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Captura da atenção por estímulos emocionais

Attentional capture by emotional stimuli

Resumos

No presente estudo investigamos se estímulos emocionais distrativos são capazes de interferir na realização de tarefas nas quais é exigido um alto engajamento da atenção. Para tanto foi realizado um teste de discriminação de orientação entre duas barras apresentadas bilateralmente na periferia do campo visual (julgamento igual ou diferente). O grau de dificuldade da tarefa dependia da diferença de orientação das mesmas. Simultaneamente era apresentada uma figura central (neutra ou negativa) entre as barras. Foi observado que as figuras negativas interferiram no desempenho dos voluntários mesmo na tarefa mais difícil, que exigia maior engajamento atencional. Além disto, quando o reconhecimento posterior destas figuras era testado, figuras negativas eram mais lembradas do que neutras. Estes dados sugerem que estímulos emocionais são privilegiados na disputa por recursos de atenção. É possível que esse privilégio ocorra devido a relevância destes estímulos, sendo dificilmente ignorados.

Atenção; emoção; tempo de reação; carga cognitiva


In the present study, we investigated whether emotional pictures, presented as distractors, interfere in the performance of a competing neutral task. The participants had to discriminate the orientation of two bars presented bilaterally in the periphery (similar or dissimilar). Task difficulty was determined by the differences in orientation between the bars: the smallest orientation differences were used in the hardest task. Simultaneously, either neutral (people) or unpleasant (mutilated) pictures were presented centrally between the two bars. We observed that negative pictures interfere in the performance even in the harder task - the more attention demanding one. When the recognition of those pictures was tested, an advantage for the negative pictures was observed. These results showed that emotional stimuli are still processed even when the attentional load of a concurrent task is high. It is possible that those stimuli are potent drivers of privileged processing and can not be easily ignored.

Attention; emotion; reaction time; attentional load


Captura da atenção por estímulos emocionais

Attentional capture by emotional stimuli

Fátima ErthalI; Eliane VolchanI; Leticia OliveiraII; Walter Machado-PinheiroII; Luiz PessoaIII

IUniversidade Federal do Rio de Janeiro

IIUniversidade Federal Fluminense

IIIBrown University, USA

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Letícia Oliveira Laboratório de Neurofisiologia do Comportamento Departamento de Fisiologia e Farmacologia Instituto Biomédico, UFF Rua Hernani Melo, 101. São Domingos, 24210-130 Niterói, RJ E-email: ldol@vm.uff.br

RESUMO

No presente estudo investigamos se estímulos emocionais distrativos são capazes de interferir na realização de tarefas nas quais é exigido um alto engajamento da atenção. Para tanto foi realizado um teste de discriminação de orientação entre duas barras apresentadas bilateralmente na periferia do campo visual (julgamento igual ou diferente). O grau de dificuldade da tarefa dependia da diferença de orientação das mesmas. Simultaneamente era apresentada uma figura central (neutra ou negativa) entre as barras. Foi observado que as figuras negativas interferiram no desempenho dos voluntários mesmo na tarefa mais difícil, que exigia maior engajamento atencional. Além disto, quando o reconhecimento posterior destas figuras era testado, figuras negativas eram mais lembradas do que neutras. Estes dados sugerem que estímulos emocionais são privilegiados na disputa por recursos de atenção. É possível que esse privilégio ocorra devido a relevância destes estímulos, sendo dificilmente ignorados.

Palavras-chave: Atenção, emoção, tempo de reação, carga cognitiva.

ABSTRACT

In the present study, we investigated whether emotional pictures, presented as distractors, interfere in the performance of a competing neutral task. The participants had to discriminate the orientation of two bars presented bilaterally in the periphery (similar or dissimilar). Task difficulty was determined by the differences in orientation between the bars: the smallest orientation differences were used in the hardest task. Simultaneously, either neutral (people) or unpleasant (mutilated) pictures were presented centrally between the two bars. We observed that negative pictures interfere in the performance even in the harder task - the more attention demanding one. When the recognition of those pictures was tested, an advantage for the negative pictures was observed. These results showed that emotional stimuli are still processed even when the attentional load of a concurrent task is high. It is possible that those stimuli are potent drivers of privileged processing and can not be easily ignored.

