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Integridade familiar: especificidades em idosos pobres

Integridad familiar en la vejez: características de los ancianos pobres

Resumos

A construção da integridade familiar constitui um desafio desenvolvimental normativo para o idoso, influenciado por fatores dos sistemas familiar e social. Este estudo teve por objetivo analisar as trajetórias de vida de pessoas idosas que viveram pobres ao longo da vida e como elas influenciaram as suas rotas no sentido da integridade ou da desconexão familiar. Foi aplicada uma entrevista semiestruturada, centrada na integridade familiar, a 12 participantes com mais de 64 anos (seis de cada sexo), sendo que três em cada grupo foram considerados como vivendo situação de integridade ou desconexão familiar. Os principais resultados sugerem que algumas circunstâncias comuns na vida de famílias pobres, tais como: conflito e/ou distância familiar, violência doméstica e/migração, múltiplas doenças crônicas severas, emprego temporário e baixos rendimentos, podem dificultar a conquista da integridade familiar e promover a desconexão familiar. Contudo, os participantes que reenquadraram os acontecimentos negativos de forma positiva evoluíram no sentido da integridade familiar.

envelhecimento; relações familiares; desenvolvimento humano


El establecimiento de la integridad familiar constituye un desafío para el desarrollo integral del anciano, además está fuertemente influenciado por factores del sistema familiar y sociales. Este estudio analiza las trayectorias de vida de personas ancianas que vivieron en la pobreza a lo largo de sus vidas y como estas se vieron influenciadas en el sentido de la integridad o desconection familiar. Fue aplicada una entrevista enfocada en la unidad familiar a 12 participantes con más de 64 años (seis de cada sexo), tres en cada grupo fueron considerados como situación de integridad familiar o desconexión. Los principales resultados sugieren que existen algunas circunstancias comunes en la vida de familias pobres tales como: conflicto y/o distancia familiar, violencia doméstica, emigración/inmigración, múltiples enfermedades crónicas severas, empleos temporales y bajos rendimientos que pueden dificultar la conquista de la integridad familiar y promover la desunión familiar. Sin embargo, los participantes que superaron los acontecimientos negativos de forma positiva (circunstancias que permiten el desarrollo) siendo evaluados enfocados a la unidad familiar.

envejecimiento; relaciones familiares; desarrollo humano; pobreza


Constructing family integrity is a normal developmental challenge for older people, which is influenced by the family and social systems. This study examined the life trajectories of older people who lived in poverty throughout their lives and how they evolve towards family integrity or family disconnection. A semi-structured interview on family integrity was administered to 12 participants aged over 64 years old (six of each sex), three in each group were considered as living family integrity situation or disconnection. The main findings suggested that some common circumstances of poverty in people's lives namely: family conflict and/or distance, domestic violence, (e)migration, multiple severe chronic diseases, informal work, low income, may prevent family integrity and promote family disconnection/alienation. However, participants who were able to reframe negative events as positive tended to achieve family integrity.

aging; family relations; human development; poverty


ARTIGO

Integridade familiar: especificidades em idosos pobres1 1 As autoras agradecem às Instituições de Apoio à Terceira Idade e a todos os utentes e colaboradores implicados na recolha de dados deste estudo. Apoio: Fundação para a Ciência e Tecnologia [SFRH / BD / 45318 / 2008].

Integridad familiar en la vejez: características de los ancianos pobres

Filipa Daniela Marques; Liliana Sousa

Universidade de Aveiro, Aveiro, Portugal

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Filipa D. Marques Universidade de Aveiro Departamento de Ciências da Saúde CEP 3810-193. Aveiro, Portugal E-mail: filipa.marques@ua.pt

RESUMO

A construção da integridade familiar constitui um desafio desenvolvimental normativo para o idoso, influenciado por fatores dos sistemas familiar e social. Este estudo teve por objetivo analisar as trajetórias de vida de pessoas idosas que viveram pobres ao longo da vida e como elas influenciaram as suas rotas no sentido da integridade ou da desconexão familiar. Foi aplicada uma entrevista semiestruturada, centrada na integridade familiar, a 12 participantes com mais de 64 anos (seis de cada sexo), sendo que três em cada grupo foram considerados como vivendo situação de integridade ou desconexão familiar. Os principais resultados sugerem que algumas circunstâncias comuns na vida de famílias pobres, tais como: conflito e/ou distância familiar, violência doméstica e/migração, múltiplas doenças crônicas severas, emprego temporário e baixos rendimentos, podem dificultar a conquista da integridade familiar e promover a desconexão familiar. Contudo, os participantes que reenquadraram os acontecimentos negativos de forma positiva evoluíram no sentido da integridade familiar.

Palavras-chave: envelhecimento, relações familiares, desenvolvimento humano, pobreza

RESUMEN

El establecimiento de la integridad familiar constituye un desafío para el desarrollo integral del anciano, además está fuertemente influenciado por factores del sistema familiar y sociales. Este estudio analiza las trayectorias de vida de personas ancianas que vivieron en la pobreza a lo largo de sus vidas y como estas se vieron influenciadas en el sentido de la integridad o desconection familiar. Fue aplicada una entrevista enfocada en la unidad familiar a 12 participantes con más de 64 años (seis de cada sexo), tres en cada grupo fueron considerados como situación de integridad familiar o desconexión. Los principales resultados sugieren que existen algunas circunstancias comunes en la vida de familias pobres tales como: conflicto y/o distancia familiar, violencia doméstica, emigración/inmigración, múltiples enfermedades crónicas severas, empleos temporales y bajos rendimientos que pueden dificultar la conquista de la integridad familiar y promover la desunión familiar. Sin embargo, los participantes que superaron los acontecimientos negativos de forma positiva (circunstancias que permiten el desarrollo) siendo evaluados enfocados a la unidad familiar.

