Acessibilidade / Reportar erro

Reflexões sobre a autogestão a partir da experiência da cidade das cidades1 1 Denominação do Acampamento Intercontinental da Juventude no 3° Fórum Social Mundial, ocorrido em Porto Alegre, janeiro de 2003.

Resumo

Temos como objetivos, ao redigir esse texto: registrar um pouco da história e da experiência de um dos aspectos mais interessantes e menos abordados do Fórum Social Mundial - o Acampamento da Juventude; aportar alguma contribuição teórica para a reflexão sobre o que foi realizado e, principalmente, levantar questões para o futuro. A forma do texto é a de uma bricolagem de narrativas, percepções e reflexões. Um pouco revisamos a teoria, um pouco fazemos registros, um pouco analisamos, muito deixamos questões sem resposta... A idéia é que essas partes, ainda que não exatamente articuladas entre si, portem sentidos e despertem conversas. O artigo apresenta, sempre de forma breve, uma mistura d conceitos e revisões de abordagens sobre o tema da autogestão; a história do Acampamento Intercontinental da Juventude em cada um dos três Fóruns, destacando a proposta e a organização da gestão da Cidade das Cidades; segue-se, então, um item com reflexões críticas e perguntas em aberto provocadas pela narrativa, tendo como perspectiva a continuidade do processo de experimentação em torno do desenvolvimento de práticas de gestão (das organizações e do espaço) compatíveis com a possibilidade de um outro mundo.

Abstract

While writing this text we had the objective of registering part of the history and experience of one of the most interesting and less disseminated aspects of the World Social Forum - The Youth Camp. We also included a theoret1cal contribution to reflect on what happened, we also pose some questions considering the future. The text is organized as a bricolage of narratives, perceptions and reflections. In some parts we review the theory, in others we make registers, in others we analyze, while leaving many questions without answer... The idea is that tl1ese parts, even if not fully articulated, provide some sense and provoke some conversation. The article presents, always briefly, a mix of concepts and approaches on self-management; the history of the camp's organization in each one of the three events, considering mainly the proposal and organization of the City of Cities' management; following there is an item with critical reflections and open questions posed by the narrative and considering the perspective of the continuity of the experimentation process on the development of alternative practices of (organization and space) management - coherent with the possibilities of a new world.

liberdade vento onde tudo cabe Paulo Leminski LEMINSKI, Paulo. Winterverno. São Paulo: Iluminuras, 2001.

Enquanto as ideologias do poder procuram ocultar as múltiplas alienações do homem moderno, a proposta autogestionária surge como denúncia, como possibilidade real e radical de transformação social. Fernando Prestes MottaMOTTA, Fernando C. Prestes. Burocracia e autogestão: a proposta de Proudhon? São Paulo: Brasiliense , 1983. (Coleção Primeiros Vôos).

Esse artigo pode provocar alguns estranhamentos, ao fugir, de algumas maneiras, do esperado. De modo mais óbvio, é tema da autogestão, com a perspectiva de autogoverno e colocada como caminho para a construção de um outro modo de viver em sociedade, é praticamente ausente no campo da administração, ainda que esteja um pouco mais presente no campo do planejamento urbano.2 2 O tema da autogestão do espaço urbano se encontra em Paul Virilio e em Yona Friedman, entre outros. Práticas de autogestão do espaço são relacionadas, principalmente, com lutas urbanas por moradia e posse da terra. Nós, os autores, compartilhamos a utopia da possível construção de práticas alternativas de convivência social. Nesse sentido, temos como objetivos, ao redigir esse texto: registrar um pouco da história e da experiência de um dos aspectos mais interessantes e menos abordados do Fórum Social Mundial3 3 O FSM, segundo sua Carta de Princípios, é um espaço aberto de encontro para o aprofundamento da reflexão, o debate democrático de idéias, a formulação de propostas, a troca livre de experiências e a articulação para ações eficazes, de entidades e movimentos da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo, e estão empenhadas na construção de uma sociedade planetária, orientada a uma relação fecunda entre os seres humanos e destes com a terra. - o Acampamento da Juventude; aportar alguma contribuição teórica para a reflexão sobre o que foi realizado e, principalmente, levantar questões para o futuro.

A forma do texto é a de uma bricolagem de narrativas, percepções e reflexões. Um pouco revisamos a teoria, um pouco fazemos registros, um pouco analisamos, muito deixamos questões sem resposta... A idéia é que essas partes, ainda que não exatamente articuladas entre si, portem sentidos e despertem conversas. O artigo apresenta, sempre de forma breve, uma mistura de conceitos e revisões de abordagens sobre o tema da autogestão; a história do Acampamento Intercontinental da Juventude em cada um dos três Fóruns, destacando a organização e a proposta de gestão da Cidade das Cidades; segue-se, então, um item com reflexões críticas e perguntas em aberto provocadas pela narrativa, tendo como perspectiva a continuidade do processo de experimentação em torno do desenvolvimento de práticas de gestão (das organizações e do espaço) compatíveis com a possibilidade de um outro mundo.

UM POUCO DE TEORIA

O tema da autogestão surge na Europa industrial do século XIX, reaparece através dos anarquistas durante o processo da Revolução Russa e da Guerra Civil Espanhola, ganha um significado "oficial" com as práticas de gestão fabril pelos trabalhadores na Iugoslávia de Tito. Reaparece na década de 60, impulsionada pelos movimentos contestatários de 68. Se esvanece na década de 80 para reaparecer no final dos anos 90, no bojo do movimento planetário em busca de alternativas ao capitalismo contemporâneo.

Segundo a Enciclopédia Universal France autogestão, em seu sentido literal, significa gestão por si mesmo, e seus postulados são a supressão de toda distinção entre dirigentes e dirigidos, a afirmação da aptidão dos seres humanos para se organizarem coletivamente. Autogestão não é o mesmo que participação, co-gestão4 4 Abordando as práticas de co-gestão disseminadas no final da década de 70, início da de 80, em países do capitalismo avançado, Motta (1984, p.11) as contextualiza como parte de uma estratégia de administração do conflito e dos riscos de mudança social: "(...) o capitalismo burocrático, expressão pela qual designamos o capitalismo de organização, depende, para a administração do conflito, isto é, para sua antecipação e controle, de um concurso voluntário de todos os agentes de produção: em suma, a colaboração das classes torna-se essencial para o equilíbrio do sistema." Além da modalidade de co-gestão desenvolvida, de modo mais completo, pela então Alemanha Ocidental, e que se estrutura em torno da existência de conselhos com competências claramente definidas". A esse respeito ver também Tragtenberg (1980b). Outra vertente participacionista na administração pode ser chamada de co-gestão técnica, incluindo desde as formulações do grupo de Tavistock sobre o sistema sócio-técnico (TRIST, 1981) até o Toyotismo no período pós-fordista. Esse é definido por Antunes (1995, p. 34) como "envolvimento cooptado, que possibilita ao capital apropriar-se do saber e do fazer do trabalho". , controle operário ou movimento cooperativo.5 5 A esse respeito ver a classificação de Guillerm e Boudet (1976).

