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Ética bibliotecária no contexto atual

Ethics in the librarian profession context

Resumos

Discute a temática referente à ética, tomando como referência as três últimas décadas do século XX. Considera que a discussão em andamento nos dias atuais permite enxergar que há uma predominância do entendimento da ética sob uma perspectiva meramente prática e de aferição de qualidade e de que sua simples invocação já seria sinal suficiente para se atingir a solução desejada de um problema de natureza intersubjetiva. Apresenta o entendimento de que o simples uso do termo ´ética´ nas áreas profissionais, como a biblioteconomia, não é suficiente para solucionar as questões éticas, pois sua excessiva invocação termina contribuindo para obliterar uma compreensão mais realista dos fatos, desumanizando quase totalmente o sentido ontológico da vida.

Ética; Ética profissional; Procedimentalismo; Prescricionismo


The article discusses the thematics of ethics, taking the three last decades of the 20th century as reference. It considers that the current discussion indicates a predominance of the understanding of ethics under a simply practical perspective and quality gauging. There is also an indication that the mere invocation of ethics would be a sign strong enough to reach the desired solution of a problem of intersubjective nature. The paper presents the understanding that the simple use of the term ´ethics´ in the professional areas, such as Library Science, is not enough to solve the ethical issues; therefore its excessive invocation ends up contributing to halt a more realistic understanding of the facts almost entirely dehumanizing the ontological sense of life.

Ethics; Professional ethics; Procedural action; Prescriptive action


REVISÃO DE LITERATURA

Ética bibliotecária no contexto atual

Ethics in the librarian profession context

Francisco das Chagas de Souza

Doutor em Educação na Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Ciência da Informação; Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação; Programa de Pós-Graduação em Educação; Editor da Revista Encontros Bibli; Grupo de Pesquisa: Informação, Tecnologia e Sociedade Campus Universitário – Trindade - Florianópolis – SC

RESUMO

Discute a temática referente à ética, tomando como referência as três últimas décadas do século XX. Considera que a discussão em andamento nos dias atuais permite enxergar que há uma predominância do entendimento da ética sob uma perspectiva meramente prática e de aferição de qualidade e de que sua simples invocação já seria sinal suficiente para se atingir a solução desejada de um problema de natureza intersubjetiva. Apresenta o entendimento de que o simples uso do termo ´ética´ nas áreas profissionais, como a biblioteconomia, não é suficiente para solucionar as questões éticas, pois sua excessiva invocação termina contribuindo para obliterar uma compreensão mais realista dos fatos, desumanizando quase totalmente o sentido ontológico da vida.

Palavras-chave: Ética; Ética profissional; Procedimentalismo; Prescricionismo.

ABSTRACT

The article discusses the thematics of ethics, taking the three last decades of the 20th century as reference. It considers that the current discussion indicates a predominance of the understanding of ethics under a simply practical perspective and quality gauging. There is also an indication that the mere invocation of ethics would be a sign strong enough to reach the desired solution of a problem of intersubjective nature. The paper presents the understanding that the simple use of the term ´ethics´ in the professional areas, such as Library Science, is not enough to solve the ethical issues; therefore its excessive invocation ends up contributing to halt a more realistic understanding of the facts almost entirely dehumanizing the ontological sense of life.

Key-words: Ethics; Professional ethics; Procedural action; Prescriptive action

1 Introdução

Uma análise sobre a ética pode mostrar a existência de um debate que se faz por dois caminhos. O primeiro traz uma discussão que toma a ética como o conjunto dos princípios que podem ser invocados como fundamentos para se compreender e justificar as escolhas que se pode fazer para orientar as ações ou conduta dos homens em sua convivência. O segundo, aponta para uma discussão que, cada vez mais, invoca a ética como a normatização da conduta humana.

Enquanto o primeiro caminho supõe uma sociedade constituída por indivíduos capazes de auto-interrogação, o segundo supõe uma sociedade composta por elementos em estado de dependência ou semi-infância, propensos a serem mandados e subjetivamente pouco preparados para a negociação e expressão das próprias vontades em relação aos fenômenos que determinam suas existências. A partir dessa consideração, pode-se levar em conta que há dois modos de expressar o que é a ética e, por isso, que há ações correspondentes a essas expressões. Embora isso esteja configurado para o âmbito geral da ética, pode também ser tomado para o âmbito mais particular do que é chamado de ética profissional e, mais especificamente, no caso desta reflexão, para a ética do profissional bibliotecário.

