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“Fazendo do Limão uma Limonada Sofisticada”: Gênero e Raça no Organizar Cotidiano das Práticas Culinárias

Resumo

Este artigo objetiva compreender o organizar do cotidiano a partir das dinâmicas de generificação e racialização das práticas do cozinhar/comer engendradas por gestoras ordinárias. Para isso, problematizamos o organizar numa ontologia processual e micropolítica que permite evidenciar como fissuras do cotidiano atravessam e ensejam rearticulações práticas de cunho tático e estratégico. Foram captadas narrativas de gestoras ordinárias negras, analisadas com a técnica dialógica narrativa, na busca por articular as vozes das sujeitas participantes às das autoras do texto, do referencial teórico adotado e do leitorado. Nossos achados desvelam a cozinha como espaço organizativo central para compreensão dessas práticas ordinárias (ainda que por vezes invisibilizadas e silenciadas), em processos heterogêneos de apreensão do saber-fazer culinário, bem como em dinâmicas articulações táticas e estratégicas para fins de sobrevivências. Devido ao momento em que a pesquisa de campo se deu, as narrativas descrevem essas articulações em meio aos impactos causados pela pandemia de covid-19 no cotidiano das gestoras pesquisadas. Empiricamente, esse estudo contribui ao mostrar a heterogeneidade no organizar das práticas que constituem a gestão ordinária, e que, no contexto de uma pandemia, produziram narrativas que destoam de uma narrativa hegemônica de ruptura, mas que, ainda assim, impactam o cotidiano e ensejam reconfigurações. Teoricamente, contribuímos ao mostrar como as práticas articulam no cotidiano repertórios aparentemente opostos como privado e público, sociabilidade e negócio. Avançamos, portanto, na compreensão do organizar das práticas como constituintes da gestão ordinária, em especial, a partir dos atravessamentos produzidos pelas categorias raça e gênero que engendram táticas e estratégias de sobrevivência.

Palavras-chave:
práticas; cotidiano; organizar; mulheres negras; gestão ordinária.

Abstract

This article aims to understand the organization of everyday life from the dynamics of gendering and racialization of cooking/eating practices engendered by ordinary managers. To do so, we problematize organization in a procedural and micropolitical ontology that allows to highlight how everyday cracks cross and give rise to practical rearticulations of a tactical and strategic nature. Narratives from ordinary black managers were captured and analyzed using the dialogic narrative technique, in the search for articulating the participating subjects’ voices with those of the authors of the text, the adopted theoretical framework and the readership. Our findings unveil the kitchen as a central organizational space for understanding these ordinary practices (although sometimes invisibilized and silenced), in heterogeneous processes of apprehension of culinary know-how, as well as in dynamic tactical and strategic articulations for survival purposes. Due to the moment in which the field research took place, the narratives describe these articulations amid the impacts caused by the covid-19 pandemic on the daily lives of the managers researched. Empirically, this study contributes by showing the heterogeneity in the organization of practices that constitute ordinary management, and which, in the context of a pandemic, produced narratives that differ from a hegemonic narrative of rupture, but which nevertheless impact on everyday life and give rise to reconfigurations. Theoretically, we contribute by showing how practices articulate apparently opposing repertoires such as private and public, sociability and business in everyday life. We have therefore advanced in understanding the organization of practices as constituents of ordinary management, in particular, from the crossings produced by the categories of race and gender that engender survival tactics and strategies.

Keywords:
practices; everyday life; organizing; black women; ordinary management.

“Lá na faculdade eles ficavam indignado comigo”: introdução

Lá na faculdade [de gastronomia] eles ficavam indignado comigo. Porque dava o nome [do prato da culinária francesa] e eu: “ah, isso já fiz tanto lá em casa, isso é assim, assim que aprendi com a minha vó” [...]. (Carolina, 2021)

O trecho em epígrafe, que também dá o tom do tópico introdutório deste artigo, é parte da fala de uma das interlocutoras desta pesquisa. Nele, a entrevistada joga com a construção usual que fazemos ao opor o que a Luce Giard (2002)Giard, L. (2002). Cozinhar. In M. De Certeau, L. Giard, & P. Mayol (Orgs.), A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar (4a ed.) (pp. 211-298). Petrópolis, RJ: Vozes. chamaria de “elemento primordial” das práticas culinárias em relação ao seu “elemento mais desprezível”. De um lado, o nobre papel de nutrir, criar, permitir o saboreio, em geral destinado aos mais distintos chefs de uma culinária europeizada; de outro, atividades de cuidado tidas como monótonas, repetitivas e desinteressantes, designadas a pessoas generificadas, racializadas e frequentemente mal (ou não) remuneradas. Na fala da pesquisada, a prática da gastronomia francesa confunde-se e é subvertida, desestabilizada de seu lugar de poder pela prática da cozinha familiar e doméstica.

Práticas culinárias são práticas sociais situadas no cotidiano (Certeau, 1998Certeau, M. De. (1998). A Invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes.; Gherardi, 2009bGherardi, S. (2009b). Practice it’s a Matter of Taste! Management Learning, 40(5), 535-550. doi:10.1177/1350507609340812
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), constituídas pelo binômio cozinhar/comer, que carregam consigo memória afetiva, engenhosidade criativa, inteligência e receptividade sensorial (Giard, 2002Giard, L. (2002). Cozinhar. In M. De Certeau, L. Giard, & P. Mayol (Orgs.), A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar (4a ed.) (pp. 211-298). Petrópolis, RJ: Vozes.). Sendo as práticas culinárias forjadas no cotidiano, consideramos suas e seus praticantes como sujeitas e sujeitos ordinários/as, pessoas comuns que praticam o cozinhar/comer são dotadas de conhecimento popular e estão mergulhadas nos emanharados sociais e culturais que compõem o cotidiano (Carrieri et al., 2014Carrieri, A. de P., Perdigão, D. A., & Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. doi:10.5700/rausp1178
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; Certeau et al., 2002Certeau, M. De, Giard, L., & Mayol, P. (2002). A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar (4a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.).

Nos Estudos Organizacionais Brasileiros (EOB), o cozinhar e o comer têm sido investigados e discutidos sob a abordagem da estética (Ipiranga et al., 2016Ipiranga, A. S. R., Lopes, L. L. S., & Souza, E. M. de. (2016). A experiência estética nas práticas culinárias de uma organização gastronômica. Organizações & Sociedade, 23(77), 191-210. doi:10.1590/1984-9230771
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; L. C. Soares & Bispo, 2017Soares, L. C., & Bispo, M. de S. (2017). A aprendizagem do cozinhar à luz das práticas sociais e da estética organizacional. Brazilian Business Review, 14(2), 247-271. doi:10.15728/bbr.2017.14.2.6
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) ou da territorialidade da cozinha (Pena & Saraiva, 2017Pena, F. G., & Saraiva, L. A. S. (2017). Territórios da cozinha sob a ótica de empregadas domésticas. Revista de Gestao Social e Ambiental, 11, 91-106. doi:10.24857/rgsa.v0i0.1382
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), entre outras; entretanto, não há indícios de trabalhos que abordem essas práticas de maneira imbricada. Tal discussão revela uma importante relação entre as práticas do cozinhar/comer e as microdinâmicas políticas do cotidiano (Rocha, 2018Rocha, C. C. da. (2018). Comer na mesma panela: agência das mulheres indígenas na sociopolítica Tupinambá. Tessituras, 6(2), 230-256.), além de evidenciá-las como marcadores identitários (Matthes & Silva, 2017Matthes, D., & Silva, M. C. G. (2017). Território , identidade e culinária: a tradição de comer Cuca ( Kuchen ) no médio Vale do Itajaí. Artigo apresentado no XVII Enanpur, São Paulo, SP.).

Nos baseamos em tais práticas para nos debruçarmos sobre as dinâmicas de generificação e racialização no organizar do cotidiano de gestoras ordinárias cujos negócios sustentam-se sobre atividades relacionadas à alimentação. Esses eixos emergem como fundamentais numa sociedade patriarcal, de classes e racista como a brasileira, em que práticas culinárias cotidianas, consideradas de menor prestígio, sem imaginação e criatividade, são comumente associadas às mulheres, muitas vezes trabalhadoras domésticas (remuneradas ou não), muitas vezes negras. Adotamos, assim, raça e gênero como categorias que se informam mutuamente e que se constituem relacional, social e politicamente, para que possamos analisar fenômenos cotidianos demarcados por desigualdades estruturantes (E. B. da Conceição, 2009Conceição, E. B. (2009). A negação da raça nos estudos organizacionais. Anais do Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração, São Paulo,; Teixeira et al., 2020Teixeira, J. C., Oliveira, J. S. de, & Carrieri, A. de P. (2020). Por que falar sobre raça nos estudos organizacionais no Brasil? Da discussão biológica à dimensão política. Revista Perspectivas Contemporâneas, 15(1), 46-70, 1980-0193.).

Assim, o presente artigo tem o objetivo de compreender o organizar do cotidiano a partir das dinâmicas de generificação e racialização das práticas do cozinhar/comer engendradas por gestoras ordinárias. Para isso, articulamos uma concepção processual do organizar (Duarte & Alcadipani, 2016Duarte, M. de F., & Alcadipani, R. (2016). Contribuições do organizar (organizing) para os estudos organizacionais. Organizações & Sociedade, 23(76), 57-72. doi:10.1590/1984-9230763
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; Gherardi, 2009aGherardi, S. (2009a). Introduction: The Critical Power of the 'Practice Lens'. Management Learning, 40(2), 115-128. doi:10.1177/1350507608101225
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) com foco analítico no cotidiano das sujeitas comuns que trabalham e gerenciam seus negócios utilizando as maneiras de fazer, tecendo o organizar dos empreendimentos, os usos e sentidos dos espaços domésticos (que se misturam entre lar e trabalho) e as estratégias de sobrevivência (Carrieri et al., 2014Carrieri, A. de P., Perdigão, D. A., & Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. doi:10.5700/rausp1178
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). Discutimos, então, a partir de uma perspectiva micropolítica, as articulações e apropriações que estabilizam e desestabilizam, no cotidiano, lugares e espaços de poder (Certeau, 1998Certeau, M. De. (1998). A Invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes.), como tão bem ilustrado pelo trecho em epígrafe nesse tópico que, ao desestabilizar, pode provocar indignação nos espaços estabelecidos, como a faculdade. Inspiradas na ideia de perturbação do cotidiano (Leite, 2010Leite, R. P. (2010). A inversão do cotidiano: práticas sociais e rupturas na vida urbana contemporânea. Revista de Ciências Sociais, 53(3), 737-756.), evidenciamos as fissuras das quais emergem novas táticas de contrausos para a sobrevivência das sujeitas pesquisadas.

A produção dos dados se deu via condução de entrevistas com sete mulheres autodeclaradas negras que, residindo e possuindo negócios em regiões pobres e periféricas da cidade, têm nas práticas culinárias suas principais fontes de renda. O tratamento dos dados foi feito com o apoio da análise dialógica narrativa (Riessman, 2008Riessman, C. K. (2008). Dialogic/Performance Analysis and Visual Analysis. In L. C. Shaw & V. Knight (Orgs.), Narrative Methods for the Human Sciences (pp. 151-258). Los Angeles: SAGE.), colocando em diálogo não apenas teoria e dados, mas também autoria e leitorado. As entrevistas, feitas em meio à pandemia de covid-19, permitiram adicionar uma camada extra de complexidade à pesquisa tanto em termos metodológicos (em razão das exigências em período de isolamento social) quanto da pesquisa em si (pois os achados mostraram rearticulações relacionadas ao que poderíamos chamar de um “cotidiano pandêmico”). Encontramos, em campo diversos, agravantes às desigualdades que motivaram reconfigurações organizativas das práticas culinárias para a manutenção e sobrevivência dos negócios.