Key-words: Attention, emotion, reaction time, attentional load

Segundo William James, atenção significa "the taking possession by the mind, in clear and vivid form, of one out of what seems several simultaneously possible objects or trains of thought. Focalization, concentration of consciousness are of its essence. It implies withdrawal from some things in order to deal effectively with others" (James, 1890/1950). Nos últimos 100 anos muito se tem avançado em relação às idéias iniciais de William James. Resumidamente, a maioria das teorias assume que uma das funções primárias da atenção é facilitar seletivamente, de maneira rápida e acurada, a percepção de objetos que aparecem na cena visual (Yantis, 1996). Trabalhos clássicos demonstraram, por exemplo, que prestar atenção em um local do espaço diminui o tempo necessário para perceber e responder a um estímulo visual (Posner, 1980; Posner & Cohen, 1984; Rizzolatti, Riggio, Dascola, & Umiltá, 1987). Deste modo, prestar atenção em um objeto (ou local do espaço) promove um melhor processamento cerebral do mesmo, aumentando as chances dele ser percebido conscientemente.

Ao mesmo tempo em que a atenção aumenta a "visibilidade" do alvo atencional, evidências convergentes sugerem que o processamento de objetos fora do foco atencional é muito reduzido, podendo até mesmo, sob certas circunstâncias, ser eliminado (Lavie, 1995; Joseph, Chun, & Nakayama, 1997; Simons & Levin, 1997; Rensink, O'Regan, & Clark, 1997; Rensink, 2002). De fato, em determinados paradigmas experimentais, os participantes engajam sua atenção numa tarefa relevante e tornam-se incapazes de relatar a ocorrência de um evento saliente fora deste foco atencional. Tal fenômeno é conhecido como "cegueira atencional" (inattentional blindness - Chun & Marois, 2002 para maiores detalhes). Um exemplo extremo deste fenômeno foi descrito por Simons e Chabris (1999). Em seu experimento, voluntários deveriam observar, na tela de um monitor, a troca de bola entre dois grupos de três pessoas vestidas de preto ou de branco. Os voluntários deveriam contar o número de passes realizados dentro do mesmo grupo, o que seria informado ao experimentador no final do teste, e não eram avisados que um evento inesperado aconteceria. Em um determinado momento do teste, uma pessoa vestida com uma fantasia de gorila passava lentamente por entre os jogadores, parava e batia em seu peito. Surpreendentemente, cerca de 35% dos voluntários não foram capazes de relatar o aparecimento do referido gorila, sugerindo que mesmo eventos fisicamente salientes, se não forem atendidos, podem ter seu acesso à consciência dificultado ou mesmo bloqueado. Outro dado interessante descrito por tais autores é que quanto maior a dificuldade da tarefa principal (contar os passes) maior era a cegueira atencional dos voluntários. Se ao invés de simplesmente contar o número total de passes, os voluntários tivessem que separá-los nos que a bola passa direto ao outro jogador daqueles que ela quica antes no chão, o percentual de pessoas que não relatavam o evento distrator (gorila) era maior. Portanto, aumentar a complexidade da tarefa solicitada promove um maior engajamento atencional, diminuindo a percepção do distrator. Estes dados estão de acordo com a teoria proposta por Lavie e cols. (Lavie & Tsal, 1994; Lavie, 1995; Rees, Frith, & Lavie, 1997), segundo a qual, o quanto um estímulo distrator será excluído da percepção não depende apenas da intenção do voluntário em ignorá-lo, mas também do quanto uma tarefa alvo esgota recursos cerebrais de processamento. De fato, por meio de experimentos com ressonância magnética funcional, este grupo tem mostrado que distratores não são processados pelo cérebro se os voluntários estiverem com seus recursos alocados em uma tarefa de alta demanda atencional (Rees, et al., 1997).