Este artigo, a partir de uma abordagem teórico-conceitual da sociedade deste início de milênio, visa discutir esta temática considerando o estágio atual em que vivem as nações, grupos e indivíduos, sobretudo tomando como referência as três últimas décadas do século passado.

A discussão em andamento no momento atual, permite enxergar que é pelo caminho de entendimento da ética como normatização que, cada vez mais, se tem tomado o próprio termo ética, como auto-referente e que sua simples invocação já seria sinal suficiente para se atingir a solução desejada de um problema de natureza intersubjetiva.

Neste artigo pretende-se avançar um pouco no entendimento de que o simples uso do termo ética não é suficiente para o que aparentemente pretendem os que o invocam, como uma âncora de moralismo, pois como vem sendo utilizado, somente serviria para obliterar uma compreensão mais realista dos fatos, desumanizando quase totalmente a vida contemporânea e tornando-a cada dia mais o campo de domínio das máquinas e dos programas informáticos sob o comando de um capital financeiro que, pelos seus gestores, se enxerga como o centro da existência humana.

2 Vida contemporânea

O modo como os indivíduos vivem e realizam sua existência no mundo ocidental, a partir dos anos da década de 1970, tem sido pautado pela urgência. Urgência ou emergência que solapa o senso de tempo e de espaço e, por isso mesmo, faz cair significativamente qualquer sentido de transcendência.

Alguns marcos foram estabelecidos. De certo modo, todos eles passam pela maximização do valor atribuído a um conjunto de símbolos que, representando relações, têm por substância representar as relações de relações, isto é, são símbolos de símbolos. Nos universos da informação e da comunicação trabalha-se com um dos mais importantes conjuntos desses símbolos: a linguagem. A linguagem é recurso para produção da relação. Outros materiais ou conjuntos de materiais signicos que são da mesma natureza social da linguagem, existem para produzir relações, embora as estabeleçam com solidez física: as igrejas (muitas vezes vista pelos seus templos); as músicas (muitas vezes tomadas por suas letras e partituras) etc.

A invenção dos meios e produtos eletrônicos que levaram à constituição da internet como um vasto conjunto de mídias introduziu — pela via da simplificação dos espaços e tempo — a generalização, no interior do universo estudantil e no âmbito de várias profissões contemporâneas, da idéia de que o conhecimento está pronto e acabado e à disposição de um simples clic. Essa noção de um conhecimento complemente pronto, embora não contamine as equipes de pesquisadores científicos em todos os campos do conhecimento, tende a atingir, a partir dos dispositivos articulados pela publicidade, pelo marketing e por outras estratégias de venda de hardware e software, um grande número de estudantes em todos os níveis de ensino; um grande número de professores dos níveis educacionais: infantil, fundamental e médio e uma parte dos produtores da comunicação para as massas. Essa influência toma a mente e o corpo dos seus usuários e os submete e os domina pela composição de um estado de quase imobilidade mental, transformando-os em buscadores de respostas para questões meramente pragmáticas; também instala uma certa imobilidade física aos lhes impor o entendimento de que o conhecimento chegará na tela diante da qual ele se postará. O que afasta a maioria das pessoas de colocar totalmente em prática esse fundamento pragmático ainda é a limitação econômica pessoal ou as limitações impostas pelos seus ambientes de trabalho.

O contraponto que poderá atenuar a maximização desse fenômeno imobilizante para aqueles a ele submetidos viria pela condição de dar-se acesso a meios que requerem uma relação física que exija deambulação, por exemplo, que enseja o deslocamento físico do sujeito para uma biblioteca tradicional e que estando lá ele vá a uma estante de livros, para que apanhando livros os folheie, submeta-os à leitura, deles tomando notas e, a partir disso, realize operações intelectuais do fazer reflexões, do estabelecer correlação mental entre o que nesse momento lê, o que dantes leu e o que a leitura atual suscita de lembrança de leituras passadas que possuam uma relação de afinidade ou de afastamento cognitivo entre elas.