A pesquisa contribui, nesse sentido, ao produzir: (1) uma análise do cozinhar e do comer como práticas imbricadas que organizam o cotidiano; (2) reflexões que contemplam as categorias analíticas de gênero e raça como marcadores de identidade, diferença, desigualdade, pertencimento e afetividade nas organizações (E. B. da Conceição, 2009Conceição, E. B. (2009). A negação da raça nos estudos organizacionais. Anais do Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração, São Paulo,; Mesquita et al., 2020Mesquita, J. S., Teixeira, J. C., & Silva, C. R. (2020). “Cabelo (crespo e cacheado) pro alto, me levando a saltos” em meio à ressignificação das identidades de mulheres negras em contextos sociais e organizacionais. Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, 19(2), 227-256. doi: 10.21529/RECADM.2020010
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; Teixeira et al., 2015Teixeira, J. C., Saraiva, L. A. S., & Carrieri, A. de P. (2015). Os lugares das empregadas domésticas. Organizações & Sociedade, 22(72), 161-178. doi:10.1590/1984-9230728
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, 2019Teixeira, J. C., Oliveira, J. S. de, & Mesquita, J. S. (2019). Pode a interseccionalidade ser afrocentrada no campo da administração? Um ensaio teórico sobre as contribuições da teoria interseccional para a área de administração. Artigo apresentado no X Encontro de Estudos Organizacionais da Anpad, Fortaleza, Ceará., 2020); e (3) respostas a provocações presentes nos EOB acerca da importância de questionarmos visões hegemônicas e desenvolvermos pesquisas que se aproximem do popular e valorizem os saberes construídos cotidianamente (Carrieri & Correia, 2020Carrieri, A. de P., & Correia, G. F. A. (2020). Estudos organizacionais no Brasil: construindo acesso ou replicando exclusão? Revista de Administração de Empresas, 60(1), 59-63. doi:10.1590/s0034-759020200107
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; Gouvêa et al., 2018Gouvêa, J. B., Cabana, R. del P. L., & Ichikawa, E. Y. (2018). As histórias e o cotidiano das organizações: uma possibilidade de dar ouvidos àqueles que o discurso hegemônico cala. FAROL - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 5(12), 297-347, 2358-6311.). Por fim, contribuímos também com a produção de uma narrativa sobre um “cotidiano pandêmico” que de certa forma nos permite desafiar algumas narrativas hegemônicas.

Logo, a relevância dessa pesquisa consiste em evidenciar um território predominantemente feminino em seu cotidiano, invisibilizado e subjugado (Giard, 2002Giard, L. (2002). Cozinhar. In M. De Certeau, L. Giard, & P. Mayol (Orgs.), A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar (4a ed.) (pp. 211-298). Petrópolis, RJ: Vozes.; Pena & Saraiva, 2017Pena, F. G., & Saraiva, L. A. S. (2017). Territórios da cozinha sob a ótica de empregadas domésticas. Revista de Gestao Social e Ambiental, 11, 91-106. doi:10.24857/rgsa.v0i0.1382
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). É importante ouvir as mulheres que cozinham, pois a elas foi imposto o silêncio e, ao produzirmos essa fissura, evidenciamos as histórias contadas pelas próprias autoras. Procuramos racializar a discussão porque corroboramos com as/os autoras/autores sobre a importância de considerar raça como elemento constituinte das organizações (Mesquita et al., 2020Mesquita, J. S., Teixeira, J. C., & Silva, C. R. (2020). “Cabelo (crespo e cacheado) pro alto, me levando a saltos” em meio à ressignificação das identidades de mulheres negras em contextos sociais e organizacionais. Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, 19(2), 227-256. doi: 10.21529/RECADM.2020010
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; Teixeira et al., 2020Teixeira, J. C., Oliveira, J. S. de, & Carrieri, A. de P. (2020). Por que falar sobre raça nos estudos organizacionais no Brasil? Da discussão biológica à dimensão política. Revista Perspectivas Contemporâneas, 15(1), 46-70, 1980-0193.) e reconhecemos que a academia ainda é um ambiente predominantemente masculinizado e embranquecido, sendo fundamental romper com narrativas hegemônicas que acarretam em silenciamento e esvaziamento de temáticas sociais importantes (Dar et al., 2020Dar, S., Liu, H., Martinez Dy, A., & Brewis, D. N. (2020). The Business School is Racist: Act up! Organization, 1-12. doi:10.1177/1350508420928521
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).

Com base nessas constatações, localizamos a primeira autora desse artigo como pesquisadora cisgênera, negra e periférica; e a segunda autora como pesquisadora cisgênera, branca, de classe média, ambas feministas. Com isso, buscando romper com o silenciamento científico que impõe distanciamento e neutralidade no desenvolvimento das pesquisas, além de nos situarmos, manifestamos nossa intencionalidade ao acolher trabalhos de autoria feminina negra, sendo que, na sua ausência, escolhemos sempre por trazer mulheres à discussão. Evidentemente, não negligenciamos nomes consagrados da literatura discorrida, mas procuramos destacar as mulheres negras, porque “[...] não é que as mulheres negras só possam aprender umas com as outras, mas porque as circunstâncias do racismo, do sexismo e da exploração de classe garantem que outros grupos não necessariamente se interessem por incentivar nossa autodefinição (hooks, 2019hooks, B. (2019). Olhares negros: raça e representação. São Paulo, SP: Elefante., p. 121)”. Também ressaltamos, em alguns momentos, o primeiro nome das autorias para dar notoriedade às mulheres que fazem ciência, o que muitas vezes é escamoteado pela forma tradicional de referência ao sobrenome.

É possível que tudo isso gere certo estranhamento em parte do nosso leitorado. Destacamos, no entanto, que, assim como nossa entrevistada autora da frase-título desse tópico, interessa-nos confundir essas fronteiras e desestabilizar esses espaços de poder e autoridade (culinária, mas também epistêmica). Acreditamos que esse caminho nos permite a produção de saberes em coerência com as diferentes parcerias (no diálogo com as sujeitas pesquisadas, com as/os teóricas/os citadas/os, avaliadoras/es no processo editorial e, agora, com o leitorado) que propomos seguir construindo ao longo desse percurso. Seguimos nesse movimento, ainda que, por escapar de alguns ideais de objetividade e neutralidade científicas, ele possa trazer certo incômodo - ou talvez até indignação - em relação a textos científicos aos quais nos acostumamos em nossas carreiras acadêmicas - “lá na faculdade”, diria, talvez, nossa entrevistada.

“Tudo em volta da mesa”: o organizar das práticas culinárias ordinárias e sua articulação com gênero e raça

A gente sempre fez tudo em volta da mesa, né? É, ia tomar café da manhã, era todo mundo sentado conversando, ia almoçar, sempre quem tava disponível junto conversando [...]. (Sueli, 2021)

A fala de outra de nossas interlocutoras inspira-nos a produzir este referencial teórico metaforicamente “em volta da mesa”. As práticas culinárias são, portanto, o ponto de partida e centro a partir do qual gravitam as perspectivas teóricas com as quais dialogamos.

Entendemos as práticas culinárias, ou seja, aquelas engendradas em torno do binômio cozinhar/comer, como atividades produzidas relacionalmente e, por isso, socialmente sustentadas e situadas, de forma que as/os praticantes (re)produzem, nas práticas, a sociedade (Gherardi, 2009bGherardi, S. (2009b). Practice it’s a Matter of Taste! Management Learning, 40(5), 535-550. doi:10.1177/1350507609340812
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). Ao mobilizarmos a lente das práticas em nossas articulações teóricas, evidenciamos o caráter processual do organizar (organizing), emergente das relações sociais cotidianas (Duarte & Alcadipani, 2016Duarte, M. de F., & Alcadipani, R. (2016). Contribuições do organizar (organizing) para os estudos organizacionais. Organizações & Sociedade, 23(76), 57-72. doi:10.1590/1984-9230763
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; Feldman & Orlikowski, 2011Feldman, M. S., & Orlikowski, W. J. (2011). Theorizing Practice and Practicing Theory. Organization Science, 22(5), 1240-1253. doi:10.4337/9781849807630.00024
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) e das práticas de gestoras ordinárias. Essas práticas são lidas como complexas e plurais, emaranhadas nos usos e sentidos dos espaços domésticos e das ruas (Carrieri et al., 2014Carrieri, A. de P., Perdigão, D. A., & Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. doi:10.5700/rausp1178
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), aqui investigados sob a ótica das práticas culinárias.

É pertinente, logo, evocarmos uma compreensão micropolítica para discutirmos o organizar das práticas culinárias nessas complexas imbricações que atravessam diferentes lugares de poder. É aqui que mobilizamos as teorizações de Michel de Certeau (1998)Certeau, M. De. (1998). A Invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes. sobre a condição do próprio (que ocupa o lugar de poder e pode estabelecer as regras em operações estratégicas) e do outro (na condição de fraco, mas que, com astúcia e criatividade, produz, em instantes oportunos, táticas capazes de infringir o lugar do próprio). Nessa perspectiva, as práticas cotidianas se constituem como táticas e estratégias de sobrevivências. Assim, na presente pesquisa, nos debruçamos sobre os relatos de gestoras negras de pequenos negócios, adotando como ponto de partida a noção de que as práticas reconfiguram as (sobre)vivências, por meio das bricolagens cotidianas (Certeau, 1998Certeau, M. De. (1998). A Invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes.) realizadas por essas sujeitas ordinárias (Carrieri et al., 2014Carrieri, A. de P., Perdigão, D. A., & Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. doi:10.5700/rausp1178
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).

As práticas culinárias cotidianas já foram objeto de análise nos EOB a partir de outros enfoques teóricos (Ipiranga et al., 2016Ipiranga, A. S. R., Lopes, L. L. S., & Souza, E. M. de. (2016). A experiência estética nas práticas culinárias de uma organização gastronômica. Organizações & Sociedade, 23(77), 191-210. doi:10.1590/1984-9230771
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; L. C. Soares & Bispo, 2017Soares, L. C., & Bispo, M. de S. (2017). A aprendizagem do cozinhar à luz das práticas sociais e da estética organizacional. Brazilian Business Review, 14(2), 247-271. doi:10.15728/bbr.2017.14.2.6
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; Pena & Saraiva, 2017Pena, F. G., & Saraiva, L. A. S. (2017). Territórios da cozinha sob a ótica de empregadas domésticas. Revista de Gestao Social e Ambiental, 11, 91-106. doi:10.24857/rgsa.v0i0.1382
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), mas em nosso estudo destacamos que, hegemonicamente, as práticas culinárias estão inseridas no cotidiano de duas maneiras: como elemento primordial e como o mais desprezível (Giard, 2002Giard, L. (2002). Cozinhar. In M. De Certeau, L. Giard, & P. Mayol (Orgs.), A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar (4a ed.) (pp. 211-298). Petrópolis, RJ: Vozes.), algo ainda mais evidente em uma sociedade forjada no patriarcado, na escravização e no colonialismo, como a brasileira. Isso porque, como abordamos na introdução, são práticas por um lado significadas como primordiais, pela exaltação do papel de nutrir o outro; entretanto, por outro lado, percebidas como desprezíveis atividades de cuidado tidas muitas vezes como monótonas, repetitivas e desinteressantes (Giard, 2002Giard, L. (2002). Cozinhar. In M. De Certeau, L. Giard, & P. Mayol (Orgs.), A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar (4a ed.) (pp. 211-298). Petrópolis, RJ: Vozes.), não por acaso, práticas frequentemente generificadas e racializadas. Isso significa dizer que, sobre a mulher (com frequência a mulher negra), recai a tarefa de cozinhar não só para si, mas para os outros; e é nesse contexto que se insere o cunho pejorativo e opressivo sobre essa sujeita que é lida socialmente como a ideal para executar atividades domésticas e de cuidar, sobretudo se for de pele escura (Teixeira et al., 2015Teixeira, J. C., Saraiva, L. A. S., & Carrieri, A. de P. (2015). Os lugares das empregadas domésticas. Organizações & Sociedade, 22(72), 161-178. doi:10.1590/1984-9230728
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).