Palabras clave: envejecimiento, relaciones familiares, desarrollo humano, pobreza

A revisão e a integração da vida constituem tarefas centrais de desenvolvimento na velhice (Erikson, 1950; Lewis & Butler, 1974; Walsh, 2005), pois estendem as reminiscências dos idosos facilitando a aceitação da vida e da morte. King e Wynne (2004) inspirados pelo conceito de integridade do ego (Erik Erikson) apresentam a "integridade familiar" como um desafio desenvolvimental normativo para idosos, influenciado por fatores do sistema familiar. A integridade do ego ganha ascendência na velhice à medida que o idoso se confronta com mudanças no papel social, vulnerabilidade física e perdas. O processo de construção da integridade inicia-se em estádios prévios, mas só pode ser concluído na velhice, que constitui um período de "grande generatividade" (Erikson, Erikson, & Kivnick, 1986). Nesta fase o idoso assume o papel de "guardião de significados" integrando as tradições do passado e, assim, providenciando ligações familiares e sociais entre o passado, presente e futuro (Vaillant, 2002). A integridade familiar envolve processos em diferentes níveis (King & Wynne, 2004): individual, baseado na experiência do idoso de in/satisfação com o contexto familiar; familiar, centrado nas competências familiares que facilitam o sentido de pertença e ligação; social, envolvendo a transmissão de valores e rituais com impato nos outros níveis.

A capacidade do idoso de alcançar a integridade familiar é influenciada por três competências do sistema familiar (King & Wynne, 2004): transformação das relações familiares, para responder aos desafios dos ciclos de vida dos membros da família; resolução ou aceitação de perdas ou conflitos; criação de sentido e legado através da partilha de histórias e rituais familiares. Os autores distinguem três cursos possíveis neste processo: (a) integridade - é o resultado positivo, em que o idoso atinge um sentimento de ligação, significado e continuidade na família multigeracional; (b) desconexão - descreve famílias com escassez de comunicação levando ao isolamento; (c) alienação - refere-se à ausência de identidade familiar. King e Wynne (2004) e Sousa, Silva, Marques e Santos (2009) salientaram a necessidade de estudar a integridade familiar em diversos contextos, especialmente porque alguns grupos sociais e culturais podem enfrentar mais dificuldade para construir ligações significativas na família multigeracional. Assim, este estudo analisa as trajetórias de vida de pessoas pobres ao longo da vida e como evoluíram em direção à integridade ou desconexão/alienação familiar (neste estudo não se distinguem estes dois processos). A pobreza, aqui, refere-se à classe trabalhadora com baixa escolaridade e instabilidade econômica, que a torna mais vulnerável (Kliman & Madsen, 2005).

Construção da Integridade versus Desconexão/Alienação Familiar

Sousa et al. (2009) aprofundaram os estudos de King e Wynne (2004), analisando os processos envolvidos na construção da integridade familiar. A integridade familiar é descrita como a sensação de paz e satisfação com as relações familiares, baseada em: aceitação e/ou satisfação com o passado, presente e futuro das relações familiares; proximidade emocional com os elementos da família multigeracional, mesmo que geograficamente distantes e/ou tenham vivido alguns conflitos. Os idosos no trajeto de integridade apresentam uma identidade reajustada e apoiada numa filosofia de vida que reflete sabedoria e permite a aceitação de si e dos outros. Além disso, apresentam projetos de vida para um futuro próximo que permite a reorganização do seu sentido de valor e utilidade.

A desconexão/alienação familiar descreve-se como um sentimento de insatisfação com as relações familiares e com a vida individual. As relações familiares caracterizam-se pela distância emocional: desinteresse, apatia e indisponibilidade. Os idosos apresentam uma identidade em reajustamento, mostrando dificuldade em aceitar a si e aos outros, e não apresentam uma filosofia de vida (dificulta a integração dos acontecimentos de vida). Os seus projetos de vida centram-se num passado não resolvido, tornando difícil a dedicação ao presente e futuro, facilitando um sentimento de inutilidade (Sousa et al., 2009).

Transformação das Relações Familiares

A construção da integridade familiar envolve o desenvolvimento do sentido de mutualidade (manter um compromisso de longo termo com as relações familiares e reinventá-las face às transições do ciclo de vida) e maturidade filial (os filhos adultos desenvolvem-se ao cuidar e ajudar os pais idosos, enquanto estes pais recíprocamente se desenvolvem tornando-se capazes de aceitar a ajuda). Neste contexto, as relações familiares apresentam continuidade e evoluem com maturidade. Esta transformação depende da capacidade da família renegociar as hierarquias intergeracionais de poder e desenvolver relações adulto-adulto entre pais idosos e filhos adultos. A desconexão/alienação familiar caracteriza-se pela ausência de mutualidade e maturidade filial (por exemplo, o idoso apoia os filhos e quer receber apoio deles, mas não quer pedir, porque isto lhe cria sentimentos de inferioridade). Isto é, os membros da família fixam-se em antigos papéis e padrões de relação, já pouco adequados às necessidades do ciclo de vida, promovendo conflitos e ruturas nas relações, que levam à descontinuidade e fragilização dos laços (Sousa et al., 2009).