Esse marco, ou essa marca paralisante da vida contemporânea subtrai a noção de tempo pessoal do próprio indivíduo, isto é, do ócio, pois o obriga a utilizar esse seu tempo pessoal para realizar tarefas que dantes representavam postos de trabalhos de outras pessoas. Esse tempo é subtraído do ócio pessoal para ser ocupado sem remuneração por tarefas geradas no mundo econômico e em substituição aos empregados que exerciam ocupações profissionais mas que perderam os seus postos, ou fontes de renda, transformando-se em desempregados ou subempregados. Exemplo disso são as operações financeiro-bancárias, que acontecem através do uso da internet ou de terminais eletrônicos de atendimento. Com isso, sem maiores ônus e sem contestação, o empresariado substituiu parte significativa da mão-de-obra dantes empregada nos estabelecimentos finaneiro-bancários, por exemplo, com o agravante deste trabalho não produzir redução dos custos cobrados dos clientes ou agregar subsídios financeiros aos trabalhadores que permaneceram no sistema. A rigor, passou a constituir uma espécie de mais valia ou superexploração de uma clientela da qual é extraída parte preciosa do tempo pessoal, também para o preenchimento de formulários, seja para a captação de recursos, pagamento de impostos etc. Desse ângulo de análise percebe-se que ocorre uma expropriação da sociedade, pois formalmente não houve consentimento social nos fóruns apropriados. De outro lado, porém, parece existir a manifestação tácita de uma aceitação cega, o que leva a sociedade contemporânea a assumir o caráter constituidor de uma esfera de existência em que o modelo que se apresenta como máquina amigável, que produz economia de tempo é, na verdade, um grilhão que prende os que acreditam no poder desta máquina amigável de gerar autonomia pessoal. Esse modelo destrói empregos e renda que dantes iam para a remuneração dos trabalhadores e por isso destrói vidas humanas que, progressivamente, se esvaem no subemprego ou no excesso de ocupação e tudo isso sem deixar espaço para o refazimento físico, mental e emocional que o tempo do descanso pós-jornada de trabalho poderia produzir. Mas esse tempo ocioso, segundo a racionalidade econômica atual, tem que ser ocupado com mais transferência de riqueza dos que pouco têm para os que mais têm. Como exemplos: está aí a educação contínua para toda vida, feita a distância, para a qual o sujeito (educando permanente?) utiliza o seu tempo livre; aí estão as milhares de ofertas de lazer via rede eletrônica; aí está, portanto, a produção de conteúdos literais, sonoros, imagéticos, em combinações as mais estimulantes aos sentidos e também as bibliotecas eletrônicas, virtuais, digitais etc. Esse cerco que faz da vida contemporânea humana o momento de ter o seu corpo completamente tomado pela tecnosfera já não admite a manifestação da liberdade de pensar um pensamento que não seja reação a domínios perpetrados por dominantes econômicos que não comandam seus próprios capitais mas que são prepostos de fundos de investimentos, muitos dos quais originados de investimentos previdenciários privados para obtenção de futuras pensões. Ativos financeiros em que os donos são cotistas de aposentadoria e em que, em tese, as rendas desses capitais investidos servirão para pagar rendas a esses proprietários. Cada volta do parafuso revela que esses prepostos (banqueiros e seus negócios) são atravessadores de uma mercadoria, o dinheiro, que pertence às sobras econômicas que a mais valia não absorveu totalmente e não o fez porque tais resíduos são a própria condição para que essa mais valia se multiplique com mais força, o que vai dar aos estabelecimentos bancários o lastro financeiro para reemprestar mil vezes esses fundos e disso extrair riqueza a partir da gestão de empréstimos aos países e empresas que deles necessitam e que pagam com mais uma parcela de preço excedente tirada desses mesmos rentistas.

Essa vida contemporânea é, assim, o império da expropriação sucessiva, contínua e progressiva da riqueza dos indivíduos que ainda têm renda e salário e, por isso, é o espaço em que a humanidade não faz outra coisa que autoflagelar-se. Que consciência generalizada tem-se disso? Num ambiente como esse, que valor tem a vida humana, como uma construção mente-corpo voltada para a busca do bem, isto é, para a ética?

3 Banalidade da existência

O que se observa é a pouca importância dada para a vida humana. Pessoas, máquinas, informações, estruturas mentais etc. tudo isso tem, muito mais evidente nos dias de hoje, traços de subsídios organizadores da produção de lucro econômico. Até parece que tudo, menos a finança, deixa de ter sentido ontológico. O estatuto do ser passa a se manifestar como subsídio para a matéria (sob forma física ou mental), que se pode expressar monetariamente e que pode produzir lucratividade para poucos grupos de indivíduos, cuja função é manipular a moeda e dessa manipulação extrair suas excessivas riquezas pessoais.

