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Turbulências durante a decolagem

SECÇÃO ESPECIAL

Turbulências durante a decolagem

Paul Stephaneck

FFCLRP - Universidade de São Paulo

Durante o outono europeu de 1965, o Professor Lucien Lison visitou a Universidade de Bruxelas a fim de recrutar docentes para a nova faculdade que ele havia criado no ano anterior em Ribeirão Preto. O vestibular fora feito no início de 1964 e a primeira turma já terminara o ano propedêutico. Este último fora concebido como um ciclo comum para os três cursos (Biologia, Química e Psicologia) e consistia principalmente na iniciação do aluno no método científico e na demonstração experimental. Já que a finalidade do propedêutico não exigia conhecimentos específicos, foi relativamente fácil achar docentes nas faculdades já existentes ou nas outras instituições que se encontravam em Ribeirão Preto na época. Mas, para os anos ulteriores, era necessário contar com docentes para matérias especializadas e o Prof. Lison pensou encontrá-los nas universidades belgas. Ele deixou um aviso no mural da secretaria do Departamento de Psicologia na Universidade de Bruxelas anunciando que uma nova faculdade no Brasil procurava docentes para diversas matérias de um curso de Psicologia.

Na mesma época, apareceram sinais de recessão econômica na Bélgica e o Governo Belga fez cortes substanciais no orçamento das universidades e no financiamento das pesquisas. Este fato criou um sentimento de insegurança e, sendo um jovem docente na época, inspirei-me a apresentar minha candidatura. No inicio do ano de 1966, recebi um contrato, assinado pelo diretor da faculdade, que entraria em vigor após exame médico efetuado no Brasil. Comecei a completar as formalidades e fazer os preparativos para a viagem. Passagens para mim e para minha esposa já tinham sido reservadas para o navio Julius Cesar, que deveria deixar o porto de Gênova no dia 8 de maio. Nos primeiros dias de abril, apresentei meu aviso prévio na universidade, mas alguns dias depois, recebi um telegrama no qual o professor Lison me informava que o Governador do Estado, Ademar de Barros, fora cassado e, segundo as leis vigentes, toda nomeação para funções Públicas estava suspensa durante 160 dias. Minha esposa conseguiu anular seu aviso prévio na Faculdade da Medicina, mas eu já tinha sido substituído no Departamento de Psicologia. Pouco tempo depois, consegui obter um contrato com o Departamento de Pesquisas Sociais das Forças Armadas Belgas, onde executei pesquisas junto com um psicólogo militar a respeito do problemas psicológicos que podem surgir durante o comando de pequenos grupos militares. Este colega, Jacques-Philippe Leyens (atualmente professor titular de Psicologia Social da Université Catholique de Louvain), falou-me de um amigo dele de Louvain que também se preparara para emigrar ao Brasil a fim de lecionar numa faculdade estadual e que se encontrava numa situação semelhante à minha. Foi assim que eu tive a oportunidade de conhecer André Jacquemin.

Nem André, nem eu acreditávamos mais na realização de nossa viagem ultramarina quando, no fim de 1966, chegou um telegrama de Ribeirão Preto informando que as contratações haviam sido reabertas e poderíamos ocupar nossas funções na Faculdade. Encontramo-nos com os Jacquemins em Bruxelas a fim de efetuarmos os preparativos para a viagem e fazermos juntos as compras de roupas leves que nos permitiriam agüentar as temperaturas tropicais que nós acreditávamos insuportáveis. As passagens para nós foram reservadas para o navio Louis Pasteur, que deveria deixar o porto Le Havre na França no dia 24 de dezembro às 18 horas. Chegamos cada um com 500 kg de bagagem que é o máximo permitido no navio para cada emigrante e instalamo-nos no Pasteur no inicio da tarde. Esperamos levantar âncora, enquanto o tempo fechava, tanto que lá pelas 4 horas da tarde, já estava escuro por causa de nuvens muito baixas, e podíamos ouvir o barulho de uma forte chuva com vento sobre um mar revolto. Se eu fosse diretor de cinema e quisesse criar um clima triste e angustiante, reproduziria sem dúvida o ambiente do porto Le Havre naquele tarde. Assim avançamos na noite, em um navio silencioso, sem movimentação alguma que indicasse uma partida próxima. Esperamos algumas horas nestas condições, quando o comissário do bordo nos informou do adiamento da partida sine die, porque a tripulação entrara em greve e se recusava a partir. Ela tinha razão. Como se pode programar o zarpar para as 6 horas da tarde de um 24 de dezembro e exigir que a tripulação deixe mulher e filhos nesta hora? Mas nós, que abandonamos casa, trabalho, amigos, e agora devíamos esperar o fim de uma greve que, na França, freqüentemente durava semanas, por vezes, meses? Este tipo de pensamento nos assediou durante a noite, que foi temperada, um pouco mais tarde, pela excelente ceia de Natal que nos foi ofertada, com abundante quantidade de vinho bordeaux genuíno à vontade.

