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O Papel da(o) Psicóloga(o) na Saúde Indígena

The Role of the Psychologist in Indigenous Health

El Papel del Psicólogo en la Salud Indígena

Resumo

Este trabalho apresenta contribuições ao papel dos profissionais em Psicologia na Atenção Diferenciada à Saúde Indígena, destacando o entre-lugar teórico-prático ocupado junto aos povos Guarani, Kaiowá e Terena, e demonstrando a relação entre a Política Pública de Saúde, com suas exigências normativas e disciplinares, e a ordem cósmica, refletidas nos saberes em Saúde das diferentes figurações sociais e grupos-sujeitos com que trabalhamos. A partir dos diferentes ethos e estilos dos grupos indígenas e não indígenas e suas acepções de saúde, nos deparamos com a complexidade desse cenário-contexto, representada pela multiculturalidade/interculturalidade e pelas relações de poder e saber no cuidado em saúde. Assim, a Psicologia e demais profissões de saúde se veem desafiadas a produzirem uma Atenção à Saúde que cumpra sua função e tenha a eficácia simbólico-material necessária aos povos indígenas. Nesse sentido, a Cartografia como recurso metodológico nos permite acompanhar o processo, adentrar os textos e contextos de produção de Atenção à Saúde Indígena e compreender a emergência do pensamento limiar com a participação dos conhecimentos e saberes indígenas no cuidado em Saúde. A Psicologia Decolonial surge como alternativa, não como uma nova receita de atuação, mas provendo uma orientação teórico-prática que viabiliza a coexistência dos saberes indígenas e não indígenas no cuidado em Saúde. A supervisão das lideranças tradicionais e a entrada na cosmologia e nas epistemologias indígenas se tornam imprescindíveis para a atuação da Psicologia, possibilitando novos enlaces afetivo-intelectuais e políticos no cuidado em Saúde.

Palavras-chave:
Psicologia Decolonial; Saúde Indígena; Interculturalidade

Abstract

This work presents contributions to the role of professionals in Psychology in Differentiated Indigenous Healthcare, highlighting the theoretical-practical in-between occupied by indigenous people Guarani, Kaiowá, and Terena and demonstrating the relationship between the Public Health Politics, with its normative and disciplinary requirements, and the cosmic order, reflected in the knowledge of Health of the different social representations and subject-groups we work with. From the different ethos and styles of indigenous and non-indigenous groups and their meanings of health, we faced the complexity of this scenario-context, represented by multiculturalism/interculturalism and the relations of power and knowledge in healthcare. With this, the Psychology and other health professions are challenged to produce a Healthcare that fulfills its function and has the symbolic-material effectiveness necessary to the indigenous peoples. In this sense, the Cartography, as a methodological resource, allows us to follow the process, get into the texts and contexts of production in Indigenous Healthcare and understand the emergence of the threshold thought with the participation of indigenous knowledge and wisdom in the Healthcare. The Decolonial Psychology is an alternative, not as a new performance recipe, but as a theoretical-practical guideline that enables the coexistence of indigenous and non-indigenous knowledge in Healthcare. The supervision of traditional leaderships and the entry in the indigenous cosmology and epistemology became indispensable to the performance of Psychology, enabling new affective-intellectual and political links in Healthcare.

Keywords:
Decolonial Psychology; Indigenous Health; Interculturality

Resumen

Este trabajo presenta contribuciones al papel de los profesionales en Psicología en la Atención Diferenciada a la Salud Indígena, destacando el entre-lugar teórico-práctico ocupado junto a los pueblos Guaraní, Kaiowá y Terena, y demostrando el tránsito entre la Política Pública de Salud, con sus requisitos normativas y disciplinarias, y el orden cósmico, reflejadas en los saberes en Salud de las diferentes figuraciones sociales y grupos-sujetos con los que trabajamos. Desde los diferentes ethos y estilos de los grupos indígenas y no indígenas y sus acepciones de Salud, nos encontramos con la complejidad de este escenario-contexto representada por la multiculturalidad / interculturalidad y por las relaciones de poder y conocer en el cuidado en Salud. Así, la Psicología y demás profesiones de salud se ven desafiadas a producir una Atención a la Salud que cumpla su función y tenga eficacia simbólico-material necesaria para los pueblos indígenas. En ese sentido, la Cartografía, como recurso metodológico, nos permite acompañar el proceso, adentrar a los textos y contextos de producción de Atención a la Salud Indígena y comprender la emergencia del pensamiento umbral con la participación de los conocimientos y saberes indígenas en el cuidado en Salud. La Psicología Decolonial surge como alternativa, no como una nueva receta de actuación, sino como orientadora teórico-práctica que viabiliza la coexistencia de los saberes indígenas y no indígenas en el cuidado en Salud.

Palabras clave:
Psicología Decolonial; Salud Indígena; Interculturalidad

Introdução - Entre a política pública e a ordem cósmica: Identidades intersticiais e o hibridismo cultural

Este trabalho atende ao anseio teórico-prático das(os) profissionais de Psicologia e da Saúde coabitantes de territorialidades de Atenção à Saúde Indígena e de comunidades de diferentes grupos étnicos. Apresenta parte dos resultados de uma pesquisa de Mestrado que reafirma a Psicologia como ciência e profissão em seus compromissos éticos e políticos junto aos demais saberes e atores da Saúde Pública e/ou Coletiva do país e, para isso, participa da produção de uma Atenção Diferenciada à Saúde Indígena (ADSI) pautada na interdisciplinaridade e na interculturalidade. Destacamos não se tratar de uma construção disciplinar cristalizadora que dissocia a Psicologia de outros saberes de Saúde e menos ainda de saberes e conhecimentos tradicionais indígenas.

Recentemente, no Brasil, as Ciências Psicológicas têm se debruçado nas questões relacionadas à Saúde Indígena (SI). Em parte, isso se deve às conquistas de direitos dos povos indígenas e à criação de políticas públicas relacionadas à Saúde. Institucionalmente destaca-se, nesse processo, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) após a Constituição Federal de 1988 e, principalmente, do Subsistema de Saúde Indígena a partir da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas - PNASPI (Brasil, 2002Brasil. Fundação Nacional de Saúde. Política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas (2ª ed.). Ministério da Saúde, 2002.). Com isso, as(os) psicólogas(os) passam a compor as equipes multidisciplinares e/ou interdisciplinares de Saúde e a atuar nos territórios e espaços de produção de SI.

A ADSI, mediante políticas públicas, se torna um espaço multicultural, pois comporta as diferenças entre figurações sociais indígenas e não indígenas, além de diferentes perspectivas disciplinares e de concepções de Saúde. Compreendemos a noção de figuração social a partir de Elias (2001Elias, N. (2001). A sociedade de corte: Investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia da corte. Zahar.), que a descreve como um conceito neutro e não uma definição de um grupo rigidamente fechado composto apenas por relações harmônicas, mas também por relações tensas e hostis, dependentes dos arranjos sociais e políticos do momento. A figuração social continuamente se compõe e recompõe de forma dinâmica, assim, a partir de um equilíbrio móvel de tensões, as pessoas estabelecem relações de interdependência (Pereira, 2009Pereira, L. M. (2009). Os Terena de Buriti: Formas organizacionais, territorialização da identidade étnica. UFGD.).

Destacamos então que a multiculturalidade, diferente da interculturalidade, não representa o reconhecimento e a compreensão da diferença. O encontro e a interação com as diferenças e alteridades indígenas representam apenas uma proximidade física espacial entre as diferentes figurações sociais indígenas e não indígenas (Canclini, 2009Canclini, N. G. (2009). Teorias da interculturalidade e fracassos políticos. In N. G. Canclini. Diferentes, desiguais e desconectados: Mapa da interculturalidade (3a ed., pp. 15-33). UFRJ.). Assim, percebemos a complexidade do tema ao considerar as especificidades sócio-histórico-cosmo-culturais dos povos indígenas e seus impactos no saber-fazer-com Saúde(s) (Lopes, 2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
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).