Nesse sentido, se torna banal a existência: viver para quê? Para ser cliente, ou seja, para sustentar poucos grupos que gerem a força das armas (atrás do que estão as gigantescas indústrias: bélica, petrolífera, automobilística, aeroespacial e farmacêutica), a mesma força que sustenta o império da arrecadação de tributos e de lucros que, por sua vez, num processo circular, é a força que sustenta a força das armas (e atrás do que está a indústria financeira). Esse círculo que é estrutural ao estado moderno, como demonstra Norbert Elias, tira o sentido do bem viver humano em sociedade. Nesse processo de banalização, tudo toma a forma de capital. Que outro termo a sociologia construída por Pierre Bourdieu encontrou para o saber que dá base para o assalariamento dos intelectuais senão capital cultural? Que outro termo os autores dos livros de administração encontraram para referir-se às relações de conhecimento pessoal que favorecem a obtenção de alguma oportunidade de trabalho senão capital social? Os exemplos são muitos fortes no sentido de expressar tudo em representação de valor transformável em dinheiro e dando a essa valoração, um status de ser, mas transferindo-o para um estágio de ter, o qual reduz o homem a uma extensão de máquina. Nesse sentido, Kurz, em um texto intitulado a Ignorância da Sociedade do conhecimento, afirma que:

... a questão do sentido e da finalidade dos próprios atos de cada um se torna quase impossível. Se os indivíduos se tornam idênticos a suas funções condicionadas, eles deixam de estar em condições de questionar a si mesmos ou ao ambiente que os cerca. Estar informado significa então estar totalmente em forma, formado pelos imperativos de sistemas de sinais técnicos, sociais e econômicos; para funcionar, portanto, como a porta de comunicação de um circuito complexo. E mais nada. A geração jovem da chamada sociedade do conhecimento é talvez a primeira a perder a questão pueril quanto ao sentido da vida. Para isso não haveria espaço suficiente no display. Os informados desde pequenos não compreendem mais nem sequer o significado da palavra crítica. Eles identificam esse conceito com o erro crítico, indicação de um problema sério, a ser prontamente eliminado na execução de um programa. Nessas condições, o conhecimento reflexivo intelectual é tido como infrutífero, como uma espécie de bobagem filosófica da qual não precisamos mais. Seja como for, tem-se que lidar com isso de maneira pragmática. O primeiro e único mandamento do conhecimento reduzido diz: ele deve ser imediatamente aplicável no sistema de sinais dominante. O que está em questão é o marketing da informação sobre mercados da informação. O conhecimento intelectual tem de ser encolhido para a condição de informações.

Em outros termos, está presente nessa reflexão de Kurz a representação de uma redução do homem a sua própria relação instrumental com a produção da riqueza, independentemente de qual seja a natureza dessa produção. É nesse sentido que as forças políticas e econômicas dirigentes da humanidade reduziram o homem à condição de extensão de máquina, transformando a existência em qualquer coisa, isto é, em algo moralmente irrelevante. Isso é que faz da vida contemporânea uma expressão de banalidade. Estar vivo, biologicamente, talvez nem faça diferença, pois cada vez mais haverá forma de repor as peça humanas na engrenagem produtiva, preferencialmente por substitutos mecânicos ou mecatrônicos. Estar vivo, estatisticamente, também faz pequena diferença, desde que seja viável mostrar que tendo havido uma perda de material humano, foi possível um ajuste global dos meios de produção pelo qual não decorreu qualquer quebra de produtividade e de lucratividade do empreendimento considerado.

Na medida em que o conhecimento intelectual é expresso não pela semântica mas tão somente pelos sinais e por informações, geralmente de expressão quantitativa, o que fazer senão contemplar o destroçamento da realidade humana, das emoções e do sentido dado na busca pelo bem?

4 Apagamento da realidade

Por realidade, tome-se a exterioridade humana, mental e material, que se constitui como a integração da subjetividade e da objetividade, num movimento de totalização/não-totalização permanente, que envolve todos os seres humanos e demais seres vivos a partir de um critério de igualdade que poderia ser o direito ao livre viver. Nessa configuração de realidade estão presentes os indivíduos, os grupos e as instituições humanas e os demais seres vivos que, constituindo um diálogo orgânico a partir de um eixo fundamental básico, o bem viver, têm por finalidade voltar-se para tornar possível a realização da existência.

