Foucault, M. (1993). História da sexualidade I: A vontade de saber (M. T. da C. Albuquerque & J. A. G. Albuquerque, Trads.). Graal. (Trabalho original publicado em 1976)) como biopolítica. Ele, ao cunhar o termo biopoder, buscava discriminá-lo do regime que o havia precedido, denominado de soberania. O regime de soberania consistia em fazer morrer e deixar viver. Já no contexto da biopolítica, não cabe ao poder fazer morrer, mas, sobretudo, fazer viver, isto é, cuidar da população, da espécie, dos processos biológicos. Para Agamben (1978/2004Agamben, G. (2004). Infância e história: Ensaio sobre a destruição da experiência (Henrique Burigo, Trad.). Adriana Hidalgo Editora. (Trabalho original publicado em 1978)), a ambição suprema do biopoder é realizar no corpo humano a separação absoluta do vivente e do falante, de zoé e bios, do não homem e do homem, separação que se concretiza na sobrevida. A sobrevida é a vida humana reduzida ao seu mínimo biológico, à sua nudez última, à vida sem forma, ao mero fato da vida, à vida nua, diz o filósofo Pelbart (2003Pelbart, P. P. (2003). Vida capital: Ensaios de biopolítica. Iluminuras.).

Entram em cena as políticas do ódio (Rosa, Alencar, & Martins, 2018Rosa, M. D., Alencar, S, & Martins, R. (2018). Licença para odiar: Uma questão para a psicanálise e política. In M. D. Rosa, A. M. M. Cost, & S. E. L. Prudente (Orgs.), As escritas do ódio: Psicanálise e política (pp. 129-148). Escuta.) e a gestão social na lógica da guerra (Rosa, Penha, & Alencar, 2017Rosa, M. D., Penha, D. A., & Alencar, R. (2017). A gestão social na lógica da guerra e o poder soberano: Ética e política no nosso tempo. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 51/52, 65-79.), nas quais se destaca a derivação da “biopolítica” para a “necropolítica”, que se expressa predominantemente como direito de matar. Num desenvolvimento realizado pelo filósofo camaronês Mbembe (2018Mbembe, A. (2018). Necropolítica. N-1 Edições.), a população que fica à margem do sistema capitalista, que concebe a vida enquanto utilidade, pode ser eliminada quando não é aproveitada pelo sistema. “Raça” e “racismo” tornam-se as noções radicalizadas dessa subdivisão populacional e demonstram a forma exemplar pela qual se estabelece uma política da morte. A gestão social não mais se estabelece em torno da noção de cidadania, mas na lógica da guerra, da relação com o inimigo que deve ser dominado ou eliminado, se não fisicamente, em seu lugar de fala.

Os autores aqui citados, entre outros, conceituam a construção social e modalidades de poder, controle e várias formas de exploração, que incluem em sua própria estratégia de dominação gerar a experiência do sofrimento, seja composta pela angústia, culpa, vergonha ou humilhação social. De acordo com Gonçalves (1988Gonçalves, J. M., Filho. (1988). Humilhação social: Um problema político em psicologia. Psicologia USP, 9(2), 11-67. https://doi.org/10.1590/S0103-65641998000200002
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), a humilhação social conhece, em seu mecanismo, determinações econômicas e inconscientes e é proposta como uma modalidade de angústia disparada pelo enigma da desigualdade de classe. Vimos a produção da autoexclusão, alienação autogerada e redução de potência que emergem da passividade e servidão, resultantes das situações de exclusão, engendradas pela desigualdade social, cultural e racial. Essas considerações articulam sujeito e política, civilização e barbárie, felicidade e sofrimento, demonstrando seu enodamento.

