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“VOZ DE GENTE”: Espaço e história em dois poemas de Drummond1 1 O presente artigo retoma o argumento de uma das seções de Literatura conflagrada: Jorge Amado, Rubem Braga e Carlos Drummond de Andrade na trincheira dos anos 1930, tese defendida em dezembro de 2021 na Universidade de São Paulo (Vonk, 2021).

“People’s Voice”: Space and History in Two Poems by Drummond

RESUMO

De uma carta escrita por Manuel Bandeiraem 1931,Drummond desentranha dois poemas-chave de Sentimento domundo,que fazem do espaço social do Rio de Janeiro um problema estético. Ao enlaçar as tensões históricas sedimentadas na paisagem à configuração da voz poética, “Privilégio do mar” e “Noturno à janela do apartamento” elaboram estratégias de politização atentas tanto à emergência do conflito de classes como à situação de opressão estadonovista.

PALAVRAS‑CHAVE:
Carlos Drummond de Andrade; Sentimento do mundo; Manuel Bandeira; Modernismo brasileiro; anos 1930

ABSTRACT

From a letter written by Manuel Bandeira in 1931, Drummond disembowels two key poems published in Sentimento do mundo, in which the social space of Rio de Janeiro is converted into an aesthetic problem. By intertwining the historical tensions embedded in the landscape with the configuration of the poetic voice,“Privilégio do mar” and “Noturno à janela do apartamento” develop politicization strategies attentive to both the emergence of class struggle and the oppressive situation of the Estado Novo regime.

KEYWORDS:
Carlos Drummond de Andrade; Sentimento do mundo; Manuel Bandeira; Brazilian Modernism; 1930’s

Seria difícil sobre-estimar quanto da experiência modernista brasileira as seguintes linhas de Manuel Bandeira, embora desprovidas de intenção estética, alcançam registrar:

Ando agora numas tentativas de trabalho, bulindo devagarzinho com o pulmão como se faz com cachorro que não se sabe se morde. Na United Press, traduzindo telegrama. É divertido gozar em primeira mão o cinismo fascista: todo discurso é “importantíssimo” e o Duce não dá um peido que os balilas não cantem o Giovinezza. De vez em quando dana-se a haver interferências (as ondas, irritadas com tanta mentira farreando nos ares) e então é xth y ka macdonawt smaif fs sif commons rnw que não se entende nada e o argentino Fusone, que eu e o Sérgio Buarque de Holanda chamamos Al Fusone, diz - Es inutilizable. E a gente vai fumar um cigarro no balcão do 19-º andar da A Noite. A Praça Mauá lá embaixo sussurra “L’invitation au suicide” e como há um refúgio cercado de automóveis por todos os lados, o Sérgio pergunta o que é um refúgio cercado de automóveis por todos os lados, e as luzes da ilha das Cobras, de Niterói, dos subúrbios estão tão bonitas que a gente dá uma banana para as estrelas […].2 2 A título de nota auxiliar, lembre-se que Giovinezza é o título do hino do Partido Nacional Fascista italiano, e Balila, a organização da juventude fascista no país entre 1926 e 1937. (Bandeira, 1958Bandeira, Manuel. Poesia e prosa, v. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958., p. 1.404)

Espécie de instantâneo saturado de referências e implicação histórica, o relato despachado por correio em 14 de dezembro de 1931 mobiliza os recursos do poema-piada, da cultura literária, da crônica de opinião e da inteligência plástica de um homem de letras cheio de esprit, com o olho na atualidade, mas desconfiado dos feitos da técnica e do progresso. Convertendo recursos intelectuais em força de trabalho que alimenta a máquina noticiosa de uma agência internacional, ele tira partido da ocasião que propicia contato em primeira mão com os acontecimentos do momento, seja a mitologia fascista, em fase inicial de disseminação para além das fronteiras italianas, sejam os episódios de modernização da paisagem e da sociabilidade carioca. O ponto de vista, digamos, é o do grande poeta de sua geração que, premido pela falta de renda a prestar serviços jornalísticos, faz desse rebaixamento à experiência concreta um ângulo de notação do curso do mundo. E é assim capaz de, em três ou quatro linhas carregadas de informação artística, transitar da cena política mundial ao circuito da vida intelectual local e desta às transformações por que passa a capital do país.

