Acessibilidade / Reportar erro

Reminiscências do propedêutico

SECÇÃO ESPECIAL

Reminiscências do propedêutico1 1 Depoimento apresentado durante a Sessão Solene da Congregação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, realizada em 31/03/2004, para abertura oficial das comemorações dos 40 anos da Faculdade.

Edna Maria Marturano

FMRP - Universidade de São Paulo

A história da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto está sendo recontada hoje. Estão sendo lembrados feitos e conquistas que projetaram o nome desta casa no cenário científico nacional e internacional. A comunidade acadêmica, que coletivamente construiu essa história, recebe a justa homenagem pelo patrimônio acumulado ao longo de 40 anos.

Convidada para a festa, como integrante da primeira turma da faculdade, meu depoimento se reporta ao nascimento e ao primeiro ano de vida da nossa Filô.

A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto surgiu não apenas como resposta a uma demanda da comunidade. Intentava-se uma ação proativa de inovação no ensino superior, fundamentada em dois pilares: uma ideologia democrática de acesso à universidade e a prioridade à formação científica do aluno.

A ideologia democrática se concretizava através da combinação de dois dispositivos: um vestibular que priorizava não os conteúdos escolares, mas as aptidões dos candidatos, e um ciclo propedêutico no qual a instituição se incumbia de oferecer ao aluno os meios de desenvolver um repertório de conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias para prosseguir seu processo formativo dentro da carreira escolhida.

A prioridade à formação científica do aluno, o segundo pilar desse projeto inovador, também se viabilizava por meio de dois mecanismos principais: a configuração do ciclo propedêutico no formato de iniciação científica e a exigência de uma monografia de conclusão, derivada de pesquisa empírica.

O ambicioso projeto original foi aos poucos modificado, à medida que a utopia era confrontada com a realidade. Contudo, os alunos das primeiras turmas se beneficiaram enormemente dessa utopia. No meu caso pessoal, a proposta democrática de acesso abriu a oportunidade única de concorrer a uma vaga em curso de Ciências, sem formação prévia e sem cursinho pré-vestibular. Essa é a primeira lembrança significativa, muito pessoal, que tenho da faculdade.

Uma aproximação circunstancial

Minhas reminiscências primeiras da FFCLRP remontam ao ano de 1963. Aluna do antigo curso clássico do Instituto de Educação Otoniel Motta, tradicional colégio de Ribeirão Preto, eu tinha uma aspiração: seguir o curso de Letras Neo-latinas na Faculdade de Filosofia da USP, a famosa escola da Rua Maria Antonia. Esse era um sonho quase impossível, dada a situação econômica de minha família.

A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto estava criada no papel desde 1959. No início de 1963, foi autorizado o funcionamento provisório de diversos cursos. Para meu desapontamento, nenhum na área de minha predileção: eram todos cursos de Ciências. Mas me incomodava muito a idéia de onerar meus pais com um grande sacrifício para me manter na capital. E entre os cursos autorizados havia a psicologia... Um ramo do conhecimento relacionado às humanidades.

As únicas notícias que eu tinha da Psicologia vinham das aulas de Filosofia. Eu estivera, até então, mergulhada em literatura e lingüística, saboreando os clássicos franceses, traduzindo Cícero e desvendando os meandros da etimologia comparada. Nas horas vagas, dava aulas particulares de Português. Sequer ouvira falar da profissão de Psicólogo.

Era, com efeito, uma profissão nova, regulamentada em 1962. Afinal, o que fazia um psicólogo? Conversei com um amigo médico e ele me disse: "Edna, a Psicologia é a medicina do futuro, uma ciência com grande potencial de expansão e aplicação". Não sei se médicos e psicólogos concordarão com essa profecia, mas o parecer daquele amigo pesou bastante na decisão de renunciar ao meu antigo projeto lingüístico-literário. Afinal me agradava a idéia de perscrutar nossa humana essência... Desisti da Maria Antônia e me inscrevi no vestibular da Filô. Apenas nele e em nenhum outro. E esperei.

O vestibular e os primeiros tempos

A lembrança do vestibular está bem viva na minha memória. Era uma semana chuvosa de verão. No ginásio de esportes e em outras dependências da Faculdade de Medicina, espalhavam-se os candidatos - cinco por vaga, aproximadamente. Uma competição fácil, se comparada à dos atuais vestibulares nas universidades públicas paulistas. As provas, compreendendo uma redação e testes psicológicos de raciocínio abstrato, raciocínio numérico e raciocínio verbal, dispensavam a preparação dos já-então-quase-indispensáveis cursinhos. Era a nossa grande chance democrática! Consegui uma vaga na faculdade, a sorte estava lançada.