Utilizamos, como referência para esse texto, a seguinte definição de autogestão: gestão dos meios de produção e organização social coerente com os princípios da liberdade e igualdade, em que todas as entidades de base, movimentos populares, grupos e indivíduos têm iguais direitos e participação. Consideramos que as hierarquias reproduzem formas de dominação, através da perpetuação de situações de controle e dependência. Desse modo, ainda que as experiências de autogestão sejam raras e, inclusive, parciais, o importante é apontar agora um caminho. Consideramos, também, que é importante romper com a doxa, criando espaços para discursos paradoxais. Daí a decisão de trazer esse texto para o debate público.

Apesar de reconhecermos explicitamente a existência de duas grandes vertentes na abordagem da autogestão, optamos por não nos posicionarmos por qualquer uma delas. Em vez disso escolhemos, de modo consciente, a aparente inconsciência de transitar livremente entre as vertentes socialista e libertária da autogestão.

Maurício Tragtenberg (1996)TRAGTENBERG, Maurício. Conciliação, neoliberalismo e educação. São Paulo: Annablume, 1996., defensor intransigente da liberdade como valor, afirmava que a autogestão tem uma 1mportância que é, simultaneamente, social, política e individual. Tragtenberg (1986)TRAGTENBERG, Maurício. Reflexões sobre o socialismo. São Paulo: Moderna, 1986. aproximava as concepções de autonomia e de autogestão, afirmando que elas significam a integração do econômico com o político, afastando o tecnocrata administrador e o político profissional, característicos da democracia representativa. Autonomia opõe-se à heterogestão, característica das sociedades hierarquizadas, burocráticas, regidas pelas relações de dominação e desigualdade. Nesse sentido, pode-se entender o capitalismo como sendo, além de um modo de produção, uma forma histórica e particular de heterogestão social. Nessa mesma direção, Motta (1981MOTTA, Fernando C. Prestes. O que é burocracia? São Paulo: Brasiliense, 1981.) desvenda as relações entre burocracia capitalismo, lembrando que as virtudes da burocracia são as virtudes do capitalismo: um mundo de dominação e de falta de sentido.

Se considerarmos participação como a realização de algum nível de proximidade com relação ao poder instituído, autogestão não é mais participação, mas o exercício do poder de modo autônomo (MOTTA, 1984MOTTA, Fernando C. Prestes. Participação eco-gestão: novas formas de participação. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense , 1984. (Coleção Primeiros Voos).). Tragtenberg (1987TRAGTENBERG, Maurício. Uma prática de participação: as coletivizações na Espanha (1936/1939). In: VENOSA, Roberto (Org.) Participação e participações: ensaios sobre autogestão. São Paulo: ed. Babel Cultural , 1987. p. 21-60, p. 23), por sua vez, identifica participação com a democratização radical da sociedade: "uma real participação exige a auto-organização e autodeterminação das massas, muito difícil de se realizar na estrutura hierárquica rígida".

A autêntica autoconsciência implica na produção de uma coerência básica, em que estejam claramente explicitadas as relações entre meios e fins. Essa exigência é totalmente contrastante com a da organização de congressos sobre 'participação', 'controle operário' ou 'autogestão' onde burocratas pontificam; da mesma forma que consideramos irracional e desonesta a postura daqueles que falam da libertação e da autogestão exercida pelos trabalhadores e na prática mantêm a crença de que os líderes são indispensáveis às propostas de mudança social. (...) organizações ou partidos estruturados hierarquicamente e de direção autoritária só podem criar sociedades à sua própria imagem e semelhança." (TRAGTENBERG, 1987TRAGTENBERG, Maurício. Uma prática de participação: as coletivizações na Espanha (1936/1939). In: VENOSA, Roberto (Org.) Participação e participações: ensaios sobre autogestão. São Paulo: ed. Babel Cultural , 1987. p. 21-60, p. 27)

Fazendo eco às formulações de Rosa Luxemburgo (1985LUXEMBURGO, Rosa. Partido de massas ou partido de vanguarda. São Paulo: Nova Stella, 1985., p.40), para quem o socialismo seria produto de lutas em que o papel dirigente seria ocupado pelo "eu coletivo da classe operária, que reclama resolutamente o direito de cometer ela mesma os equívocos e de aprender por si só a dialética da história", Tragtenberg (apud Accioly e Silva, 1999ACCIOLY E SILVA, Doris; MARRACH, Sonia Alern. Maurício Tragtenberg: uma vida para as ciências humanas. São Paulo: FAPESP/UNESP, 1999., p.79) afirma que o tema central de uma sociedade socialista não é o Estado, mas a criação de estruturas autogestionárias: para autogerir alguma coisa é preciso começar autogerindo a própria luta. "É como a sua vida: não se pode abdicar da vida e dizer: 'Não, viva a minha vida por mim'. Você tem de autogerir a sua luta e aí adquire a capacidade de autogerir instituições".

A revolução industrial desperta, como reação, pelo menos dois grandes conjuntos de formulações sobre autogestão: dos socialistas utópicos e dos marxistas.

No Quadro 1 que segue se sintetizam as propostas participativas de alguns socialistas utópicos, com base em Tragtenberg (1980aTRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e ideologia. São Paulo: Ática, 1980a) e Motta (1987MOTTA, Fernando C. Prestes. Alguns precursores do participacionismo. In: VENOSA, Roberto (Org.) Participação e participações: ensaios sobre autogestão. São Paulo: ed. Babel Cultural, 1987. p.11-20.).

Quadro 1
Síntese das Formulações de Autores Identificados como Socialismo Utópico

Para a utopia marxiana é a apropriação comum dos meios de produção o que converte o trabalho dos indivíduos· em imediatamente social. O afastamento com relação a Proudhon tem a ver com sua oposição a toda função, inclusive transitória, atribuída ao Estado no processo de emancipação. Proudhon se opõe radicalmente ao comunismo autoritário e estatista, que atribui a Marx, recusando, ao mesmo tempo, a propriedade comum e o Estado. Marx, por sua vez, considera que as cooperativas são uma forma coletiva de apropriação privada que anula o poder do patrão na empresa, sem abolir o capitalismo (TEXIER, 2000TEXIER, Jacques. Democracia, socialismo e autogestão. La Pensée, n.321, 2000.). Marx (1961)MARX, Karl. La miseria de la filosofía. Madrid: Editora Socialista, 1961. explicava a Proudhon que, em uma sociedade fundada sobre a miséria, os produtos mais miseráveis têm a fatal prerrogativa de servir de uso ao maior número de pessoas; só a transformação revolucionária do mundo, de todos os aspectos do mundo, confirmaria todos os sonhos de abundância.