Inserimos o termo “cosmo” na expressão “sócio-histórico-cultural” já consagrada pela Psicologia Social para enfatizar o valor da cosmologia de cada povo na produção da vida (Lopes, 2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
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). A cosmologia de um povo compõe as “matrizes que inspiram, orientam e dão significado às práticas sociais” (Pereira, 1999Pereira, L. M. (1999). Parentesco e organização social kaiowá [Dissertação de Mestrado, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas]. Repositório Unicamp. https://doi.org/10.47749/T/UNICAMP.1999.179239
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, p. 182). A vida de cada povo se orienta em termos políticos, econômicos e de laços de parentescos indissociavelmente de sua ordem cosmológica. Já com a expressão “saber-fazer-com”, reafirmamos que na posição de trabalhadores de Saúde(s), de acordo com nossa modalidade técnica, ética e política, não fazemos Saúde para, mas com os diferentes atores envolvidos (Lopes, 2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
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).

O território que coabitamos conta com múltiplas territorialidades e diferentes grupos indígenas, destacando-se as etnias Guaraní, Kaiowá e Terena, com mais de 17 mil índios (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2010Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2010). Indígenas: Mapas. IBGE. https://indigenas.ibge.gov.br/mapas-indigenas-2.html
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). Esses grupos-sujeitos vivem, majoritariamente, na Reserva Indígena de Dourados entre os municípios de Dourados e Itaporã, MS, nas aldeias Jaguapiru e Bororó e também na aldeia Panambizinho e em acampamentos nas margens das rodovias, em Dourados.

A Reserva Indígena é uma iniciativa histórica do Estado-nação por meio do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) que, em meados do século XX, demarcou espaços diminutos e confinou, geográfica e culturalmente, diferentes grupos étnicos indígenas de várias regiões do Centro-Oeste em nome da expansão das fronteiras econômicas nacionais. A partir dessa desterritorialização, com a usurpação de terras, esses grupos se reterritorializaram, criando aldeias devido à superlotação na Reserva e às necessidades espirituais, subjetivas e cosmológicas (Costa, 2003Costa, R. H. (2003). Da desterritorialização à multiterritorialidade. Boletim Gaúcho de Geografia, 29(1), 11-24.; Feuerwerker, 2014Feuerwerker, L. C. M. (2014). Micropolítica e saúde: Produção de cuidado, gestão e formação. Rede Unida.; Pereira, 1999Pereira, L. M. (1999). Parentesco e organização social kaiowá [Dissertação de Mestrado, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas]. Repositório Unicamp. https://doi.org/10.47749/T/UNICAMP.1999.179239
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, 2009Pereira, L. M. (2009). Os Terena de Buriti: Formas organizacionais, territorialização da identidade étnica. UFGD.).

Nos termos indígenas Guaraní e Kaiowá, essas necessidades são representadas pelo nhandérekókatú - ser verdadeiro e autêntico - e pelo nhandérekomarangatu - ser bom, religioso, virtuoso e honrado - (Melià, 1989Melià, B. (1989). A experiência religiosa Guarani. In M. Marzal (Coord.), O rosto índio de Deus (pp. 355-421). Vozes.). Isso se dá pela sua relação com a terra, invariavelmente distinta da estabelecida pelos não índios que buscam a exploração econômica e o domínio da natureza e da terra, enquanto esses povos indígenas mantêm uma relação de reciprocidade na eterna busca da plenificação física e espiritual com o que chamam de Tekoha Porã - Terra Boa (Chamorro, 2015Chamorro, G. O. (2015). Bem viver nos povos indígenas. Livrozilla. http://livrozilla.com/doc/735081/o-bem-viver-nos-povos-ind%C3%ADgenas---texto-de-graciella
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).

Por interesses distintos, observamos espaços-tempos em disputa, em que o Estado-nação e parte significativa da sociedade envolvente reproduzem práticas de exclusão social, apagamento epistemológico e extermínio dos povos indígenas. Amparados numa ordem discursiva ocidental, no pensamento abissal e colonial, e em estratégias biopolíticas, Estado-nação e sociedade envolvente imputam a esses grupos-sujeitos mazelas biopsicossociais marcadas, sobretudo, pelo sofrimento ético-político e pela negação de Direitos Humanos fundamentais (Foucault, 1979Foucault, M. (1979). A política da saúde no século XVIII. In R. Machado (Org.), Microfísica do poder (pp. 79-98). Graal., 2003; Santos, 2010Santos, B. S. (2010). Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In B. S. Santos, & M. P. Meneses (Orgs.), Epistemologias do Sul (pp. 23-72). Cortez.; Sawaia, 2016Sawaia, B. B. (2016). O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão. In B. B. Sawaia (Org.), As artimanhas da exclusão: Análise psicossocial e ética da desigualdade (pp. 97-118). Vozes.).

Segundo Foucault (1979Foucault, M. (1979). A política da saúde no século XVIII. In R. Machado (Org.), Microfísica do poder (pp. 79-98). Graal.), a biopolítica é um modo de exercício do poder político do Estado-nação surgido entre os séculos XVIII e XIX. Amparada no poder-saber médico, organiza-se uma política de saúde que considera a doença um problema político, econômico e coletivo; passa-se de um problema individual para um problema populacional; e prescrevem-se novas regras para a gestão da vida do corpo populacional. As formas de viver da população passam a ser alvos de regulamentações e intervenções disciplinares do Estado moderno, amparadas em um saber sobre a vida, o direito e a gestão da população. “Esse jogo político capilariza-se no tecido social, estende-se do corpo-individual à população, utilizando, como estratégia, tanto a disciplina individual quanto a norma geral” (Bernardes, 2011Bernardes, A. G. (2011). Saúde indígena e políticas públicas: alteridade e estado de exceção. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 15(36), 153-164. https://doi.org/10.1590/S1414-32832011000100012
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, p. 155).

Essa modalidade de pensamento moderno sustentada pelo pensamento abissal tem como atributo básico “a impossibilidade de copresença dos dois lados da linha” (Santos, 2010Santos, B. S. (2010). Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In B. S. Santos, & M. P. Meneses (Orgs.), Epistemologias do Sul (pp. 23-72). Cortez., p. 2). A realidade social é dividida por uma fronteira abissal e criam-se dois universos distintos: “deste lado” e “do outro lado” da linha. Pela radicalidade dessa divisão, o “outro lado da linha” é visto como irrelevante ou inexistente. Assim, “deste lado da linha” há distinções visíveis e verdades em disputa como: o método científico, a fé religiosa e a razão filosófica, entre outras. Estas sustentam seu lugar e sua visibilidade “deste lado da linha” por meio da inviabilidade das epistemologias “do outro lado da linha”, por não se encaixarem em nenhuma forma prévia de conhecimento, como as cosmologias indígenas (Santos, 2010).

Esse contexto é um entre-lugar, em que se sobrepõem múltiplas territorialidades, modos de ser ou ethos das distintas figurações sociais. Destacamos que cada povo tem registrado em sua cosmologia a forma de representar, estar e ser no mundo. Por conseguinte, índio não é tudo igual e, consequentemente, não é tarefa deste trabalho a construção de uma nova receita psicológica universal, pois entendemos que qualquer generalização é precipitada. Utilizamos o termo entre-lugar, no sentido atribuído por Bhabha (1998Bhabha, H. K. (1998). O local da cultura. UFMG.), para expressar nosso distanciamento da política da polaridade presente nas narrativas históricas essencialistas de base eurocêntrica. Para melhor explicar, apresentaremos a seguir as diferenças e alteridades representadas por nossos interlocutores.

Os grupos falantes da língua Guarani são subdivididos em diferentes parcialidades étnicas e dialetos: Kaiowá, Nhandeva e Mbya. Os Kaiowá representam a maioria dos indígenas na região sul do estado de Mato Grosso do Sul. Entretanto, existem falantes do Guarani que não se identificam com a figuração social Kaiowá, mas como pertencentes a uma das outras parcialidades ou apenas Guarani (Pimentel, 2007Pimentel, S. K. (2007, outubro). Entre nhemyrõ e vy’ae’y: Interpretações sobre motivos e atitudes dos suicidas guarani-kaiowa [Apresentação de artigo]. 31º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, MG, Brasil.).

Essa figuração social tem no xamanismo peça fundamental para compreensão e significação de sua teoria social. Há, no mínimo, quatro noções distintas para significar a terra e a territorialidade que expressam seu modo de ser. Priorizamos a denominação tekoha. Apesar do uso indiscriminado dessas noções na bibliografia atual - gerando enfraquecimento semântico -, podemos compreender o tekoha como processo de agrupamento humano. Mas não um agrupamento qualquer, pois deve ser composto por diferentes parentelas ou fogo familiar que se articulam na procura de sua autonomia religiosa e política. Dessa forma, depende de como se configura política e socialmente determinado território e não apenas seu espaço físico geográfico (Pereira, 1999Pereira, L. M. (1999). Parentesco e organização social kaiowá [Dissertação de Mestrado, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas]. Repositório Unicamp. https://doi.org/10.47749/T/UNICAMP.1999.179239
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, 2004Pereira, L. M. (2004). Imagens kaiowá do sistema social e seu entorno [Tese de doutorado não publicada]. Universidade de São Paulo.).