Limitando nosso comentário a um aspecto da cena montada por Bandeira, destaquemos de que modo, ao costurar com prodigiosa informalidade temas e registros, ela atualiza um topos clássico - as relações entre paisagem e estado anímico -, sugerindo chaves diversas para mobilizá-lo. Seu ponto de partida é a novidade arquitetônica do edifício art déco recém-inaugurado, então conhecido por sediar a redação do jornal A Noite. Ele já merecera, em crônica de 1929, o comentário desdenhoso do pernambucano para quem, diante da geografia e natureza cariocas, “os arranha-céus do Rio não fazem nenhuma figura”, cabendo até mesmo “meter a ridículo os snobs que inscrevem o arranha-céu como cláusula de modernidade”. O texto arrematava: “Quem manda levantar arranha-céus está se ninando para as artes, modernistas ou não. Quer é dinheiro” (Bandeira, 2008Bandeira, Manuel. “Os arranha-céus do Rio não fazem nenhuma figura”. In: Bandeira, Manuel. Crônicas inéditas I (1920-1931). São Paulo: Cosac Naify , 2008, pp. 151-4., pp. 151-4). É retomando essa cisma diante da atualização urbana que, do topo do maior arranha-céu da América Latina, o escritor especula as sugestões latentes no enquadramento que domina a cidade e sua baía. De saída, submete a ambiência nas alturas a um banho de estranhamento, como se a minar seu aspecto de distinção e sublimidade, posto em contexto pela vulgaridade contemporânea dos avanços técnicos (automóveis, iluminação elétrica), que se impõem à vista e obliteram a contemplação dos astros e a promessa de refúgio. A falta de reverência diante da paisagística do pináculo e da vastidão, propiciada pelo acesso à novidade do balcão nos cimos da Guanabara, carrega, por sua vez, o travo do intelectual sem posses: na jocosidade em face da construção up-to-date reconhecemos o poeta domiciliado e apegado ao bairro da Glória, de cujo “velho casarão quase em ruína” fazia, em seus próprios termos, registrados em 1954 no Itinerário de Pasárgada, “posto de observação da pobreza mais dura e mais valente” (Bandeira, 1958Bandeira, Manuel. Poesia e prosa, v. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958., p. 581). Instruído por essa experiência, e pelas maneiras de transpô-la literariamente, o registro de Bandeira, cogitando sem compromisso as sugestões da paisagem, recusa o deslumbramento diante das grandezas e altitudes, bem como as qualidades de revelação ou poder a elas associadas. O discurso ao rés do chão, todavia, é informado pela associação irônica da elevação a estados de imaginação e comoção especiais, e com essa lembrança tempera seu concentrado inventário das possibilidades anímicas e poéticas suscitadas pela espacialidade singular. Pois, ainda que em tom chistoso, da cena no topo do edifício Bandeira deriva outro motivo, o da inquietação existencial, nomeado sob o signo da “invitation au suicide”, ou do “convite ao suicídio”. Se em francês a expressão remete ao relato autobiográfico do surrealista Soupault, em português coincide com o título de um poema que Drummond, o destinatário da carta, publicara em 1927.3 3 O poema “Convite ao suicídio”, de Drummond,saíra na revista Verde, em dezembro de 1927. Cf. a reprodução fac-similar em Pedro Puntoni e Samuel Titan Jr. (2014). Para a situação, na obra do autor, desse poema que nunca seria republicado, cf. John Gledson (2003, pp. 63-7) e Eucanaã Ferraz (2012, pp. 113-7). Como quem nada quer, a referência a um tempo indicia uma vasta tradição poética em torno do desespero suicida e provoca o interlocutor mineiro, cuja obra faz do tema uma espécie de baixo-contínuo, trabalhado em chaves diversas. Na despretensão da anedota, portanto, a missiva condensa questões que teriam desdobramentos fecundos ao longo da década que se iniciava.