Uma questão em aberto é o quanto estímulos emocionais, dada a sua relevância biológica, podem ser ignorados se os voluntários estiverem engajados em uma tarefa concorrente de alta demanda. Seria benéfico, do ponto de vista evolutivo, uma cegueira atencional para estes estímulos? A resposta a esta questão é bastante controversa na literatura. O processamento rápido e eficiente de um estímulo potencialmente perigoso é altamente vantajoso e pode ser crítico para a sobrevivência. Assim, voluntários apresentam respostas rápidas e involuntárias para estímulos emocionais como faces com expressão de medo ou estímulos desagradáveis (Globisch, Hamm, Esteves, & Ohman, 1999; Lang, et al., 1998; Ohman, Flykt, & Esteves, 2001). É possível que os estímulos emocionais sejam sempre processados, mesmo que isto ocorra de uma maneira mais rápida e rudimentar através de vias neurais que não necessariamente envolvam o córtex cerebral e sistemas cognitivos de alta ordem (Ohman, et al., 2001). Há, entretanto, evidências contrárias a este engajamento automático independente de recursos cognitivos para estímulos emocionais (Pessoa, Kastner, & Ungerleider, 2002a; Pessoa, McKenna, Gutierrez, & Ungerleider, 2002b). O estudo do quanto os estímulos emocionais são capazes de direcionar recursos cerebrais para si e interferir no comportamento é particularmente importante, uma vez que uma grande parte das patologias mentais está relacionada com disfunções na identificação e resposta a estes estímulos.

O objetivo geral deste trabalho foi verificar até que ponto os estímulos emocionais são privilegiados na disputa pela alocação de recursos cerebrais. Mais especificamente, investigamos se estímulos emocionais distratores são capazes de interferir no desempenho de uma tarefa atencional mesmo quando a demanda de recursos para o processamento da tarefa principal é maximizada.

Para isto, elaboramos um desenho experimental no qual os voluntários realizavam tarefas com graus crescentes de dificuldade. Quanto maior o grau de dificuldade, maior seria o engajamento atencional na tarefa, e assim, menores seriam os recursos cerebrais disponíveis para o processamento dos distratores emocionais. Se tais distratores fossem processados, a despeito dos baixos recursos, deveriam interferir sobre a tarefa independente do grau de dificuldade da mesma.

Método

# Teste de Tempo de Reação Manual

24 voluntários (12 homens e 12 mulheres), estudantes universitários da Universidade Federal Fluminense, com idade média de 21 (±2,7) anos participaram deste experimento. Apenas um dos voluntários (sexo masculino) não era destro. Todos tinham visão normal ou corrigida e desconheciam o propósito do experimento. Além disso, relatavam não apresentar qualquer distúrbio neurológico e/ou psiquiátrico, assim como não estar fazendo uso de medicação com ação sobre o sistema nervoso. O experimento foi aprovado pelo comitê de ética local e, antes de realizar o experimento, os voluntários assinavam um termo de consentimento livre e esclarecido, concordando com os procedimentos utilizados.

O experimento foi realizado em uma sala especial, com atenuação sonora relativa e iluminação indireta. O voluntário posicionava sua cabeça em um apoiador de fronte (cabeça) distante 57cm da tela do computador. Seu antebraço era posicionado sobre uma mesa, de modo a favorecer uma boa posição dos dedos indicadores sobre as teclas de resposta. Os estímulos eram apresentados na tela do computador e as respostas coletadas através de um microcomputador (IBM-PC 486 DX-2), com um programa desenvolvido através do software Micro Experimental Laboratory (MEL) versão 2.0 (Psychology Software Tools Inc., Pittsburgh, USA). Foram coletados os tempos de reação das respostas corretas, em milissegundos (ms), assim como o número de erros, considerando separadamente erros de tecla, respostas lentas e antecipações.

A Figura 1 mostra esquematicamente o desenho experimental utilizado. Cada teste se iniciava com o aparecimento, na tela do computador, de um ponto de fixação que permanecia por 1500 (±200) ms. A seguir, aparecia por 200ms, uma figura central (9º x 12º de tamanho) flanqueada por duas barras periféricas (0,3° x 3,0°), 9º à direita e à esquerda do centro da tela. A figura e as barras eram então mascaradas por um painel tipo "tabuleiro de xadrez" com quadrados cinzas e pretos, que permanecia na tela até execução das respostas pelos voluntários ou por até 1500ms. Os voluntários eram orientados a ignorar as figuras centrais (distratores) e responder, o mais rápido e corretamente possível, julgando a orientação relativa entre as duas barras periféricas. Para tanto, eles deveriam pressionar uma de duas teclas (à direita ou à esquerda) caso as barras tivessem a mesma orientação, ou a outra tecla caso tivessem orientação diferente. A posição das teclas de resposta foi contrabalançada entre os sujeitos, de modo que metade respondeu à orientação igual com o indicador direito, e a outra metade com o indicador esquerdo.