Resolução/Aceitação de Conflitos e Perdas

A construção da integridade familiar implica que o idoso: aceite ou resolva conflitos do passado e presente, desenvolva o sentido de "tarefa acabada" com os membros da família e resolva ressentimentos. As pessoas idosas no caminho da integridade referem acontecimentos (passados e/ou presentes) desagradáveis, mas descrevem-nos como irrelevantes ("pequenas coisas" ou "acontecimentos sem importância"). O caminho de desconexão caracteriza-se pela negação de problemas, evitamento da confrontação e ausência de integração das experiências passadas. Neste caso, os idosos revelam sentimentos de "tarefa inacabada" com membros da família (há assuntos pendentes), não aceitam conflitos (sentem-se ansiosos) e apresentam ressentimentos (culpa e remorsos por erros passados) (King & Wynne, 2004; Sousa et al., 2009).

Criação de Sentido e Legado

A integridade familiar envolve a integração coerente da história de vida; para que o idoso mantenha sentido de pertença à família multigeracional, em geral ocorre através de: relato de histórias familiares partilha de interesses e valores e envolvimento em atividades e rituais familiares. Este processo beneficia as gerações mais novas, pois herdam um legado familiar que as ajudará no seu processo de construção e ajustamento da identidade. Os idosos neste trajeto demonstram satisfação com o legado transmitido, sentem que fizeram o "seu dever" contribuindo com as gerações vindouras, sabem que são respeitados e têm um lugar significativo na vida familiar. A desconexão familiar caracteriza-se pelo sentimento de ausência de alguém a quem passar o legado ou que valorize a transmissão. O idoso sente-se frustrado e desvalorizado porque o seu legado não é recebido e/ou desejado, considerando ter um lugar pouco respeitado e sem significado na família (King & Wynne, 2004; Sousa et al., 2009).

Processos Associados à Construção da Integridade Familiar

A construção da integridade familiar parece ancorada em três processos interrelacionados, desenvolvidos pelo idoso, com o apoio da família: a) perdão (de si e do outro), que envolve a redução de respostas negativas e aumento das positivas; b) aceitação, compreendida como atitude positiva em relação a si e aos outros; c) valorização, isto é, sentido de ter vivido uma vida significativa (Sousa et al., 2009).

Os recursos econômicos e a posição social influenciam as respostas familiares a acontecimentos relevantes, pois determinam escolhas e recursos para lidar com desafios (esperados e inesperados) da vida familiar (Kliman & Madsen, 2005). Ser pobre não significa inevitavelmente ser disfuncional, contudo a pobreza é um fator que fragiliza pessoas e famílias (Hines, 1989), pois um conjunto de aspetos (tais como, problemas de saúde, privação econômica e limitado acesso a recursos) pode interagir levando a família/indivíduos a padrões problemáticos.

Famílias/indivíduos que vivem pobreza de longa duração tendem a apresentar dificuldades em diversas áreas (Sousa, 2005): educação (baixos níveis académicos); emprego (desemprego, emprego temporário ou informal); habitação (precariedade, ausência de infraestruturas básicas, sobrelotação); relações familiares (conflito, distância e violência); relações sociais (conflitos, solidão, exclusão); rendimento (baixo ou escasso, endividamento); saúde (incapacidade, doenças crónicas, alcoolismo e abuso de drogas). Esta rede de problemas traduz-se numa vida caracterizada por: (a) desafios múltiplos e de longa duração (como violência ou falta de recursos), (b) crise crónica que simboliza o sofrimento da família (há sempre mais algum problema a ocorrer), (c) alienação que envolve falta de confiança e empatia, (d) incapacidade aprendida e baixa autoestima que reflete a incapacidade para identificar as próprias competências e se traduz em passividade que resulta dos sentimentos de não ter valor (Kagan & Schlosberg, 1989; Sousa, Ribeiro, & Rodrigues, 2007; Summers, McMann, & Fuger, 1997) Contudo, estas famílias são também são resilientes pois sobrevivem em condições muito difíceis e conseguem adaptar-se (Madsen, 1999). Este estudo examina aspetos da trajetória de vida de idosos pobres visando compreender a influência da pobreza no processo de construção da integridade familiar versus desconexão/alienação.

Método

Participantes

A amostra envolve 12 participantes de classe social baixa, com idade entre os 65 e os 89 anos (Tabela 1), sendo seis de cada sexo. Os critérios de seleção de participantes foram: (a) ter mais de 64 anos, (b) estar vivendo na comunidade, (c) pertencer à classe social baixa, (d) apresentar discurso coerente e orientado no espaço e tempo. Também foi solicitado que a amostra definida para o estudo deveria compreender 12 pessoas (seis homens e seis mulheres; sendo três em situação de integridade e três em desconexão/alienação familiar). Vale salientar que este número considerou a experiência prévia das autoras na investigação deste tópico com os mesmos instrumentos, que indica a saturação dos dados a partir de 10 participantes.

Instrumentos

O instrumento inclui uma entrevista semiestruturada de análise do processo de construção da integridade familiar (versus desconexão/alienação) (King & Wynne, 2004; Sousa et al., 2009). Para assegurar a organização de seleção de participantes (seis homens e seis mulheres; sendo três em situação de integridade e três em desconexão/alienação familiar), os profissionais eram solicitados a preencher um questionário com dados (mas sem identificação) sobre pessoas idosas que conhecessem e tivessem contato regular com: (a) dados sócio-demográficos (idade, gênero e constituição do agregado familiar), (b) juízo sobre a orientação da pessoa (esta pessoa tem um discurso coerente e está orientada no espaço e tempo?), (c) situação socioeconômica (Índice de Graffar e uma questão - esta pessoa foi pobre durante toda a vida?), (d) apreciação do processo de integridade familiar (checklist). As profissionais identificaram os participantes com os critérios de inclusão estabelecidos (tinham acesso aos dados sociodemográficos dos participantes, avaliação do seu estado mental e orientação espácio-temporal).