A autogestão é um projeto e um movimento, não podendo ser nunca um modelo acabado. Sua estrutura e organização, sua própria existência, é e será fruto do desejo, pensamento e ação dos membros do grupo envolvido, sem preconceitos nem imposições. Tendo em mente essa afirmação, e apenas como modo de exemplificar a gestão com base na democracia direta, reproduzimos a concepção desenvolvida pelo Grupo Autonomia (1997)GRUPO AUTONOMIA. Teses para a formação de uma rede de indivíduos, grupos e organizações autônom@s. Disponível em: Disponível em: http://www.nodo50.org/lei/anarquismo/autogestao.htm . Acesso em: 27/02/2003.
http://www.nodo50.org/lei/anarquismo/aut...
para a formação de uma rede de indivíduos, grupos e organizações autônomos. Enquanto forma de gestão das diversas atividades pelos coletivos que as protagonizam, a democracia direta tem como base a assembléia, órgão máximo de deliberação que elege (com mandato imperativo) e revoga (a qualquer tempo) os delegados para uma determinada função. É imprescindível a circulação permanente de informações, de modo que todos possam, quando necessário, discutir e tomar decisões com pleno conhecimento de causa. A estrutura e organização envolve: coordenação dos indivíduos mediante um comitê de coordenação, rotativo e formado por delegados eleitos e revogáveis pela assembléia; coordenação das tarefas específicas por comissões correspondentes; comissões técnicas que funcionam sobre controle político do comitê de coordenação; assembléia geral - órgão máximo de deliberação e espaço comum a todos os indivíduos, grupos e organizações com periodicidade determinada. As minorias são livres 1para não encaminhar uma deliberação com a qual não concordem, desde que não impeçam o encaminhamento decidido. O delegado, ou representante, é apenas o portador. de uma decisão tomada por uma instância coletiva. Sua função é levar para outro fórum uma proposta de seu organismo de base, proposta essa que é flexível até certo ponto, visando um acordo geral com todos os organismos de base presentes. A tarefa de delegação é indicada pelo coletivo ao membro, sendo que esse não pode tomar suas próprias decisões. As funções de representação e delegação terminam no exato momento que o coletivo considere necessário.

UMA BREVE HISTÓRIA DOS ACAMPAMENTOS

O primeiro Acampamento foi organizado, predominantemente, pela Juventude Partidária de Esquerda, principalmente UJS, PSTU e PT. Teve apoio da Prefeitura Municipal através da Coordenadoria dos Direitos Humanos e Cidadania (CDHC), que serviu e serve de interlocutor entre a Prefeitura e o Comitê Organizador do Acampamento até hoje. O Acampamento ocorreu de forma autônoma ao Fórum.

Havia a expectativa de que 2.000 pessoas viessem a participar do Fórum como ouvintes e acampassem nas dependências do Parque da Harmonia. Porém, o credenciamento registrou 3.500 pessoas. A organização deixou muito a desejar, tudo foi feito em cima da hora e na correria, visto que a organização do Acampamento só começou a se reunir dois meses antes do evento. Mesmo o FSM era uma coisa vaga para todos, inclusive para os moradores de Porto Alegre. Não tínhamos muita clareza sobre em que moldes e com qual magnitude ocorreria, ou, até, se realmente aconteceria.

O Centro de Eventos da PUC, onde ocorriam as Conferências, testemunhos, oficinas e palestras se encontra a uma boa distância do Centro e do Parque da Harmonia. A Prefeitura Municipal disponibilizou linhas de ônibus que faziam o trajeto Acampamento-PUC durante a realização dos eventos, o que ocorria durante a manhã e à tarde. Porém, muitos jovens preferiram vivenciar o Acampamento, relegando a programação oficial que ocorria na PUC. Podemos citar vários motivos para isso. Alguns vieram com poucos recursos monetários, então evitavam o deslocamento para poupar dinheiro. Outros vieram vendendo artesanato, e encontraram seu público consumidor no próprio Acampamento. Outros aproveitaram a infra-estrutura do Parque da Harmonia - banheiros, praça de alimentação, palco de shows - para residir 24 horas no Parque, conhecer pessoas, culturas e idéias novas, muitas vezes diferentes das suas, que poderiam agregar novos conceitos a seus ideais de luta. Enquanto a PUC centralizava os debates e as conferências, isto é, representava o processo de teorização na busca do 'Outro Mundo Possível', no Acampamento o que se via era a vivência. Jovens de todas as idades e do mundo inteiro/ se reunindo para compartilhar uma outra forma de globalização, respeitando individualidades e não impondo verdades de poucos sobre os desejos e necessidades de muitos.

Quando o Comitê Organizador tomou a decisão de que no próximo ano o FSM continuaria em Porto Alegre, foi criado o Comitê da Juventude, responsável pela organização do próximo Acampamento. À juventude partidária de esquerda do Rio Grande do' Sul foram agregados movimentos sociais atuantes em Porto Alegre, como o Movimento Estudantil, o Movimento de Meninos de Rua, o Movimento do Hip-Hop, as Rádios Comunitárias, o Movimento Negro e o Movimento pela Livre Orientação Sexual. Dessa vez houve um apoio um pouco maior por parte da Prefeitura de Porto Alegre (através da CDHC). Também o Comitê Gaúcho do FSM, ligado ao gabinete do Governador do Estado, deu sua parcela de contribuição, assim como a ABONG (Associação Brasileira das Organizações Não-Governamentais).

O 2° Acampamento Intercontinental Cidade da Juventude Carlo Giuliani6 6 Homenagem ao estudante morto pela polícia italiana, durante as manifestações em Gênova. é, então, organizado pelo Comitê da Juventude.

Durante a Semana de Arquitetura da UFRGS (Semana Acadêmica) aconteceu um atelier de três dias de duração com o Coordenador do Centro de Estudos e Planejamento Ambiental, Ruben Pesei, e com o Professor da UFRGS Leandro Andrade, sobre um projeto de planejamento ambiental para o Acampamento da Juventude. Trinta estudantes participaram da oficina, sendo que aproximadamente um terço deles vieram a integrar o Comitê Organizador do Acampamento, na sua Comissão de Planejamento. Esse grupo de estudantes de arquitetura dizia, a princípio, que não queria se meter em política, e sim faz r urbanismo (DI GIOVANNI, 2002DI GIOVANNI, Júlia. O acampamento de juventude. In: LOUREIRO, Isabel; LEITE, José C.; CEVASCO, Maria E. O espírito de Porto Alegre. São Paulo: Paz e Terra, 2002.). No entanto, no processo, descobriu a política!