Embora Drummond tenha sua produção diretamente interpelada pelo amigo e vá, como veremos, situar um poema no mesmo arranha-céu mencionado por Bandeira, o interesse da carta assinada por este vai bem além de um eventual caso de influência direta. Se a recuperamos, é porque as diferentes possibilidades de tratamento do assunto mescladas na prosa de Bandeira ganhariam desdobramento radical na poesia do mineiro que se instalaria no Rio em meados de 1934. Em outras palavras: ao recuperar em chave dramática as implicações psicossociais da transformação urbana, Drummond explora ao limite as possibilidades pontilhadas na missiva do autor de Libertinagem. É o que se vê quase dez anos depois: em Sentimento do mundo, publicado em 1940, o edifício moderno será signo-chave tanto para figurar o processo de modernização, entendido em suas especificidades de classe, como para elaborar modos contemporâneos de desassossego subjetivo; desenvolvendo as duas frentes em paralelo, a composição da obra dá momento e tensão aos termos que o registro modernista de Bandeira equilibrava em anedota alegre e espirituosa. Tanto mais porque o método drummondiano fará do edifício um recurso de aprofundamento das interrogações sobre a posição da fala poética. É o que dá a ver a leitura comparada de “Noturno à janela do apartamento” e “Privilégio do mar” (Andrade, 2012aAndrade, Carlos Drummond de. Poesia 1930-1962. São Paulo: Cosac Naify , 2012a.).

Tal contraponto pode principiar por reconhecer estratégias de exposição radicalmente distintas: no primeiro poema, a eleição da cena de edifício como ocasião intimista de reflexão e angústia; no segundo, como exibição de um comportamento socialmente situado. No “Noturno”, pois, o edifício presta-se a figurar o isolamento do sujeito, e a janela, a mediar a relação entre ele e o mundo, numa dinâmica que submete a apreensão da paisagem a um andamento que oscila entre cogitação suicida e gravidade contemplativa. Decompondo a geometria da cena, a estrofe de abertura do poema procede como se a esculpir o espaço tal como apreendido de dentro. É a partir do ângulo emoldurado pela janela que se encadeiam as coordenadas físicas e mentais do movimento entre interioridade e sugestões vindas de fora:

Silencioso cubo de treva: um salto, e seria a morte. Mas é apenas, sob o vento, a integração na noite. Nenhum pensamento de infância, nem saudade nem vão propósito. Somente a contemplação de um mundo enorme e parado. A soma da vida é nula. Mas a vida tem tal poder: na escuridão absoluta, como líquido, circula. Suicídio, riqueza, ciência… A alma severa se interroga e logo se cala. E não sabe se é noite, mar ou distância. Triste farol da Ilha Rasa. (Andrade, 2012aAndrade, Carlos Drummond de. Poesia 1930-1962. São Paulo: Cosac Naify , 2012a., p. 258)