Já a figuração social Terena, a segunda maior etnia regional, consiste em uma denominação englobante do período colonial para representar parte de grupos étnicos do tronco linguístico Aruák. Têm, em seu estilo comportamental, marca e fonte de significação de sua distinção social. Assim, destaca-se a amabilidade Terena desde o princípio dos registros relacionados a esses grupos-sujeito (Pereira, 2009Pereira, L. M. (2009). Os Terena de Buriti: Formas organizacionais, territorialização da identidade étnica. UFGD.).

O estilo ou ethos Terena está organizado socialmente na forma de troncos - kurú - e aldeias, identificado culturalmente de maneira distinta e contrastada da população nacional. Esses troncos são agrupamentos em torno de um casal que exerce liderança expressa pela capacidade de produzir e manter a conexão política do grupo-sujeito que, em conjunto com diferentes troncos, compõem e constituem uma aldeia. Essa territorialidade se expressa também por suas possibilidades de desreterritorializações, organizadas a partir de sua cosmologia, de seus laços simbólicos e afetivos, e não apenas pela existência de um grupo Terena em determinado espaço físico e geográfico, sobredeterminado de fora (Pereira, 2009Pereira, L. M. (2009). Os Terena de Buriti: Formas organizacionais, territorialização da identidade étnica. UFGD.).

O fato de os grupos-sujeitos indígenas representarem a diferença cultural e contrastarem com a sociedade envolvente não significa aprisionamento de diferentes grupos em definições essencialistas e capturantes. Essas definições reproduzem estereótipos na tentativa de pintar uma imagem e uma identidade que aprisionem as comunidades indígenas ao exercício do poder colonial (Bhabha, 1998Bhabha, H. K. (1998). O local da cultura. UFMG.). Do mesmo modo, noções como aculturação são compreendidas como representantes do delírio maniqueísta do pensamento colonial. Portanto, quando os grupos-sujeitos indígenas fazem uso de artefatos, estratégias e dispositivos não indígenas, evidenciamos a noção de hibridismo cultural e não de aculturação. Não se deixa de ser índio por vivenciar a interculturalidade, ao contrário, expressa-se a potência que há na coexistência com a diferença.

Com essa breve apresentação, objetivamos a produção de uma entreimagem indígena e não uma imagem estereotipada. Isto é, escapamos dos enquadres produzidos pelos não indígenas em relação aos povos do presente estudo. Evitamos, assim, visibilizar os grupos-sujeitos indígenas como desaparecidos, selvagens sem pintura ou presas anuladas que assombram a burguesia colonial. Logo, ao nos referirmos às diferenças identitárias em nosso contexto, tratamos de identidades intersticiais e não de identidades essência (Bhabha, 1998Bhabha, H. K. (1998). O local da cultura. UFMG.).

Nesse sentido, coabitamos os espaços Guateka, expressão da interculturalidade local, utilizada para determinar espaços de sociabilidade e Atenção à Saúde. O vocábulo se forma morfologicamente a partir das sílabas iniciais das diferentes etnias: Gua - Guarani; Te - Terena; Ka - Kaiowá. Com isso, temos um compromisso ético-político e organizador teórico-prático: “colocar em movimento um método não voltado à essencialização, mas à leitura dos jogos de poder e de linguagem que instituem os sujeitos e os textos” (Sathler, 2016Sathler, C. N. (2016). Formações subjetivas: O sujeito à luz da teoria dos discursos. UFGD., p. 30).

Falamos de um entre-lugar composto por inúmeras territorialidades com diferentes modos de ser e existir e, consequentemente, de diferentes acepções de Saúde. Dessa forma, ao falarmos de SI, destacamos as diferenças conceituais entre Saúde Indígena e Saúde Indigenista. A Saúde Indigenista se refere às estratégias pautadas no processo Saúde-Doença construído pela sociedade ocidental e aplicadas às populações indígenas, enquanto a Saúde Indígena se refere às concepções tradicionais de Saúde e saberes curativos acumulados historicamente e pautados na cosmovisão de cada povo (Cruz & Coelho, 2012Cruz, K. R., & Coelho, E. M. B. (2012). A saúde indigenista e os desafios da particip(ação) indígena. Saúde e sociedade, 21(supl.1), 185-198. https://doi.org/10.1590/S0104-12902012000500016
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).

Além disso, apontamos a existência de uma territorialidade baseada na colonialidade. Em alguns pontos das Políticas Públicas de Saúde, no exercício da Saúde em ato - o cuidado em Saúde - vivenciamos o exercício do controle dos corpos quando o saber biomédico se posiciona como modelo orientador do processo que desconsidera as condições de vida da população, fator imprescindível para o cuidado em Saúde (Batistella, 2007Batistella, C. (2007). Abordagens contemporâneas do conceito de saúde. In A. F. Fonseca., A. M. D’A. Corbo (Orgs.), O território e o processo saúde-doença (pp. 51-86). EPSJV; Fiocruz. http://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/l24.pdf
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), se estabelecendo como o único saber verdadeiro e capaz de efeitos benéficos no processo Saúde-Doença. Assim, as incontáveis formas de conhecimento e saber dos povos indígenas, entre outros, são desperdiçados e subalternizados (Santos, 2010Santos, B. S. (2010). Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In B. S. Santos, & M. P. Meneses (Orgs.), Epistemologias do Sul (pp. 23-72). Cortez.). A colonialidade se reafirma com a negação da existência de inúmeros modos de ser e, consequentemente, de saberes em Saúde.

A colonialidade representa a herança do processo de colonização ocorrido no século XVI, caracterizada pela conquista europeia e pelo surgimento de novos constructos sociais como a África, a Ásia e as Américas. A dominação política, social e econômica da colonização, perpetrada e pautada na violência em sua forma genuína, permanece viva com a manutenção do imaginário social que atribui aos europeus, ao seu pensamento e a sua racionalidade a condição de superioridade em relação aos não europeus. A colonialidade do poder e o eurocentrismo, como racionalidade específica, amparados na ideia de raça e na forma de classificação mundial se mantêm presentes (Mignolo, 2003Mignolo, W. D. (2003). Histórias locais/projetos globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. UFMG.; Quijano, 2005Quijano, A. (2005). Colonialidade de poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Org.), A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais latino-americanas (pp. 107-130). Clacso.).

A ordem discursiva ocidental, com sua vontade de saber e vontade de verdade (Foucault, 2003Foucault, M. (2003). A ordem do discurso. Loyola.), nos inscreve em seus efeitos de produção de sentidos, de subjetividade e consequentemente de Saúde, intensifica a ideia de supremacia epistemológica europeia e ignora outras epistemologias e cosmovisões. Reafirma-se, assim, como aponta Santos (2010Santos, B. S. (2010). Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In B. S. Santos, & M. P. Meneses (Orgs.), Epistemologias do Sul (pp. 23-72). Cortez.), o epistemicídio dos grupos sociais inscritos em outros marcos epistemológicos, pois “o que caracteriza a colonialidade é o desperdício da experiência do Outro” (Lopes, 2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
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, p. 57).

Na esteira da colonialidade e do biopoder, cria-se um modo de ser padronizado e um modelo de Saúde verdadeiro dissimulado num princípio de igualdade. Contudo, o princípio de que todos os homens são iguais parte de uma igualdade pautada na ética e na estética do colono (Fanon, 1968Fanon, F. (1968). Os condenados da Terra. Civilização Brasileira.). Desse modo, objetiva-se uma igualdade não em termos de direitos e de potência, mas uma igualdade ilustrada na imagem do colono. Assim, o colonizado terá igualdade de direitos quando sua imagem se confundir com a imagem do colono.

Portanto, as ações de Saúde direcionadas aos povos indígenas, quando orientadas pelo modelo biomédico - expressão máxima da colonialidade -, são descontextualizadas e não representam a proposta da PNASPI que presume uma ADSI. Para receber a Atenção em Saúde, por essa perspectiva, é preciso deixar de ser o que se é.