As figuras utilizadas como distratores pertenciam a duas categorias distintas: pessoas (consideradas de valência emocional neutra pelos voluntários) e corpos mutilados (valência emocional negativa). Tais figuras foram obtidas a partir de um banco padronizado de figuras coloridas, o IAPS (International Affective Picture System - Center for the Study of Emotion and Attention - CSEA NIMH, 1999) ou através de páginas variadas da internet. Porém, de acordo com o protocolo proposto por Lang e cols. (1999), todas foram previamente avaliadas em relação às dimensões emocionais de valência (escala variando de 1 para "muito" negativa até 9 para "muito" positiva) e alerta (alerta mínimo = 1 e alerta máximo = 9) - para maiores detalhes, Lang, et al. (1999). Foram utilizadas 156 figuras (78 neutras e 78 negativas), distribuídas em três blocos de 52 figuras. Cada bloco possuía o mesmo número de figuras neutras e negativas, com aproximadamente os mesmos níveis de alerta (3,3 para as figuras neutras e 6,4 para as negativas) e valência (5,0 para as figuras neutras e 2,2 para as negativas) em cada bloco.

A sessão de testes era iniciada com três blocos de treino (cada um com 20 testes) e três blocos experimentais (52 testes cada). Cada bloco experimental apresentava um grau distinto de dificuldade no julgamento das barras, baseado na diferença de orientação entre elas: 90° de diferença no bloco "Fácil", 24° no "Médio" e 12° no "Difícil" (Figura 1). A probabilidade de ocorrência de cada resposta (orientação igual ou diferente) era a mesma, ou seja, em metade das tarefas a orientação das barras era de fato igual e na outra metade era diferente. Além disso, dentro de cada bloco, as figuras eram apresentadas de modo pseudo-aleatório, sendo utilizada a mesma seqüência de apresentação para todos os voluntários.

Durante o bloco de treino as figuras apresentadas eram objetos (utensílios domésticos, ferramentas, móveis). Além disso, o voluntário tinha o retorno sobre erros, respostas lentas, antecipações e o tempo de reação da resposta correta era projetado na tela do computador, por 1000 ms, após cada teste. Nos blocos experimentais não havia retorno sobre o desempenho dos voluntários.

Após o treino, eram realizados os blocos experimentais, com duração aproximada de cinco minutos cada. A seqüência destes era aleatorizada e contrabalançada entre os voluntários. Respostas lentas ou antecipadas foram excluídas das análises estatísticas.

# Teste de Memória

Terminado o experimento de tempo de reação manual era realizado um segundo teste, onde era verificado o reconhecimento das figuras previamente apresentadas como distratores (figuras "já-vistas"), em meio a figuras não apresentadas anteriormente (figuras "não-vistas"). Foram selecionadas 7 figuras neutras e 7 negativas de cada bloco "Fácil", "Médio" e "Difícil", resultando em 21 neutras e 21 negativas incluídas no grupo de figuras "já-vistas". Assim, 84 figuras (42 "já-vistas" e 42 "não-vistas"), metade neutras e metade negativas, foram apresentadas durante o teste de memória.

O voluntário era instruído a responder o mais rápido e corretamente possível, pressionando uma ou outra tecla, com o indicador direito ou esquerdo, caso tivesse ou não visto a figura durante o experimento de tempo de reação. As teclas de resposta foram contrabalançadas entre os sujeitos. Cada figura era apresentada por no máximo 2000 ms, ou até que uma resposta fosse emitida. Antes de iniciar o teste era realizado um treino com cinco figuras "não-vistas" anteriormente, com a finalidade de familiarizar os voluntários com a tarefa. Somente no treino eram fornecidos retorno de erro, antecipação, resposta lenta e o tempo de reação da resposta correta. Respostas lentas e antecipadas foram excluídas das análises estatísticas.

Três tipos de respostas foram analisados neste trabalho: (I) medianas das latências das respostas corretas de cada voluntário obtidas nos testes de tempo de reação manual; (II) taxa de erros durante a realização destes testes; (III) taxa de reconhecimento das figuras apresentadas no teste de memória. Estes três parâmetros foram submetidos a análises de variância com medidas repetidas (ANOVA), tendo "dificuldade" ("Fácil", "Médio" e "Difícil") e "valência" (neutra e negativa) como fatores. Quando necessário, análises post hoc foram feitas pelo método de Newman-Keuls. O nível de significância adotado foi p < 0,05.