Assim são produzidos os estranhos, aqueles que carregam a possibilidade de trazer à tona o que deveria permanecer oculto (Freud, 1919/1972Freud, S. (1972). O Estranho. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (C. M. Otitica & V. Ribeiro, Trads., Vol. 17, pp. 237-270). Imago. (Trabalho original publicado em 1919)). São esses que deverão, sempre, estar circunscritos num espaço de visibilidade/invisibilidade, para que não denunciem, com sua presença, o que lhes é negado na possibilidade de narrativa (Rosa, Estêvão, & Musatti Braga, 2017Rosa, M. D., Estêvão, I. R., & Musatti Braga, A. P. (2017). Clínica psicanalítica implicada: Conexões com a cultura, a sociedade e a política. Psicologia em Estudo, 22(3), 359-369. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v22i3.35354
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). Os estranhos, o refugo vivo, a vida nua do nosso tempo, são aqueles que se deve apagar, calar, para produzir a ilusão de que estão mortificados, anônimos, imersos num mundo apresentado como ideal e imutável. Sai de cena a história, a transformação social, como forma de abordar o mal-estar, mas há resistências possíveis que dão a ver o furo, a lacuna, que reside em todo ato de governar e de regular as civilizações e que a escuta psicanalítica pode favorecer.

Diante das constatações desse sujeito silenciado e emudecido ou mesmo aterrorizado, trazemos com Spivak (1985/2010Spivak, G. C. (2010). Pode o subalterno falar? (Sandra Regina Goulart de Almeida, André Pereira Feitosa, & André Pereira Feitosa, Trads.). Editora UFMG. (Trabalho original publicado em 1985)), autora dos chamados estudos pós-coloniais, a pujante questão: “Pode o subalterno falar?”. Tal questão incita ressaltar a importância em considerar os enclausuramentos epistemológicos hegemônicos da escuta quando o outro permanece no lugar da submissão. Aqui se situam as articulações entre o lugar de fala e o lugar de escuta. Podemos, então, questionar as condições da escuta nesses contextos, assim como sua possibilidade de aguçar a potência discursiva e desejante. Neste ponto, traremos brevemente nossos desenvolvimentos mais recentes.

Sofrimento: artimanhas do poder e desamparo discursivo

Abordaremos brevemente as considerações lacanianas sobre discurso e laço social para delimitar o que consideramos as artimanhas do poder e a produção do desamparo discursivo que compõem o sofrimento sociopolítico. Na sequência, intrigados particularmente com o silenciamento, faremos alguns apontamentos sobre a clínica do traumático e a direção possível na escuta psicanalítica, o que consideramos como avanços na clínica e teoria psicanalítica.

Lacan (1970/1996Lacan, J. (1996). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise (Ari Roitman, Trad.). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1970)) considera a linguagem e o discurso como constituintes do sujeito. Essa posição está presente também em suas formulações de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, o inconsciente é o discurso do Outro e o inconsciente é a política, que expõem a constituição psíquica articulada ao estatuto histórico e social de seu tempo.

Os laços sociais têm seu fundamento na linguagem que inaugura a entrada do homem na cultura e remete à condição constitutiva do homem e da civilização (Rosa, 2016Rosa, M. D. (2016). A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. Escuta.). Esses laços sociais materializam-se nos modos de relação em dado tempo e lugar. São laços que inserem o sujeito simultaneamente no jogo relacional, afetivo, libidinal e no jogo político, pautando a construção da história de cada um, inserida no campo discursivo de seu tempo. O discurso influencia tanto a economia psíquica do sujeito, sua fantasia, seu desejo e as formações de seu inconsciente, como a relação com outros sujeitos e os modos de pertença no campo social.

Os discursos que circulam em dado campo social e tempo indicam os modos de pertencimento possíveis para cada sujeito, atribuindo, a cada um, valores, lugares e posições no laço. Esse discurso, composto no campo da linguagem pelo conjunto dos significantes, poderia alojar no sujeito várias significações, interpretações da realidade, versões de sociedade, valores e incluir seu desejo e singularidade. Destacamos aqui o poder discursivo que instâncias como o poder jurídico, religioso, psicológico ou político têm para legitimar ou negar a experiência e o testemunho de cada um.