Foram criadas Comissões, dentro do Comitê, algumas delas são mencionadas a seguir, com os principais participantes:

  • Planejamento e Infra-estrutura - estudantes de Arquitetura organizados pelo Conselho Livre Metropolitano dos Estudantes de Arquitetura - COLMEA, com sede junto ao Instituto dos Arquitetos do Brasil/RS;

  • Cultura - Meninos de Rua, Hip Hop, Livre Orientação Sexual, Movimento Negro e Juventude do PT;

  • Comunicação - Rádios Comunitárias, estudantes da Região Metropolitana de Comunicação e Juventude do PT;

  • Mobilização - Juventude do PT com apoio do Comitê Gaúcho do FSM.

Ocorreram, durante a fase de preparação, aproximadamente 15 plenárias locais, algumas regionais e duas nacionais. Foram criados Comitês Regionais de Organização pelo Brasil, destacando-se o Jovem Rio.

O projeto todo foi calculado para 10.000 pessoas e a população da cidade chegou a 15.000, vindas de 140 países.

A Cidade Cario Giuliani foi dividida em três Eixos principais, o Eixo Residencial, o Eixo de Convívio e o Eixo de Atividades. O Eixo Residencial dispunha aos acampados áreas para colocação das barracas, banheiros e mesas com churrasqueiras. As barracas eram colocadas no sol, cobertas por sombrite - cobertura utilizada em estufas e plantações, e que ameniza a incidência dos raios solares. O objetivo era que os acampados saíssem cedo de suas barracas e se dirigissem aos Eixos de Convívio e Atividades, situados nas partes arborizadas do Parque. O Eixo de Atividades compreendia os Axônios Culturais, destinados às oficinas ministradas dentro do Acampamento e construídos com técnicas de bio-construção; os Espaços Descentralizadores de Cultura, nos quais as intervenções se davam fora da Cidade Cario Giuliani, atingindo vários pontos do Centro de Porto Alegre; o Cinema de Contestação, onde passavam filmes e vídeos; e o Espaço Caleidoscópio, espaço de interação entre as diferentes culturas presentes no Acampamento, abrangendo testemunhos, debates, bate-papo e mostras musicais. Por fim, o Eixo de Convívio abrangia a Usina de Comunicação, o Galpão da Administração, o Galpão de Reciclagem, a estrutura de $saneamento - com chuveiros e banheiros químicos previamente instalados, quiosques e churrasqueiras, e a Praça Central, onde urna grande fogueira permaneceu acesa durante toda a realização do 2º FSM. o Galpão de Alimentação só servia produtos livres de agrotóxicos produzidos por cooperativas agrícolas e pelo MST, abominando o consumo de produtos de origem transgênica.

Os Movimentos Sociais integrantes do Comitê Organizador Internacional do FSM, principalmente a Via Campesina, se vinculam ao Acampamento. Assim, o Comitê Organizador se fortalece e ganha uma vaga no Comitê Internacional como ouvinte. Com isso o FSM começa a enxergar o Acampamento da Juventude como parte integrante do mesmo. Na verdade, diversas ações diretas, realizadas a partir do Acampamento, na PUC, evidenciam uma certa distância de espírito entre os eventos organizados e oficiais do Centro de Eventos e as iniciativas vindas dos grupos de jovens (DI GIOVANNI, 2002DI GIOVANNI, Júlia. O acampamento de juventude. In: LOUREIRO, Isabel; LEITE, José C.; CEVASCO, Maria E. O espírito de Porto Alegre. São Paulo: Paz e Terra, 2002.).

A Prefeitura de Genebra manda dois representantes para acompanhar o processo de organização do Acampamento e disponibiliza uma soma considerável em dinheiro para construir o único benefício que o Acampamento deixou para o Parque: banheiros que foram construídos dentro das normas de acessibilidade universal (para deficientes) ·e que dobraram o número de sanitários do Parque.

No intervalo entre o segundo e o terceiro Acampamento da Juventude, o Comitê Organizador pôde se fortalecer. A Comissão de planejamento e infra-estrutura propôs ao Comitê Organizador do FSM que novos espaços mais próximos ao Centro de Porto Alegre fossem utilizados·- como o Ginásio Gigantinho, o Auditório Araújo Viana, os Armazéns do Cais do Porto e a Usina do Gasômetro, todos eles razoavelmente próximos ao Parque da Harmonia.

A organização do Acampamento da Juventude também começa a aumentar de proporção e se espalhar pelo resto do mundo. Ocorre uma 'expansão territorial' da Cidade da Juventude.

O FSM e o Acampamento são um processo (...) e esse processo somos nós. Ao invés de algo que acontece anualmente, trata-se do lento cultivo da articulação desses outros mundos que coexistem. Somos um movimento de movimentos, e qualquer lugar onde os nossos encontros acontecerem será uma Cidade das Cidades. Esse é o nome não de um lugar, mas da nossa reunião. (COMITÊ DA JUVENTUDE DO FSM, 2003COMITÊ DA JUVENTUDE. Convocatória do 3° Acampamento Intercontinental da Juventude do FSM: a Cidade das Cidades. Material de divulgação do FSM 2003., p. 10)

O Comitê Organizador deixa de lado seu caráter localista - que caracterizou as duas primeiras edições do Acampamento - e ganha um caráter mais globalizado. Em agosto de 2002 ocorre o Fórum Social Argentino e em outubro de 2002 o Fórum Social Uruguaio. As organizações dos dois eventos foram fortemente influenciadas pela organização do 2º Acampamento da Juventude, e vieram a colaborar com a organização do 3º Acampamento. Com esse processo, iniciou-se a criação de uma Rede de Cidades, que certamente virá a se consolidar no 4º Acampamento Intercontinental da Juventude, que acontecerá na Índia.

A GESTÃO DA CIDADE DAS CIDADES7 7 Esse item se baseia no documento divulgado pelo Comitê Organizador do Acampamento, intitulado "A Gestão da Cidade das Cidades".

No 1º Acampamento não ocorreu nenhuma noção de gestão. No 2º, pensa-se na necessidade de planejamento, mas não se dá prioridade à questão. No 3º, existe uma proposta de gestão aprovada em Plenário Nacional.

A organização dos acampados no Parque Harmonia, e da vida coletiva no acampamento, é considerada como uma grande experiência de organização e vivência semelhante a uma cidade. A proposta de gestão desta Cidade das Cidades é a de autogestão, apresentada a partir do contexto histórico das experiências que vão desde a Comuna de Paris (1871) até o movimento Barrios de Pie na Argentina contemporânea. Oferecendo-se como um laboratório de idéias e práticas, os organizadores do 3º Acampamento propõem aos cidadãos dessa Cidade constituir e viver um espaço para a criação de conceitos, teorias e exercícios de práticas transformadoras que questionem, a partir do cotidiano, os modos de vida e valores da sociedade capitalista.