A ADSI pode ser compreendida como uma das principais diretrizes do Subsistema de Atenção à SI, fundamentada na PNASPI que funciona como aglutinadora com o SUS. Com isso a ADSI prevê “ações que considerem as especificidades socioculturais, epidemiológicas e operacionais dos povos indígenas” (Brasil, 2002Brasil. Fundação Nacional de Saúde. Política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas (2ª ed.). Ministério da Saúde, 2002., citado por Lopes, 2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/han...
, p. 64) e, consequentemente, sua participação no planejamento, execução e avaliação das ações e sua processualidade (Lopes, 2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
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).

Destacamos, até aqui, em nossas produções e análises do contexto da SI, não o princípio científico moderno ocidental de simplificação, mas, sobretudo, a constatação de sua complexidade porque, desde Descartes e o período histórico do pensamento ocidental conhecido como Renascença, surge a ciência moderna com seus princípios na disjunção absoluta entre sujeito e objeto, entre ego cogitans e res extensa (Morin, 2000Morin, E. (2000). A ciência e a consciência da complexidade. In E. Morin, & J. Le Moigne. A inteligência da complexidade (pp. 25-41). Peirópolis.).

Segundo Morin (2000Morin, E. (2000). A ciência e a consciência da complexidade. In E. Morin, & J. Le Moigne. A inteligência da complexidade (pp. 25-41). Peirópolis.), essa separação desresponsabiliza a ciência, tornando-a um conhecimento amoral. A objetividade é a essência científica, e a reflexividade se torna exclusividade da Filosofia. Como consequência, ocorre uma hiperespecialização, as peças não se comunicam na fragmentação, promovendo uma desintegração no mosaico disciplinar. Assim, fragmentam-se e desintegram-se as realidades moleculares e seus reflexos de vida, sociedades, humanidades, subjetividades etc. Apostar na complexidade é abandonar a visão mutilada das coisas, portanto não é apenas um investimento científico, mas político e humano. Assim, entendemos ser justo distinguir as coisas e as formas de conhecimentos técnico, científico, psicológico, sociológico, político e espiritual, entre outros. Contudo, essa distinção jamais significará dissociar tais coisas e conhecimentos entre si.

Ao apontarmos as diferenças de acepções de Saúde (Saúde Indígena e Saúde Indigenista), os diferentes modos de ser, estilo ou ethos entre as variadas figurações sociais, étnicas e culturais (Guarani, Kaiowá, Terena e não indígena), entre as políticas públicas e os ordenadores cosmológicos (não indígena e indígena), não objetivamos a reverberação de fragmentações e binarismos, pois estamos inscritos em uma teoria crítica ou pós-crítica em que distinguir nunca será dissociar.

Assim, refletimos o saber-fazer-com das Ciências Psicológicas no contexto da SI no intuito de ampliar suas possibilidades de intervenção-invenção, quiçá de ressignificar nossas produções quando ainda representarem o movimento da colonialidade. Por isso, sinalizamos que o valor criativo deve estar presente em nossas “intervenções-invenções”. Ou seja, são mais do que apenas intervenções aplicadas a partir de instrumentos pré-definidos, sem pesar seus efeitos de exercício do poder colonial na vida cotidiana dos povos indígenas. São intervenções-invenções construídas e experienciadas dialógica e coletivamente.

Para isso, como alternativa, visamos ultrapassar as bases pós-coloniais, pois essas também estão marcadas pela racionalidade europeia. Assim, entraremos no movimento do projeto da decolonialidade ou do giro decolonial. Isto é, usaremos conhecimentos, saberes e epistemologias que sempre existiram, mas foram historicamente silenciados e ocultados pela epistemologia ocidental (Mignolo, 2003Mignolo, W. D. (2003). Histórias locais/projetos globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. UFMG.). Buscamos ir além de um novo discurso acadêmico colonial por entendermos sua incapacidade de contemplar realidades subalternizadas. Como afirmam nossos interlocutores: “nada sobre nós sem nós”, a decolonialidade prima pela emergência do pensamento e epistemologia limiar (Mignolo, 2003).

Metodologia - Acompanhando o processo da rede de inter-relação de Atenção à Saúde Indígena: Entre textos-poeira dos arquivos e contextos-poeira dos caminhos

Como opção metodológica de investigação, partimos da experiência cartográfica vivida junto às comunidades indígenas com que coabitamos nas ações de pesquisa e de cuidado diferenciado em Saúde. A cartografia que inspira este trabalho é pensada como propõem Deleuze e Guattari (1997Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. (Vol. 5). Editora 34.), isto é, como performance e não como competência, o que nos desobriga da detecção de um objeto passivo de investigação e direciona a(o) cartógrafa(o) a acompanhar o processo de ADSI.

Compreendemos a cartografia como um princípio do rizoma que assegura sua pragmática e força performática absolutamente investida na experimentação do real. O rizoma é a realidade cartografada, jamais decalcada, pois trata-se de um sistema acêntrico gerador de mapas móveis (Deleuze & Guattari, 1997Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. (Vol. 5). Editora 34.; Passos, Kastrup, & Escóssia, 2009Passos, E., Kastrup, V., & Escóssia, L. (2009). Apresentação. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 7-16). Sulina.).

Falamos de um complexo de linhas, com seus estratos e agenciamentos, portanto não temos um campo ou objeto de pesquisa nem um método ou instrumento capaz de destrinchá-lo, segmentá-lo e desvendá-lo. O método tradicional se volta apenas a um tipo de linha dentro do complexo de linhas possíveis e mantém a linha diagonal subordinada a pontos entre as linhas horizontal e vertical. O espaço traçado é estriado e a multiplicidade numerável daí constituída mantém-se sujeita ao Uno. “As linhas desse tipo são molares, e formam um sistema arborescente, binário, circular, segmentário” (Deleuze & Guattari, 1997Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. (Vol. 5). Editora 34., p. 194).

Então, acompanhamos nesse processo outra espécie de linha - linhas moleculares do tipo rizoma. Não há mais subordinação da linha diagonal para com as demais linhas vertical e horizontal. “A diagonal se liberta, se rompe ou serpenteia”, passa entre os pontos e as coisas, já não faz mais contorno. “Pertence a um espaço liso. Traça um plano que não tem mais dimensões do que aquilo que o percorre; por isso, a multiplicidade que constitui não está subordinada ao Uno, mas ganha consistência em si mesma” (p. 194).

Assim, entendemos que o rizoma não tem centro, e diante de um sistema acêntrico e múltiplo, como é o caso da ADSI, acreditamos não ser possível estabelecer uma metodologia de investigação em seu sentido clássico, pois a própria palavra metodologia, em seu étimo, significa metá-hódos, em que (hódos) representa o caminho da pesquisa preestabelecido pelas metas e regras dadas de antemão. Algo inviável diante da complexidade de linhas, jogos de força, relações de poder-saber, resistências, e modos de objetivação e subjetivação vivenciados em nosso contexto (Passos et al., 2009Passos, E., & Barros, R. B. (2009). A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 17-31). Sulina.).

Para seguir os fluxos das linhas e tessituras do rizoma, invertemos a proposta metodológica com a cartografia: “transformar o metá-hódos em hódos-metá. Essa reversão consiste numa aposta na experimentação do pensamento - um método não para ser aplicado, mas para ser experimentado e assumido como atitude” (pp. 10-11). Definimos as metas ao caminhar, sem predeterminar a totalidade de procedimentos metodológicos adotados. Seguimos pistas. Esse caminhar, oguata - no idioma de nossos interlocutores -, não é linear nem com fim preestabelecido. A cartografia também não possui um conjunto de regras abstratas apresentadas para comprovação de sua validade. Temos, dessa forma, pistas cartográficas que devem ser descritas, discutidas e coletivizadas (Passos et al., 2009Passos, E., & Barros, R. B. (2009). A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 17-31). Sulina.).

Essa experiência tem início com a participação no programa de Residência Multiprofissional de Saúde com ênfase na Saúde Indígena, entre 2014 e 2016. Ao atuar na Atenção à Saúde e concomitantemente produzir essa pesquisa, identificamos a necessidade de problematizar a ADSI. Tal como proposto por Galindo e Rodrigues (2014Galindo, D., & Rodrigues, R. V. (2014). Incidentes críticos, um fio de Ariadne na análise documental. In . M J. Spink, J. Brigagão, V. Nascimento, & M. Cordeiro (Orgs.), A produção social de informação na pesquisa social: Compartilhando ferramentas (pp. 167-184). Centro Edelstein.), a ADSI compõe o nosso incidente-crítico, pois “salienta as controvérsias existentes e as possibilidades de transformação ou até mesmo de afirmação da ordem em vigor” (Lopes, 2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
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, p. 69).