Dados provenientes de um voluntário foram excluídos das análises por apresentarem uma taxa de erros superior à média de erros acrescida de três desvios padrão. Além disso, vale acrescentar que as antecipações e respostas lentas foram muito raras, correspondendo apenas a 0,64% dos testes.

Resultados

# Teste de Tempo de Reação Manual

A análise de variância dos tempos de reação revelou que dificuldade (F(2, 44) = 4,0; p = 0,025) e valência (F(1, 22) = 19,0; p< 0,001) foram fontes significativas de variância, sem interação entre os fatores (F(2, 44) = 0,69; p = 0,50). A Figura 2 mostra que o tempo de reação obtido durante a apresentação de distratores negativos (672, 677 e 709 ms, respectivamente para os blocos "Fácil", "Médio" e "Difícil") foi maior do que para distratores neutros (620, 643 e 670 ms, respectivamente), nos três níveis de dificuldade. Além disso, houve um aumento das latências proporcional à dificuldade da tarefa, conforme previsto.


A análise da lentificação em cada bloco, representada pela diferença entre o tempo de reação obtido durante a apresentação de distratores negativos e neutros mostrou não haver diferença entre os blocos (p = 0,50), ou seja, a magnitude da lentificação induzida pelo distrator negativo não se alterou com a dificuldade da tarefa. Houve, portanto, uma lentificação das respostas nos três blocos, mesmo na situação onde havia menor disponibilidade de recursos para o processamento do distrator (bloco "Difícil"), sugerindo haver um privilégio de processamento para os estímulos emocionais diante da situação experimental adotada.

A análise de variância dos erros de tecla mostrou que dificuldade (F(2, 44) = 32,81; p < 0,001) e valência (F(1, 22) = 9,60; p < 0,01) foram fontes significativas de variância, mas a interação entre ambos não foi significativa (F(2, 44) = 0,87; p = 0,42). A Figura 3 mostra que o número de erros obtidos durante a apresentação de distratores negativos foi maior do que para os distratores neutros, nos três níveis de dificuldade: 5,5% vs. 2,8% no bloco "Fácil", 12,5% vs. 9,6% no bloco "Médio", e 18,9% vs. 15,05% no bloco "Difícil", respectivamente. Ou seja, corroborando os dados obtidos para o tempo de reação (Figura 2) o número de erros de tecla foi maior para figuras negativas independentemente do grau de dificuldade da tarefa. Além disto, houve um aumento de acordo com a dificuldade da tarefa, como esperado.


# Teste de Memória

A análise de variância do número de acertos para as figuras "já-vistas" mostrou que apenas o fator valência foi significativo (F(1, 22) = 33,36; p < 0,001). O fator dificuldade (F(2, 44) = 2,50; p = 0,09) e a interação entre os fatores não atingiram significância (F(2, 44) = 1,18; p = 0,31). O percentual de reconhecimento para figuras neutras nos blocos "Fácil", "Médio" e "Difícil" foi respectivamente de 23%, 24% e 27%. Já para as figuras negativas estes valores foram de 57%, 48% e 60%, respectivamente, evidenciando uma maior taxa de reconhecimento para figuras negativas em comparação às figuras neutras em todos os blocos (Figura 4).


A análise da diferença na taxa de reconhecimento, representada pela subtração entre o número de reconhecimentos para as figuras neutras e negativas, não revelou significância estatística (p = 0,31): o benefício observado no reconhecimento das figuras negativas foi o mesmo nos três graus de dificuldade. Portanto, mesmo na situação onde havia menor disponibilidade de recursos para processamento do distrator (bloco "Difícil"), as figuras negativas mantiveram a mesma vantagem de reconhecimento em comparação às figuras neutras, corroborando os dados de latências e erros do tempo de reação.