A Cidade das Cidades foi dividida em dois eixos estruturantes - o eixo residencial e o eixo de atividades.

O eixo residencial foi, por sua vez, dividido em quatro regiões· (divididas em 31 setores numerados), de acordo com os pontos cardeais. Cada região foi identificada por uma cor. A cor e o número faziam p rte do crachá de identificação do acampado. O setor deveria ser o núcleo básico f de gestão. Seus limites eram sinalizados por barreiras naturais, além de cordas e faixas. Havia, também, a esfera dos serviços coletivos: segurança, gestão ambiental, intérpretes e tradutores, credenciamento, saúde, monitores, facilitadores, comunicação, praças de alimentação nos dois eixos.

A Esfera de Convergência Temática incluiu cinco espaços localizados no eixo de atividades, com capacidade para 1.000 pessoas, sendo destinado para a realização de seminários, plenárias, encontros dos movimentos, painéis etc. Os espaços seguiam os temas estruturados para o FSM como um todo: desenvolvimento democrático e sustentável; princípios e valores, direitos humanos, diversidade e igualdade; mídia, cultura e contra-hegemonia; poder político, sociedade civil e democracia; ordem mundial democrática, combate à militarização e promoção da paz. Ao seu redor, os grupos, redes e movimentos podiam montar uma estrutura física, estandes para divulgar seus trabalhos e ações.

A Esfera de Relações Institucionais era composta por entidades, organizações e espaços envolvidos com a organização estrutural do Acampamento, desde seu princípio: Prefeitura de Porto Alegre, Fórum Mundial da Educação, Comitê Organizador Brasileiro do FSM, Conselho Brasileiro do FSM, Conselho Internacional, Empresa de Segurança Privada Linha, Comissões de Infraestrutura e Planejamento, de Comunicação e de Cultura do Comitê Organizador do Acampamento.

Em termos de infra-estrutura, a Cidade das Cidades utilizou os mesmos moldes da Cidade Cario Giuliani. Além dos banheiros já existentes no Parque da Harmonia, foram disponibilizados 150 sanitários químicos dispostos na Área Residencial. Foram disponibilizados também 35 chuveiros externos, além de 150 chuveiros colocados em 15 contêineres também na Área Residencial. O Grupo de Trabalho (GT) Ambiental procurou fazer uma campanha de conscientização junto aos acampados. Sabonetes e xampus neutros ou orgânicos, que não agridem o meio ambiente, eram vendidos no seu Galpão. Também foram distribuídos panfletos e cartazes sobre a necessidade de consumo ético da água e mostrando os chuveiros em que poderiam ser utilizados produtos inorgânicos, e quais os que só admitiriam o uso de produtos orgânicos. Metade da água - dejetos - gerada pelos banheiros foi encaminhada para a rede pública de esgotos do Centro de Porto Alegre. A outra metade - a dos produtos orgânicos - foi desviada para uma piscina que faz parte do processo de drenagem do Parque.

Ao longo de toda Cidade das Cidades foram colocadas lixeiras de duas cores: verde para os resíduos secos, laranja para os resíduos orgânicos e rejeitas. Dentro do Parque havia um Galpão de Reciclagem, onde movimentos e grupos organizados faziam a triagem dos resíduos secos, gerando renda extra a esses movimentos. Os resíduos orgânicos e rejeitas eram encaminhados ao Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU). Estimava-se uma produção diária de aproximadamente 24 toneladas de lixo por dia, sendo que aproximadamente 60 por cento dele poderia ser reciclado. Também visando diminuir a proliferação de lixo seco, o GT Ambiental disponibilizou a todos os acampados canecas plásticas, evitando assim o uso de copos plásticos descartáveis.

Dentro da Central de Serviços do Acampamento, se encontravam Serviços de Saúde com profissionais de medicina tradicional, odontologia e enfermagem, identificados com uma cruz vermelha; e profissionais de terapias holísticas, identificados com uma cruz verde. Esses últimos utilizavam técnicas como o Reiki a Radiestesia, Massoterapia, Shiatsu, Yôga e Fitoterápicos. Também na Central de Serviços encontrávamos o Serviço de Informações Turísticas, o Sistema de Som Interno do Acampamento e o Serviço de Segurança. Havia duas praças de alimentação no Eixo Residencial e outra no Eixo de Atividades. Todos os produtos lá comercializados eram naturais, em sua maioria orgânicos. Segundo o Guia do Acampado na Cidade das Cidades, o objetivo das praças de alimentação era proporcionar o· consumo consciente, valorizando práticas agrícolas sustentáveis e gerar trabalho e renda para empreendimentos autogestionários.

A Usina de Comunicação concentrou o trabalho de produção e cobertura jornalística realizado pelas diferentes organizações jornalísticas atuantes no Acampamento, com 80 computadores conectados à internet e com software livre. Segundo o Guia do Acampado, seu objetivo era consolidar uma rede de contra-informação entre os movimentos, organizações, veículos alternativos e comunitários. Baseava-se na premissa de liberdade de informação, que pautou todas as edições do FSM. O Eixo de Atividades da Cidade das Cidades abrangia também dois palcos musicais onde aconteceram shows toda a noite. O primeiro se chamava 'Palco Outro Mundo', e teve seus shows previamente programados pelo Comitê Organizador por gêneros musicais. O segundo se chamava 'Palco É Possível', tendo sua programação semi-aberta, isto é, acampados de diferentes lugares do mundo que viessem com seus instrumentos se credenciavam junto à Coordenação do Palco e poderiam intervir no local, conforme disponibilidade da grade de horário. Também havia salas de cinema e de leitura, além de espaços livres a outras intervenções artísticas dentro do Acampamento.

São personagens dessa cidade:

  • Facilitador - primeiro contato que organiza o acesso ao credenciamento e aos setores, onde apresenta o monitor, além de fornecer informações gerais sobre o funcionamento.

  • Monitor - um acampado em cada setor, é a pessoa habilitada para dar todas as informações, resolver ou encaminhar problemas mais diretamente relacionados com a organização local, orientar o processo de ocupação do lote e orientar os acampados sobre onde poderiam buscar ajuda para solucionar seus problemas locais.

  • Acampado - participaria da gestão discutindo e organizando o setor onde estaria instalado, gerindo, através do seu movimento social, os espaços onde ocorrem as atividades coletivas na orla do Guaíba, ou organizando o funcionamento do acampamento como um todo através de sua participação voluntária nos serviços. A autogestão implicaria em que os próprios acampados se responsabilizas sem, coletivamente, pela organização do seu setor (Bairro), dos serviços coletivos e dos espaços constituídos. A gestão começaria a partir do primeiro contato, do momento da inscrição pelo sítio da juventude do FSM. Na inscrição, o participante poderia optar por participar da gestão e escolher alguma tarefa na qual atuaria durante sua estada.