Na condição de cartógrafo, produzimos cuidado em Saúde junto à comunidade nos variados espaços institucionais que compõem a rede de saúde do SUS: Unidade Básica de Saúde (UBS), Hospital Universitário (HU), Hospital da Missão Evangélica Caiuá (HM) etc.; e não institucionais: Casas de Reza, espaços de sociabilidade comunitária, Aty Guasu etc. Essas vivências foram registradas em diário de campo e representam as memórias cartográficas.

Continuamos a acompanhar o processo de ADSI na pesquisa de Mestrado em Psicologia realizada entre 2016 e 2018. A princípio analisamos documentos de domínio público como a PNASPI e a Carta de Dourados escrita pelo plenário do I Fórum Estadual de Saúde Indígena Resgatando e fortalecendo diálogos: Pela consolidação de uma Saúde Diferenciada aos Povos Indígenas. O Fórum contou com a presença de usuários indígenas de diferentes etnias com suas lideranças tradicionais; trabalhadores de saúde; gestores; estudantes; professores de graduação e pós-graduação; e líderes comunitários cristãos, contando com não indígenas e indígenas vindos de diferentes reservas e aldeias do estado. Uma composição pautada na diferença, não apenas interétnica e intraétnica, mas também disciplinar científica, religiosa e espiritual. Dos diálogos desse evento resulta A Carta de Dourados lida e aprovada pelo plenário. Desse modo, integramos ao nosso corpus os documentos elaborados por agências governamentais - PNASPI - e registros episódicos - A Carta de Dourados -, como propõe Gil (2009Gil, A. C. (2009). Métodos e técnicas de pesquisa social. Atlas.).

Os discursos analisados e apresentados circulam nessas múltiplas territorialidades, entre (con)textos vividos na SI. Compreendemos o discurso não como pertencente a um sujeito individualizado em sua singularidade e intimidade, mas como um lugar ocupado por esses grupos-sujeitos e múltiplas territorialidades que se tencionam no espaço-tempo da SI. Portanto, traduz lutas, relações de poder e sistemas de dominação, além disso, é exatamente “aquilo por que, e pelo que se luta” (Foucault, 2003Foucault, M. (2003). A ordem do discurso. Loyola., p. 10). Buscamos analisar as produções da Carta de Dourados e da PNASPI costuradas e articuladas às memórias cartográficas.

Deste modo, nos situamos entre os textos-poeira dos arquivos e contextos-poeira dos caminhos. Buscamos ressignificar a concepção que atribui aos arquivos a noção de objeto imóvel catalizador de “poeira” - em seu sentido desprezível - para compreendê-lo como núcleo agregador das formações discursivas coexistentes e, consequentemente, de valor performativo da realidade que compartilhamos na SI (Gregolin, 2004Gregolin, M. R. (2004). O enunciado e o arquivo: Foucault (entre)vistas. In P. Navarro-Barbosa, & V. Sargentini (Orgs.), Foucault e os domínios da linguagem: Discurso, poder, subjetividade (pp. 23-44). Claraluz.; Lopes, 2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
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).

Nas territorialidades experimentadas coletivamente como arquivo vivo, móvel e produtor de efeitos na realidade compartilhada, a poeira representa a potência da mobilidade humana, do caminhar pelo território em busca de encontros produtores de saúde e da própria existência. A poeira vem da terra sagrada, entra pelos poros e compõe o corpo-texto-terra dos povos indígenas. Ela se ergue do bem viver: caminhar, cantar e dançar.

Como trabalhadores e pesquisadores da área da saúde, nos distanciamos do discurso biomédico higienizador e colonizador, pois ele atribui à poeira o sentido de sujeira. Da mesma forma, nos distanciamos do discurso positivista que atribui sentidos descritivos e representativos à linguagem como se fosse apenas mimese de nossas ideias. Nós apreendemos, com nossos interlocutores, que a poeira vem da terra e que a terra é sagrada, tê-la no corpo é manter-se conectado a ela e a sua representação material e simbólica. Além disso, entendemos a linguagem para além de seus aspectos miméticos e reconhecemos seu valor performativo. “A linguagem não só nos diz como é o mundo, ela também o institui; e não se limita a refletir as coisas do mundo, também atua sobre elas, participando de sua constituição” (Ibáñez, 2004Ibáñez, T. (2004). O “giro linguístico”. In L. Iñiguez (Coord.), Manual de análise do discurso em ciências sociais (pp. 19-49). Vozes., p. 39).

Em nosso contexto, a aldeia é arquivo e o arquivo é aldeia, ou seja, a aldeia-arquivo é composta como a proposta de Carrara (1998Carrara, S. (1998). Crime e loucura: O aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Eduerj.): lugares múltiplos e móveis de acontecimentos e de constituição da ADSI, passíveis de análise e coprodução coletiva, isto é, de cartografia. Metodologicamente falamos, então, de inversões-invenções que visam nos aproximar da complexidade e multiplicidade das territorialidades intrincadas nas (co)produções de SI e possibilitam o investimento no compromisso ético-político, caro à execução do papel da(o) psicóloga(o) nesse cenário (Lopes, 2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
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).

Passos et al. (2009Passos, E., & Barros, R. B. (2009). A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 17-31). Sulina.) afirmam ainda que a validade de uma cartografia não pode ser dita por agentes externos ao próprio processo, mas sim por aqueles que a coproduzem - pesquisador e pesquisado. Assim, em nosso caso, diz da ADSI de acordo com as expectativas cosmológicas, das necessidades dos grupos tradicionais e também de acordo com o papel necessário da(o) psicóloga(o) nessa construção.

Resultados e discussões - Para além da política da doença e das psicologias coloniais: Por uma ecologia de saberes

Neste ponto, temos a difícil tarefa de selecionar narrativas, discursos e textos anônimos que circulam em nosso contexto e compõem a nossa pesquisa. Apesar de considerarmos a transversalidade presente nos enunciados que transitam no rizoma da ADSI, optamos por distribuí-los nas seguintes categorias: a) enunciados-narrativas de exercício do poder colonial; b) enunciados-narrativas de resistência decolonial; e c) enunciados-narrativas deslizantes nas fronteiras entre o colonial e o decolonial. Junto a essas categorias narrativas, apresentamos pistas cartográficas que nos orientam no caminhar em busca da ADSI.

Na primeira forma de exercício de saber-poder colonial, destacamos a narrativa: “A coisa está assim porque há dezesseis ou dezessete anos nem existia Saúde Indígena”. Essa narrativa representa o dilema dos trabalhadores de saúde em relação às dificuldades epidemiológicas encontradas na ADSI amparada, ainda que insuficientemente, na instituição de Políticas Públicas nesse período cronológico. Contudo, é justificada com uma afirmação característica da ordem discursiva ocidental que, indiscriminadamente, se refere ao termo SI como Política Pública de Estado. Isso gera o encobrimento e o desperdício de uma SI amparada na ordem cósmica composta pelos saberes tradicionais indígenas referentes aos cuidados em Saúde e seus determinantes.

Como já dito, a SI compreende ações de saúde pautadas na cosmologia e na epistemologia indígena, organizadoras de sua vida social, espiritual, política e econômica. A Saúde Indigenista se diferencia por estar assentada em uma política da doença iniciada no século XVIII com a instituição do poder/saber médico e da Saúde como problema político e econômico. Essa forma biopolítica tem agora seu investimento não mais no corpo individual, mas no corpo populacional (Cruz & Coelho, 2012Cruz, K. R., & Coelho, E. M. B. (2012). A saúde indigenista e os desafios da particip(ação) indígena. Saúde e sociedade, 21(supl.1), 185-198. https://doi.org/10.1590/S0104-12902012000500016
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; Foucault, 1979Foucault, M. (1979). A política da saúde no século XVIII. In R. Machado (Org.), Microfísica do poder (pp. 79-98). Graal.).