O Índice de Graffar (Amaro, 1990/1996) é uma classificação internacional que usa cinco critérios (habilitações académicas, profissão, rendimento, composição do agregado familiar e caraterísticas do bairro de residência) para definir a classe socioeconômica. A soma dos pontos obtidos nos cinco critérios indica a classe; neste estudo selecionaram-se as pessoas da classe baixa que devem perfazer de 22 a 25 pontos.

Para obter um indicador de construção da integridade familiar foi organizada uma checklist baseada em estudos prévios (King & Wynne, 2004; Sousa et al., 2009), com cinco questões: (1) Esta pessoa tem um discurso centrado no passado? (2) Repete com frequência uma história ou acontecimento, aparentemente pouco importante? (3) Tem tendência para ser arrogante e/ou desvalorizar os outros? (4) Atribui a culpa por conflitos a outros? (5) É aborrecido/a? Cada questão é pontuada com 1 (sim) ou 0 (não). As pontuações mais elevadas sugerem desconexão. Foram selecionados os participantes com pontuações extremas: 1-2 (sugerindo integridade) e 4-5 (indicando desconexão/alienação). A checklist foi usada apenas como indicador de seleção dos participantes, pois a classificação foi completada após a análise das entrevistas.

Procedimento

Coleta de dados. Os participantes foram identificados por meio de instituições comunitárias. Foi solicitada autorização a quatro instituições para realizar o estudo, pedindo a indicação de um profissional para mediar o contato entre investigadores e potenciais participantes. Todas as instituições concordaram. Os profissionais indicados (assistentes sociais do sexo feminino) foram contactados pela primeira autora para explicar o objetivo do estudo e os critérios de inclusão dos participantes. As assistentes sociais selecionaram potenciais participantes, preencheram o questionário e providenciaram a informação aos investigadores para assegurarem os critérios de inclusão e a composição da amostra. Depois os investigadores informaram os profissionais sobre os participantes que cumpriam os critérios e com quem gostariam de contatar. As assistentes sociais abordaram esses participantes, explicaram os objetivos do projeto, colaboração requerida e pediram permissão para os investigadores os contactarem. Todos concordaram em colaborar e a primeira autora combinou uma reunião onde informou sobre os objetivos do estudo, colaboração solicitada, razões porque foi escolhido e garantias de confidencialidade e anonimato. Todos acederam em participar e assinaram o consentimento livre e informado. Por fim, procedeu-se à recolha dos dados.

Análise dos dados. As entrevistas (com duração entre 24 e 53 minutos) foram gravadas, transcritas e submetidas à análise de conteúdo por dois juízes independentes (as autoras), com suporte do software N-Vivo 7.

Os juízes começaram por classificar os participantes na trajetória da integridade familiar e desconexão/alienação familiar, utilizando o seguinte procedimento: leram as entrevistas de forma independente e classificaram os participantes em integridade ou desconexão/alienação familiar, tendo King e Wynne (2004) e Sousa et al. (2009) como referenciais teóricos; depois se reuniram para confrontar as classificações tendo verificado total concordância.

A fase seguinte de análise procurou identificar os acontecimentos das trajetórias de vida de pobreza dos participantes com influência na construção da integridade familiar versus desconexão/alienação. Considerou-se literatura sobre famílias pobres (Sousa, 2005), identificando acontecimentos mencionados pelos participantes nas áreas: saúde, emprego, rendimento, relações sociais e familiares, educação e habitação. O processo foi similar ao anterior: cada juiz explorou as entrevistas de forma independente, procurando os acontecimentos de vida mencionados; depois se reuniram e, através de um processo de sucessivo refinamento, chegaram a quatro áreas mencionadas pelos participantes: relações familiares, saúde, emprego e rendimento (Tabela 2).

Por fim, os juízes analisaram cada um desses acontecimentos de vida e a forma como influenciavam a construção da integridade versus desconexão/alienação familiar, considerando os domínios definidos por King e Wynne (2004) e aprofundados por Sousa et al. Novamente, cada juiz fez a análise de forma individual e depois se reuniram para confrontar a reconstituição do processo e o refinaram até alcançar consenso.

Considerações Éticas

Em Portugal não existem comités de ética nesta área (somente na saúde), por isso procedeu-se segundo os regimentos éticos adaptados da Declaração de Helsinque. O número de 12 inquiridos mostrou ser adequado, pois correspondeu à saturação de dados (não surgem nos dados novas propriedades e dimensões, e a análise responde por grande parte da possível variabilidade).

Resultados

Identificaram-se quatro áreas de vida mencionadas pelos participantes como tendo influência na construção da integridade familiar versus desconexão/alienação: relações familiares, saúde, emprego e rendimento (Tabela 2).

Relações Familiares: Conflito e/ou Distância

O conflito familiar é referido por cinco participantes: quatro em desconexão (Berta, Cristina, Daniel e Ernesto) e um em integridade familiar (Maria). Aqueles em desconexão referem o desligamento entre pais (participantes) e filhos e/ou outros familiares, que deixaram de os visitar e/ou de participar em eventos familiares, atribuindo culpa à outra parte. Por exemplo, Daniel sente-se triste com as relações familiares, pois não vê o filho há anos ("não visita o pai"); acredita que o filho devia interessar-se por estar com o pai ("sabe onde vivo e nunca vem cá"). Considera que "lutou muito para criar o filho", pois tinha muitas dificuldades econômicas. Salienta a obrigação social dos filhos cuidarem, visitarem e mostrarem interesse pelos pais idosos. Daniel gostaria de ter uma boa relação com o filho, que lhe parece pouco viável, já que o filho "nunca aparece". Coloca a responsabilidade pela resolução do conflito na outra parte (filho), promovendo o "desentendimento mútuo" que resulta em insatisfação com as relações familiares. Daniel está classificado em desconexão familiar, no entanto parece tentar ultrapassar esta distância do filho através de uma filosofia de vida renovada: "viver um dia de cada vez", valorizando o que tem de bom na vida ("sou saudável") e investindo nas relações com a filha e amigos ("sinto-me bem com os meus amigos").