Considerando as práticas culinárias como situadas socialmente, o cozinhar é culturalizado, dando indícios a uma compreensão de que pode haver uma hierarquização alimentar que corrobora a hierarquia social (Giard, 2002Giard, L. (2002). Cozinhar. In M. De Certeau, L. Giard, & P. Mayol (Orgs.), A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar (4a ed.) (pp. 211-298). Petrópolis, RJ: Vozes.). Ao colocarmos em diálogo essa perspectiva com as teorizações do feminismo negro, compreendemos que a investigação das práticas culinárias exercidas pelas mulheres negras, que vivem em um processo histórico de empobrecimento, são uma oportunidade de avançar nessa discussão sobre hierarquização culinária e hierarquia social. Esse fenômeno se reflete no imaginário social, como demonstrado na pesquisa feita por Felipe Pena e Luiz Alex Saraiva (2017), em que trabalhadoras domésticas fizeram associações positivas a imagens de pessoas brancas na cozinha e negativas com pessoas negras, evidenciando que, mesmo entre seus pares, uma pessoa preta ocupar o espaço como chef ainda é destoante a realidade. A cozinha transformase então em um terreno silencioso e invisível para a mulher, sobretudo negra, sobretudo empobrecida e periférica.

As mulheres negras residentes no Brasil atualizam todos os dias as táticas para a sua sobrevivência e dos seus, ocupando historicamente um papel central nos pequenos comércios urbanos. Na ancestral figura das ganhadeiras, por exemplo, rememoram-se práticas comerciais de mulheres escravizadas ou livres que destinavam o dinheiro oriundo das vendas ao pagamento de seus senhores, para garantir o próprio sustento ou para comprarem cartas de alforria para as/os ainda escravizadas/os (C. M. Soares, 2005Soares, C. M. (2005). Mulher negra na Bahia no século XIX (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA.). É nos centros urbanos, portanto, que pessoas exescravizadas e suas descendentes conseguiram, e conseguem, galgar maiores condições de sobrevivência, especialmente as mulheres negras, que transformaram as ruas em espaços permissíveis de trocas simbólicas, como afetos e encorajamento à resistência, e materiais, como lavar e passar roupas e o comércio alimentício (J. S. Conceição, 2015Conceição, J. S. (2015). Mulher negra: religião, trabalho e organização social. Informe Econômico, 1(34), 92-98.), gerando e acumulando alguma renda para que assim pudessem habitar, em um primeiro momento, os cortiços, à época localizados nos centros urbanos, para depois deslocarem-se para bairros mais afastados do centro, a partir dos processos de higienização urbana empreendidos no século XX (Costa, 1999Costa, E. V. da. (1999). Urbanização no Brasil no século XIX.Da Monarquia à República: momentos decisivos (6a ed.) (pp. 233-269). São Paulo, SP: Unesp.).

Salientamos, desse modo, a indissociabilidade analítica entre gênero, raça e classe, desvelando a complexidade com que se constituem sistemas de opressões (hooks, 2019hooks, B. (2019). Olhares negros: raça e representação. São Paulo, SP: Elefante.; Kilomba, 2019Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó.). Para bell hooks1 1 bell hooks é um pseudônimo utilizado pela autora, sendo inspirado em sua bisavó materna. Optamos intencionalmente neste trabalho por respeitar o desejo da autora em detrimento das regras formais de citação e referência, uma vez que hooks prefere que as citações sejam feitas em letras minúsculas, de modo a estabelecer o foco no conteúdo de sua escrita e não na pessoa física, possibilitando ainda a libertação de uma única identidade particular e mantendo-se em constante movimento e transformação. (2019, 2020), as mulheres negras sofrem com o sexismo e o racismo simultaneamente e independentemente da posição social que ocupam, mesmo gozando de um status social elevado, mulheres negras seguem tendo acessos negados e tentativas de silenciamento. Nesse sentido, as mulheres negras são vistas, representadas e interpretadas como subalternizadas (hooks, 2019hooks, B. (2019). Olhares negros: raça e representação. São Paulo, SP: Elefante.) e, quando ocupam posições de liderança, são sempre comparadas a homens ou lidas como agressivas, prepotentes e autoritárias. Ou seja, às mulheres negras nenhum adjetivo é dado; não há qualidades exaltadas nessas mulheres e nem afetividade que lhes pertença.

No Brasil, a teorização com base nas vivências das mulheres negras apresenta algumas semelhanças à situação referenciada no contexto estadunidense. O movimento feminista negro brasileiro, por exemplo, aponta que, apesar de exercerem papéis fundamentais que culminaram em estratégias de como sobreviver em condições adversas, as mulheres negras têm uma condição sócio-histórica de vulnerabilidade e invisibilidade. Nessa condição, em decorrência do processo de escravização, tais mulheres foram diminuídas ao estado de objetificação, sendo negada a sua condição de ser humano, de ser mulher, de ser uma sujeita política, tornando a sua imagem cada vez mais estereotipada (Carneiro, 2003Carneiro, S. (2003). Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Racismos Contemporâneos, 49, 49-58.).

Esse cenário certamente se agrava em momentos de crise social, como o ocorrido durante a pandemia de covid-19. Elaine Swan (2020) demonstrou serem as mulheres, sobretudo negras, as responsáveis por manterem a roda do capitalismo girando, mesmo em tempo pandêmico. Ao encontro do estudo de Elaine Swan (2020), Nilma Lino Gomes (2020) mostrou que a mulher negra foi a mais afetada na pandemia com perda da renda, pois a predominância desse público nos postos de trabalhos estava relacionada ao setor de serviços (empregada doméstica, manicure, cabeleireira, cuidadora, técnica em enfermagem, garçonete, cozinheira etc.). A consideração analítica de gênero (sejam mulheres cis, trans, brancas, negras e indígenas) demonstra um efeito negativo da pandemia na vida das mulheres, em que são mais demitidas e/ou têm contratos de trabalho revisados com salários reduzidos e até mesmo suspensos, além de estarem mais sobrecarregadas com o home office e as tarefas domésticas (IPEFEM, 2020IPEFEM, I. de P. e E. do F. (2020). Impactos emocionais, comportamentais e práticos da covid-19 na vida das pessoas. São Paulo, SP: Instituto de Pesquisa e Estudos do Feminino.).

Tendo em vista o que foi apresentado até aqui, quando nos propomos a investigar o cozinhar e o comer usando lentes raciais e de gênero, aproximamos a academia de discussões que permeiam não apenas o cotidiano dessas mulheres, mas também o da própria primeira autora desse artigo, em uma busca constante de transgressão das narrativas e metodologias hegemônicas, que acabam muitas vezes negligenciando os saberes populares e localizando grupos marginalizados como meros objetos de pesquisa. Compreender quais sistemas de opressões atravessam as vivências de mulheres negras, em diálogo com teorizações do feminismo negro, é fundamental nesse texto, na medida em que nos permitiu problematizar as dinâmicas de racialização e generificação das práticas culinárias. Com isso, podemos trazer visibilidade às condições de hierarquização, bem como possibilitar uma reflexão sobre as produções táticas e estratégias de sobrevivências de nossas interlocutoras.

Nesse sentido, destacamos aqui nosso enfoque micropolítico nas fissuras do cotidiano que atravessam as práticas. Essas fissuras, as perturbações do cotidiano, são manifestas pelas táticas que subvertem as estratégias postas pelo próprio ou pelos contras-usos dos espaços pelas práticas (Leite, 2010Leite, R. P. (2010). A inversão do cotidiano: práticas sociais e rupturas na vida urbana contemporânea. Revista de Ciências Sociais, 53(3), 737-756.). Essas perturbações causam a inversão do cotidiano pelos sujeitos ordinários, como discorrido por Rogério Leite (2010)Leite, R. P. (2010). A inversão do cotidiano: práticas sociais e rupturas na vida urbana contemporânea. Revista de Ciências Sociais, 53(3), 737-756., e é esse fenômeno que nos permite, durante a pesquisa, focar em revelar o inusitado, o extraordinário que o compõe, buscando compreender as perturbações pelas quais as sujeitas estão em constante (re)organizar de suas práticas. Portanto, nessa pesquisa, o cotidiano não é sinônimo de rotinização e alienação, mas sim, como veremos ao longo do texto, de fissuras e rupturas provocadas pelas e nas táticas, algo que buscamos evidenciar pelas nossas escolhas metodológicas, expressas na seção a seguir.

“Como que ela vai ter uma chef de cozinha preta? Entende?”: produção e análise das narrativas na pesquisa

Caracterizamos nosso estudo como qualitativo (Rheinhardt et al., 2018Rheinhardt, A., Kreiner, G. E., Gioia, D. A., & Corley, K. G. (2018). Conducting and Publishing Rigorous Qualitative Research. In C. Cassell, A. L. Cunliffe & G. Grandy (Orgs.), The Sage Handbook of Qualitative Business and Management Research Methods (pp. 515-531) Los Angeles: SAGE.), descritivo e interpretativo (Morgan, 2005Morgan, G. (2005). Paradigmas, metáforas e resoluções de quebra-cabeças na teoria das organizações. Revista de Administração de Empresas, 45(1), 58-71.). Nos baseamos, para a consecução dos objetivos previstos, na produção de interpretações de narrativas pessoais, que podem ser contadas por meio oral, escrito ou visual (Chase, 2018Chase, S. E. (2018). Narrative inquiry: toward theoretical and methodological maturity. In N. K. Denzin & Y. S. Lincoln (Orgs.), The SAGE Handbook of Qualitative Research (pp. 946-970). London: SAGE.). Utilizamos a palavra estórias tal como apresentada no estudo de Laura Zaccarelli e Arilda Godoy (2014), pois compreendemos que a terminologia usada pelas autoras provoca a reflexão de que, quando se empregam narrativas em pesquisas no campo das ciências sociais, não se busca necessariamente a análise de uma suposta veracidade, mas sim do porquê e como está sendo narrado. Um único fato então pode ser narrado de formas distintas, a depender do tempo em que as memórias são evocadas (Ropo & Höykinpuro, 2017Ropo, A., & Höykinpuro, R. (2017). Narrating Organizational Spaces. Journal of Organizational Change Management, 30(3), 357-366. doi:10.1108/JOCM-10-2016-0208
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).

As sujeitas dessa pesquisa são mulheres autodeclaradas negras. No entanto, para a seleção inicial das participantes, utilizamos um critério de heteroidentificação, em que a primeira autora (que realizou o trabalho de campo) contatou sujeitas com base em uma percepção fenotípica, considerando características como cor da pele, traços faciais e textura do cabelo, para somente então captar sua autoidentificação. Além disso, todas as informantes tinham nas práticas culinárias suas principais fontes de renda, residiam e possuíam negócios em regiões pobres e nas periferias das grandes cidades. As regiões foram entendidas como tal por meio das experiências da pesquisadora em campo e também por critérios como: nível de intervenção do Estado nessas regiões, indicadores de infraestrutura urbana, violência, saúde e educação. Nosso olhar se dirigiu, então, a gestoras ordinárias atuantes na região metropolitana de Vitória, capital do Espírito Santo. Essa região apresenta marcadores raciais e étnicos em razão do processo de escravização no estado, que teve em Vitória um dos polos de maior concentração de pessoas escravizadas (Maciel, 2016Maciel, C. (2016). Negros no Espírito Santo (2a ed.). Espírito Santo. Coleção Canaã.). Ainda nos dias atuais, Vitória se situa como a segunda capital brasileira no ranking dos maiores índices de segregação socioespacial (Mariani et al., 2015Mariani, D., Roncolato, M., Tonglet, A., & Ducroquet, S. (2015). O que o mapa racial do Brasil revela sobre a segregação no país. Nexo Jornal. Recuperado de https://www.nexojornal.com.br/especial/2015/12/16/O-que-o-mapa-racial-do-Brasil-revelasobre-a-segregação-no-país
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).