Entende-se que certos discursos sociais fazem valer seu poder ao se equipararem ao campo simbólico da cultura e da linguagem, naturalizando essas atribuições e evitando dar visibilidade aos embates sociais e políticos presentes em sua base (Rosa, 2016Rosa, M. D. (2016). A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. Escuta.). Esse discurso social se apresenta como emissário de uma verdade e de um valor a-histórico e apolítico. No entanto, é carregado de interesses políticos e econômicos, pautados na manutenção da ordem social específica que representa. Pode promover laços sociais dessubjetivantes, que submetem o sujeito à maquinaria de gozo de dado tempo histórico.

Esses discursos promovem desamparo, pois o sujeito passa a ser inteiramente culpabilizado por sua condição social plurideterminada. Nesses casos, a invisibilidade dos conflitos gerados no e pelo laço social recai sobre o sujeito, individualizando e naturalizando seus impasses, patologizando ou criminalizando suas saídas. Produz-se, assim, o bandido, o vagabundo, o devasso, o incapaz, o drogado: concepções por vezes amparadas em diagnósticos psicológicos apressados que declaram, sem a devida análise das circunstâncias sociais, deficiência intelectual, psicose, psicopatia. Os seus sofrimentos são registrados em óptica discursiva que retira sua mensagem e tem repercussões sobre o narcisismo, as identificações, o luto e afetos, como o amor, o ódio, a ignorância e a culpa.

Constatamos o apagamento da força discursiva dos sujeitos que estão submetidos ao discurso social hegemônico e que perdem a possibilidade de se manterem como sujeitos múltiplos e contraditórios, mantendo-se aderidos a significantes que lhes são atribuídos como verdades incontestáveis. O sujeito é desalojado da sua história pessoal, sociocultural e política, o que o desarvora de seu lugar discursivo.

À medida que seu endereçamento ao Outro fica impossibilitado, o sujeito é lançado ao não senso e tem dificuldade de reconhecer sua verdade, seu sofrimento e seu lugar político no laço social. Essa condição desarticula o sujeito de sua ficção fantasmática e provoca um abalo narcísico que o lança à angústia e ao desamparo e que perpetua a condição traumática. “Sem lugar no discurso, desprovido da função polissêmica da linguagem, o sujeito vê-se impossibilitado de dar contorno simbólico ao furo, ao troumatisme (aporte lacaniano) que o habita, sem poder construir o sintoma e uma demanda” (Rosa, 2016Rosa, M. D. (2016). A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. Escuta., p. 47). São questões para a escuta.

Para entender a transformação do desamparo do sujeito em desamparo discursivo, voltemos aos conceitos. O desamparo, ou Hilflosigkeit em Freud, ganha centralidade em sua segunda teoria da angústia, na Conferência XXXII, Angústia e Vida Pulsional (Freud, 1933/2004Freud, S. (2004). Conferência XXXII: Angústia e Vida Pulsional. In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (C. M. Otitica & V. Ribeiro, Trads., Vol. 22, pp. 154-178). (Trabalho original publicado em 1933)), onde articula a angústia com a dimensão do traumático, nomes do sofrimento. Trata-se da experiência relacionada à ausência ou falta de amparo, referida ao bebê que, por sua imaturidade orgânica e psíquica, é inteiramente dependente dos cuidados de outrem e incapaz de sobreviver sozinho. Pela via da linguagem o sujeito se constitui, tece bordas em torno do real, a partir do desejo do Outro e da transmissão da cultura, bordas que protegem da angústia e do trauma, referidos à condição de absoluta dependência e submissão ao outro. A marca do desamparo está sempre presente, remetendo à dimensão trágica da existência, ao vazio estrutural que habita o sujeito, ao real de sua falta-a-ser.