Ora, num mundo em que tudo se reduz à informação, isto é, representações e símbolos de relações, e em que o sentido é expresso pelo instrumento contabilizador, esse conceito de realidade está quase inteiramente apagado, ou seja, vem sendo aceleradamente condenado à morte. A morte ao conceito é o prenúncio da renúncia ao que o fenômeno tem de valor humano ou dele tem de projetado. Neste pouco que resta de realidade, a ética ainda faz sentido, mas como é diminuta esta realidade, também é diminuta a ética que está disponível para a humanidade; pode-se dizer que a ética está em uma etapa final de existência. Pode-se dizer isso, na medida em que se deve reconhecer que o conceito de ética é estruturante da concepção de uma sociedade ocidental orientada à busca pelo bem, há pelo menos dois mil anos. Isso não significa que não tenham ocorrido muitas atrocidades e desumanidades nesses dois milênios. Contudo, durante os acontecimentos, quaisquer que fossem, se invocavam os princípios éticos como referência para o exame dos desvios produtores das atrocidades. Não parece que se dê a invocação de princípios éticos nos anos posteriores aos da década que se inicia em 1970. Em parte, esse fato decorre e tem a ver com a época da disputa entre os Estados Unidos e a URSS em vários campos de interesse, constituindo a chamada Guerra Fria. Em parte, tem a ver com o trauma pós-segunda grande guerra do século XX. Em parte, tem relação com os acontecimentos europeus que levaram a uma apropriação da instituição escolar, tomada como instrumento de conquista material, já a partir dos anos da década de 1960, nos termos apresentados por Bourdieu, na entrevista Pontos de referência (p. 60-61), isto é, como forma de agregação de um certo tipo de capital. Em parte, tem a ver com a nova ciência que leva a uma maior ruptura com a visão teocrática do mundo ocidental o que, em certo sentido, materializa a existência, em coerência com a instrumentalidade da vida.

De outro lado, é dessa mesma época, a partir da segunda metade do século XX, a consolidação e expansão do instrumental que a ciência da informação produz para examinar a própria ciência pelos critérios de produção e produtividade: a bibliometria, a cienciometria, bem como toda a racionalidade do instrumental estatístico para validar a informação como campo de interesse econômico e, por isso, como uma nova mercadoria.

Nesse ambiente, a massa textual cresce abarcando todos os campos de interesse, todos os assuntos, todas as formas de expressão gráfico-visuais, do que hoje a rede internet mostra ser um extraordinário espelho. Dos mais de oito bilhões de páginas cadastradas nos principais buscadores, diz-se que mais da metade é formada pelo lixo pornográfico. Evidentemente, o erostismo sempre fez parte da produção gráfico-visual da humanidade, mas sua expressão pornográfica passou a ter muita força discursivo-econômica, a partir dos anos noventa do último século, sobretudo na infosfera, a internet. Possivelmente, uma análise estatística da quantidade de produção de discursos em todos os outros campos e, também no campo da ética, possa mostrar que a produtividade do discurso pornográfico tem crescido numa progressão geométrica enquanto o discurso ético venha a ser produzido numa progressão aritmética. É nisso que a realidade, aquela da racionalidade ocidental, construída nos últimos dois mil anos, vem sendo apagada às pressas e seu último bastião, porque toca à questão moral e de conduta social, que é a ética, passa a ser invocado como um último refúgio de sanidade mental.

5 Uso instrumental do termo ética

A banalidade da vida contemporânea ao estreitar demasiadamente a possibilidade da sadia participação humana nos seus próprios destinos, tanto pela instrumentalização da vida quanto pela transformação de toda a existência numa representação contábil, deixa uma margem muito pequena para se invocar a ética. E esta passa cada vez mais a ser chamada não tanto por seu conceito mais universal de busca do bem, mas sobretudo como um instrumento pelo qual se possa medir o que de ético há nas relações sociais, o quanto de ético é praticado pelos indivíduos. Talvez não se pudesse esperar algo diferente de um universo humano em que as relações sociais estão marcadamente orientadas pela valoração do ter, não colocando esse ter, como um mistério e, portanto, devendo moralmente ser partilhado entre quem o obtém e aquele(s) que não tiveram a mesma sorte. Mas, talvez, colocando esse ter como um absoluto que só é obtido por força do investimento material feito. Tem quem investe! Não tem quem nada fez para obter os ganhos que dada situação proporciona.