Com o mínimo de elementos, a economia metonímica da exposição demarca um quadro que, se evoca signos convencionalmente associados à melancolia e à morte, evita o repertório retórico-sentimental correspondente, firmando um protesto contra a semântica penumbrista, do qual dão parte também outras manifestações coetâneas do autor.4 4 A esse respeito, lembre-se de uma das anotações que, ao enviá-lo em 1937 a Rodrigo Mello Franco de Andrade, Drummond acrescenta ao exemplar datiloscrito de Os 25 poemas da triste alegria, seu livro de juventude composto por volta de 1926 e nunca publicado. À margem do poema intitulado “Quase-nocturno, em voz baixa”, a nota consiste num levantamento lexical enfaticamente autocrítico, que não deixa dúvidas quanto à censura dirigida pelo poeta aos vícios do penumbrismo pré-modernista: “Instrumental poético da época: Silêncio, crepúsculo, humildade, malícia, repuxo, doçura da hora, quintal, arrabalde, nocturno./ Influência: Ronald de Carvalho (‘Quase-nocturno, em voz baixa’, ‘Ainda um nocturno’, ‘Biblioteca’, ‘Vê como a água sussurra’, ‘Doçura da hora’, ‘Longe do asphalto’: isto é, todo o livro)” (Andrade, 2012b, p. 35). Com o fito de caracterizar a correção estilística que guia a autocrítica drummondiana, é de se lembrar também “Purgação”, aforismo de 1941 recolhido três anos depois em Confissões de Minas (Andrade, 2011, p. 181). Tal contenção estilística tem lugar entre os expedientes de encenação e crítica do lirismo individualista que atravessam o livro, pois aqui se trata de reconstituir como que à distância a lógica do desassossego: a comoção mais grave e terminal é descrita, mas não propriamente atualizada pelo discurso, que assim dá tratamento antiexpressivo a afetos agudos e desesperados. O partido da sobriedade, portanto, não implica invalidação dos sentimentos, mas a tentativa de observá-los e transpô-los como uma cadência de pensamentos, do impulso suicida inicial às ponderações que seguem, regidas pelo mecanismo que um crítico identificou como o “confronto trabalhoso […] entre o eu e o mundo, entre o dentro e o fora” (Moura, 2012Moura, Murilo Marcondes de. “Desejo de transformação”. In: Andrade, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. São Paulo: Companhia das Letras , 2012, pp. 49-66., p. 63). “A alma severa se interroga/ e logo se cala”, lê-se na quarta estrofe, em dístico que formaliza, na oscilação de atitudes concretizada pela própria quebra de verso (interrogar vs. calar), o movimento de inquietude e recuo pensabundo que o poema eleva a princípio de construção. Como, afinal, nota-se no pendular cogitativo que organiza o todo.

Visto no quadro mais amplo da experimentação modernista, o poema indicia um aproveitamento particular da forma noturno. Ela é aqui praticada como exercício anímico e mental, em chave diversa do desrecalque liberador que, em obras como a de Mário de Andrade, Bandeira e Augusto Meyer, faz do noturno forma propícia a visões, delírios e contato com expressões marginalizadas da vida social. Longe de seguir a batida da revelação noturnal, extática, libertina ou profunda, a solução drummondiana constitui antes uma meditação quase desprovida de objeto, às voltas com as condições e perspectivas que delimitam a movimentação interna do sujeito. Um noturno suspenso, por assim dizer, à roda de decisões e impulsos, os quais se limita a reconhecer e ponderar, obtendo gravidade estoica do enquadre tomado à habitação moderna. Esta ganha assim dignidade metafísica, amparada na intuição do poeta que trata de levar a sério o próprio radical da palavra “apartamento” e percebe, na novidade histórica do edifício, que começava a dar cara nova ao urbanismo carioca, um estádio novo do isolamento - psíquico, social e espacial - do eu.

O quadro radicaliza, portanto, uma das sugestões contidas na carta de Bandeira: reconhecendo a invitation au suicide, mas sem entregar-se a ela, faz do apartamento o núcleo irradiador de um discurso especialmente interiorizado, embora avesso à instância subjetivista. Ou, ainda, de um acontecimento linguístico que não comunica, interpela ou expressa, limitando-se a ressoar a voz da reflexão. Configura assim um ponto extremo da experiência apartada e recolhida, a qual a estrutura de Sentimento do mundo não deixará sem contraponto, ao revisitar em chave ostensivamente oposta o mesmo motivo do edifício moderno. Ele serve, em “Privilégio do mar”, à exploração da outra dimensão registrada por Bandeira em sua visita ao feito arquitetônico que se impunha à orla do Rio ostentando esnobismo e dinheiro. Atento às implicações materiais e simbólicas do arranha-céu, Drummond desenvolve a sugestão do amigo, fazendo contrastar o ângulo solipsista do “Noturno à janela do apartamento” com o gesto social capturado em “Privilégio do mar”. Dinamizando essa relação, também o segundo poema trata de eleger o edifício não apenas como tema ou cenário: dele faz uma situação, repleta de consequências para os modos de configurar a elocução poética.