O ponto de partida na comunicação com as interlocutoras se deu por contatos em comum com a primeira autora. De agosto de 2020 até a primeira semana de julho de 2021, foram contactadas cerca de 25 mulheres; entre negativas mais explícitas ou mais silenciosas, somente sete mulheres puderam e quiseram compartilhar as suas estórias. A partir daí, consideramos que a construção das narrativas nesse estudo se deu em dois momentos: o primeiro, no contato da primeira autora com as participantes via redes sociais e posterior migração da conversa para um aplicativo de mensagens instantâneas; o segundo, consistiu propriamente na consecução das entrevistas, que, por causa do período de isolamento social imposto pela pandemia de covid-19, foram priorizadas via realização on-line.

As entrevistas foram conduzidas com base em um roteiro aberto (Brinkmann, 2018Brinkmann, S. (2018). The Interview (5th ed). In N. K. Denzin & Y. S. Lincoln (Orgs.), The SAGE Handbook of Qualitative Reasearch, 195 (5), (pp. 997-1038). Los Angeles: SAGE. doi:10.1007/s11229-017-1319-x
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) composto de tópicos relacionados aos objetivos da pesquisa, a fim de assegurar que nenhum ponto importante fosse esquecido no fluxo da interação com as pesquisadas. Foram produzidas notas escritas (Zaccarelli & Godoy, 2014) durante as entrevistas, nas quais a primeira autora relatou elementos que despertaram sua atenção, como presenças ou ausências nas oralidades de elementos identificados como marcadores de raça e gênero e as próprias emoções e impressões ao ouvir e interagir com as estórias que lhe eram contadas.

Nas entrevistas, foram observadas questões éticas (Davel et al., 2019Davel, E. P. B., Fantinel, L. D., & Oliveira, J. S. de. (2019). Etnografia audiovisual: potenciais e desafios na pesquisa organizacional. Organizações & Sociedade, 26(90), 579-606. doi:10.1590/1984-9260909
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) como o consentimento das pesquisadas para gravação do áudio, total liberdade das pesquisadas para interrupção da entrevista em qualquer momento, explicação da intenção da pesquisa e os usos dos materiais produzidos, além de anonimato das sujeitas pesquisadas garantido pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Importante pontuar que essa pesquisa possui anuência do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/UFES) sob o parecer nº 4.454.199.

As estórias foram narradas entre o segundo semestre de 2020 e o primeiro de 2021, majoritariamente por meio de um aplicativo de videochamadas, com exceção a uma, que foi conduzida presencialmente, tomados todos os cuidados sanitários cabíveis. O áudio das entrevistas foi transcrito com ajuda de bot de um aplicativo de mensagens instantâneas, ajustado e editado a fim de manter a fidedignidade do conteúdo escrito. Para manter o anonimato das sujeitas de pesquisa, utilizamos codinomes. A tabela 1 sintetiza informações importantes sobre a produção dos dados:

Tabela 1
Caracterização das Sujeitas Pesquisadas

Para analisar os relatos, foi usada a técnica de análise dialógica narrativa, que consiste em abraçar as narrativas utilizando uma lógica de coprodução, compreendendo que os relatos são construídos por sujeitas de pesquisa situada (Zaccarelli & Godoy, 2014). Assim, é possível entender que as narradoras falam de algum lugar e de um modo específico para quem as ouve (Riessman, 2008Riessman, C. K. (2008). Dialogic/Performance Analysis and Visual Analysis. In L. C. Shaw & V. Knight (Orgs.), Narrative Methods for the Human Sciences (pp. 151-258). Los Angeles: SAGE.). O uso que fizemos das notas escritas está diretamente ligado à abordagem dialógica, justamente por mobilizar dados que extrapolam elementos verbalizados em um processo de coprodução entre as sujeitas (Riessman, 2008Riessman, C. K. (2008). Dialogic/Performance Analysis and Visual Analysis. In L. C. Shaw & V. Knight (Orgs.), Narrative Methods for the Human Sciences (pp. 151-258). Los Angeles: SAGE.).

De forma coerente com essa abordagem, os momentos de análise dos dados não se deram linearmente em relação aos demais procedimentos de pesquisa; por isso, desde o primeiro contato com as mulheres, o processo de análise já teve início. Assim, nessa pesquisa, as narrativas foram construídas conjuntamente, na interação entre pesquisadora em campo e sujeitas pesquisadas, e depois entre o corpus de dados e ambas as autoras do texto, interações essas situadas e contingenciais, ou seja, cada uma falando de um espaço diverso, apoiado em experiências diferentes.

Nas entrevistas, as memórias afetivas das sujeitas foram evocadas ao serem convidadas a contarem as suas estórias de vida e relacioná-las com o cozinhar e o comer, de forma livre, priorizando a coprodução. Captar esse tipo de relato voluntário e ser indagada enquanto a narrativa é produzida, nos fez perceber o nível de conexão que a pesquisadora em campo conseguiu construir com as entrevistadas. Essa conexão entre pessoas negras é o que Grada Kilomba trata como sendo composta por pequenas ações cotidianas que representam, na coletividade, uma busca para romper com os traumas causados pelos colonizadores; uma espécie de reparação, onde as pessoas recriam uma conexão quebrada forçosamente no passado (Kilomba, 2019Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó.).

Para mostrar como isso aconteceu na prática da pesquisa, citamos a penúltima entrevista, que nos inspirou para o título dessa seção, em que a pesquisadora em campo e a entrevistada se emocionaram em vários momentos ao longo da conversa de pouco mais de uma hora. Destaque foi o momento em que a entrevistada relembrou emocionada episódios da infância em que viveu com a avó, a responsável por lhe ensinar a prática do saber-fazer cozinhar. A entrevistadora se emocionou e, enquanto ouvia a estória, retornou ao seu passado pela figura da própria avó, que também fazia comidas mineiras e a ensinou a maior parte dos preparos que sabe fazer hoje. Nessa mesma entrevista, a pesquisadora em campo foi igualmente afetada ao ser questionada pela entrevistada, ao narrar um episódio de racismo que sofreu. A entrevistada a indagou com as seguintes perguntas, que encabeçam o presente tópico e mostram o caráter dialógico e relacional da produção narrativa nessa pesquisa: “Mas por que ela não assinou a minha carteira? Hm? Como que ela vai ter uma chefe de cozinha preta? [pausa]Entende?” (Carolina, 2021). Diante dessas perguntas, a pesquisadora só conseguiu verbalizar um “sim”, que sonoramente saiu baixo e com um tom melancólico, pois, naquele momento, se sentiu desconfortável e impotente. Esse tipo de conexão entre pesquisadora e pesquisadas informa a dinâmica dialógica da análise narrativa que permitiu, por exemplo, que casos de racismo fossem verbalizados espontaneamente por duas das entrevistadas.

Nessa perspectiva, todo o processo de organização dos resultados ocorreu pela releitura de cada transcrição concomitante à releitura das notas produzidas durante as entrevistas. É pertinente ainda mencionar que, durante a revisitação dos dados, rememoraram-se as sensações experimentadas no ato das conversas para transpassar à escrita maior sensibilidade ao narrar os acontecimentos.

A escolha pela ordem de apresentação dos tópicos de análise se deu pela lógica da contação de história (Riessman, 2008Riessman, C. K. (2008). Dialogic/Performance Analysis and Visual Analysis. In L. C. Shaw & V. Knight (Orgs.), Narrative Methods for the Human Sciences (pp. 151-258). Los Angeles: SAGE.). Daí emergiu a ideia de organizar tópicos do texto com frases marcantes das entrevistadas e relacionadas à temática abordada em cada item, o que inicialmente foi feito apenas nos tópicos de resultados, mas no processo de revisão do manuscrito foi assumido para o texto todo, seguindo uma sugestão constante em uma das avaliações recebidas. Buscamos assim explicitar nossas percepções e permitir que o leitorado teça as suas próprias interpretações, concomitantes às nossas, acolhendo assim a premissa dialógica entre todas as partes que compõem esse texto - pesquisadoras, pesquisadas, leitoras/es, teóricas/os, avaliadoras/es (Riessman, 2008Riessman, C. K. (2008). Dialogic/Performance Analysis and Visual Analysis. In L. C. Shaw & V. Knight (Orgs.), Narrative Methods for the Human Sciences (pp. 151-258). Los Angeles: SAGE.). Também por essa razão, na medida do possível, escolhemos apresentar excertos mais longos das entrevistas e situar as narrativas em termos das trajetórias pessoais das interlocutoras, ou mesmo de aspectos em que a nossa sensibilidade foi afetada, de elementos não ditos, mas percebidos na intersubjetividade construída com as sujeitas.

Após apresentarmos as sujeitas pesquisadas e a operacionalização da pesquisa, discorremos sobre nossos achados e respectivas análises. Começamos apresentando as narrativas produzidas em sua relação com as dinâmicas de generificação e racialização, e depois passamos ao papel das práticas culinárias no (re)organizar das táticas e estratégias de sobrevivências em face das perturbações e fissuras cotidianas.

“Todo dia provando que você é boa no que faz”: gênero e raça na construção da hierarquização culinária

Esse tópico dá conta do primeiro eixo de interpretação das narrativas produzidas nessa pesquisa. Ele foi estruturado com a finalidade de abordarmos a relação entre as dinâmicas de generificação e racialização das práticas culinárias e a construção da hierarquização entre essas práticas.

A frase que dá título ao item, dita por Carolina, nos ajuda a compreender as dinâmicas de desigualdade na culinária, num contexto de aprendizado formal deste saber-fazer. A frase se insere no momento em que a entrevistada narra sua trajetória no curso de graduação em gastronomia. Segundo o relato, ela e o irmão eram as únicas pessoas pretas do curso, entre docentes e discentes:

É, você tem que tá todo dia provando que você é boa no que faz. Você se tiver um erro, tudo que você fez é desconsiderado. Porque eu acho que vem aquela questão né? A cor influencia muito. [...] E na gastronomia eu senti isso pela primeira vez. Foi a primeira vez que eu estudo numa escola particular. E só tinha duas pessoas negra [pausa reflexiva] e todos, todos, tinham pais que eram donos de restaurante, mexia na área de investimento de alimentação, outros de café, fazendeiro e eu e meu irmão, dois negros. [...] No início, foi muito difícil, tá? Porque elas iam como dondocas. [...] Eu fui discriminada os dois anos que eu estudei lá, não fiz parte de nenhum grupo, assim, particular, grupo de estudo, grupo pra sair pra balada, pra curtir, não fiz, porque eu não mudei o meu perfil, eu sempre acreditei no que eu sou, no que eu era. Eu mostrava na cozinha, cozinhava bem, todos projetos que tinham lá, me chamavam, porque eu tinha capacidade, e elas tinha que me engolir por isso. É difícil, tá? [...]. (Carolina, 2021)

O excerto desvela as fissuras e as táticas (Certeau, 1998Certeau, M. De. (1998). A Invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes.; Leite, 2010Leite, R. P. (2010). A inversão do cotidiano: práticas sociais e rupturas na vida urbana contemporânea. Revista de Ciências Sociais, 53(3), 737-756.) exercidas cotidianamente no curso de gastronomia. Ao relembrar episódios de racismo que sofreu ao longo de sua vida, Carolina contou que trabalhou por muitos anos em um cerimonial de festas renomado, onde “só dava grandão: juiz, desembargador, eram os que faziam festa lá”, como ela mesma descreve. Nesse cerimonial, Carolina tinha a sua carteira de trabalho assinada como prestadora de serviços gerais, apesar de ser cozinheira e de fazer outras funções, como recepcionar e conduzir a degustação de clientes. Carolina relembra que a questão da carteira assinada se repetiu por todos os lugares onde trabalhou, sendo que o posto mais alto que conseguiu galgar foi o de auxiliar de cozinha em um restaurante de hotel. Ainda assim, auxiliar e não chef, mesmo já tendo essa titulação comprovada.