Maria, classificada em integridade familiar, refere conflitos com o enteado (filho da madrasta) que considera como "irmão verdadeiro: foi criado comigo". A relação foi quebrada quando ele disse: "tu não és da minha família". Maria gere esta rutura através da sua filosofia de vida (evidente em expressões como "não valorizo a situação, não me preocupo"), que ajudam a desfocar a relação e a perdoar ao "irmão"; assim, este evento não inunda a sua vida, nem pontua todas as experiências ("continuo a sentir-me feliz").

Relações Familiares: Violência Doméstica

A violência doméstica foi referida por dois participantes, ambos classificados em desconexão familiar (Ana e Fernando). Ana foi vítima de abuso físico e verbal pelo marido alcoólico, que a deixou desfigurada ("sem dentes na boca"). O seu relato sugere que desenvolveu uma identidade de vítima (não atingiu a de sobrevivente) que se estende a outras relações e parece descrever a relação atual com os filhos: "Foi uma vida de amargura, morreu o homem fiquei na amargura dos filhos (...). Passam pela rua e nem perguntam pela mãe (...). O marido com a pinga deixou-me sem dentes, faleceu há 40 anos. Mas sinto a falta dele porque tinha a eira dele".

Fernando foi agressor e alcoólico. Na sua narrativa revela arrependimento, assumindo culpa pelo seu comportamento e confessando-se incapaz de se perdoar, apesar de (aparentemente) ter sido perdoado pela filha, que "respeita e estima o pai". Fernando afirma que está agora envolvido em melhorar as relações com a sua família: decidiu ir viver com a filha para evitar "perder-se na bebida"; procura ser mais amigo e próximo da filha para compensá-la pelos "velhos tempos"; afirma estar iniciando uma nova vida para compensar e acalmar as desilusões que provocou no passado. Está classificado em desconexão familiar, contudo o seu relato sugere uma trajetória de transição para a integridade, um processo que parece dependente do perdão de si: "O que eu tentei foi vir para casa da minha filha e esquecer o passado, como se fosse começar uma vida nova...Tenho de resolver as coisas comigo e com a minha consciência..."

Relações Familiares: (E)migração

As migrações são fator de afastamento familiar, em particular perante recursos escassos que impedem contatos e visitas frequentes. A mobilidade geográfica é caraterística das sociedades modernas e tem sido opção nas famílias pobres como meio para alcançar melhores empregos e condições de vida.

A emigração de filhos (que procuram oportunidades de emprego no estrangeiro) é referida por Henrique, Joana e Lurdes (todos em integridade familiar). Henrique tem tres filhos, sendo dois emigrados. Refere que os contatos com os filhos que "ama" e lhe telefonam todas as semanas o fazem acreditar que vivem perto ("como se vivêssemos na mesma rua"). A história de Joana e Lurdes é similar: a distância geográfica é compensada pela proximidade emocional. Estes participantes apresentam uma filosofia de vida que facilita e reforça a integração da distância geográfica; por exemplo Joana refere a importância de respeitar a vida escolhida pelos filhos ("é a vida deles").

Saúde: Múltiplas Doenças Crônicas

Os problemas de saúde crónicos são frequentes em famílias pobres, pois as condições precárias de habitação e a pouca atenção aos cuidados de saúde (associada aos escassos recursos econômicos) tendem a promover a precocidade de problemas de saúde em diversos elementos da família (Sousa, 2005). Estes problemas foram relatados por Ana, Cristina e Fernando (desconexão) e Gomes, Joana, Maria, Lurdes e Henrique (integridade). Os dados sugerem que circunstâncias similares podem evoluir para integridade ou desconexão. Cristina (desconexão) e Maria (integridade) relatam histórias de vida pontuadas pela morte precoce de familiares próximos (devido a doenças) e pela sua saúde frágil atual (doenças crónicas do sistema respiratório e músculo-esquelético).

A mãe da Cristina morreu quando teve o segundo filho, que também morreu pouco tempo depois. O pai voltou a casar e morreu quando Cristina tinha 11 anos e a madrasta ("uma segunda mãe") morreu poucos anos depois. Sente que desconhece as suas origens ("não sei quem é a minha família"), pois apenas conhece uma "prima" (filha de um irmão da segunda mulher do pai) com quem gostaria de manter contato, mas que a despreza ("diz que não sou prima de sangue"). Cristina foca o discurso na inexistência de uma família ("não tenho ninguém"), pois durante a vida perdeu todos os familiares próximos, nunca casou, nem teve filhos; estas circunstâncias justificam a sua angústia e insatisfação com a vida ("como poderia sentir-me feliz?").

Maria relata uma história de vida similar, mas evolui para integridade familiar. Perdeu a mãe aos 10 anos, por isso teve de assumir a educação e os cuidados das duas irmãs (na altura com 22 meses e quatro anos). Começou a trabalhar na adolescência para assegurar o seu sustento e das suas irmãs ("fui servir"). Descreve o pai como pessoa ausente, pois tinha de trabalhar muito; o pai voltou a casar, mas a madrasta não trabalhava e obrigava Maria a ganhar dinheiro para a família: "A minha madrasta só queria passear e disse sempre que se eu quisesse alguma coisa tinha de ir ganhá-lo e assim fiz: saí de casa, fui servir! (...) Sinto-me muito bem com as minhas irmãs. (...) Toda a gente dizia que a minha mãe era muito boa mulher".