Nesse ponto surge, enquanto resistência decolonial, o seguinte enunciado anônimo: “Esse sistema [de saúde] não é de dezesseis anos atrás. É de quinhentos anos atrás, quando chegaram até nós. Vamos respeitar a lei do não índio e nosso povo vai continuar morrendo, como os rezadores e os saberes indígenas”. Assim, os dispositivos e estabelecimentos de saúde, desde o (des)cobrimento, são representantes legítimos da “lei do não índio” - karaí - nos termos Guarani, o que tem acarretado a morte desse povo, não como genocídio, mas epistemicídio (Santos, 2010Santos, B. S. (2010). Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In B. S. Santos, & M. P. Meneses (Orgs.), Epistemologias do Sul (pp. 23-72). Cortez.). Pois, além da morte biológica maciça, há também o desperdício histórico dos saberes tradicionais apagados pela epistemologia abissal do norte global. E, nesse engodo, se esvai também a importância de seus representantes, isto é, dos rezadores e das lideranças espirituais subalternizados e desqualificados em sua potência.

Como narrativa deslizante entre o colonial e o decolonial , destacamos a representação do Psicólogo nas figurações sociais de nossos interlocutores: “Psicólogo? Será que serve para nós isso? Nós vivemos muito a espiritualidade!” Esse questionamento pode provocar múltiplos efeitos de sentido. Contudo, recolocamos a análise na exclamação apresentada, isto é, o fato de os povos indígenas viverem muito a espiritualidade.

Compreendemos, com isso, que a Psicologia tem se inserido nesse cenário como estratégia moderna científica positivista, pois fragmenta o sujeito e os grupos entre sua materialidade e espiritualidade, entre objetividade e subjetividade. Portanto, pelo fato de os indígenas viverem a espiritualidade, presumem que a serventia da Psicologia é duvidosa por alternar entre o colonial e o decolonial, sendo assim questionada enquanto ciência e profissão. Dependendo de sua resposta a esse questionamento, pode-se produzir o movimento decolonial ou reverberar a colonialidade.

A reverberação da colonialidade pode ser encontrada em estratégias clínicas tradicionais da Ciência Psicológica que, de maneira descontextualizada, podem ignorar os fatores espiritual e cosmológico e produzir análises individualizantes e destrutivas. Essas estratégias são exemplos de ato biopolítico e ocorrem por meio de encaminhamentos indiscriminados à Psiquiatria Biomédica e à consequente medicalização dos corpos. Por outro lado, mesmo situada em uma abordagem amparada na teoria crítica, de repertório teórico-prático psicossocial, pode-se reproduzir a colonialidade ao traduzir tais experiências espirituais e cosmológicas como alienação mental e/ou social (Lopes, 2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
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).

Para não sermos representantes da Psicologia Colonial devemos, portanto, compreender a clínica como ação indissociável da política, admitir que toda clínica é política, assim como toda política produz efeitos clínicos, logo: “a intervenção é sempre clínico-política” (Passos & Barros, 2009Passos, E., & Barros, R. B. (2009). A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 17-31). Sulina., p. 26). E precisamos, com isso, ir além da teoria crítica enquanto instituição e investir em sua força revisionária, isto é, posicionadas(os) em outro território de testemunho e tradução (Bhabha, 1998Bhabha, H. K. (1998). O local da cultura. UFMG.). Em outras palavras, apostamos na capacidade de deslocamento da própria Psicologia em busca de (re)invenções, de novas sutilezas e de sensibilidades teórico-práticas. Isto é, tornarmo-nos capazes de inventar formas de cuidado com a diferença e o respeito ao seu modo de ser, sem negligenciá-lo (Lopes, 2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
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).

No sentido de narrativas de resistência decolonial , apontamos as seguintes assertivas:

Psicólogo que entrar na aldeia tem que trabalhar em conjunto com as lideranças Nhanderu e Nhandesy. . . . Só com a equipe não consegue, porque são as lideranças que sabem tudo que acontece na aldeia. . . . O trabalho de vocês [psicólogos(as)] é [de] paciência . . . em conjunto com a liderança.

Ou então: “Se não tiver a reza, o psicólogo vem com boa intenção, mas a essência do tekoha é somente o cacique que entende”.

O chamamento é leal à lógica interna da comunidade, de sua cognição, epistemologia e cosmovisão. A Psicologia deve se posicionar em favor da interdisciplinaridade e da interculturalidade e, com isso, trabalhar junto às lideranças espirituais: Nhanderu e Nhandesy. A paciência é vista como virtude, pois possibilita o suporte à emergência das epistemologias do Sul (indígenas) e do cosmopolitismo subalterno (Santos, 2010Santos, B. S. (2010). Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In B. S. Santos, & M. P. Meneses (Orgs.), Epistemologias do Sul (pp. 23-72). Cortez.). Assim, as boas intenções não invalidam as inúmeras frustrações que atingem o trabalhador de SI, pois “sem a reza” ou sem a “essência do tekoha” passa-se a conviver com a precariedade das intervenções que carecem de efeitos e afetações objetivas e subjetivas.

Fanon (1968Fanon, F. (1968). Os condenados da Terra. Civilização Brasileira.), a partir de sua experiência em Psiquiatria em território colonial, nos torna cientes da impossibilidade de atuarmos como Psicólogas(os) Coloniais. Isso porque compreendemos a Psicologia como instrumento capaz de evitar a despersonalização do sujeito em seu próprio meio social para que não se sinta estranho ao contexto-ambiente a que pertence e vive. Entretanto, é sabido que a condução do sujeito-grupo ao pertencimento em seu devido lugar esbarra na estrutura social e no contexto colonial, que reagem de maneira hostil e opressora, o que demonstra o “antagonismo social da relação colonial” (Bhabha, 1998Bhabha, H. K. (1998). O local da cultura. UFMG., p. 71) e os desafios a serem encarados por uma Psicologia Decolonial.

Assim, a Psicologia Decolonial resiste à sobreposição do imaginário colonizador na construção de novas suavidades teórico-práticas, pois falamos de intervenções-invenções junto à diferença cultural, de modo que não devemos abrigar a aplicação indiscriminada de recortes e abordagens etnocêntricas. Faz-se necessário o abandono da prepotência, da universalidade e da exclusividade do saber-fazer em Psicologia Colonial que reproduz o desperdício de outras experiências e formas de significação do cosmos (Lopes, 2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
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).

Do mesmo modo, se as intervenções psicológicas se mantiverem na esteira colonial e não trabalharem do ponto de vista intercultural e interdisciplinar que inclui os diferentes atores e disciplinas no trabalho em equipe, as lideranças espirituais Nhanderu e Nhandesy e os saberes tradicionais indígenas reafirmarão a alienação cultural e, consequentemente, contribuirão com o processo de despersonalização das figurações sociais e dos grupos-sujeitos marcados por essas epistemologias e formas de subjetivação, se tornando “exímias aliadas do infortúnio que busca erradicar” (Lopes, 2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
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, p. 39).

A Psicologia Decolonial se desfaz da ambição de modernizar e civilizar os nativos, como deseja o colonizador e as coordenadas alienantes do governo colonial, enfrentamento imprescindível no cenário político brasileiro e de outros países. Para isso, reconhece que as instituições de saúde, de modo geral, são arcaicas em suas formas operacionais, pois funcionam a partir de supervisões opressoras e constituem espaços sociais coloniais. Ainda assim, essas instituições são caricaturadas como férteis no interior de um tipo de virtude cívica em que a consciência da sociedade colonial, marcada por um delírio maniqueísta, reproduz circunstancialmente inúmeras formas de violências psíquicas e políticas (Bhabha, 1998Bhabha, H. K. (1998). O local da cultura. UFMG.; Fanon, 1968Fanon, F. (1968). Os condenados da Terra. Civilização Brasileira.), expressando o binarismo relativo ao delírio maniqueísta entre o conhecimento científico, tido como verdadeiro por estar inscrito na ordem discursiva ocidental, e o conhecimento de saúde tradicional indígena, entendido como falso, inferior ou inexistente, por ser da ordem cósmica de cada povo.

Outro enunciado-narrativa do exercício de poder-saber colonial emergiu em um evento em que indígenas e não indígenas tentavam dialogar na construção de formas de cuidados interculturais. Uma liderança indígena, ao expor um saber tradicional acumulado historicamente por sua cosmologia, teve sua fala interrompida por um trabalhador de saúde não indígena: “o senhor não poderia ensinar isso aos agentes indígenas de saúde?”