O relato de Carolina desperta atenção para a elitização da gastronomia e para as formas segundo as quais o cozinhar é culturalizado como uma prática de prestígio ou não. Aqui, é importante salientar os processos de hierarquização alimentar em suas relações com hierarquias sociais (Giard, 2002Giard, L. (2002). Cozinhar. In M. De Certeau, L. Giard, & P. Mayol (Orgs.), A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar (4a ed.) (pp. 211-298). Petrópolis, RJ: Vozes.), que no caso desse estudo se conecta a partir das construções sociais de gênero e raça, algo que é reforçado por imaginários sociais que distanciam pessoas negras, por exemplo, da figura do chef de cozinha (Pena & Saraiva, 2017Pena, F. G., & Saraiva, L. A. S. (2017). Territórios da cozinha sob a ótica de empregadas domésticas. Revista de Gestao Social e Ambiental, 11, 91-106. doi:10.24857/rgsa.v0i0.1382
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).

Para a mulher, independentemente da titulação, a cozinha apresenta-se como um terreno silencioso e se torna invisível de acordo com a sua tonalidade de pele e origens étnicas. O cunho pejorativo e opressivo sobre as práticas culinárias exercidas por mulheres negras acontece por meio de estruturas e relações de poder que se materializam na socialização primária das mulheres negras periféricas, que as insere em um lugar de subalternidade e objetificação de seus corpos (Carneiro, 2003Carneiro, S. (2003). Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Racismos Contemporâneos, 49, 49-58.a; hooks, 2020hooks, B. (2020). E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.), fazendo com que essas sujeitas sejam lidas socialmente como as ideais para executar atividades domésticas e de cuidar, ou seja, ideais para o servir (Teixeira et al., 2015Teixeira, J. C., Saraiva, L. A. S., & Carrieri, A. de P. (2015). Os lugares das empregadas domésticas. Organizações & Sociedade, 22(72), 161-178. doi:10.1590/1984-9230728
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).

Conceição mostrou empiricamente como as mulheres negras são lidas socialmente como ideais para o servir desde a infância:

[...] porque eu perdi a minha mãe com 12 anos. [pausa] A minha avó [...] quando eu tive a oportunidade de conhecer a minha avó ela foi embora muito cedo. Então eu fui criada na “casa dos outros”. [...] Fui criada por uma família. E nessa família eu cozinhava, lavava e passava. Então naquela época eu cozinhava com 15, 16 anos, as pessoas odiavam a minha comida. [...] Então eu tive que aprender a cozinhar. Com o tempo me casei e tive filhos. Aí foi isso. Fui cozinhando, cozinhando, em casa [...]. (Conceição, 2020)

No episódio narrado, fica evidente a mentalidade escravocrata que coloca crianças e adolescentes negras como serviçais, empregadas e as privam de serem crianças e adolescentes em sua plenitude (Kilomba, 2019Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó.), retratando assim o lugar de subalternidade e objetificação em que as mulheres negras são colocadas desde a infância (Carneiro, 2003Carneiro, S. (2003). Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Racismos Contemporâneos, 49, 49-58.a; hooks, 2020hooks, B. (2020). E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.). Apesar de Conceição não explicitar se a família para qual ela trabalhou na adolescência era composta de pessoas brancas, a maneira como ela narra os fatos e usa a expressão “casa dos outros” aguça o nosso imaginário para interpretar a relação entre a Conceição e essa família, como sendo uma relação de distanciamento e estranhamento, pautada entre patrões e criada e não entre patrões e empregada (Teixeira et al., 2015Teixeira, J. C., Saraiva, L. A. S., & Carrieri, A. de P. (2015). Os lugares das empregadas domésticas. Organizações & Sociedade, 22(72), 161-178. doi:10.1590/1984-9230728
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). Esse fato evidencia que Conceição não se sentia pertencente a esse espaço, pois, “se a casa era dos outros, era território de outros” (Teixeira et al., 2015Teixeira, J. C., Saraiva, L. A. S., & Carrieri, A. de P. (2015). Os lugares das empregadas domésticas. Organizações & Sociedade, 22(72), 161-178. doi:10.1590/1984-9230728
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, p. 172).

Ainda no âmbito das memórias e do aprendizado do saber-fazer culinário, é interessante destacar que a maioria de nossas entrevistadas (Lélia, Djamila, Cida e Conceição) relatou que esse saber-fazer não é originário de suas memórias afetivas familiares. Lélia, por exemplo, não atribui influência às memórias afetivas familiares para sua atuação na confeitaria:

[...] Primeiro bolo que eu fiz quando era pequena, foi na casa da minha avó, que ela tava fazendo, ela me ensinou, e fiz um bolo. Aí ele cresceu [...] muito no meio do bolo, tipo um morro, mas eu não lembro, tipo, qual é a receita que ela usou. Mas [...] não foi isso que me influenciou, que eu busquei a fazer por causa disso, mas eu tenho uma lembrança que eu fiz um bolo com ela, entendeu? [...]. (Lélia, 2020)

Lélia contou que os preparativos das festas de aniversário eram divididos entre a família: “Minha mãe fazia o bolo, meu pai fazia torta, minha tia fazia as coisas [...]”. Cida também afirmou não ter influências familiares na sua escolha pela confeitaria, já que a mãe “não sabia fazer muito bem [bolos], mas ela fazia”, para que ela levasse às festividades escolares, quando ainda não tinha idade suficiente para fazer os preparos sozinha; depois, ao crescer, Cida acabou dominando essa prática no intuito de preparar os bolos e assumir essa responsabilidade que outrora era da mãe.

Djamila relatou que sua mãe “não [a] deixava chegar perto do fogão”; e quando ia visitar o pai, a sua madrasta “também não deixava a gente chegar perto do fogão, mas os finais de semana que ela tava em casa ela sempre gostava de ensinar a gente a fazer doces, brigadeiro, bolo, essas coisas [...]”. Djamila afirma então que aprendeu a cozinhar na fase adulta, assistindo a vídeos no Youtube e assim teve a ideia de aprimorar suas práticas culinárias para comercializar produtos alimentícios e obter renda extra.

Uma interpretação possível para esses múltiplos significados produzidos acerca do aprendizado do saber-fazer culinário seria relacionada às mulheres mais velhas não deixarem as filhas mexerem no fogão, como uma tentativa de proteção dos seus corpos contra queimaduras, cortes e afins. Outra possibilidade seria baseada na premissa de proteção ligada à busca de incentivos ao desenvolvimento de outros saberes, por meio do estudo, para que as pesquisadas pudessem trilhar carreiras profissionais não atreladas à cozinha, evitando assim que ocupassem cargos subalternizados. Além disso, a ênfase no aprendizado vinculado a outras fontes que não às mulheres da família, poderia ser entendida como uma forma de destacar sua formação pela legitimação dos saberes institucionalizados em escolas ou por chefs reconhecidos que ensinam por cursos ou vídeos no Youtube, a fim de ascenderem a espaços mais valorizados socialmente.

Semelhantemente a Djamila, o saber-fazer de Conceição foi apreendido pelo olhar, pela observação de outras pessoas praticando:

[...] eu fui criada na “casa dos outros”. E quando cê é criada na “casa dos outros”, cê tem que aprender a cozinhar. Então o que eu sei, o pouco que eu sei, o que eu gosto de fazer eu aprendi sozinha [...]. (Conceição, 2020)

O saber-fazer de Conceição está imbricado em memórias afetivas de trabalho e a forma como ela foi afetada por isso, pois ela afirma ao longo da conversa que: “A minha paixão é cozinhar. [...] e a conexão da gente com a comida, é família, é casa cheia, é amigos. Isso é bom demais [...]”. Com isso, Conceição nos dá sinais de subversão a uma consequência de trauma em construção da paixão pela nova profissão. Já Carolina, Luiza e Sueli afirmaram que as memórias afetivas familiares exerceram influência nas práticas culinárias que desenvolvem. Carolina relembrou com saudosismo algumas receitas que a avó fazia, sendo a matriarca a responsável pelos banquetes familiares, por cultivar ervas e hortaliças no quintal e por ensinar aos mais novos os preparos, sem fazer distinção de papéis de gênero.

O saber-fazer culinário das sujeitas estudadas, ainda se manifestou nas narrativas evocando simbolismos relacionados ao amor:

A gente sempre fez tudo em volta da mesa, né? É, ia tomar café da manhã, era todo mundo sentado conversando, ia almoçar, sempre quem tava disponível junto conversando. Vem também da relação da minha mãe, de ter tido nove irmão, de família grande e tal, todo mundo sempre junto. Eu aprendi cozinhar muito cedo, então a comida pra mim é questão de afeto, né? [...]. (Sueli, 2020)

Gosto que as pessoas comam e se sintam bem. Eu gosto que as pessoas comam coisa boa, coisa agradável ao paladar, então assim, eu me sinto bem. [...] Cozinhar é muito amor. (Cida, 2021)

A minha paixão é cozinhar. [...] eu só tenho coisas positivas, eu não tenho coisas negativas. Daí assim, é uma coisa que eu amo fazer. Chegar pra mim e falar assim: “tia, eu vou aí almoçar.” Você pode vim que a comida vai tá a mesa. A comida que você quiser. (Conceição, 2020)

A comida é vida, é amor, é carinho, é uma forma de aproximar as pessoas. A minha família toda sempre se reunia em uma mesa fazendo comida. […] Pra cozinhar não precisa ter estudo não, basta ter amor e ser criativo e gostar do que faz. Esse é o segredo. (Carolina, 2021)

Ao considerarmos as práticas do cozinhar e do comer constituídas mutuamente, é possível evidenciar a hierarquização social (Giard, 2002Giard, L. (2002). Cozinhar. In M. De Certeau, L. Giard, & P. Mayol (Orgs.), A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar (4a ed.) (pp. 211-298). Petrópolis, RJ: Vozes.) também na prática do comer. Nessa pesquisa, a hierarquização social refletida na hierarquização culinária se apresenta na dinâmica relacional entre o tipo de alimento vendido, o gosto das pesquisadas e da clientela atendida. As mulheres que trabalham exclusivamente com a confeitaria, como é o caso de Luiza, Lélia, Sueli e Cida, relataram que não gostam de doces e, por isso, não consomem o alimento que produzem:

Ah, se tô testando alguma receita eu provo pra saber como tá. Mas geralmente vai dando um enjoo, um cansaço [risos]. Porque é muito doce, é muito chocolate. E aí tem vez que eu fico mais focada no salgado, que cê tá vendo ali diariamente, né? [...]. (Cida, 2021)

Mas eu não como bolo. Quando eu faço é para os outros, né? Aí é difícil fazer um pouquinho que sobrou. Aí, aqui em casa eles comem resto de bolo. Tipo, o topo, fundo, que eu sempre tiro e coloco aqui [aponta para a vasilha com pedaços de bolo]. Aí, eu deixo ali e eles vão comendo. (Lélia, 2020)

Interpretamos a justificativa e o cansaço de Cida como oriundos não apenas da exaustiva e contínua prática cotidiana do cozinhar, mas de longos anos de experienciação de odores, sabores e cores que foram memorizados em todo o seu corpo desde a infância (Giard, 2002Giard, L. (2002). Cozinhar. In M. De Certeau, L. Giard, & P. Mayol (Orgs.), A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar (4a ed.) (pp. 211-298). Petrópolis, RJ: Vozes.), pois era ela a responsável de sempre levar os bolos das festividades escolares, desde o ensino fundamental ao médio.