Acordamos tarde no dia seguinte e, ainda tristes e preocupados, discutimos com outros passageiros a sorte que nos esperava quando, finalmente, zarpamos no fim de tarde com o mar agitado. Chegamos no dia seguinte em Vigo, na Espanha, e depois passamos um dia em Lisboa, antes de começar a grande travessia. Descendo na direção do Sul, atravessamos o Equador terrestre e já com tempo excelente passamos o reveillon de 1967 em pleno Oceano Atlântico. Chegamos em Santos no dia 7 de janeiro, quando encontramos um colega belga, Roger Lemineur, que nos esperava no cais. Depois de preenchidas as formalidades da alfândega, continuamos nossa viagem para Ribeirão Preto no carro da faculdade.

No momento de nossa chegada, encontramos aqui três professores belgas no Departamento de Psicologia, aqueles que saíram da Bélgica antes que Ademar de Barros deixasse a chefia do governo do Estado. A recepção pelos alunos foi muito calorosa e se mostraram muito motivados e bastante cooperativos. O curso da Psicologia entrara no seu 4º ano e a preocupação principal era a abertura do 5º ano, destinado às matérias profissionalizantes, indispensáveis para a formação do psicólogo. Não havia, nesta época, professores encarregados de lecionar estas matérias e a nossa chegada permitiu vislumbrarem uma solução para a abertura do 5º ano. Os professores em regime de tempo integral lecionavam duas ou três disciplinas, deste modo, eu mesmo ministrei, além da Psicologia Industrial no 5º ano, as disciplinas de Psicologia Geral e de Psicometria nos anos básicos. Com tal carga didática e pela falta de laboratório e biblioteca não poderíamos pensar seriamente em atividades de pesquisa. No entanto, consegui apresentar um pequeno trabalho experimental sobre a aplicação da Teoria da Informação nas atividades psicomotoras no ano seguinte, durante as Jornadas Brasileiras de Psicologia realizadas junto à Reunião Anual da SBPC, em São Paulo, no ano de 1968. O assunto era uma grande novidade naquele momento e nós apresentamos apenas resultados parciais, a fim de marcar a presença da Psicologia de Ribeirão Preto.

Nos anos seguintes, a Faculdade começou a desenvolver a sua estrutura física, no que diz respeito aos prédios e equipamentos. Assim surgiram o Bloco A e B e, mais tarde, o Bloco C onde nos foi atribuído uma pequena sala para instalar o Laboratório de Ergonomia. Foram elaborados nesta época estudos experimentais para avaliar a carga do trabalho não físico (psicomotor). Estudamos no laboratório a função da memória do operador humano em tarefas de monitoramento e de controle. Neste sentido, nós preparamos a simulação da tarefa do controlador do trafego aéreo na torre de controle de um aeroporto a fim de estudar as caraterísticas da memória imediata envolvida em tal tipo de tarefa. Os resultados deste trabalho serviram para elaborar a tese de livre-docência que apresentei em 1976. Com a ajuda dos alunos, efetuamos pesquisas no campo dos acidentes de trabalho na indústria de calçados em Franca e na indústria têxtil em Santo André. Estes trabalhos de campo foram interrompidos em 1974 como conseqüência da primeira crise do petróleo, que provocou um aumento muito sensível do preço da gasolina, reduzindo a possibilidade de viajar. Durante o ano de 1975, a Faculdade de Filosofia foi incorporada à Universidade de São Paulo e, a partir daí, a nave começou ganhar alturas seguras e confortáveis para um longo cruzeiro que nos conduz até os dias atuais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Fev 2009
  • Data do Fascículo
    Ago 2005
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