Nessa narrativa, o exercício de poder colonial aparece na interdição do discurso tradicional indígena, considerado sem valor aos olhos do profissional de saúde e fragmentado pela divisão disciplinar que o constitui. Esse saber é ignorado, desperdiçado e subalternizado, pois o profissional, marcado pela formação acadêmica ocidental, entende ser desnecessário ouvir e aprender o saber e o conhecimento do Outro, mesmo sendo com quem irá desenvolver suas ações de Atenção à Saúde. Hierarquicamente, direcionam e restringem a necessidade do aprendizado desse saber aos Agentes Indígenas de Saúde (AIS), pois tal como os saberes e conhecimentos tradicionais, esse profissional é subalternizado diante das outras profissões de formação acadêmica ocidental.

O suposto privilégio das práticas ocidentais em detrimento das práticas tradicionais objetiva uma formação subjetiva que desmerece os modos de ser, o estilo e o éthos das figurações sociais indígenas. Assim, os AIS são marginalizados na relação com a equipe multiprofissional e com parte de sua própria comunidade, que solicita alternativas ocidentais de cuidado por estarem convencidos de sua superioridade.

Os saberes tradicionais são silenciados e o discurso biomédico encontra eco e agencia buscas por formação acadêmica ocidental por parte dos AIS na tentativa de reconhecimento nas relações profissionais e de poder. Não seria um problema se, com a aprendizagem eurocentrada, os grupos-sujeitos não passassem a ver seus modos de ser e suas concepções de mundo como inferiores. Não se trata de definir a priori qual conhecimento deve sobrepujar o outro, mas ter em ambos a possibilidade de exercer o cuidado em saúde de acordo com o que a situação demandar. Em outras palavras: não é um ou outro, mas um e Outro.

Assim, entendemos que a capacitação e a especialização profissional não devem se restringir à aprendizagem, por parte dos povos indígenas, das terapêuticas e formas ocidentais de Atenção à Saúde. Isto é, devem se abrir, sobretudo, à aprendizagem e à construção de conhecimentos tradicionais indígenas por parte dos não indígenas.

A busca dessas reinvenções e inversões da racionalidade moderna, burocratizada e descomprometida ética e politicamente (Bauman, 1998Bauman, Z. (1998). Modernidade e holocausto. Zahar.) pauta nossas obrigações. Segundo Butler (2015Butler, J. (2015). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? Civilização Brasileira.), elas estão imbuídas na constituição de vidas sustentadas que, para atingirem essa qualidade, precisam de condições de sustentação. Para os nossos interlocutores, a condição de sustentação para a vida está na terra, conforme seus valores simbólicos e materiais. Portanto, no caso da ADSI e de reflexão sobre o papel da Psicologia, tratamos a saúde como saúde-terra (Lopes, 2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
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), pois a luta dos povos indígenas por seus territórios de origem e de pertencimento se torna também a nossa luta, nossa responsabilidade política. Assim, para atingir o princípio da Integralidade na ADSI, é necessário demarcar as terras indígenas, pré-condição para a existência dos remédios do campo (pohãnhupegua), da mata (pohãkaaguy) e do brejo (pohãpiro’y), cada um com sua força e função terapêutica.

Nesse sentido, a Carta de Dourados traz a seguinte narrativa-enunciado de resistência decolonial: “Cobrar do governo federal soluções rápidas para os problemas territoriais, pois os conflitos em função da falta de espaço, pela usurpação das terras tradicionais indígenas, interferem diretamente na qualidade de vida e de Saúde de nossa população” (Trajber, 2016Trajber, I. C. (2016). I Fórum estadual de saúde indígena: Carta de Dourados. Combate Racismo Ambiental. https://racismoambiental.net.br/2016/07/15/ms-i-forum-estadual-de-saude-indigena-carta-de-dourados/
https://racismoambiental.net.br/2016/07/...
, n. p.). Para além da qualidade de vida, o que está em jogo é a vida dos povos indígenas, por isso a necessidade de soluções rápidas. Contudo, o Estado-jardineiro e seus agenciamentos coletivos de enunciação, a que está intrincada a população brasileira, conformam subjetividades capitalísticas e elegem, a partir de sua racionalidade técnica instrumental e sua burocracia moderna, ervas daninhas a serem extirpadas (Bauman, 1998Bauman, Z. (1998). Modernidade e holocausto. Zahar.; Guattari & Rolnik, 2008Guattari, F., & Rolnik, S. (2008). Micropolítica: Cartografia do desejo. Vozes.).

Com isso, repercutem discursos favoráveis ao agronegócio e ao latifúndio. A fala indígena que circula em nosso contexto denuncia as ideias por trás da usurpação das terras tradicionais indígenas e dos conflitos pela falta de espaço: “- um pé de soja ou uma cabeça de gado valem mais do que uma criança indígena”. Esse panorama ganha proporções de guerra, apesar de as baixas estarem apenas do lado dos povos indígenas (Martins, 2016Martins, C. P. (2016). “Desaprender 8 horas por dia”: A psicologia na saúde indígena [Apresentação de artigo]. I Seminário Internacional Etnologia Guarani: diálogos e contribuições, São Paulo, SP, Brasil.).

Nessa mesma direção, recuperamos do texto da PNASPI a afirmação que contempla uma forma Diferenciada de Atenção à Saúde Indígena: “levando-se em consideração as especificidades culturais, epidemiológicas e operacionais desses povos” (Brasil, 2002Brasil. Fundação Nacional de Saúde. Política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas (2ª ed.). Ministério da Saúde, 2002., p. 6). Situamos essa fala, diferentemente do que presume o(a) leitor(a), como enunciado-narrativa deslizante entre o exercício do poder colonial e a resistência decolonial. Pretendemos, assim, demonstrar a complexidade na consideração dessas especificidades.

O texto-arquivo ganha vida e se materializa diante das relações de poder na ADSI em ato. Portanto, ao afirmar “levando-se em consideração as especificidades culturais”, esbarra em significações da noção de cultura de suas especificidades. A determinação macropolítica, presente na PNASPI, se encontra com a micropolítica das relações de poder presentes no (con)texto de produção de vida e nos demais discursos que circulam nesse cenário. Nessa perspectiva, nossa noção mais corriqueira de cultura se assenta em uma lógica essencialista marcada por fixidez e substancialidade. A diferença cultural perde espaço para o fetichismo da diversidade cultural que busca engessar e “en-clausurar” o Outro e a diferença enquanto diversidade num lugar fixo e imutável que, constantemente, se encontra numa posição de inferioridade (Bhabha, 1998Bhabha, H. K. (1998). O local da cultura. UFMG.).

Segundo Bhabha (1998Bhabha, H. K. (1998). O local da cultura. UFMG.), a concepção de diversidade cultural se ampara em noções liberais de multiculturalismo em que a cultura é totalizada, enrijecida, mantida intocada e separada de intercâmbios. Com isso, a memória mítica de unicidade e coesão da identidade permanece utopicamente ativa no espaço-tempo colonial. Assim, a cultura é compreendida como objeto a ser conhecido epistemológica e empiricamente, fazendo reverberar capturas por um Eu/Nós superior ao Outro/Eles. Essa concepção não considera as especificidades culturais em suas possibilidades de enunciação, mas reproduz estereótipos direcionados aos povos indígenas com predicativos pejorativos como sendo parte de sua cultura.

Desse modo, mazelas impostas pelo pensamento e pela zona colonial aos povos indígenas passam a ser catalogados depreciativamente como especificidades epidemiológicas. Ou seja, violência física e sexual, negligência, alcoolização e suicídio, entre outros fatores, são vistos como ausentes nas territorialidades não indígenas, gerando assim o lugar do degradável, do primitivo e da subalternidade indígena. Por essa razão, a especificidade operacional indígena também se encontra desprivilegiada nessa relação e suas práticas de cuidado passam pelo crivo disciplinar dos saberes nucleares e das profissões que marginalizam suas formas de agir. Emerge, com isso, uma caricatura indígena digna de tutela do benfeitor externo - o herói bandeirante colonizador. Materializa-se, dessa forma, a colonização às avessas, como destacado por Simone Becker no trabalho de Lopes (2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
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).