Neste terraço mediocremente confortável, bebemos cerveja e olhamos o mar. Sabemos que nada nos acontecerá. O edifício é sólido e o mundo também. Sabemos que cada edifício abriga mil corpos labutando em mil compartimentos iguais. Às vezes, alguns se inserem fatigados no elevador e vêm cá em cima respirar a brisa do oceano, o que é privilégio dos edifícios. O mundo é mesmo de cimento armado. Certamente, se houvesse um cruzador louco, fundeado na baía em frente da cidade, a vida seria incerta… improvável… Mas nas águas tranquilas só há marinheiros fiéis. Como a esquadra é cordial! Podemos beber honradamente nossa cerveja. (Andrade, 2012aAndrade, Carlos Drummond de. Poesia 1930-1962. São Paulo: Cosac Naify , 2012a., p. 224)

Não é difícil reconhecer a correspondência entre esta descrição e o arranha-céu que motivara a carta de Bandeira: àquela altura, o novo marco da paisagem carioca distinguia-se publicamente pelo emprego inovador da construção em concreto armado, bem como por sediar inúmeros escritórios e um bar, instalado em sua cobertura.5 5 Para uma caracterização dos traços distintivos do arranha-céu projetado por Joseph Gire e Elisiário Bahiana, muitos dos quais evocados pelo poema, cf. Paulo Cesar da Costa Gomes (2020); para uma breve descrição do edifício no quadro de aclimatação e desenvolvimento da arquitetura moderna no Brasil, cf. Hugo Segawa (2010, pp.63-6);enfim,para a sugestão dos vínculos entre o edifício e as formas do poder e da hegemonia cultural, sobretudo por meio da Rádio Nacional, que nele se instala em 1936 (um ano antes da publicação do poema de Drummond), cf. Sérgio Augusto (2021, p. 78). O lance drummondiano consiste em agregar tais referentes à própria plataforma enunciativa, manejando-os para compor a semiologia de uma classe social. Tudo depende da configuração da voz que fala, um “nós” flagrado pelo poema em ato de autoexposição. Nada simplório, o resultado consiste em uma simplificação deliberada, como se a operar as reduções típicas da técnica caricatural, movidas pelo fim nítido de entregar numa bandeja, expondo-a ao riso do leitor, a cabeça do adversário. Forja-se assim um testemunho objetivo, centrado na admissão de alheamento e cinismo do grupo social que usufrui do arranha-céu como um privilégio. Essa atitude coletiva, fixada à maneira de um retrato impessoalizado, com propósitos de desmascaramento, vale como o depoimento de uma classe. Captado, todavia, por um registro determinado a explicitar sua inconsistência e mesquinhez: é como um ventríloquo sarcástico, afinal, que o poeta submete o discurso jubiloso e cheio de certezas a uma estratégia de acirramento. Ao imitar o inimigo, sua tática é fazê-lo confessar os não ditos subjacentes a sua retórica. Por exemplo, trazendo à tona, como fórmula, uma declaração que dá parte, sem meias-palavras, da confiança prepotente da classe bem-posta na concórdia e no apaziguamento social: “Sabemos que nada nos acontecerá”. Ou, ainda, infiltrando, na fala dos de cima, advérbios que, ao modo de uma intervenção clandestina, estampam seu compromisso filistino com os valores dominantes (“Podemos beber honradamente nossa cerveja”) e o teor precário do privilégio de que fazem praça (“terraço mediocremente confortável”).