Maria está na rota da integridade familiar, provavelmente porque centra os aspetos positivos da vida (em especial, a proximidade afetiva das irmãs). Demonstra capacidade de adaptação à vida, mesmo nos momentos mais difíceis, procurando apoio na memória da mãe ("era uma boa mulher") para construir a sua identidade.

Os participantes também referem as suas atuais doenças crónicas, que embora comuns na velhice, emergiram precocemente. Envolve participantes classificados em integridade (Ana e Cristina) e desconexão (Joana, Lurdes e Maria). Estas doenças são descritas como obstáculos à promoção das relações familiares e sociais e limitativas da resolução de conflitos. Cristina tem uma doença osteo-articular há anos que dificulta deslocações à casa de familiares ("as pernas não me deixam") e a ativação de relações sociais ("a minha vida é só do centro de dia para casa"). Considera a doença como o obstáculo à resolução do conflito com a prima ("não posso ir falar com ela porque não consigo andar"), tendo de aguardar pela iniciativa da prima. Além disso, as dificuldades econômicas impedem-na de resolver ou agilizar os problemas de saúde: "devia usar uma cinta para a coluna e não uso, não tenho dinheiro". Lurdes (integridade) tem uma doença similar a Cristina; contudo enfrenta-a com tranquilidade, pois sente a disponibilidade familiar para ajudá-la: "Fico menos satisfeita por não ter saúde... mas não é difícil pedir ajuda porque se eu pedir eles dão, ouvem-me e fazem-me as vontades... Os meus filhos são meus amigos"!

Henrique, classificado como em situação de integridade, tem um neto com uma doença crônica incapacitante severa e gostaria de ajudá-lo e à filha, que também vive em condições econômicas precárias. Reconhece que com melhores recursos econômicos ajudaria mais, mas sente-se satisfeito por contribuir como pode.

Emprego: Temporário e Informal

Todos os participantes desempenharam empregos precários ao longo da vida, mas somente sete (quatro em integridade e três em desconexão) relatam histórias sobre o impato dessas experiências na vida familiar. Referem situações de emprego precário (não integrado no mercado formal de trabalho), muitas vezes iniciado na infância (trabalho infantil para complementar escassos recursos familiares) e continuado após a reforma (trabalho sénior para complementar baixas pensões). O emprego precário é mencionado como fator de afastamento familiar e da educação dos filhos, pois os horários eram alargados e variaveis consoante as necessidades do patrão. Também eram empregos mal pagos, exigindo a combinação com "biscates" para aumentar os rendimentos. Contudo, quatro participantes (Gomes, Henrique, Lurdes e Maria) evoluem para a integridade familiar. Por exemplo, Gomes refere que fazia muitas horas extraordinárias, tornando-se ausente da educação do filho ("o meu filho viveu comigo realmente, por pouco tempo"). Como a sua mulher morreu quando o filho era criança, foi a avó paterna e uma tia que o criaram. Atualmente, o filho não visita o pai, mas Gomes considera que foi o "preço a pagar" para conseguir dinheiro suficiente para lhe dar uma boa educação e sente-se orgulhoso por ser reconhecido como um "bom profissional".

Outros aspetos merecem atenção: Maria começou a trabalhar aos 10 anos, após a morte da mãe, a "servir em casa de patrões"; os seus esforços, sacrifícios e adversidades foram compensados, porque desenvolveu laços fortes com os patrões que considera família; Lurdes também começou a servir em criança e desenvolveu boa relação com a família para a qual trabalhou, por isso deixaram-lhe em herança um terreno, que agora pode deixar aos seus herdeiros.

Os participantes classificados em desconexão (Berta, Daniel e Fernando) sentem-se "ofendidos" pelo afastamento dos filhos. Por exemplo, Daniel não tem contato com o filho, o que considera humilhante: "não quer saber se o pai está vivo". Afirma que se sacrificou para criar o filho e, agora (na velhice), continua a trabalhar ("faço o que posso") para equilibrar os escassos recursos econômicos; prefere viver assim do que pedir ajuda ao filho ("vou lutar até onde puder"): descreve-se como um "batalhador", autônomo e orgulhoso.

Baixos Rendimentos

Os baixos rendimentos, comuns a todos os participantes, apenas são usados nas narrativas daqueles em desconexão familiar. Tendem a justificar ou atribuir os conflitos familiares às dificuldades econômicas, revelando sentimentos de inutilidade e desvalorização por serem pobres. Revelam sentir-se tristes pois "nada têm para deixar", o que consideram sinónimo de "não ter construído nada na vida e de não ter contribuído para as próximas gerações". Os participantes classificados na integridade familiar não enfatizam este tópico: apesar das dificuldades econômicas ao longo da vida sentem-se satisfeitos e orgulhosos com o que construíram (pode ser ter uma casa, ter transmitido bons valores ou ter feito o melhor que puderam) e não justificam falhas e/ou conflitos com dificuldades econômicas.

Discussão

A integridade familiar é o resultado do desenvolvimento de uma pessoa idosa, que depende do processo de revisão e integração da vida familiar e individual. A literatura sobre famílias/pessoas pobres sugere que terão tendência para evoluir no sentido da desconexão familiar. Contudo, também sublinha que famílias/pessoas pobres são resilientes, pois sobrevivem durante anos com rendimentos escassos e instáveis, vivendo em habitações precárias e enfrentando crises persistentes (Madsen, 1999; Mulin & Arce, 2008). Gergen e Gergen (2000, p. 281) afirmam que "a história não é o destino". Os resultados parecem apoiar esta afirmação, pois mostram que pessoas com histórias similares de vida evoluem umas para desconexão, outras para integridade familiar. Assim, torna-se relevante conhecer os fatores que facilitam ou promovem cada caminho.