Primeiro dia de aula: 31 de março de 1964, sete e meia da manhã. A fila do ônibus, na praça Carlos Gomes, estava esticada naquele dia com a presença dos calouros da nova faculdade. Um colega passa um abaixo-assinado de apoio ao presidente da república, João Goulart. Todos assinam, ou melhor, quase todos; ao meu lado na fila, uma colega, cautelosa, avisa em voz baixa: "Melhor não assinar, coisas muito graves estão para acontecer".

De fato, já estavam acontecendo naquela manhã. O abaixo-assinado sumiu. O colega que o passou garantiu tê-lo destruído, mas durante muito tempo se comentou, entre os alunos da primeira turma, que ele guardava a lista cuidadosamente, disposto talvez a usá-la em alguma eventualidade.

Apesar do cenário nacional sombrio, estávamos naturalmente eufóricos. Essa euforia se expressava de várias formas: Regina Stella, nossa artista polivalente, tocava pífano para os colegas perfilados; Lordello apareceu com a cabeça raspada, ostentando uma boina. Nós não tivemos trote, e seguíamos de olhos compridos os calouros da medicina, com suas discretas boinas amarelas, e os da odonto, de bonezinho vermelho e gravata borboleta...

Primeiras impressões

Ainda posso sentir a emoção que me empolgava quando o bandejão da Viação Cometa nos despejou ali no ponto em frente ao prédio da Patologia. O lugar era lindo, cercado de arvoredo, com amplo pátio interno arborizado. Mas logo percebemos que o nosso espaço ali era acanhado e não se adequava ainda a um curso de tempo integral. Faltavam cadeiras, não havia cantina, o azulejo branco das paredes nos comunicava frieza, e ainda havia as câmaras frigoríficas. Uma sensação de confinamento às vezes nos dominava. A administração ficava longe, no prédio central da Medicina. Entretanto, o que ficava a desejar nas acomodações físicas sobrava na dedicação e na afabilidade dos funcionários. Éramos carinhosamente acolhidos e atendidos em tudo que fosse possível. Registro aqui meu reconhecimento aos funcionários dos primeiros tempos, representados na pessoa da nossa inesquecível Maria Helena de Oliveira.

Logo nos primeiros dias, os professores passaram seus recados. Sauaia e Tereza Lemos davam o tom, falando do projeto de iniciação à ciência. Alguns colegas reclamavam: isso é recapitulação do colegial! Era uma reclamação injusta. O conteúdo até podia ser semelhante ao do colégio, mas não a leitura que se fazia dele. E, além disso, nem tudo era recapitulação; havia uma novidade, a Psicologia, que Tereza nos apresentava como a ciência do comportamento. Mais protestos. E Freud? E a psicanálise? Ficariam para depois. Não estavam na ordem do dia.

Com o tempo, as condições foram sendo melhoradas. Veio a cantina da Dona Cida, vieram as cadeiras, os livros para a biblioteca.

Ah, a biblioteca! Ponto de referência diário onde íamos saciar a curiosidade despertada nas aulas e discussões, encontrávamos ali, solícita e atenta, dona Lia Becker Rocha, que nos instruía nos segredos da pesquisa bibliográfica e nas minúcias dos sistemas de referência e citação. Além dessa supervisão cotidiana, dona Lia nos ministrou aulas e elaborou para os alunos uma apostila, que me foi extremamente útil depois de deixar a faculdade. Agradeço a Lia Becker Rocha a disponibilidade para nos atender, muito além de suas atribuições de bibliotecária.

O ciclo propedêutico

Guardo do propedêutico as melhores lembranças de todo o tempo que passei na faculdade, e acredito que esse sentimento é partilhado por outros ex-alunos da primeira turma. Foi um período intensamente vivido, que impulsionou nosso amadurecimento.