Tributária de combatividade aberta e estridência antiburguesa, a maldisfarçada agressividade do poema é recessiva em Drummond, que aqui afina com o jacobinismo vingador do primeiro Rubem Braga, por exemplo. Daí que a disposição animosa que preside à cena de “Privilégio do mar” peça para ser entendida no contexto mais amplo de Sentimento do mundo, sobretudo em função do pendant estrutural que mantém com “Noturno à janela do apartamento”. Em chave de tensão, uma relação de espelhamento recíproco aproxima os dois poemas, a percorrer desde imagens e atitudes até o fundamento expositivo de cada um deles. Se em um tem-se a nitidez do terraço com vista para o mar, no outro a janela, “cubo de treva”, descortina um objeto opaco, que resiste à decifração (“noite, mar ou distância”); se em um trata-se de reiterar certezas confiantes (“Sabemos que nada nos acontecerá”), no outro trata-se de “interroga[r]” e “cala[r]”; se de um lado a voz é coletiva e a experiência multiplicada (“mil corpos”, “mil compartimentos iguais”), de outro tudo se resume à atividade recolhida e isolada de uma “alma”. Sintetizando o contraste, em “Privilégio do mar” reitera-se que o “edifício é sólido e o mundo também”, enquanto o “Noturno” formaliza a dificuldade de afirmar o que seja sobre a paisagem, opressiva como “um mundo enorme e parado”. Desse rebatimento insistente entre imagens e formulações resulta um contraponto, quase sistemático, entre as posturas correspondentes: de um lado, uma classe indiferente e jubilosa de sua própria alienação; de outro, as perturbações que correm por dentro de um membro dessa mesma classe, flagrado em isolamento e desespero. Se em “Privilégio do mar” cidade e natureza são convertidas em intérieur burguês - onde tudo é domesticado, conforta e está sob controle -, o “Noturno” desentranha justamente do intérieur burguês os índices de inquietude e fantasmagoria que sobressaltam e minam a solidez do mundo.6 6 A respeito da configuração modelar do intérieur burguês na Paris do século XIX, cf. Walter Benjamin (2019, pp. 327-43). Em suas diferenças, portanto, as estratégias de exposição iluminam-se uma à outra, revelando gestos que, considerados em relação, dão a medida da implicação social imanente a cada forma de tomar a palavra.

É o que se confirma se nos detivermos, ainda, na camada de alusões cifradas - literalmente - no horizonte apresentado pelos dois poemas. Com um verso isolado das demais estrofes, o fecho de “Noturno à janela do apartamento” estampa sua única imagem nítida, fixando a ocorrência singular de um objeto distinto e passível de nomeação: “Triste farol da Ilha Rasa”. Trata-se de um elemento característico da entrada da Baía da Guanabara, à vista de quem a observa da orla da Zona Sul carioca, caso do edifício onde se situa o ponto de vista do poema. Nele, a visão do farol constitui o único exemplo de comoção ostensivamente lírica, pois o verso, que nas primeiras edições do livro apresenta forma exclamativa, transfere ao objeto visado um atributo anímico que diz respeito àquele que o vê. Ou seja, o elemento da paisagem é investido da melancolia do sujeito que o apreende e nele se projeta. Como observou Murilo Marcondes de Moura, a voz poética meditativa encontra no farol um correlato de sua própria disposição, solitária e vigilante, e, embora ilhada, foco de luz. Adensando e trincando a projeção, todavia, assomam os atributos objetivos colados à menção à Ilha Rasa. Ela cumprira, por mais de uma vez, a função de prisão política, recebendo anarquistas detidos por conta das mobilizações de fins dos anos 1910 e, depois, já no decênio de 1930, políticos e militantes antigetulistas.7 7 Até onde pudemos verificar, as implicações da menção à Ilha Rasa no poema foram anotadas por Wilberth Salgueiro (2014, pp. 79-80) e Vagner Camilo (2020, p. 81). Há portanto um sedimento histórico-social depositado no significante, o que abre possibilidades interpretativas diversas, todas elas conferindo lastro político à ocasião de desassossego individual. A se levar adiante a hipótese que vê no farol um correlato ou “equivalente preciso das oscilações do próprio sujeito” (Moura, 2012Moura, Murilo Marcondes de. “Desejo de transformação”. In: Andrade, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. São Paulo: Companhia das Letras , 2012, pp. 49-66., p. 65), caberia acrescentar à transposição de predicados o campo semântico ligado à ideia de privação de liberdade. Entendida nessa chave, a visão da paisagem replica o estatuto apartado do sujeito, de modo a comprometer as projeções de luminosidade associadas ao farol. Por consequência, fica relativizada a positividade desse símbolo, que tem limitadas as suas propriedades de resistência vigilante ou esclarecida em meios às trevas. Em outro sentido, se visto como elemento derradeiro de caracterização da noite que banha e traga todos os elementos do poema, o peso político associado à Ilha Rasa completa e preenche a apreensão, em imagem, de “um mundo enorme e parado”. Reforçando o fechamento de horizonte, o referente que se distingue em meio à escuridão retém, como numa cápsula, as continuidades entre o autoritarismo da Primeira República e o Estado Novo getulista, então mais do que nunca inclinado ao espectro fascista que tomava o globo. Em resumo, à dimensão física da noite são incorporadas dimensões psíquicas e, enfim, históricas. Mobilizadas nesse sentido, as associações a que a Ilha Rasa obriga proveem chão material à meditação existencial, de maneira a ancorar suas cogitações e mal-estar no andamento efetivo, e extraindividual, da experiência contemporânea.