Assim como a prática culinária do cozinhar, o comer também é carregado de memórias afetivas (Giard, 2002Giard, L. (2002). Cozinhar. In M. De Certeau, L. Giard, & P. Mayol (Orgs.), A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar (4a ed.) (pp. 211-298). Petrópolis, RJ: Vozes.). Cida afirma que sua mãe “sempre foi muito boa na cozinha, mas nada na área assim de doce”, nas palavras dela. Lélia disse que não gosta da comida da mãe porque é uma comida simples e preparada ao gosto do pai: “[...] Meu pai é difícil pra comer. Ele come todo dia arroz, feijão, macarrão, uma carne ou uma verdura e às vezes saladas. Aí eu não gosto nada disso. Eu gosto de lasanha, estrogonofe [...]” e já Sueli afirma que sua mãe “[...] não é muito boa cozinheira [risos], [sabendo] fazer poucas coisas [...]”, sendo o pai de Sueli o responsável pelo preparo das refeições. Esses relatos nos dão indícios para compreendermos a construção do gosto (Gherardi, 2009bGherardi, S. (2009b). Practice it’s a Matter of Taste! Management Learning, 40(5), 535-550. doi:10.1177/1350507609340812
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) por parte das pesquisadas, de forma imbricada as memórias relacionadas à prática do comer (Giard, 2002Giard, L. (2002). Cozinhar. In M. De Certeau, L. Giard, & P. Mayol (Orgs.), A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar (4a ed.) (pp. 211-298). Petrópolis, RJ: Vozes.). Os achados mostram imbricações variadas das práticas a essas memórias: por conta do não estímulo ao consumo exacerbado de alimentos da confeitaria, por conta do preparo e gosto de suas mães, pela falta de preferência por esse tipo de cozinha.

A narrativa de Lélia, para além do gosto particular construído, pode ser interpretada como parte das dinâmicas de hierarquização social manifestas nas práticas culinárias. A família degusta as partes que não são aproveitadas dos bolos, até como uma forma de evitar o desperdício de alimento. Já a clientela consome o que há de melhor, desde a seleção dos produtos que servem de matéria-prima até o resultado final, que são os bolos decorados. Lélia inclusive, em outro momento da entrevista, considera não haver clientela para seus produtos no bairro onde mora, sendo seus clientes de bairros ditos nobres da Grande Vitória.

No caso das interlocutoras Carolina, Djamila e Conceição, o trabalho culinário se dá com outros tipos de alimentos. Djamila, por exemplo, faz marmitas, e a mesma comida que ela e a família comem é ofertada a sua clientela:

[...] E a minha cozinha mesmo é onde eu faço as minhas marmitas. Onde eu faço a minha comida mesmo. Já faço um ‘comidão’ onde eu consigo atender os meus clientes e a gente já almoça em casa, entendeu? É cansativo também porque tem que fazer a mais, porque a família também é grande. (Djamila, 2021)

Semelhantemente, Conceição come da própria feijoada que vende. Já Carolina, que trabalha com encomendas de buffet, jantares, cafés personalizados para empresas e possui uma pequena fábrica de casadinhos, relata:

Não sou muito ligada em pratos sofisticados. Apesar que o meu curso é cozinha francesa [...] Mas, pode acreditar, na cozinha francesa, cê pode usar ingredientes que você tem no dia-a-dia da sua casa [e] fazer prato francês. [...] Só muda o nome [risos]. (Carolina, 2021)

O ponto de interseção entre essas três mulheres está no comer dos mesmos pratos em que cozinham para vender a uma clientela composta majoritariamente por pessoas amigas e vizinhança próxima. Segundo Djamila, que mora em um morro da capital Vitória, a sua clientela é toda composta por vizinhas/os. Aqui, gostaríamos de pontuar algumas questões. Uma delas tem relação com as percepções de nossas interlocutoras no que diz respeito às limitações por elas encontradas nos processos de captação de novos clientes e na comercialização de seus produtos:

[...] o pessoal que compra as coisas que eu faço, fala assim: ‘ah por que você não vende no Ifood?’. Eu poderia até vender, fazer tudo, mas eu fico pensando na logística da coisa, né? Porque eu moro em um lugar que eu tenho que subir escada. Aí eu fico imaginando, eu tenho que ficar subindo e descendo escada pra poder levar para o motoboy. Então isso tudo assim influencia negativamente nesse lado e outro lado também é que uma vez uma cliente veio buscar uma encomenda e foi domingo de manhã [...] Ela veio e parou ali embaixo com o carro dela e eu tentando procurar onde é que ela tava porque eu falei pra ela subir uma ladeirinha e ela não subiu, ficou lá embaixo. Aí quando eu fui ver ela tava lá embaixo, aí ela falou assim depois que ela comentou comigo que tava ela e as filhas dela, né? Dentro do carro. Aí ela falou que veio um rapaz com aqueles radinho comunicador

[...]. (Luiza, 2021)

[...] Eu atendo poucas pessoas de bairros nobres mesmo né? Eu acho que atrapalha essa questão que quando você fala o bairro, as pessoas fica meio assim, não conhece... têm receio de vir [...]. (Sueli, 2020)

Quando você fala o nome do bairro onde você mora, você já é discriminado completamente. Então eu acho que aqui a gente não sofre só o racismo pela cor da pele, aqui a gente sofre o racismo por ser da periferia. (Djamila, 2021)

Que muitas vezes eu sinto que eu perco assim um bom cliente por morar onde eu moro, por eu ser negra, por eu não ser indicada por fulano de nome tal. Entra na página, gosta de tudo. ‘Você é conhecido de fulano e beltrano?’ ‘Não, nem conheço.’ Não vou mentir. Eu quero ser reconhecida pelo que eu sou e pelo que eu apresento. Então é muito difícil, é muito difícil [...]. (Carolina, 2021)

As dinâmicas de desigualdade são constituídas em muitas dimensões e interferem não apenas nas práticas culinárias em si, mas também em outras práticas emaranhadas no organizar cotidiano dos negócios das gestoras pesquisadas. As desigualdades que operam na hierarquização das práticas culinárias, estabilizando lugares de poder para homens brancos cisgênero de classe média e alta, também operam nas condições logísticas e mercadológicas no cotidiano dessas gestoras. Esses lugares de poder ancoram-se, como se pode ver nos relatos, em centralidades que estabelecem uma série de limites à atuação profissional de nossas interlocutoras.

Aqui, falamos de centralidades em termos simbólicos, na medida em que se apoiam nas redes de sociabilidade em torno da alta gastronomia que dificultam ou mesmo interditam indicações, recomendações ou troca de contatos com essas mulheres. No relato de Carolina, por exemplo, ela chega a reproduzir uma conversa com um potencial cliente, que tenta, sem sucesso, acionar essas redes ao perguntar “Você é conhecido de fulano e beltrano?”. Ao perceber que Carolina não acessa esses espaços simbólicos (“‘Não, nem conheço.’ Não vou mentir”, diz ela), o cliente não fecha negócio.

Entretanto, também mencionamos essas centralidades no que diz respeito às condições materiais de instalação desses negócios que, ancorados em espaços domésticos nas periferias e regiões pobres das grandes cidades, não gozam das mesmas condições de circulação, transporte ou segurança pública de áreas ditas nobres da cidade. Os relatos de Luiza, Sueli, Djamila e Carolina expressam abertamente dificuldades nesse sentido, fazendo referência ao medo ou dificuldades que habitantes de outras regiões sentem para circular no bairro (“quando você fala o bairro, as pessoas […] têm receio de vir”, nas palavras de Sueli).

O próximo tópico dá continuidade às análises, movendo o foco da discussão das hierarquizações produzidas nas práticas culinárias para as apropriações táticas e estratégicas de nossas interlocutoras que, frente a fissuras no cotidiano, reinventam o organizar dessas práticas tendo em vista sua própria sobrevivência e de seus negócios.

“Parecia que a gente tava na pandemia antes”: fissuras e sobrevivências no cotidiano

Neste item, analisamos o papel das práticas culinárias no (re)organizar das táticas e estratégias de sobrevivências, considerando o contexto de perturbações cotidianas. Em função da temporalidade da pesquisa de campo, as perturbações cotidianas contemplaram um momento específico relacionado à emergência da pandemia de covid-19, o que, como se vê mais adiante nesse texto, foi um recorte com implicações importantes para a análise de dados.

O saber-fazer apreendido ao longo da vida das entrevistadas as possibilitou desenvolver negócios ordinários. Sendo assim, ao nos debruçarmos sobre essas sujeitas da gestão ordinária, oportunizamos uma discussão que contempla as estratégias e táticas criadas e desenvolvidas por elas, a fim de que seus negócios sobrevivessem e se consolidassem (Carrieri et al., 2014Carrieri, A. de P., Perdigão, D. A., & Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. doi:10.5700/rausp1178
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; Certeau, 1998Certeau, M. De. (1998). A Invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes.) diante de perturbações cotidianas (Leite, 2010Leite, R. P. (2010). A inversão do cotidiano: práticas sociais e rupturas na vida urbana contemporânea. Revista de Ciências Sociais, 53(3), 737-756.).

Assim, considerando o período em que as entrevistas foram conduzidas, foi possível observar os efeitos da pandemia pela ótica das perturbações do cotidiano das sujeitas pesquisadas. As narrativas obtidas evidenciaram que esse acontecimento compôs mais uma fissura envolta de tantas outras. Luiza contou:

Menina, eu achei, assim, até um, quase que um milagre, né? [...] Aí é assim, é bem estranho, até, pensar que eu tô na pandemia, porque não parece que eu tô [risos] [...] Então, tá dando pra sobreviver até bem, bem, bem melhor do que antes que em 2019, 2018 foi um ano muito complicado pra mim, pra minha família, né? Meu esposo sempre trabalhou e eu também, mas parecia que tava tudo muito amarrado, muito sofrido, parecia que a gente tava na pandemia antes do que agora. Agora tá assim... às vezes a gente pensa ‘meu Deus, tem dinheiro sobrando ainda?’. [risos] É, tá estranho até, pensar que a gente tá na pandemia, né? A gente tá até conseguindo ajudar, né? Algumas pessoas da família que tão passando necessidade e tudo. E isso graças a Deus. (Luiza, 2021)

A fala de Luiza nos remeteu ao fato de que, historicamente, pessoas empobrecidas e racializadas sobrevivem marginalizadas pela sociedade e assim lidam em seus cotidianos com outras tantas problemáticas, como a violência policial, as doenças causadas pela falta de saneamento básico, a fome, a violência doméstica, o tráfico de drogas etc. Quando Luiza diz que “parecia que a gente tava na pandemia antes do que agora”, ela se refere ao fato de que, antes da pandemia, ela já vivia uma condição difícil de sobrevivência (“tava tudo muito amarrado, muito sofrido”). Essa condição de dificuldade, que era compartilhada por outros familiares e pessoas próximas, certamente se agravou com a pandemia, mas, no caso de Luiza, a necessidade de isolamento social, fundamental para a não disseminação da doença, pode ter possibilitado o avanço de certos modelos de negócios, como o dela (preparo e entrega de alimentos), gerando condições de sobrevivência para os negócios, para si e para os seus (“a gente tá até conseguindo ajudar”).