Como deveria ser a prática da gestão:

  • Cada setor tinha a responsabilidade de se organizar para garantir a segurança e a limpeza, constituir um esquema de comunicação e informação entre o seu espaço e o conjunto do Acampamento e organizar a tradução. Além dessas, deviam disponibilizar voluntários para todos os serviços coletivos. o monitor seria o responsável por iniciar o processo de autogestão no setor, convocando as primeiras assembléias e orientando os acampados sobre quais seriam as tarefas de gestão a serem cumpridas pelos mesmos através da auto-organização. Deveria ocorrer uma Assembléia do Setor uma vez por dia, ou segundo cronograma definido coletivamente na primeira delas. Essa seria o espaço para definir as regras e procedimentos da organização do Setor, sendo soberana para deliberar e fazer executar as responsabilidades e funções que competem a cada Setor, além de indicar os voluntários. Os interessados deveriam definir a forma como o Núcleo de Gestão do Setor daria conta das demandas internas. Na primeira Assembléia seria escolhido um representante do Núcleo do Setor, que poderia ser rotativo, para fazer a relação com o Conselho de Gestão.

  • Os Serviços Coletivos tinham como referência a Central de Serviços, onde havia uma sala para cada um deles. Nelas deveria ocorrer a Assembléia diária dos agentes de cada serviço. Na Assembléia do Serviço Coletivo seria escolhido um Núcleo Gestor que deveria relatar as atividades e fiscalizar a execução das tarefas definidas coletivamente. A primeira Assembléia seria instalada e coordenada pelas pessoas responsáveis por aquele serviço no Comitê Organizador do Acampamento. O representante do Núcleo, permanente ou rotativo, faria a representação junto ao Conselho de Gestão.

  • No momento em que um grupo, rede 'ou movimento social, realizou sua inscrição como coletivo, optou por um eixo temático do FSM. A partir desse momento se tornaram co-gestores de cada um dos Espaços Temáticos. Esse coletivo deveria gerir a grade de programação do espaço, manter a segurança e limpeza, organizar atividades nos períodos vagos, procurar resolver seus problemas com os serviços coletivos correspondentes. A Assembléia do Espaço de Convergência Temática serviria como momento de debates de temas de convergência entre grupos e para a organização de demandas e tarefas de gestão. Deveria constituir um Núcleo de Gestão e escolher seu representante para o Conselho de Gestão. Também caberia a ela definir a metodologia de funcionamento aos espaços, respeitando a programação organizada pelo Comitê Organizador do Acampamento.

  • Cada membro da Esfera das Relações Institucionais definiria seu representante no Conselho de Gestão.

  • O Conselho de Gestão seria o espaço de convergência de todos os agentes de gestão dos setores, serviços coletivos, espaços temáticos, relações institucionais e outras representações (Palco Outro Mundo, Palco É Possível, Feira de Artesanato). Deveria ser a instância de encaminhamento de questões que dizem respeito às relações internas ou que precisariam ser encaminhadas para outros organismos. Suas atribuições e responsabilidades incluiriam: garantir a harmonia e a circulação das informações de todas as instâncias de gestão e do acampamento; deliberar sobre questões propostas e informar para o Acampamento suas deliberações. Teria um papel articulador a partir do momento em que grande parte dos problemas deveria ser resolvida pelos núcleos de gestão dos setores. O Conselho de Gestão se reunia todos os dias, no final da tarde. Na primeira reunião deveria ser escolhida, uma Secretaria que, em conjunto' com o Grupo de Trabalho de Gestão do Comitê Organizador do Acampamento, se encarregaria da animação e condução metodológica das reuniões, além de socializar as informações para todo o Acampamento através do sistema de som e dos murais distribuídos pelos níveis de gestão.

Para reafirmar a realidade da Cidade das Cidades como um espaço autônomo de convívio de uma pluralidade de povos, e para facilitar o câmbio de moedas entre os acampados, principalmente os estrangeiros - evitando perdas monetárias para as Casas de Câmbio - foram criadas, em parceria com o Movimento Monetário Mosaico e a Rede de Arte Planetária, dois tipos de moedas a serem utilizadas no Acampamento. A primeira é o Sol, utilizada como unidade monetária do Acampamento. Seu valor monetário era equivalente a um real. A segunda era a Lua, e servia para facilitar trocas de objetos dentro das Feiras de Trocas Culturais, promovidas pela Rede de Arte Planetária.

O Acampamento se desenvolveu com relativo sucesso, considerando a sua magnitude - cerca de 30.000 pessoas. Além do crescimento em tamanho, sofre de alguns problemas que ocorreram no Fórum como um todo, e que refletem uma integração "perversa" com a vida de Porto Alegre. Esses problemas podem ser exemplificados com duas situações bastante críticas: a segurança e a relação com a segurança, ou seja, a relação com os "fora da lei" e com os "protetores da lei".

A segurança do Acampamento era mantida por 155 pessoas de uma empresa privada, contratada pelo Comitê e, pela primeira vez, pelo 40 Regimento de Política Montada da Brigada Militar do Estado. A relação com esses grupos era feita por membros do Comitê designados para isso. Na área residencial, a segurança era auto-organizada pelos residentes, com um sistema de ronda pelos próprios acampados. Apesar desse esquema, o número de ocorrências policiais aumentou vinte vezes em relação ao ano anterior, enquanto o número de acampados foi multiplicado por dois. Por outro lado, a presença das "forças da ordem" dentro do Acampamento provocou um dos episódios mais lamentáveis do Fórum - a repressão violenta a um grupo de nudistas. O episódio se inicia quando uma jovem resolve tomar banho de chuveiro nua, sendo reprimida pela segurança pública. Como reação, os jovens resolvem fazer uma manifestação de nudismo, dentro do Acampamento. Até aí havia um acordo velado com a Brigada Militar de que não haveria repressão. No entanto, os jovens se deslocam até o Auditório Por do Sol, onde aconteciam os shows noturnos, sendo, então, violentamente reprimidos (com prisões e atendimentos no Pronto Socorro Municipal) pelos brigadianos (ZERO HORA, 2003).

Na prática, a proposta de autogestão funcionou de modo muito parcial: Alguns ativistas, como os grupos organizados argentinos, que têm experiência de práticas de autogestão, compreenderam. mais imediatamente do que se tratava. No entanto, na maioria dos setores não se concretizou o proposto. Sendo assim, esses foram representados pelos monitores junto ao Comitê e nas instâncias coletivas.