Neste aspecto, nos anos recentes, passa a ser pensado também o acesso aos fundos públicos de documentação, por exemplo, a Biblioteca Pública, apenas para os que podem pagar uma taxa de adesão ou um ingresso, ou serviços de saúde cada vez menos como oferta pública estatal e cada vez mais como resultado de contratação particular de serviços de saúde. É sob um quadro assim configurado que a invocação da ética chega como normatização de conduta. Perde-se cada vez mais o sentido de uma discussão ética que fundamenta a norma de conduta e dá base para se formulá-la e afirma-se que a ética é o mesmo que a normatização da conduta. Vai-se o que ela tinha de conceitual e fica o que ela teria de instrumental.

Com isso, passa-se a ver a ética não mais como um sistema de pensamento mas como uma norma que certifica o agir certo, imposto por um padrão contabilizador e objetivista. A sua semelhança com as normas de certificação de qualidade industrial ou de serviços passa a ser de fundo e, em vários casos, também já é de forma. Nesse sentido, numa análise dos textos referentes aos Códigos de Ética de algumas profissões no âmbito brasileiro, tem textos, muitos até, forjados com a linguagem e com a redação que emprega a técnica legislativa. Sabe-se que no Brasil, leis e decretos são sinônimos de normas do mesmo modo que quaisquer outras normas para aplicação às atividades de produção econômica industrial, de serviços etc. Sob este ângulo, pode-se afirmar que códigos de ética profissional, como o dos bibliotecários, estão formalmente apresentados à semelhança das normas de certificação de qualidade.

Tomando a questão por esta perspectiva, dá para questionar se os profissionais bibliotecários brasileiros não estão invocando a ética pelo que este termo tem de instrumento para regular a conduta profissional para o usuário, o estado e o próprio grupo. Por esse questionamento suspeita-se que os bibliotecários brasileiros não estariam invocando a ética pelo seu conceito mais amplo, ou como princípio, que daria base para formular, a partir de uma análise dessa sociedade, sobre como seria a produção do máximo bem resultante do trabalho biblioteconômico. Uma outra pergunta, então, seria: sendo isto afirmativo de onde viria tal postura?

6 Bases para uma ética profissional bibliotecária e o ambiente de sua aplicação

O exame textual dos códigos de ética bibliotecários, consolidados em vários países e disponibilizados para acesso público no site da IFLA, em http://www.ifla.org/faife/ethics/codes.htm, assim como em outras fontes, pode oferecer um panorama razoavelmente interpretável das bases filosóficas para as duas linhas adotadas em sua formulação, a fim de estipular a conduta profissional. Há uma base que pode ser chamada de prescritiva e outra que pode ser chamada de procedimental. A primeira toma como fundamento um pretenso saber neutro e universal, esclarecido, que, na fonte, reflete o pensamento do Iluminismo filosófico Kantiano. A segunda, mais atual, toma como fundamento uma esfera de comunicação interpessoal, face-a-face, e um espaço público em que os interesses das partes em torno de um determinado fim são submetidos a um processo de negociação que leva à definição do que será o melhor para todos os envolvidos. O procedimentalismo parte de três princípios: a) Todos os sujeitos envolvidos num universo de ação são e se reconhecem livres para participar completamente do processo de negociação; b) Todos os sujeitos envolvidos conhecem inteiramente os termos que lhes cabe tomar como critérios para estabelecer sua negociação; c) Todos os sujeitos envolvidos têm plena capacidade de entendimento e realização do objetivo pactuado. Isso significa que a adoção da base procedimental toma por fundamentos os pressupostos da igualdade do ser humano, sustentada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e leva em conta um espaço comum de participação e comunicação, livre de restrições e de conceitos prévios trazidos por quaisquer das partes envolvidas, o que, em última instância, se coaduna com o pensamento teórico da ação comunicativa e da esfera pública de Jurgen Habermas.

Esse exame daqueles textos mostra que, na corporação bibliotecária mundial, a ocorrência majoritária da base prescritiva se encontra em poucos países de economia subdesenvolvida ou em estágio de desenvolvimento, como no Brasil, em que o código de ética profissional tem conteúdo e forma legislativos, ou melhor, é redigido empregando a técnica legislativa, determinando a conduta profissional. De outro lado, essa comparação entre códigos revela que a base procedimentalista se manifesta em códigos de ética profissional bibliotecária de países economicamente mais fortes ou desenvolvidos, a começar pelos Estados Unidos.