Ainda na visão de nossas interlocutoras, sobreviver num cenário de pandemia foi exaustivo e massacrante, como relatou Carolina, que conviveu de perto com a doença, pois marido e filho se contaminaram; também Djamila sofreu as consequências psicológicas da pandemia; e Sueli narrou experiências e dificuldades de ser gestora e mãe em tempo integral na pandemia. Esses achados corroboram os argumentos de Nilma Lino Gomes (2020); que evidenciam ter sido a mulher negra a mais afetada nos períodos mais críticos da pandemia, especialmente em termos da perda de renda; e de Elaine Swan (2020), no sentido de ser o trabalho feminino, sobretudo de mulheres negras, a responsabilidade pela manutenção da roda do capitalismo girando durante a pandemia.

Nesse estudo, as gestoras ordinárias não interromperam as suas atividades durante a pandemia, com destaques a Luiza, Cida e Conceição, que iniciaram os negócios no período pandêmico, e Carolina, Djamila e Sueli, que investiram em novos produtos e novas formas de gestão:

[...] eu sempre fiz biscoito amanteigado. E agora eu resolvi investir só num produto, né? Pra mim poder, assim, ter um retorno e, assim, pegar essas pessoas que tão desempregada, que quiserem pegar um produto, pra revender, eu investi no casadinho. Uma fábrica. Estamos fabricando de atacado e no varejo. [...] E eu acho que a gente vai ter assim um retorno mais pra frente, onde o custo não é tão alto. [...] E a gente vai voltar devagarzinho, de novo, né? [...]. (Carolina, 2021)

[...] eu não considerei muito a pandemia, não. Eu achei, assim, que era o momento. Foi, foi assim, o meu despertar mais foi porque eu estava em redução de carga horária do serviço e eu falei assim: eu vou aproveitar esse tempo. Vou aproveitar esse tempo e fui fazer cursos, outros cursos que eu tinha que fazer, que era o meu desejo. (Cida, 2021)

A discussão proposta até aqui revela que o contexto das perturbações do cotidiano para as mulheres estudadas se dá para além da pandemia, porque as fissuras praticadas acontecem o tempo todo (Leite, 2010Leite, R. P. (2010). A inversão do cotidiano: práticas sociais e rupturas na vida urbana contemporânea. Revista de Ciências Sociais, 53(3), 737-756.). Como estratégias de sobrevivência, identificamos duas práticas imbricadas as práticas culinárias: uma delas diz respeito ao uso do espaço doméstico, que extrapola as dimensões do privado e se torna parte de um processo organizativo que culmina em geração de renda; e a outra trata da mobilização de redes de amizades para formar clientela.

Entendemos que o cotidiano é constituído de fissuras que atravessam as práticas regulares e o dinamizam. Essas fissuras são manifestas situacionalmente pelas táticas que subvertem as estratégias postas pelo “próprio” (Leite, 2010Leite, R. P. (2010). A inversão do cotidiano: práticas sociais e rupturas na vida urbana contemporânea. Revista de Ciências Sociais, 53(3), 737-756.). Nesse sentido, as narrativas das sujeitas nos levam à compreensão desse cotidiano formado por pequenas fissuras produzidas nas práticas de sobrevivências, no dinamismo de usos e contrausos dos espaços. Tais práticas de sobrevivência são, assim, articuladas às práticas culinárias, possibilitando às sujeitas ordinárias (re)organizarem espaços outrora domésticos e privados, agora tornados espaços de negócios, mas que não deixaram de ser espaços de trocas de afetos e sociabilidades.

Essa articulação demonstra que o organizar e o reorganizar são situados, estando imbricados na materialização das práticas, nos corpos, nos espaços. Com isso, as práticas de sobrevivência engendradas pelas gestoras estudadas foram identificadas em dois aspectos: as que reconfiguram as fronteiras entre casa e rua, família e negócio (Carrieri et al., 2014Carrieri, A. de P., Perdigão, D. A., & Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. doi:10.5700/rausp1178
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); e as que articulam redes de sociabilidades na construção do pertencimento a comunidade (Clemente & Silva, 2014Clemente, C. C., & Silva, J. C. G. da. (2014). Dos quilombos à periferia: reflexões sobre territorialidades e sociabilidades negras urbanas na contemporaneidade. Crítica e Sociedade: revista de cultura política, 4(1), 86-106,2237-0579.; Fantinel, 2016Fantinel, L. D. (2016). As sociabilidades nas organizações: da sociologia formal às interações cotidianas. Revista Interdisciplinar de Gestão Social - RIGS,5, 139-151.).

Todas as entrevistadas, no momento de desenvolvimento da pesquisa, (re)organizavam o espaço doméstico nos interstícios entre espaços de descanso/trabalho, sendo Carolina, Lélia, Sueli e Djamila as que mobilizavam esse espaço há mais tempo. Nesse sentido, há uma mistura de usos e significações dos espaços públicos e privados - rua e casa -, bem como de negócio e família (Carrieri et al., 2014Carrieri, A. de P., Perdigão, D. A., & Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. doi:10.5700/rausp1178
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) manifestada nas fissuras (Leite, 2010Leite, R. P. (2010). A inversão do cotidiano: práticas sociais e rupturas na vida urbana contemporânea. Revista de Ciências Sociais, 53(3), 737-756.). Algumas falas são evidências disso:

E atualmente eu faço marmitex, aí eu e minha irmã. Minha irmã me ajuda né? Mas eu tenho que pagar também. E de preferência eu atendo quem vem na porta porque pra entregar tá sendo difícil também, eu tenho que pagar motoboy, essas coisas também [...]. (Djamila, 2021)

Faço bolo e docinhos. Aqueles docinhos gourmet. Até então, apenas isso. Minha irmã que fica por conta de salgado e torta, agora ela até gosta de fazer salgadinho, mas assim, eu pego o dela e entrego. Ela não mexe com o cliente não. Eu que me aborreço com cliente [risos]. E ela só vai... eu só pego dela e entrego. (Luiza, 2021)

Um ponto somente de feijoada [...] É o que tenho na cabeça [risos]. Assim, os amigos, vindo em casa comer feijoada. Isso antes da pandemia, porque agora não pode mais [...] É uma coisa que eu queria colocar em prática. Começando a pensar, amadurecer a ideia, pedindo ideia a filho, pede ideia a filho, a gente conversa, a gente troca ideia, né? Vamos fazer a logomarca... fizeram a logomarca da feijoada... deu tudo certo e colocamos em prática [...]. (Conceição, 2020)

Identificamos fissuras nas falas de Djamila, Luiza e Conceição ao mobilizarem pessoas de seus núcleos familiares para auxiliarem em seus negócios, sendo que Djamila e Luiza contaram que suas irmãs estavam desempregadas e passaram a ter uma renda trabalhando com elas. Dessa forma, ao se aproveitarem de um momento oportuno, empregaram pessoas da família para estender a geração de renda e fortalecer as práticas de sobrevivência entre os seus, dinamizando as maneiras de fazer entre estratégias e táticas (Certeau, 1998Certeau, M. De. (1998). A Invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes.).

Ao mobilizarem o espaço doméstico para prática de seus negócios, essas mulheres transformam um espaço da cozinha outrora privado, doméstico, em um espaço que também passa a ser público, de negócio, como contaram Lélia, Cida e Djamila:

[...] Aí, de dia, eu, geralmente, faço tipo recheio, monto o bolo, enrolo o doce, mas a produção mesmo mais pesada, eu faço realmente à noite, pra não atrapalhar ela [se refere a mãe]. Aí, a única coisa ruim é essa. E também de querer armazenar coisas. Como a casa é pequena, né? Aí fica as coisas... [...] Então, eu acho que o espaço mesmo é bom, só é ruim porque a gente tem que dividir o espaço e também não é meu, [é] da minha mãe, que é a casa dela. (Lélia, 2020)

[...] Então assim, mas eu faço na minha cozinha, tudinho, aqui no meu fogão, no meu ‘apertamento’ [risos], assim, fico tentando administrar esse espaço, né? Que é pequeno. [...] Então assim, eu não sei outras pessoas, mas o que eu almejo é um espaço, né? Que eu tenha ali minhas coisas separada de tudo, né? Tudo refrigerado. (Cida, 2021)

O meu espaço de trabalho... a minha casa não é grande, é uma casinha pequena, humilde, de 2 quartos, sala, cozinha, banheiro. Eu tinha um porão embaixo da minha casa que eu fui mexer nele. Mexi, coloquei um freezer, umas prateleiras e é ali que eu trabalho com o meu barzinho, vendo refrigerante, coloco as minhas tortas, vendo bala, essas coisas. E a minha cozinha mesmo é onde eu faço as minhas marmitas. (Djamila, 2021)

Tais estratégias também foram usadas como diferencial no contexto pandêmico. A fala de Conceição remete à mobilização do espaço doméstico como prática de sobrevivência na pandemia, uma vez que a premissa para evitar o contágio e proliferação da covid-19 é o isolamento social:

E aí com essa pandemia aqui em casa [...] Eu sou uma pessoa que eu não aguento ficar parada. [...] conclusão: estou presa dentro da minha casa. Pra não pegar [o vírus]... mas aí perco dinheiro, porque eu ganhava mais ou menos um salário mínimo pra tomar conta dos idosos. Parei e faz falta. [...] Comecei a pensar na ideia da feijoada. É uma coisa que eu queria fazer. É uma coisa que eu queria colocar em prática. (Conceição, 2020)

Finalmente, as práticas articulam redes de sociabilidade. As entrevistadas descreveram redes de sociabilidades essenciais para a consolidação de seus negócios, em que práticas de venda se confundem com práticas de afetos, práticas de negócio com as de sociabilidade, constituindo um emaranhado que reconfigura fronteiras e que são essenciais na e para produção das comunidades empobrecidas e racializadas (Clemente & Silva, 2014Clemente, C. C., & Silva, J. C. G. da. (2014). Dos quilombos à periferia: reflexões sobre territorialidades e sociabilidades negras urbanas na contemporaneidade. Crítica e Sociedade: revista de cultura política, 4(1), 86-106,2237-0579.), evidenciando redes de sociabilidade vitais para a existência das organizações (Fantinel, 2016Fantinel, L. D. (2016). As sociabilidades nas organizações: da sociologia formal às interações cotidianas. Revista Interdisciplinar de Gestão Social - RIGS,5, 139-151.) ordinárias estudadas:

[...] tinha uma menina aqui que ela, que nem era muito minha conhecida não. Ela mora aqui ainda, né? No bairro. Então ela começou a comprar, comprar, comprar e ela divulgou e veio outras pessoas, mas querendo bolo mesmo, né? Aí a partir dela começou, aí tem uma outra vizinha também que que indicou, mas é, eu tô percebendo assim, que é mais, é muita gente daqui mesmo, né? No entorno, né? E os conhecidos desse povo que indicam... os que indicam são os daqui, né? Os que indicam são os do bairro, que já aprovaram, né? (Luiza, 2021)

[...] E aí os amigos da minha filha fizeram parte da minha família aqui em Vitória. E assim... faz um feijão tropeiro, faz uma feijoada, faz uma moqueca... e aquilo foi, minha filha. Aquilo foi e a fama foi subindo [...]. (Conceição, 2020)

[...] Então, assim, ah, o meu bairro, assim, todo mundo me conhece, ah, então assim: a [fulana] vende, a [fulana] tem. Ah, então, tem o seu lado, o lado bom, o lado, o lado ruim. Aqui tem. É. Concorrência, né, muito grande, né, porque todo mundo vai e faz uma coisa. Todo mundo faz uma outra coisa, mas tem espaço pra todo mundo, cada um com sua culinária, cada um com seu tempero [...]. (Djamila, 2021)

Nas comunidades periféricas, as redes de sociabilidades formadas por familiares e amigas/os são o fio condutor das organizações ordinárias:

[...] que eu acho que cozinha mesmo, é, confeitaria ou cozinha mesmo... eu acho que é muito afeto, né? As pessoas acabam entrando nesse mundo da culinária, é, porque gostam de cozinhar pra alguém ou porque querem cozinhar pra alguma pessoa, precisam cozinhar pra alguma pessoa e acabam gostando disso. Acho que essa relação que a gente acaba tendo, principalmente famílias negras, elas são relações que vêm muito enraizada de necessidade, de você ter que cuidar de um irmão, de você ter que aprender cozinhar. E aí, você começa a gostar daquilo. (Sueli, 2020)

Ao dizer que as famílias negras se relacionam com a prática culinária por necessidade de cuidar dos seus, Sueli nos ajuda na compreensão de que as redes de sociabilidades muitas vezes são formadas por conta das dificuldades. As famílias negras herdam o empobrecimento gerado desde o período pós-escravização e isso acarreta na divisão de atividades domésticas e do cuidar entre os próprios familiares e amigas/os, como no caso de Sueli que aprendeu a cozinhar para ajudar em casa e no próprio caso da pesquisadora em campo, que cuidou da irmã, abdicando de sua vida profissional para que a mãe pudesse manter seu emprego formal.