O desamparo discursivo ocorre, como apontamos acima, “quando certos discursos sociais fazem valer seu poder ao se equipararem ao campo simbólico da cultura e da linguagem e, desse modo, são fragilizadas as estruturas discursivas que regem a circulação dos valores, ideais e tradições de uma cultura, resguardando o sujeito da angústia traumática, do real” (Rosa, 2016Rosa, M. D. (2016). A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. Escuta., p. 47). Diante dos discursos sociais hegemônicos que já apontamos, nos quais o sujeito é capturado por definições maciças identitárias e desqualificadoras, entendemos que a perda do endereçamento ao outro e do lugar de fala atualiza o desamparo e abala as bordas organizadoras do sujeito, acionando a dimensão traumática. A angústia desorganiza as funções do eu e promove o silenciamento, temporário e protetor, perante o desmando do discurso. Nesses casos a angústia se apresenta não como manifestação sintomática, como no caso da angústia neurótica em Freud, mas como um tempo no qual o sujeito custa a se localizar e que, por essa razão, é vinculado ao sentimento de estranheza, o Unheimliche freudiano. Por isso falamos de uma clínica focada na dimensão traumática e não no sintoma.

A angústia surge justamente quando não há distância entre a demanda inconsciente e a resposta do Outro. O silêncio, a dor e a suposta falta de uma demanda são as vicissitudes do psicanalista nessa clínica, quando impera o desamparo discursivo e o sujeito é colocado no lugar de dejeto social. Sem lugar no discurso, o sujeito fica impossibilitado de construir o sintoma e uma demanda e, nesses casos, o setting do consultório é comumente insuficiente, exigindo outros modos de intervir.

Entra em cena a dimensão política muitas vezes silenciada na psicanálise. Reduzir a cena da fantasia à cena familiar, à queda da imago paterna trazida por Émile Durkheim (1892/1921Durkheim, É. (1921). La famille conjugale. Revue Philosophique, 90(1), 2-14. (Trabalho original publicado em 1892)) e analisada por Lacan (1938/2003Lacan, J. (2003). Os complexos familiares na formação do indivíduo. In Outros Escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 23-90). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1938)), como problemas com o pai presente ou ausente, desmerece a obra freudiana.

Como nos lembra Koltai (2016Koltai, C. (2016). Entre psicanálise e história: O testemunho. Psicologia USP, 27(1), pp. 24-30. https://doi.org/10.1590/0103-6564D20150009
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), a concepção lacaniana de que o inconsciente é social teria permitido explicitar ainda mais o que já estava no texto freudiano; ou seja, que o sujeito é, por definição, marcado pela história, não podendo ser pensado apenas a partir da relação com seus pais. A autora defende que a psicanálise não é só uma terapêutica do sujeito, mas uma teorização da relação dele com o mundo, o que faz com que as transformações sociais interessem tanto à teoria psicanalítica quanto a sua prática.

A responsabilidade do psicanalista reside na necessidade e capacidade de ouvir a grande História que acompanha a história do sujeito. Faz toda a diferença o sujeito ver-se reportado aos dilemas existenciais, seja de Édipo, Hamlet, Cyrano de Bergerac, seja de Diadorim, Zumbi ou Dandara dos Palmares, ou ver-se classificado por uma leitura individualizada e patologizada de seus dilemas.

Este é outro problema do diagnóstico e tratamento: desconsiderar o acontecimento histórico e as violências e equipará-los à fantasia, sem diferenciar a etiologia e a teoria do manejo clínico da angústia e do traumatismo. Tomamos, como o psicanalista Dunker (2011Dunker, C. I. L. (2011). Mal-estar, sofrimento e sintoma: Releitura da diagnóstica lacaniana a partir do perspectivismo animista. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, 23(1), 115-136. https://doi.org/10.1590/S0103-20702011000100006
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), a posição de que “Em nenhum caso o diagnóstico é universal. . . . O diagnóstico não deve ser entendido como classificação ou inclusão do caso em sua cláusula genérica, mas como reconstrução de uma forma de vida” (p. 116).