REFLETINDO LIVREMENTE A PARTIR DA EXPERIÊNCIA

Não restam dúvidas de que a composição do Comitê de Organização mostra um grande avanço· no sentido de democratizar-se. Além disso, a ousadia de pensar uma proposta de gestão para um episódio transitório, multicultural e de grandes dimensões, revela uma enorme disposição de participar ativamente da construção de alternativas. Ainda que não se tenham concretizado as expectativas dos organizadores ou, talvez, exatamente por causa disso, propomos, a seguir algumas reflexões/desafios para os desdobramentos futuros. Essas questões só fazem sentido pelo reconhecimento da potencialidade dessa articulação de jovens ao redor do mundo, e pelo grande significado que ela tem e continuará a ter na formação de novas gerações de militantes da causa de um mundo solidário.

Cabe ainda dizer que olhamos para a experiência como se ela fosse um laboratório, um espaço onde se expressa a relação entre teoria/proposta/ação. A metáfora do laboratório comporta a possibilidade de tentativas e erros, de reconstrução da experiência a partir do realizado e analisado.

Uma constatação bastante evidente é 'a da reprodução, na gestão do espaço, do planejamento característico da cidade capitalista. E essa forma de ocupação do espaço que está na base e orienta (limita?) as possibilidades da autogestão do Acampamento enquanto organização. Seria de se esperar (desejar?) uma concepção de cidade que remetesse à polis ou à civitas, ou seja, que remetesse à dimensão política e não, predominantemente, à dimensão espacial. No entanto, o que se reproduz é o conceito de cidade racional, baseado no princípio da representação, da ordem, das funções, das medidas, da ordenação dos objeto segundo critérios de identidade e diferença, da circulação de fluxos, da ordenação matemática da regularidade e da repetição, enfim, do conceito de cidade que possibilita o controle através do esquadrinhamento e domínio dos espaços (ROLNIK, 1995ROLNIK, Raquel. O que é cidade. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense , 1995. (Coleção Primeiros Passos).).

Outra constatação é que o planejamento seguiu as formas da hierarquia e da autoridade. Ou seja, a cidade foi planejada por alguns para ser, posteriormente, apropriada e gerida pelos demais. Possivelmente, este tenha sido o motivo da baixa adesão à proposta de gestão. Além disso, salta aos olhos que a proposta de gestão incorpora uma espécie de coletivismo burocrático, onde componentes de direção e controle estão claramente presentes. Será que, em tempos de internet, seria possível a prática autogestionária da concepção ao momento da vivência do Acampamento? O quanto o Acampamento poderia servir, não apenas durante sua realização, mas ao longo dos meses que o antecedem, enquanto espaço de circulação de concepções e experiências de autogestão, de articulação de jovens em torno dessa possibilidade de transformação social?

Será possível uma outra urbanização, que não reproduza a hierarquia das funções, que não reproduza a lógica da cidade oficial circundante? Será possível pensar uma cidade das cidades que, ao ser "projetada" pelos que nela viverão, incorpore os imaginários urbanos8 8 A esse respeito ver Silva (2001). de todas as cidades que nela estarão presentes? Será que em uma desordem organizada não seria mais harmoniosa a convivência com as diferenças, os minoritários e dissidentes (como os punks ou os nudistas, p. ex.)? Será que uma cidade pensada fora do padrão do plano possibilitaria espaços para a expressão dos "marginais" (segundo a classificação da ordem), que seriam considerados e respeitados como indícios de modos dissidentes de produção da subjetividade e da sociedade?9 9 A esse respeito ver Perlongher (1995). Enfim, será possível imaginar uma "cidade só feita de impedimentos, contradições, incongruências, contra-sensos" (CALVINO, 1990CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p.67)?

A experiência, por exemplo, do movimento espanhol okupa - uma rede informal de coletivos, que alia a apropriação coletiva de espaços abandonados com práticas de autogestão, parece indicar a possibilidade de aliar, de modo coerente, as dimensões democráticas na gestão e na concepção/uso do espaço (LÓPEZ, 2002LÓPEZ, Miguel Martinez. Labirintos y laboratorios de participación urbana: uma aventura de investigación social comparativa y dialéctica. Scripta Nova - Revista Eletrônica de Geografia y Ciências Sociales, Universidad de Barcelona, v.6, n.130, 2002. Disponível em: Disponível em: http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-130.htm. Acesso em: 07/12/2002.
http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-130.htm....
). Um exemplo dessa possibilidade vem de um grupo de mulheres, vinculado a esse movimento, que ocupa, desde novembro de 1996, uma antiga padaria em Madri - la eskalera karakola - tendo desenvolvido, através de assembléias e de modo totalmente horizontal, um projeto de transformação do prédio em um Centro Social Autogestionado Feminista. O projeto10 10 Cópia do projeto pode ser obtido em http://www.sindominio.net/karakola. procura incorporar tanto a lógica da autogestão quanto os sentidos da alteridade das mulheres, como uma espécie de casa da diferença.

Enfim, é preciso vincular a alternativa de gestão do Acampamento, considerado como organização, com a alternativa de produção e gestão do espaço. Para isso será preciso romper com inúmeras amarras, já que somos todos parte de processos históricos que influenciam nossas práticas, nossos modos de ver e esta no mundo. Para isso é preciso, como ensina Bourdieu (2000)BOURDIEU, Pierre. Intelectuales, política, poder. Buenos Aires: Eudeba, 2002. , compreender e criticar a ontolog,1a dessas práticas, sob pena de não o fazendo, reproduzi-las mecanicamente. E preciso, também, ter claro que essa é uma possibilidade que só se concretiza de modo coletivo, pelo desvendar das regras que regulam o jogo e que precisam ser modificadas. Ou seja, a possibilidade de atuar (e, para alguns, a obrigação de fazê-lo), no sentido da transformação do nosso mundo, torna imprescindível o desvelamento dos mecanismos. e dos sentidos da sua reprodução, inclusive daqueles introjetados em nossos corações e mentes. Falar, escrever, experimentar, organizar o pensamento, constituir redes de discussão e produção de concepções alternativas são, certamente, passos nessa direção.