Os colegas e a convivência no ciclo propedêutico - Nossa turma foi marcada por uma acentuada diversidade: de faixa etária - havia desde adolescentes com menos de 18 anos até adultos com mais de 40; de formação escolar e profissional - havia egressos dos cursos científico, normal e clássico; havia profissionais estabelecidos nos ramos de odontologia, direito, ensino fundamental e outros; e, principalmente, havia uma enorme diversidade de experiências de vida. Essa diversidade nos enriquecia na convivência diária. Era preciso lidar com as diferenças, conciliar interesses conflitantes. Os mais aptos por formação procuravam ajudar os menos aptos nas dificuldades com as matérias. Sobretudo, essa diversidade garantia o apoio mútuo nas muitas horas de incerteza. Para nós, os adolescentes de então, aqueles colegas que já haviam conquistado alguma estabilidade afetiva ou profissional eram mentores providenciais, espécies de mães e pais substitutos que acolhiam nossas angústias e nos ajudavam a tolerar as frustrações. Maria Helena, Dea, Dora, Jairo, Lélio e outros formavam a rede de apoio emocional que nos protegia nos momentos críticos.

O modelo de ensino - Foi no ciclo propedêutico que se deu nossa iniciação cientifica, sob a orientação de professores como Heny Sauaia e Tereza Lemos, Vasconcelos e Sebastião. Para eles também, eu suponho, foram tempos difíceis. Era preciso muita paciência e pulso firme para conter nossa inquietação, que às vezes transbordava, diante da imprevisibilidade dupla da situação: era a incerteza própria de uma primeira turma somada à novidade do modelo de ensino.

O que mais inquietava no modelo de ensino era o fato de os professores não nos abarrotarem de conteúdos e, ao invés disso, priorizarem o desenvolvimento de habilidades. Por um lado, havíamos sido socializados em uma cultura escolar que entronizava o conteúdo, e alguns alunos se desesperavam por 'não estarem aprendendo nada". Por outro lado, Sauaia e Tereza desafiavam nosso ego todos os dias, propondo problemas cuja solução exigia algo mais que as competências trazidas do colegial. No começo, ficamos um pouco perdidos.

O professor - Aos poucos, fomos percebendo a excelência daquele aprendizado. Nesse processo, ficamos devendo muito à dedicação de um professor. Sauaia era a alma do propedêutico. Era dele que emanava aquele entusiasmo pela ciência como ofício, que pouco a pouco nos conquistou. As discussões que ele promovia sobre temas palpitantes da biologia tinham grande impacto. Lembro um fato ocorrido quando tratávamos da teoria da evolução das espécies. Uma aluna se levantou, visivelmente alterada, protestando contra aquela teoria sacrílega que contrariava suas convicções. Pacientemente, Sauaia argumenta. Mostra analogias, fala de símbolos. Inútil naquele momento, era preciso dar tempo às transformações. Mas a semente fora plantada.

Esse episódio foi significativo para mim. Na sua interpretação evolucionista da Gênese, Sauaia demonstrava que razão e fé podem conviver em harmonia.

O fato é que Sauaia trabalhava com sabedoria aquelas mentes jovens. Ele primeiro despertou em nós o desejo de fazer ciência, depois disciplinou nossa curiosidade nos rigores do método científico, através dos projetos de pesquisa que conduzíamos sob sua supervisão. Mas havia uma terceira preocupação: estimular nos alunos a criatividade, o pensamento divergente, a capacidade de identificar novos problemas de pesquisa. Esse era o desafio mais difícil, porque dependia mais do talento do aluno que do empenho do professor.

Professor Sauaia era de uma dedicação sem limites, jamais usava o relógio para controlar o tempo que os alunos lhe solicitavam fora dos horários de aula. Um idealista que encarnava seus ideais. Um professor em tempo integral. Não conheci outro como ele.

O legado do propedêutico

Aquele modelo de ciclo propedêutico não subsistiu, por razões várias. Difícil avaliar seu impacto. Meu testemunho pessoal não tem validade científica, mas tenho a impressão de que saímos do propedêutico com um entendimento de método científico e um repertório de habilidades cognitivas para pesquisa que muitos egressos de cursos de mestrado não têm.

Mas o legado maior daquele ano foi outro. A experiência intensamente vivida, mesclada de prazer e angústia, guiada por professores engajados, nos transformaria de modo irreversível. Cada qual elaborou de forma singular as experiências, como a criança pequena que constrói seus modelos internos da realidade a partir das interações com pessoas significativas do seu entorno. Entretanto, saímos fortalecidos do ciclo propedêutico, eu diria mais resilientes para enfrentar os desafios por vir.

  • 1
    Depoimento apresentado durante a Sessão Solene da Congregação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, realizada em 31/03/2004, para abertura oficial das comemorações dos 40 anos da Faculdade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2005
    Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Av.Bandeirantes 3900 - Monte Alegre, 14040-901 Ribeirão Preto - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 16) 3315-3829 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
    E-mail: paideia@usp.br