Atendimento clínico-político: dar tratamento, tramitar o sofrimento

Os casos que se apresentam para os psicanalistas na clínica-política são diferentes, em vários aspectos, daqueles de pacientes encontrados nos consultórios. São distintos particularmente quanto à face sociopolítica do sofrimento, mas também quanto à suposta falta de uma demanda de intervenção psicanalítica ou mesmo psicológica, que é substituída por demandas supostamente objetivas, voltadas para as carências materiais, como o que acontece com imigrantes, jovens periféricos e população de afrodescendentes.

Revistos em sua articulação com a história social, passamos aqui para outra ordem diagnóstica, isto é, para aquém do sintoma comparece a dimensão do desamparo, uma dimensão traumática promovida e muitas vezes mantida no laço social. Também se redimensiona o que se considera caso clínico e a direção da escuta, questões que apenas assinalaremos nesta apresentação.

Nessas situações, a direção da escuta buscará construir ou realçar estratégias clínicas que remetem tanto à posição desejante, como às modalidades de resistência a esses processos de alienação. A ética e a política da escuta, nessas circunstâncias, baseiam-se em propiciar subverter os signos sociais que são atribuídos aos sujeitos e em lhes dar a possibilidade de restituir um campo mínimo de significantes que possam produzir novas articulações de sentido para a vida. Isso significa separar a alienação estrutural do sujeito ao discurso do Outro, da alienação ao discurso social e ideológico. Essa alienação e esse enredamento podem ser elucidados pela via da historicização dos laços sociais em certos grupos sociais, o que se dá pelo resgate da memória na e pela experiência compartilhada.

A escuta psicanalítica visa barrar o gozo contido no discurso violento e identitário, que se apresenta como simbólico. Objetiva reconhecer os movimentos desejantes presentes no sofrimento, face da resistência, em que se passa do lugar de vítima ou algoz social para o lugar de testemunha que pode alterar o regime de verdade a seu respeito. A direção do trabalho baseia-se também em transformar o emudecimento traumático em experiência compartilhada e em tornar possível a construção da posição de testemunha, transmissor da cultura, da história de sua terra, como dizem Benjamin (1996) e Hassoun (1996Hassoun, J. (1996). Los contrabandistas de la memoria. Ediciones De La Flor.). Dessa forma o sujeito pode situar-se na outra cena, no caso, a cena política, até então inconsciente.

Desse modo o sujeito pode localizar-se e dar sentido à sua experiência de dor, articulando um apelo que o retire do silenciamento e o relance no campo político. Resgatada a sua posição discursiva, tais práticas clínicas remetem à resistência psíquica e social diante das condições que geram o sofrimento sociopolítico. E isso não pode ser feito isoladamente, mas coletivamente, referência aqui à Erfahrung de Walter Benjamin, à experiência coletiva, ligada à história e a todos os homens.

Porém há outro ponto a ser considerado. Para que a prática clínica seja efetivamente uma experiência, o lugar de fala do sujeito depende do lugar de escuta do psicanalista. Isto é, é posta em jogo a resistência do psicanalista em escutar o sofrimento advindo da desigualdade social. Localizamos o cerne da resistência à escuta do sujeito no psicanalista. Para tanto, torna-se essencial que se interrogue sobre o lugar que, também ele, ocupa na rede discursiva e decidir se está disposto a romper o pacto de silêncio que majoritariamente permeia seu grupo social e em levantar o recalque que promove a distância entre as classes sociais.

Pode-se dizer que o psicanalista escuta o sujeito quando não o confunde com o modo, muitas vezes degradado, em que ele é apresentado no laço social. Laço, nesse caso, marcado por preconceitos de classe, raça, gênero e cultura. Tais preconceitos levam ao sofrimento para além da dor de existir, ou dos padecimentos neuróticos ou psicóticos. Escutar para além destes supõe escutar como demanda o que ali comparece como apelo por casa, comida, documentos. Aquilo que se toma como pedido concreto e objetivo pode ser escutado em sua polissemia com outros nomes, como demanda de pertença, acolhimento, inscrição social, inscrição no desejo do outro.