As famílias pobres revelam forte sentido de unidade (Sousa et al., 2007), apesar de ameaçado pelo confronto constante com necessidades econômicas, facilitadoras de conflitos. A transformação das relações familiares com continuidade e maturidade é desafiada por eventos como: emprego precário (horários intensos e irregulares fragilizam a ligação aos filhos), emigração (distância geográfica), conflitos (rutura de relações) e doenças crónicas (dificuldade em ativar relações). O emprego precário é descrito por participantes em integridade e desconexão familiar como um fator que promove a ausência da vida familiar, perturbando em particular as relações com os filhos. Os idosos em desconexão tendem a culpar os filhos por se terem afastado do seu pai/mãe, considerando que têm obrigação de cuidar dos pais e reconhecer os esforços (sacrifícios) que fizeram para educá-los num contexto de escassos recursos. Aqueles em situação de integridade familiar lamentam o afastamento dos filhos, mas assumem que foi um "preço a pagar" para lhes dar educação.

Os múltiplos problemas severos de saúde do passado emergem como um fator de perda de elementos da família (incluindo morte precoce de pais e irmãos). Aqueles em desconexão familiar consideram que esses acontecimentos os fizeram perder identidade (desconhecer as origens e não ter família); aqueles em integridade familiar, com histórias similares, focam as boas memórias dos familiares falecidos e a proximidade afetiva com os que continuam vivos. Webster (2003) sugere que recordar memórias autobiográficas (inclui evocar origens familiares) reforça a identidade, preservando-a. Se o indivíduo (por perda precoce de familiares) não recorda as origens durante a revisão de vida, isto compromete a sua identidade, pois não consegue encontrar um sentimento de identidade e continuidade familiar, com um passado, presente e um propósito de vida futura.

A emigração apenas é mencionada por pessoas em integridade familiar e descrita como transformando as relações sem afetar a sua qualidade e intensidade. A emigração coloca o desafio de evitar a rutura relacional familiar, pois separa geograficamente parentes próximos (Souza, 2006/2007). Nas famílias em integridade a emigração fortalece os laços, principalmente porque os elementos da família assumem explicitamente o compromisso de manter a ligação e a união familiar, enriquecendo o sentido de continuidade e identidade (Hernandez & McGoldrick, 1999).

A violência doméstica é referida por dois participantes em desconexão familiar: um agressor e uma vítima. A vítima parece ter incorporado essa identidade, generalizando-a a outras relações (por exemplo, vítima do abandono dos filhos). É comum que pessoas violentadas enfrentem uma crise de identidade, tendendo a assumir uma identidade de vítima (Barros & Passos, 2002). O agressor está no processo de se tentar perdoar, que pode constituir um passo no sentido da integridade familiar. Sousa et al. (2009) explicam que perdoar-se é também aceitar-se e viver com tudo de bom e ruim que se fez na vida, abrindo o caminho da integridade familiar.

Os conflitos familiares são mais referidos por participantes em desconexão, tendendo a levar à rutura de relações familiares; esses idosos tendem a responsabilizar a outra parte pelo conflito, o que parece pautar toda a sua vida. As pessoas em integridade referem que os conflitos deixam dor, mas confinada àquela relação. Os participantes em desconexão/alienação parecem reviver constantemente a amargura, isto é viver uma reminiscência obsessiva (Wang, Hsu, & Cheng, 2005; Watt & Cappeliez, 2000) através da ruminação excessiva de acontecimentos que refletem falhas na integração de experiências problemáticas do passado e alertam para conflitos não aceites.

Essa resolução/aceitação de conflitos pode ser dificultada por pressões quotidianas, exponenciais nas famílias pobres devido à escassez econômica (Sousa & Rodrigues, 2008). Exaustos, tendem a interagir com mais intolerância e irritabilidade, o que aumenta o risco de discussões e instabilidade e diminui a capacidade de resolver problemas. Dificuldades econômicas, conflitos familiares e alterações na estrutura familiar podem levar a família a mobilizar grande quantidade de tensão e restringir a sua disponibilidade (Zamberlan, Freitas, & Fukamori, 1999). A não-aceitação/resolução de conflitos e perdas pode ser afetada por problemas graves de saúde e conflitos familiares (incluindo a violência doméstica).

Os problemas de saúde atuais dos participantes em desconexão familiar são apresentados como obstáculos à ativação de relações familiares e sociais e à resolução de conflitos uma vez que afetam a mobilidade. Os participantes em integridade familiar encaram os problemas de saúde como uma área de confiança no suporte familiar. Os conflitos familiares são aceites ou resolvidos pelos idosos em integridade, enquanto aqueles em desconexão esperam que seja a outra parte a tomar a iniciativa de resolver o problema, sublinhando a sua disponibilidade para promover a reconciliação. As crises sucessivas (Sousa & Rodrigues, 2008) que estas famílias tendem a enfrentar retiram-lhes tempo para resolver problemas, tornando os ressentimentos prolongados.

Nas famílias pobres, pelo menos, o legado material terá probabilidade de ocorrer com insatisfação. Os idosos podem sentir-se frustrados ou inúteis por não terem tido a oportunidade de criar os filhos com mais recursos e por não poderem contribuir economicamente para ajudar filhos e netos. O legado é uma experiência relacional da velhice associada ao sentido de continuidade, preservação no tempo (imortalidade simbólica) e construção da identidade (Sussman, Cates, & Smith, 1970). Os baixos rendimentos são desvalorizados pelas pessoas em integridade que salientam a transmissão de valores e princípios aos descendentes. Também valorizam o trabalho infantil e precário que desempenharam, pois lhes permitiu criar laços com as pessoas para quem trabalharam, que num dos casos lhes deixaram alguma herança material que agora podem transmitir aos seus herdeiros. Assim, os participantes em integridade sentem-se satisfeitos e orgulhosos por, num contexto de escassos recursos econômicos, terem conseguido construir um legado, mesmo que de valores, princípios e educação. Aqueles em desconexão familiar sentem que nada têm para deixar, ou seja, não fizeram qualquer contributo para as gerações vindouras.