REFERÊNCIAS

  • ACCIOLY E SILVA, Doris; MARRACH, Sonia Alern. Maurício Tragtenberg: uma vida para as ciências humanas. São Paulo: FAPESP/UNESP, 1999.
  • ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez Ed.,1995.
  • BOURDIEU, Pierre. Intelectuales, política, poder. Buenos Aires: Eudeba, 2002.
  • CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  • COMITÊ DA JUVENTUDE. Convocatória do 3° Acampamento Intercontinental da Juventude do FSM: a Cidade das Cidades. Material de divulgação do FSM 2003.
  • DI GIOVANNI, Júlia. O acampamento de juventude. In: LOUREIRO, Isabel; LEITE, José C.; CEVASCO, Maria E. O espírito de Porto Alegre. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
  • GUILLERM, A.; BOUDET, Y. Autogestão: mudança radical. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.
  • GRUPO AUTONOMIA. Teses para a formação de uma rede de indivíduos, grupos e organizações autônom@s. Disponível em: Disponível em: http://www.nodo50.org/lei/anarquismo/autogestao.htm Acesso em: 27/02/2003.
    » http://www.nodo50.org/lei/anarquismo/autogestao.htm
  • LEMINSKI, Paulo. Winterverno. São Paulo: Iluminuras, 2001.
  • LÓPEZ, Miguel Martinez. Labirintos y laboratorios de participación urbana: uma aventura de investigación social comparativa y dialéctica. Scripta Nova - Revista Eletrônica de Geografia y Ciências Sociales, Universidad de Barcelona, v.6, n.130, 2002. Disponível em: Disponível em: http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-130.htm. Acesso em: 07/12/2002.
    » http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-130.htm.
  • LUXEMBURGO, Rosa. Partido de massas ou partido de vanguarda. São Paulo: Nova Stella, 1985.
  • MARX, Karl. La miseria de la filosofía. Madrid: Editora Socialista, 1961.
  • MOTTA, Fernando C. Prestes. O que é burocracia? São Paulo: Brasiliense, 1981.
  • MOTTA, Fernando C. Prestes. Burocracia e autogestão: a proposta de Proudhon? São Paulo: Brasiliense , 1983. (Coleção Primeiros Vôos).
  • MOTTA, Fernando C. Prestes. Participação eco-gestão: novas formas de participação. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense , 1984. (Coleção Primeiros Voos).
  • MOTTA, Fernando C. Prestes. Alguns precursores do participacionismo. In: VENOSA, Roberto (Org.) Participação e participações: ensaios sobre autogestão. São Paulo: ed. Babel Cultural, 1987. p.11-20.
  • PERLONGHER, Nestor. Territórios marginais. In: MAGALHÃES, Maria Cristina Rios (Org.). Na sombra da cidade. São Paulo: Editora Escuta, 1995. p. 81-116.
  • ROLNIK, Raquel. O que é cidade. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense , 1995. (Coleção Primeiros Passos).
  • SILVA, Armando. Imaginários urbanos. São Paulo: Perspectiva, 2001.
  • TEXIER, Jacques. Democracia, socialismo e autogestão. La Pensée, n.321, 2000.
  • TRAGTENBERG, Maurício. Administração, poder e ideologia. São Paulo: Moraes, 1980b.
  • TRAGTENBERG, Maurício. Reflexões sobre o socialismo. São Paulo: Moderna, 1986.
  • TRAGTENBERG, Maurício. Uma prática de participação: as coletivizações na Espanha (1936/1939). In: VENOSA, Roberto (Org.) Participação e participações: ensaios sobre autogestão. São Paulo: ed. Babel Cultural , 1987. p. 21-60
  • TRAGTENBERG, Maurício. Conciliação, neoliberalismo e educação. São Paulo: Annablume, 1996.
  • TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e ideologia. São Paulo: Ática, 1980a
  • TRIST, Emery L. The evolution of Sociotechnical Systems. Documento n. 2, Ontário Quality of Working Life Center, junho, 1981.
  • 1
    Denominação do Acampamento Intercontinental da Juventude no 3° Fórum Social Mundial, ocorrido em Porto Alegre, janeiro de 2003.
  • 2
    O tema da autogestão do espaço urbano se encontra em Paul Virilio e em Yona Friedman, entre outros. Práticas de autogestão do espaço são relacionadas, principalmente, com lutas urbanas por moradia e posse da terra.
  • 3
    O FSM, segundo sua Carta de Princípios, é um espaço aberto de encontro para o aprofundamento da reflexão, o debate democrático de idéias, a formulação de propostas, a troca livre de experiências e a articulação para ações eficazes, de entidades e movimentos da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo, e estão empenhadas na construção de uma sociedade planetária, orientada a uma relação fecunda entre os seres humanos e destes com a terra.
  • 4
    Abordando as práticas de co-gestão disseminadas no final da década de 70, início da de 80, em países do capitalismo avançado, Motta (1984MOTTA, Fernando C. Prestes. Participação eco-gestão: novas formas de participação. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense , 1984. (Coleção Primeiros Voos)., p.11) as contextualiza como parte de uma estratégia de administração do conflito e dos riscos de mudança social: "(...) o capitalismo burocrático, expressão pela qual designamos o capitalismo de organização, depende, para a administração do conflito, isto é, para sua antecipação e controle, de um concurso voluntário de todos os agentes de produção: em suma, a colaboração das classes torna-se essencial para o equilíbrio do sistema." Além da modalidade de co-gestão desenvolvida, de modo mais completo, pela então Alemanha Ocidental, e que se estrutura em torno da existência de conselhos com competências claramente definidas". A esse respeito ver também Tragtenberg (1980b)TRAGTENBERG, Maurício. Administração, poder e ideologia. São Paulo: Moraes, 1980b.. Outra vertente participacionista na administração pode ser chamada de co-gestão técnica, incluindo desde as formulações do grupo de Tavistock sobre o sistema sócio-técnico (TRIST, 1981TRIST, Emery L. The evolution of Sociotechnical Systems. Documento n. 2, Ontário Quality of Working Life Center, junho, 1981.) até o Toyotismo no período pós-fordista. Esse é definido por Antunes (1995ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez Ed.,1995., p. 34) como "envolvimento cooptado, que possibilita ao capital apropriar-se do saber e do fazer do trabalho".
  • 5
    A esse respeito ver a classificação de Guillerm e Boudet (1976)GUILLERM, A.; BOUDET, Y. Autogestão: mudança radical. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976..
  • 6
    Homenagem ao estudante morto pela polícia italiana, durante as manifestações em Gênova.
  • 7
    Esse item se baseia no documento divulgado pelo Comitê Organizador do Acampamento, intitulado "A Gestão da Cidade das Cidades".
  • 8
    A esse respeito ver Silva (2001)SILVA, Armando. Imaginários urbanos. São Paulo: Perspectiva, 2001..
  • 9
    A esse respeito ver Perlongher (1995)PERLONGHER, Nestor. Territórios marginais. In: MAGALHÃES, Maria Cristina Rios (Org.). Na sombra da cidade. São Paulo: Editora Escuta, 1995. p. 81-116..
  • 10
    Cópia do projeto pode ser obtido em http://www.sindominio.net/karakola.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2004
Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia Av. Reitor Miguel Calmon, s/n 3o. sala 29, 41110-903 Salvador-BA Brasil, Tel.: (55 71) 3283-7344, Fax.:(55 71) 3283-7667 - Salvador - BA - Brazil
E-mail: revistaoes@ufba.br