Discussão

Nossos resultados com tempo de reação manual mostraram que os voluntários foram significativamente mais lentos no julgamento de orientação das barras durante a apresentação de distratores negativos (corpos mutilados) em comparação às figuras neutras. Além disto, a taxa de erros foi significativamente maior durante a apresentação de figuras negativas. Mais importante, o aumento do grau de dificuldade da tarefa atencional não impediu (nem atenuou) a interferência dos distratores emocionais seja no tempo de reação manual, seja na taxa de erros. Estes dados sugerem que os estímulos emocionais são privilegiados na disputa por recursos atencionais, sendo capazes de interferir no desempenho de uma tarefa atencional mesmo em uma situação desfavorável, com os recursos de processamento direcionados preferencialmente à tarefa de alta demanda.

O privilégio de processamento cerebral e a capacidade de interferência dos estímulos emocionais têm sido amplamente descritos tanto pelo nosso grupo (Mourão-Miranda, et al., no prelo; Fontana, et al., 2003; Pereira, et al., 2001; Pessoa, et al., 2002a, b) quanto por outros trabalhos da literatura (Lang, et al., 1998; Lane, Chua, & Dolan, 1999; Simpson, et al., 2000; Tipples & Sharma, 2000; Hartikainen, Ogawa, & Knight, 2000). A questão adicional abordada no presente trabalho é o quanto esta interferência depende de recursos atencionais. Dados do nosso grupo e da literatura apontam para uma divergência em relação a isto. Pessoa e cols. (2002b) realizaram um estudo com ressonância magnética funcional, utilizando um desenho experimental onde os voluntários, em alguns testes, prestavam atenção em faces neutras ou emocionais, e em outros, realizavam uma tarefa de alta demanda atencional semelhante à nossa (discriminação da orientação de duas barras na periferia do campo visual). Estes autores observaram que diferenças na ativação cerebral entre faces neutras e emocionais apenas apareciam se os voluntários estivessem com a atenção devotada às faces. Especificamente, a maior ativação em várias estruturas cerebrais (inclusive a amígdala) para as faces com expressões negativas acontecia apenas na situação em que estas eram atendidas, e não durante a execução de julgamento das barras. Tais autores propõem que os recursos cerebrais para os distratores emocionais foram reduzidos (e talvez eliminados) devido à realização de uma tarefa de alta demanda atencional (discriminar a orientação das barras). Neste caso, o diferencial emocional para faces negativas desapareceu. Por outro lado, Viulleumier, Armony, Driver e Dolan (2001) encontraram um resultado contrário ao de Pessoa e cols. (2002b), mostrando que a amígdala teve uma maior ativação cerebral para faces com expressões negativas independente da atenção estar direcionada a elas. No entanto, para outras regiões cerebrais, como por exemplo, no giro fusiforme, a atenção foi importante para determinar a maior ativação para faces emocionais (Holmes, Viulleumier, & Eimer, 2003). Isto sugere que a modulação atencional sobre a ativação de determinadas áreas e circuitos cerebrais pode ser diferenciada.

A evidência de que a amígdala pode ser ativada mesmo em uma situação não atendida, sugere que estes estímulos possam ser processados automaticamente, ou seja, sem a necessidade de mecanismos atencionais cognitivos. Dados recentes de Anderson, Christoff, Panitz, De Rosa, e Gabrieli (2003) corroboram com esta idéia. Tais autores não observaram redução na resposta da amígdala para faces com expressão de medo na situação de atenção reduzida para estes estímulos. Estes dados sugerem que os estímulos emocionais seriam processados de uma maneira mais rápida e rudimentar através de vias neurais que não necessariamente envolvam o córtex cerebral e sistemas cognitivos de alta ordem (Ohman, et al., 2001).

A divergência entre os resultados de Pessoa e cols. (2002b), Viulleumier e cols. (2001) e Anderson e cols. (2003) poderia ser explicada por um aspecto fundamental: no caso de Pessoa e cols. (2002b), na situação em que os voluntários estavam sem atenção nas faces, seus recursos cerebrais estavam sendo consumidos por uma tarefa concorrente de alta demanda atencional. No desenho experimental de Viulleumier e cols. (2001) e Anderson e cols., (2003) as tarefas concorrentes eram fáceis e, portanto, havia recursos cerebrais disponíveis para as faces distratoras. Tal fato pode explicar o aparecimento de ativações emocionais diferenciadas para os distratores em seus trabalhos, mas não no de Pessoa e cols. (2002b). Esta possibilidade está de acordo com a teoria proposta por Lavie e cols., que sugere que um distrator será de fato eliminado da percepção dependendo do quanto uma tarefa concorrente consuma os recursos disponíveis para processamento (Lavie & Tsal, 1994; Lavie, 1995; Rees, et al., 1997).