A filosofia de vida nas pessoas idosas tem emergido como um fator facilitador ou dificultador da construção da integridade familiar (Sousa et al., 2009). Os participantes deste estudo mencionam filosofias de vida que: (a) facilitam a integridade (tais como, "não valorizar a situação", "respeitar as escolhas dos outros"); (b) promovem a desconexão (por exemplo, "vou lutar sozinho enquanto puder, não vou pedir ajuda"); (c) facilitam a transição da desconexão para a integridade (i.e., "tentar viver cada dia sem pensar nos problemas, valorizar as coisas boas apesar nas más"). A identificação da filosofia de vida das pessoas idosas (atitude perante a vida que constitui um guião de atitudes e comportamentos) constitui uma potencial estratégia de intervenção, para ajudar pessoas em desconexão a atingirem a integridade. Por estar intrisecamente relacionada com a identidade de cada um, representa o modo como o indivíduo percebe o mundo e age através das relações subjetivas, das comunicações e das experiências pessoais. Identificar uma filosofia de vida menos positiva que promova a desconexão, pode ajudar a reconhecer conflitos internos e comportamentos de ruminação que dificultam a integração positiva dos acontecimentos de vida.

Em termos de limites e perspectivas de pesquisa, neste estudo não se diferenciaram os processos de desconexão e alienação, que descrevem diferentes formas de revisão e integração da vida e, portanto, estudos futuros devem considerar esta diferenciação. Outra limitação deste estudo está no reduzido tamanho da amostra, que deverá ser alargada em estudos posteriores, principalmente para permitir distinguir algumas variáveis como género e ter ou não filhos. Pesquisas futuras poderão relacionar a integridade familiar (versus desconexão e alienação familiar) com a satisfação com a vida e a depressão, pois é comum encontrar pessoas idosas deprimidas e pouco satisfeitas com a vida; conhecer o seu processo de construção da integridade familiar pode ajudar a compreender os seus sentimentos e intervir de forma mais eficaz. Além disso, uma exploração mais profunda das histórias de vida dos participantes pode ajudar a compreender o processo epigenético envolvido na construção da integridade familiar; os dados obtidos reforçam a natureza epigenética, mas não permitem compreender a evolução ao longo da vida. A investigação da integridade familiar deverá alargar-se a outros contextos sociais e culturais, pois se trata de um processo de desenvolvimento normativo, crucial para alcançar um envelhecimento bem sucedido.

Considerações Finais

Uma vida de pobreza envolve fatores de risco que podem facilitar o processo de desconexão ou alienação familiar. No entanto, é possível a evolução no sentido da integridade familiar, em particular se os idosos adotarem filosofias de vida centradas em aspetos positivos da vida e respeitadoras das escolhas dos outros. Isto é, filosofias de vida que impeçam que um problema passe a caracterizar toda a existência. O que parece diferenciar as pessoas é: (a) quem evolui para a integridade familiar revela um sentido de autovalorização (ter vivido uma vida significativa) apesar da pobreza; (b) quem avança para a desconexão ou alienação alimenta sentimentos de insignificância devido à escassez dos recursos econômicos.

A integridade, desconexão e alienação familiar são processos epigenéticos (construídos ao longo da vida), assim a promoção da integridade pode ocorrer durante a vida. No entanto, pode ser promovida na velhice, principalmente apoiando a pessoa idosa a perdoar-se a si e aos outros, e ajudando na reconstrução de filosofias de vida que permitem enquadrar os acontecimentos de vida de formas positivas. As técnicas de revisão e integração da vida (Butler, 1963) parecem adequadas e efetivas nesta linha de intervenção, pois podem ajudar os idosos a integrarem elementos da vida em narrativas significativas e sustentadas. A construção da integridade familiar depende de circunstâncias e experiências de vida, mas, principalmente, associa-se à forma como as pessoas integram e definem os eventos.

Alcançar a integridade familiar é uma conquista possível para qualquer história de vida. As pessoas idosas com uma história de pobreza, escassez de recursos, conflitos familiares, trajetórias irregulares de emprego e doenças crônicas severas podem experienciar dificuldades para atingir a integridade familiar. No entanto, uma filosofia de vida que enfatize as conquistas da vida, em alternativa a salientar os insucessos, pode fazer a diferença.

Souza, R. (2006/2007). Women Portuguese culture and Diaspora: Women from Goa in New Zealand and cultural adaptation. Campus Social, (3-4), 107-122.

Recebido: 19/07/2010

1ª revisão: 18/11/2010

Aceite final: 04/04/2011

Filipa Daniela Marques Gerontóloga e Doutoranda em Gerontologia e Geriatria pela Universidade de Aveiro e Universidade do Porto

Liliana Sousa Psicóloga e Professora Auxiliar da Universidade de Aveiro

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  • Endereço para correspondência:
    Filipa D. Marques
    Universidade de Aveiro
    Departamento de Ciências da Saúde
    CEP 3810-193. Aveiro, Portugal
    E-mail:
  • 1
    As autoras agradecem às Instituições de Apoio à Terceira Idade e a todos os utentes e colaboradores implicados na recolha de dados deste estudo. Apoio: Fundação para a Ciência e Tecnologia [SFRH / BD / 45318 / 2008].
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2012

    Histórico

    • Recebido
      19 Jul 2010
    • Aceito
      04 Abr 2011
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