Desse modo, a meditação do “Noturno” tem sua inscrição na cidade desdobrada em um tipo de inscrição no tempo e nas relações sociais, cuja vibração, sem fazer do poema plataforma imediata de reivindicação ou confronto de posições, implica o reconhecimento de forças de revolta e repressão. Da cena suspensa e reflexiva desponta, assim, o fio da meada de uma história concreta e especificada. Variando a estratégia, resultado análogo obtém “Privilégio do mar”, quando incute no discurso irrefletido dos amigos da ordem a lembrança de perturbação social inscrita na paisagem. “Certamente, se houvesse um cruzador louco,/ fundeado na baía em frente da cidade,/ a vida seria incerta… improvável…”, principia a quinta estrofe, introduzindo uma especulação que, embora descartada de pronto, fere a superfície assertiva do discurso, cujo avanço terá de reprimir a cogitação para enfim recuperar sua clave triunfante: “Mas nas águas tranquilas só há marinheiros fiéis./ Como a esquadra é cordial!”. Exemplo mais acirrado do arbítrio com que o poeta manipula a voz do adversário a desancar, o expediente finca, em meio à declaração dos vencedores, o signo de uma ameaça. Ela é logo denegada, mas a fissura imposta ao discurso jubiloso é suficiente para uma irrupção histórica, visto que se trata, novamente, de injetar no campo de visão fatores de conflagração social. A contrapelo do gozo sobre a Guanabara, e desrespeitando o usufruto do mar como segunda natureza, a menção a frotas navais intimidantes como que reanima e desestabiliza a estaticidade do quadro. Com sabor de insurreição e ameaça à cidade, a hipótese de um “cruzador louco” libera fantasias nas quais pulsam reminiscências do episódio que ficaria conhecido como Revolta da Chibata. O material lexical manejado é inequívoco: do levante da esquadra de cruzadores e encouraçados comandado pelo marinheiro João Cândido em 1910, as imagens do poema recuperam sobretudo a atmosfera de pânico na capital do país, sitiada pela ameaça dos torpedeiros e canhões que, tomados pela marujada, ameaçam a cidade reivindicando direitos e, acima de tudo, a abolição de castigos corporais. “A primeira revolução política que o Brasil teve neste século”, escreveria décadas depois Oswald de Andrade, que em excursão carioca se viu “fugitivo das primeiras balas rebeldes” e assistiu em tempo real à sublevação dos amotinados (Andrade, 2019Andrade, Oswald de. Um homem sem profissão. Memórias e confissões: 1890-1919: Sob as ordens de mamãe. São Paulo: Companhias das Letras, 2019., pp. 72 e 75). Os quais, nas palavras de testemunhas diretas do pânico suscitado pela revolta, eram “senhores absolutos da Guanabara”, “tendo aos seus pés, humilhada, implorativa, lacrimejante, uma cidade de um milhão de habitantes”.8 8 As duas citações — do comandante Pereira da Cunha e do então jornalista Gilberto Amado, respectivamente — constam de artigos e documentos reproduzidos em Edmar Morel (2016, pp. 103 e 62). Sobre o interesse que o episódio suscita em meio à radicalização intelectual brasileira no decênio de 1930, vale lembrar o destino de duas publicações, cuja má fortuna registra também a reação varguista à memória da revolta: o de L’Almirant noir, livro no qual o surrealista Benjamin Péret, em estadia no Brasil, trabalhava quando foi detido pela Polícia Política do Distrito Federal, que confiscou e destruiu seus documentos e anotações antes de expulsá-lo do país em 1931; e o de A revolta de João Cândido, livreto de autoria de Adão Pereira Nunes que Aparício Torelly, o “Barão de Itararé”, começou a publicar em capítulos em seu Jornal do Povo em outubro de 1934, o que provocou uma batida e a detenção do jornalista comunista, conduzida ao arrepio da lei por oficiais da Marinha. A respeito, cf., respectivamente, Dainis Karepovs (2019) e Edgar Morel (2016, p. 56). É essa a dimensão do levante resgatada pelo poema. Uma vez decifrada, ela oferece a possibilidade de inverter as perspectivas, ou o convite a imaginar a cena não a partir do terraço do edifício, mas das esquadras sublevadas contra os poderes da cidade. Acusando o fundo falso da estabilidade e do privilégio em que assenta a voz coletiva plantada nas alturas, o expediente inocula a luta de classes no espaço delineado pela grande-angular paisagística. E, assim, explicita o desígnio do poeta que, desejoso de reconflagrar o panorama apaziguado, manipula sediciosamente a cena de refúgio-embuste soprada a Drummond, anos antes, pela carta de Bandeira.