Essa dupla expressão da conduta profissional bibliotecária exibe os condicionamentos institucionais, culturais e econômicos que, existindo nos vários contextos sócio-nacionais, definem o modo de ser e de se ver e, portanto, de se conduzir de cada grupo bibliotecário situado. Desse ponto de vista, há uma revelação das diferenças nas práticas profissionais, que se estendem para além do emprego das técnicas e tecnologias instrumentais, em cada país ou nas comunidades nacionais e/ou regionais distintas.

Tais práticas profissionais ao expressarem valores distintos, conforme cada ambiente, fazem da corporação mundial bibliotecária e na corporação mundial bibliotecária um lugar e um ambiente para a circulação de idéias distintas e, por isso, conceitos distintos em torno das práticas éticas e de sua expressão nos respectivos códigos deontológicos que empregam para orientar sua conduta.

Como o prescricionismo (que deriva de um pretenso esclarecimento universal, de uma iluminação cognoscente) e o procedimentalismo (que decorre do reconhecimento da igualdade humana e da liberdade de ação, com origem na Declaração Universal dos Direitos Humanos) predominam em ambientes bibliotecários distintos e servem de base para os respectivos códigos de ética, pode-se supor que essas bases representam escolhas?

Olhando a partir do ambiente econômico e político, elas podem ser tomadas como escolhas conscientes nos países criadores das teorias e práticas profissionais bibliotecárias e que primeiro regularam as relações delas decorrentes, fato que talvez não seja válido para os países que, mais tarde, importaram esses conhecimentos e adaptaram essas práticas. Mas isso pode ser descoberto com mais estudos e pesquisas, com mais reflexão e debate. O fato concreto é que há duas bases possíveis para dar fundamento aos códigos de ética profissional bibliotecária. No caso brasileiro, foi adotada uma delas, a base prescricionista que, cada vez mais, parece estar se mostrando incompatível com os fenômenos informacionais que derivam do porte econômico que o país vem atingindo e, sobretudo, pelas evidências da necessidade de um redesenho das relações profissionais que os membros da categoria bibliotecária mantêm com os seus múltiplos usuários.

7 Considerações finais

O estudo ou reflexão teórica dos fenômenos sociais, como muito brevemente foi aqui apresentado, a partir de uma interpretação da literatura dos anos recentes, acerca da ética profissional, e tomando como referência o uso do termo ética, suscita a necessidade de estudos empíricos no campo da biblioteconomia sobre os marcos sócio-econômicos das várias sociedades em que a profissão e a educação bibliotecária estão implantadas com seus estabelecimentos e suas práticas profissionais, objetivando encontrar explicações que levem ao entendimento das razões pelas quais as bases filosóficas: prescritivas e procedimentais fazem sentido nos respectivos contextos onde estão, de modo a determinar a forma de explicitação do modo de conduta profissional da categoria bibliotecária.

Além disso, cabe compreender melhor, a partir de múltiplas coletas e interpretações de dados junto aos profissionais bibliotecários atuantes no Brasil, o sentido ético que eles encontram, como orientação na sua relação com a sociedade, em um código de ética profissional, ora existente e em vigência, que carrega uma base prescritiva e, sobretudo, determinadora de uma conduta profissional, com mandamentos vasados em linguagem legislativa.

Essas duas considerações surgem como primeiros resultados possíveis da discussão até aqui empreendida e se colocam como ponto de partida para estudos comparados e empíricos que poderiam permitir o reforço das propostas de avaliação sócio-histórica que parecem necessárias para o fortalecimento da profissão bibliotecária no país. Trabalhos dessa natureza podem também surtir efeito significativamente positivo no processo de preparação acadêmico-profissional por auxiliar com mais informações o processo em andamento de elaboração dos projetos políticos pedagógicos em estudo nos vários cursos de biblioteconomia e em reforço ao projeto da Associação Brasileira de Ensino em Ciência da Informação - ABECIN - de provocar uma maior qualificação para a educação bibliotecária no Brasil.

Recebido em 11.07.2006

Aceito em 12.12.2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2007

Histórico

  • Aceito
    12 Dez 2006
  • Recebido
    11 Jul 2006
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