Em nosso trabalho observamos que, mesmo em uma situação na qual os recursos cerebrais estavam alocados para a tarefa concorrente, os estímulos emocionais conseguiram promover uma interferência, sugerindo um engajamento automático de recursos promovidos por estes estímulos. Nossos dados estariam, portanto, de acordo com os encontrados por Viulleumier e cols. (2001) e Anderson e cols., (2003) e contrários aos de Pessoa e cols. (2002b). Entretanto duas considerações são importantes: Primeiro, o grau de engajamento na tarefa no caso do presente trabalho foi possivelmente menor do que de Pessoa e cols. (2002b). Isto pode ser evidenciado pela dificuldade da tarefa em cada desenho experimental. A taxa de erros, no trabalho de Pessoa e cols. (2002b) foi de 36%, enquanto que para os nossos dados obtivemos uma taxa máxima, na situação difícil, de 18,9%. Portanto, segundo a proposta de Lavie e cols. (Lavie & Tsal, 1994; Lavie, 1995; Rees, et al., 1997), é possível que recursos cerebrais não tenham sido totalmente consumidos pela tarefa utilizada no presente trabalho permitindo a interferência dos distratores. Experimentos adicionais estão sendo realizados em nosso laboratório para responder a esta questão. Segundo, ao contrário dos trabalhos que utilizaram faces com expressões emocionais, utilizamos corpos mutilados como estímulos negativos. Estes são classificados como mais negativos e alertantes (Lang, et al., 1999), promovendo uma maior ativação no córtex visual em relação às faces (Bradley, et al., 2003). É possível que estes estímulos sejam extremamente potentes em direcionar recursos automáticos de processamento e, portanto, podem ser muito privilegiados na disputa por recursos, sendo dificilmente ignorados. No caso de corpos mutilados, é possível que o processamento cerebral sempre aconteça, independentemente de influências cognitivas de mais alta ordem.

Em relação aos dados obtidos no teste de memória, observamos que as figuras negativas obtiveram uma maior taxa de reconhecimento em comparação às neutras. Este resultado está de acordo com trabalhos que mostraram que eventos emocionais são mais lembrados do que neutros (Bradley, Greenwald, Petry, & Lang, 1992). Além disto, no nosso trabalho, observamos que este privilégio de reconhecimento foi independente do grau de dificuldade da tarefa. Este resultado foi surpreendente, uma vez que trabalhos anteriores mostraram um prejuízo na codificação de estímulos, caso os voluntários estivessem fazendo uma tarefa difícil em comparação a uma fácil (Baddeley, Lewis, Eldridge, & Thomson, 1984; Craik, Govoni, Naveh-Benjamin, & Anderson, 1996; Naveh-Benjamin & Guez, 2000). No caso dos estímulos emocionais, nossos dados não evidenciaram este prejuízo. Portanto, nossos resultados do experimento de memória estão de acordo com os dados de tempo de reação manual, sugerindo que as figuras negativas são codificadas pelos sistemas de memória mesmo quando os recursos de processamento para as figuras estão baixos.

Em resumo, a maior alocação de recursos na tarefa atencional não aboliu (nem atenuou) o efeito dos estímulos emocionais como distratores, seja no desempenho da tarefa, seja no reconhecimento posterior dos mesmos. Em conjunto, nossos resultados sugerem que estímulos emocionais são privilegiados na disputa por recursos de processamento cerebral, capturando de maneira preferencial a atenção.

Agradecimentos:

Agradecemos ao Grupo GIPAM (Grupo de Investigação em Percepção, Atenção e Memória da USP) e ao Professor Peter Lang pela avaliação e discussão dos resultados.

Artigo recebido para publicação em 29/08/2003; aceito em 01/12/2003.

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  • Endereço para correspondência:

    Letícia Oliveira
    Laboratório de Neurofisiologia do Comportamento
    Departamento de Fisiologia e Farmacologia
    Instituto Biomédico, UFF
    Rua Hernani Melo, 101. São Domingos, 24210-130
    Niterói, RJ
    E-email:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2004

    Histórico

    • Recebido
      29 Ago 2003
    • Aceito
      01 Dez 2003
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