Nessas circunstâncias, enquanto as classes mais abastadas dão conta de determinadas situações com dinheiro, por exemplo, pagando por determinados serviços, como de babá, grupos empobrecidos historicamente precisam contar com a solidariedade das redes mobilizadas. Assim, a mobilização das redes de sociabilidades acarreta fissuras que contrariam o cotidiano permeado pela precarização de infraestruturas e serviços, discriminação do espaço e racismo.

Ainda sobre o arranjo de famílias negras, Carolina relata que a figura paterna teve grande atuação no seu aprender:

[...] A minha família é família de gente que gosta de cozinhar, de se reunir na cozinha. Né? Bater papo. E ali desenvolver as aptidões. Eu comecei, eu me lembro mesmo, eu comecei com sete anos é... a cozinhar, eu não tinha nem muita altura. Meu pai fez um ‘caixotinho’ de madeira e botava na beirada do fogão, eu subi ali e ele que me ensinou, né? A cozinhar, é... a gente era em seis irmãos, tudo pequeno e o que ia crescendo, tinha mais habilidade e se envolvia, né? No que gostava de fazer. E eu sempre gostei de cozinha. E eu aprendi aquela cozinha assim, caseira, a cozinha raiz. De você cozinhar o que tinha dentro de casa [...]. (Carolina, 2021)

Semelhantemente, Sueli contou que o seu pai era quem mais cozinhava em casa e que apreendeu esse saber-fazer dele, já que a mãe não sabia cozinhar tão bem. A prática culinária sobrepõe-se em práticas afetivas:

[...] hoje eu tenho a minha família, eu continuo perpetuando isso, que eu aprendi com os meus pais, né? De tomar café da manhã junto, de ter um tempo pra conversar, mesmo e a comida tá sempre presente, né? Quem já tá lá conversando, comendo, ou vai sair com os amigos também, tem essa relação de comer e conversar, comer e partilhar, né? (Sueli, 2020)

Para Luiza, uma figura masculina importante no seu processo de apreender o saber-fazer culinário é seu primo:

[...] minha família toda é de São Paulo. Eu nasci lá. Tenho quatro irmãos. Aí eu vim pra cá com seis meses de idade. Aí vim morar com a minha tia [...] E eu cresci com a minha tia, com os meus primos, né? Minha tia já tinha mais dez filhos, mas ainda eu vim ainda pra cá. [risos] Aí ela me cuidou, mas depois, acho que eu tinha três anos, e aí ela faleceu e eu fiquei com meus primos, que pra mim eu chamo de meus irmãos hoje, né? [...] meu irmão mais velho [...] começou a mexer com bolos, né? [...] E assim, eu ficava ali do lado, olhando. Ele montava os bolos, aí eu ajudava, mas ele não gostava que mexia, só ele que fazia. Aí eu comecei a me intrometer assim, a molhar os bolos assim, a passar o recheio, aí eu ficava assim, quietinha na minha, só olhando [...]. (Luiza, 2021)

Os relatos de Carolina, Sueli e Luiza nos dão indícios de que as lógicas de muitas famílias negras se reconfiguram, indicando o uso da gestão ordinária como uma subversão, uma fissura, que é diferente das lógicas de organização de uma família branca burguesa, por exemplo. A figura masculina é reverenciada também como detentora de saberes culinários que são passados de geração em geração.

Os achados nos levam a uma intensa dinâmica relacional praticada, em que espaços periféricos atravessam e são atravessados por espaços domésticos, indicando a mescla entre práticas de sociabilidades com as práticas de negócios, no qual são essenciais para e na produção do sentimento de pertencimento à comunidade (Clemente & Silva, 2014Clemente, C. C., & Silva, J. C. G. da. (2014). Dos quilombos à periferia: reflexões sobre territorialidades e sociabilidades negras urbanas na contemporaneidade. Crítica e Sociedade: revista de cultura política, 4(1), 86-106,2237-0579.), enfatizando as sociabilidades como marcadores essenciais das práticas de sobrevivência das entrevistadas.

Diante de todo o exposto, a próxima seção é destinada ao fechamento deste manuscrito, mas não de nossas reflexões. Por isso, serão apresentadas as conclusões com respostas aos objetivos propostos e o encorajamento a estudos futuros.

“Fazendo do limão uma limonada sofisticada”: conclusões

E eu quero morrer assim. Sem vaidade, mas ser muito boa na cozinha. Do limão fazer uma limonada, mas uma limonada sofisticada [risos] […]. (Carolina, 2021)

Nessa pesquisa, buscamos compreender o (re)organizar do cotidiano pandêmico periférico a partir das dinâmicas de generificação e racialização das práticas do cozinhar/comer e encontramos espaços sendo (re)organizados através do saber-fazer culinário de mulheres negras, envoltos no emaranhado das relações entre o fazer doméstico e fazer negócio. Os achados da pesquisa revelam uma constituição do saber-fazer culinário das entrevistadas como heterogêneo, porque algumas são autodidatas no que fazem, enquanto outras aprenderam de fato por influências familiares, entre elas figuras masculinas, o que de certa forma contraria um imaginário calcado em estereótipos racistas de que homens negros seriam preguiçosos, agressivos e ausentes de afetividade (Adichie, 2019Adichie, C. N. (2019). O Perigo de uma história única. São Paulo, SP: Companhia das Letras.; hooks, 2019hooks, B. (2019). Olhares negros: raça e representação. São Paulo, SP: Elefante.; Kilomba, 2019Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó.). Por fim, o saber-fazer das sujeitas estudadas simboliza o que foi descrito por elas como um ato de amor que possibilitou o desenvolvimento de seus negócios ordinários.

O estudo ainda desvelou as fissuras existentes no cotidiano das mulheres entrevistadas, forjadas historicamente por desigualdades estruturais, e fez compreender como o saber-fazer das mulheres estudadas dinamiza práticas do tipo táticas e estratégicas (Certeau, 1998Certeau, M. De. (1998). A Invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes.), sendo frequentemente utilizadas para sobrevivências (hooks, 2019hooks, B. (2019). Olhares negros: raça e representação. São Paulo, SP: Elefante.) de seus negócios, de si e de pessoas próximas. Essas práticas de sobrevivência vão desde a mobilização de seus espaços domésticos para geração de renda, a empregabilidade de familiares e amigas da comunidade até o fortalecimento de redes de sociabilidades com familiares, amigas e vizinhas que formam as suas clientelas.

Nesse âmbito, não nos foi possível separar o organizar do sentido de comunidade. Isso demonstra de que forma as mulheres negras são protagonistas no desenvolvimento de grupos negros urbanos de periferias e favelas que representam pertencimento e sociabilidade (Clemente & Silva, 2014Clemente, C. C., & Silva, J. C. G. da. (2014). Dos quilombos à periferia: reflexões sobre territorialidades e sociabilidades negras urbanas na contemporaneidade. Crítica e Sociedade: revista de cultura política, 4(1), 86-106,2237-0579.). A frase de Carolina, mulher preta retinta, que intitula esse tópico e o artigo, converte em metáfora o organizar das práticas em subversões cotidianas. Envoltas em astúcias, essas requintadas e laboriosas subversões precisam, ao lidar com fissuras e perturbações de diferentes ordens (os tais “limões” na metáfora em título), fazer sair delas uma sobrevivência coletiva (a “limonada sofisticada”). Em meio a tantas dificuldades cotidianas vividas, a pandemia se apresentou como mais uma para nossas interlocutoras, o que entendemos ser relevante para atentarmos a narrativas produzidas fora dos lugares hegemônicos sobre os impactos da covid-19.

O artigo contribui empiricamente ao mostrar as heterogêneas formas de sociabilidades que constituem a gestão ordinária, pelos entrecruzamentos com os espaços domésticos, respaldado nas práticas culinárias que organizam o cotidiano dessas mulheres. Teoricamente, contribuímos ao articular categorias analíticas como gênero e raça na compreensão da produção de práticas de sobrevivência que mesclam o privado com o público e a sociabilidade com o negócio, comprovando que essas práticas são situadas e socialmente sustentadas, ao utilizar essas categorias analíticas específicas. Avançamos, ainda, em relação aos estudos que analisam os usos de táticas e estratégias politicamente empreendidas no cotidiano de trabalho de sujeitas e sujeitos sociais, tendo as dinâmicas de racialização e generificação atravessando esses espaços. Nesse estudo, os usos de táticas e estratégias ocorreram de forma dinâmica e simultânea, não sendo essencial a categorização binária desses usos, pois o próprio autor que se debruça sobre a conceituação dos usos, não se preocupa em categorizar rigidamente esses acontecimentos, respeitando, assim, a pluralidade e complexidade de tais práticas (Certeau, 1998Certeau, M. De. (1998). A Invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes.).

Finalmente, reconhecemos que o contexto da pandemia foi limitante na produção da pesquisa e no contato com as pesquisadas. Desse modo, encorajamos o desenvolvimento de estudos que permitam debruçar-se sobre o cotidiano das sujeitas - por meio de técnicas observacionais e/ou audiovisuais (algo que não foi possível aqui, uma vez que tais limitações nos circunscreveram apenas à realização de entrevistas). Encorajamos, ainda, estudos que contemplem a prática cozinhar/comer na produção de espaços que simbolizem pertencimento e afetividade, apoiados em epistemologias não ocidentais, de forma a subverter outras compreensões hegemônicas na Administração.

  • Financiamento
    As autoras não receberam apoio financeiro para a pesquisa, autoria ou publicação deste artigo.

Agradecimentos

As autoras agradecem a todas as mulheres participantes desta pesquisa.

Notas

  • 1
    bell hooks é um pseudônimo utilizado pela autora, sendo inspirado em sua bisavó materna. Optamos intencionalmente neste trabalho por respeitar o desejo da autora em detrimento das regras formais de citação e referência, uma vez que hooks prefere que as citações sejam feitas em letras minúsculas, de modo a estabelecer o foco no conteúdo de sua escrita e não na pessoa física, possibilitando ainda a libertação de uma única identidade particular e mantendo-se em constante movimento e transformação.

Linguagem inclusiva

As autoras usam linguagem inclusiva que reconhece a diversidade, demonstra respeito por todas as pessoas, é sensível a diferenças e promove oportunidades iguais.

Verificação de plágio

A O&S submete todos os documentos aprovados para a publicação à verificação de plágio, mediante o uso de ferramenta específica.

Disponibilidade de dados

A O&S incentiva o compartilhamento de dados. Entretanto, por respeito a ditames éticos, não requer a divulgação de qualquer meio de identificação dos participantes de pesquisa, preservando plenamente sua privacidade. A prática do open data busca assegurar a transparência dos resultados da pesquisa, sem que seja revelada a identidade dos participantes da pesquisa.

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Editora Associada: Josiane Silva de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2022
  • Aceito
    07 Jan 2023
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