Igualmente, os grupos-sujeitos indígenas e os trabalhadores de Saúde imbuídos no movimento decolonial, ao produzirem diálogos e formas de cuidado intercultural que valorizam e reconhecem a potência terapêutica dos conhecimentos tradicionais, são vistos como “monstros verdadeiros” (Foucault, 2003Foucault, M. (2003). A ordem do discurso. Loyola.), pois produzem formas de cuidado potentes que cumprem funções com eficácia simbólica e material (Lévi-Strauss, 1975Lévi-Strauss, C. (1975). A eficácia simbólica. In C. Lévi-Strauss, Antropologia estrutural (pp. 215-236). Tempo Brasileiro.). Contudo, não estão inscritos no discurso verdadeiro da ordem discursiva ocidental (Foucault, 2003Foucault, M. (2003). A ordem do discurso. Loyola.).

A esse propósito, a doença indígena chamada “coaio virado” não encontra respostas no saber ocidental e acarreta, inclusive, a morte de crianças não submetidas aos cuidados tradicionais indígenas (Lopes, 2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
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). As formas de controle da Saúde biomédica são, muitas vezes, iatrogênicas ou não cumprem função alguma de cuidado, mas compõem os “erros disciplinados” inscritos na ordem discursiva científica, no discurso de verdade da cultura [ocidental] (Foucault, 2003Foucault, M. (2003). A ordem do discurso. Loyola.).

Nessa continuidade, surge uma resposta ao enunciado-narrativa de exercício de poder colonial que descreve a mudança de itinerário terapêutico indígena como evasão hospitalar “- paciente evadiu-se do hospital”. E, como resistência decolonial emerge o enunciado-narrativa indígena: “por que eles fazem isso? - Porque já estão [há] muito tempo tomando remédio e Nomboguerai - nada resolve. Vai atrás de remédio tradicional” (Entrevistado, ano). Com isso, o primeiro enunciado-narrativa busca reafirmar a significação e os sentidos de superioridade atribuídos ao remédio biomédico colonial. No segundo enunciado-narrativa, parte significativa dos grupos indígenas manifesta não ver a biomedicina como a única forma de cuidado, nem tampouco superior. Isso provoca desconforto e desestabiliza a ordem discursiva ocidental e seu exercício de poder-saber. Para esses grupos-sujeitos indígenas, não há necessidade de comprovação científica para conhecer e fazer uso da eficácia e da função simbólica-material dos conhecimentos tradicionais.

Não desejamos inverter a hierarquia entre o saber ocidental e o saber tradicional indígena como se o último passasse a ser compreendido como superior. Nem tampouco estabelecer uma horizontalidade fixa sem critérios terapêuticos momentâneos e dinâmicos. Ao contrário, buscamos reconhecer a transversalidade entre os saberes ocidentais e os saberes tradicionais indígenas que, apesar de distintos, se entrecortam e se entrepenetram nas estratégias de cuidados interculturais.

O discurso indígena evidencia esse aspecto, pois há “doenças de índio e doenças de branco”. Coexistem acepções de saúde e as formas de cuidado devem ser avaliadas para a escolha da melhor terapêutica, conjuntamente. Assim, devem estar presentes, in continuum, “a casca da árvore e a caixa de remédio”, os saberes tradicionais e os saberes ocidentais. Os diferentes saberes devem intercambiar e coabitar as estratégias de cuidado em saúde.

Esperamos, nessa lógica e nesse cenário, direcionar nossos esforços amparados em um pensamento pós-abissal para constituir coletivamente uma ecologia de saberes e práticas em Psicologia Decolonial. Perguntas constantes e respostas incompletas promovem reflexões e construção de um conhecimento prudente. Dessa forma, reconhecemos a dinamicidade e a complexidade das questões em que devemos intervir. E, para isso, consideramos o que não sabemos como nossa própria ignorância e não como ignorância geral (Santos, 2010Santos, B. S. (2010). Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In B. S. Santos, & M. P. Meneses (Orgs.), Epistemologias do Sul (pp. 23-72). Cortez.).

Assim, a ecologia de saberes compreende o conhecimento como interconhecimento e se opõe à monocultura da ciência moderna instituída pelo pensamento abissal. E busca interações sustentáveis e dinâmicas entre a pluralidade e a heterogeneidade dos inúmeros saberes possíveis, preserva sua autonomia e evita capturas (Santos, 2010Santos, B. S. (2010). Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In B. S. Santos, & M. P. Meneses (Orgs.), Epistemologias do Sul (pp. 23-72). Cortez.). “Tendo claro que essa construção não representa um lugar fixo, como se houvesse vitória final, mas uma forma de saber-fazer-com em Saúde que se reatualiza constantemente” (Lopes, 2018Lopes, D. C. (2018). Atenção diferenciada à saúde indígena: Biopolítica e territorialidades no Polo Base de Dourados, MS [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados]. Repositório UFGD. http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1125
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, p. 71).

Considerações finais ou nós transitórios, móveis e dinâmicos

Na reflexão sobre o papel das(os) psicólogas(os) na SI, consideramos estar a Psicologia a serviço da sociedade para promover saúde, potencializar qualidade de vida e minimizar sofrimento de pessoas e grupos-sujeitos. Para isso, invariavelmente, articula outros saberes na reverberação da interdisciplinaridade e da interculturalidade. Desse modo, assentamo-nos no compromisso ético-político profissional que reconhece a natureza sócio-histórica humana e aponta as contradições que conformam as relações de dominação para sua superação, isto é, pela transformação social (Bernardes, 2013Bernardes, J. S. (2013). História. In M. G. C. Jacques, M. N. Strey, N. M. G. Bernardes, P. A. Guareschi, S. A. Carlos, & T. M. G. Fonseca. Psicologia social contemporânea: Livro-texto (pp. 19-33). Vozes.; Lane, 1991Lane, S. T. M. (1991). Psicologia social e uma nova concepção do homem para a psicologia. In S. T. M. Lane, & W. Codo (Orgs.), Psicologia social: O homem em movimento (9a ed., pp. 10-19). Brasiliense.). Além disso, apostamos na entrada do movimento da decolonialidade para a emergência do pensamento limiar e de uma ecologia de saberes.

Podemos diferenciar, sem dissociação, pontos dinâmicos e móveis de intervenção ou pistas de ação-resistência que compõem esse rizoma e que se coadunam. Sem a pretensão de produzir novas receitas psicológicas universais, apresentamos algumas pistas de ação-resistência-insubmissão traçadas junto aos povos indígenas interlocutores neste trabalho.

A primeira pista trata de uma cena macropolítica em que as políticas públicas devem prever a participação desse profissional na ADSI e nas discussões das condições de vida dos povos indígenas, incluindo-os nas decisões macropolíticas de saúde. Portanto, como pista de ação-resistência, entendemos que a Psicologia deve estar nos espaços-estratégias indígenas de controle social - como os fóruns, as Aty Guasu - e na luta pela demarcação da terra.

A segunda pista trata das consequências micropolíticas da produção subjetiva, marcada pelo discurso colonial e seu exercício de poder-saber. Os povos indígenas, em geral, sofrem histórica, política e psiquicamente por serem considerados e tratados como “ervas daninhas”, isto é, como inviabilizadores do progresso nacional atrelado ao agronegócio e à pecuária.

Assim, o estereótipo que aparece nesse discurso colonial negligencia, violenta, explora e oprime os povos indígenas, categorizando-os como bêbados, sujos, preguiçosos, vagabundos e violentos. Além de negar a diferença e a alteridade indígena, impostas por essas prerrogativas pejorativas, endossa a negação do seu direito à terra e suas consequências à SI. Nesse sentido, apresentamos como pista de ação-resistência-insubmissão a caracterização de uma entreimagem indígena que sinalize a potência interna existente em suas variadas figurações sociais no intuito de superar a imagem estereotipada do degradável ainda presente e estimulada por parcelas da sociedade envolvente.

Além dessas pistas, consideramos, finalmente, aquela que para nós atravessa as anteriores: as injustiças cognitivas e epistemológicas, que não representam apenas a fonte das injustiças sociais que afetam os povos indígenas, consistindo numa única. Essa pista se inscreve nas anteriores e as unifica. Romper com o pensamento ocidental apoiado em um pensamento pós-abissal e constituir uma ecologia de saberes, infinita em suas possibilidades, se torna aquilo pelo qual devemos lutar. Portanto, a supervisão das lideranças tradicionais e a entrada na cosmologia, epistemologia e saberes indígenas se tornam imprescindíveis à atuação da Psicologia. Com isso, é necessário buscar enlaces afetivo-intelectuais no cuidado em saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2020
  • Aceito
    07 Jul 2021
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