Nossa posição ética é construir práticas clínico-políticas para escutar as pessoas marcadas pelo exílio e banimento da vida pública, que são invisíveis e/ou superexpostas pela cidade. Interpelar o sujeito é por si uma intervenção na linha da resistência possível do sujeito para fazer barreira ao destino social escrito para ele em que basta um ato, ou nem isso, para que seja inscrito como criminoso ou doente. Entendemos que se trata de uma escuta que convoca o sujeito e, desse modo, provoca uma antecipação que, tal como a imagem do espelho, pode promover um posicionamento a posteriori, inscrito na construção de uma narrativa sobre si mesmo.

Escutar os sujeitos degradados pelo discurso social como sendo sujeitos atravessados pelo inconsciente, pelo desejo e pelo gozo implica poder sustentar a perda da ilusão e do gozo de usufruir acriticamente da cultura recebida, com a convicção de que ela garante a proteção de todos, negando a presença cotidiana da violência. O psicanalista de seu tempo está devidamente prevenido sobre as políticas da felicidade e sobre as artimanhas do gozo em imiscuir-se acriticamente na história e no laço social.

Para tanto, lembremos o ensaísta alemão Walter Benjamin (1940/1985Benjamin, W. (1985). Sobre o conceito da história. In Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política (Sergio Paulo Rouanet, Trad., Vol. 1, pp. 222-232). Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1940)) quando diz: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade” (p. 226).

Considerações finais

A citação de Benjamin foi escrita em 1940, pouco tempo antes de seu suicídio por temer ser entregue a Gestapo, quando se encontrava na Espanha para fugir para os Estados Unidos. Normalmente, preferiríamos reduzir os horrores do totalitarismo nazista a um acontecimento historicamente datado e distanciado. Benjamin nos previne sobre quão pouco excepcional era esse momento histórico, como vemos outros tantos que ocorreram e ocorrem, invisibilizados, entre os quais ressaltamos os colonialismos indígenas e africanos do passado, repaginados no presente.

Nem Freud, nem Benjamin, cada qual em seu campo de saber, desconhecem a relevância da história. Ressaltamos nesta apresentação como autores de vários campos epistêmicos atualizam essa discussão, articulando a política ao sofrimento e ao desamparo. Nossa hipótese é que a verdade da experiência ou antiexperiência do sofrimento possa compor uma forma de conceituar a história de tal modo que permita a consideração que coaduna civilização e barbárie.

Realizam-se debates, não sem polêmicas, no próprio campo psicanalítico sobre a pertinência dessa discussão. Somos orientados pela recondução da política e da dimensão histórica em suas faces libidinais, familiares, sociais e políticas. Nesse sentido, a psicanálise não pode pautar sua prática no universal, mas sim construir uma prática pautada pela responsabilidade ética de uma escuta que vai do mais íntimo do sujeito àquilo que dele se testemunha no coletivo. Nesse resgate, a psicanálise tem muito a contribuir ao escutar as invenções de resistência potentes dos sujeitos. Trata-se de trabalho clínico e político.

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  • 1
    Não abordaremos nesse artigo o sofrimento por dores físicas. Algumas leituras são propostas, tais como associações da dor com o estado melancólico, inibições psíquicas e hipocondria. A dor é tomada como expressão de uma vivência traumática e não simbolizada. Ver, por exemplo: Santos & Rudge (2014Santos, N. A., & Rudge, A. M. (2014). Dor na psicanálise - Física ou psíquica? Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 17(3), 431-449. https://doi.org/10.1590/1415-4714.2014v17n3p450-5
    https://doi.org/10.1590/1415-4714.2014v1...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Ago 2020
  • Aceito
    13 Set 2021
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