Considerada à luz da data de publicação de cada um dos poemas, a natureza da cifra histórica por eles mobilizada permite arriscar uma periodização dos diferentes tipos de energia política encerrados em Sentimento do mundo. Dessa perspectiva, insurreição e prisão, tal como evocadas em “Privilégio do mar” e “Noturno à janela do apartamento”, respectivamente, fazem ressoar diferentes atitudes diante do presente: no primeiro caso, datado de 1937, uma atitude investida de ânimo oposicionista, a prestar depoimento sobre um contexto em que era ainda possível apostar contra o autoritarismo getulista e, em plano mais amplo, na luta antifascista; no segundo caso, datado de 1940, uma atitude que rumina a derrota e se volta às formas de elaborá-la, quando a ditadura estado-novista já se consumara plenamente e as perspectivas globais não recomendavam confiança alguma na vitória sobre as forças do Eixo. É, no entanto, em outro plano, o da formalização da urgência histórica, que o contraponto entre os dois poemas demonstra maior produtividade, pois permite interrogar o sentido de seu encadeamento na composição do livro. Esta é a chave que faculta tirar consequências da eleição reiterada do motivo do edifício, trabalhado por meio de variações ou de enquadramentos distintos e complementares. Dito de outro modo: entendidos como quadros descontínuos, os poemas sugerem uma lógica de montagem, a fazer da própria diferença de focalização um método de pesquisa do problema em questão, que poderíamos sintetizar como o da posição intersubjetiva no espaço clivado e complexo da cidade. O procedimento fixa e põe em relação posturas tão distintas quanto o cinismo exibicionista e o desassossego reflexivo; mais que isso, modula a voz poética de maneira a investir cada composição de vibração política particular - uma confiante no desmascaramento do adversário, outra recolhida no fechamento do horizonte de combate. Resulta uma forma avançada de desnaturalização da instância lírica, dado que, por efeito da dinamização de pontos de vista, a voz que fala em cada poema é referida a uma posição particular.9 9 Acreditamos, por isso, ser possível argumentar que a estrutura relacional de Sentimento do mundo, estudada por Vagner Camilo (2020) com recurso ao conceito de mapeamento cognitivo, atua não apenas no plano das articulações espaciais, ou da “cartografia lírico-social” investigada pelo crítico, mas em grau mais profundo e sistemático, o das próprias formas poéticas e discursivas, entendidas em sua densidade histórica e social. Ou seja, são anuladas as possibilidades de identificação imediata com cada uma das atitudes em jogo, o que faz do conjunto delas a plataforma última de produção do sentido. Daí ser possível entender “Privilégio” e “Noturno” como quadros, ou tableaux poéticos, em sentido forte, a dinamizar o movimento enunciativo de Sentimento do mundo.

Dando algum contexto às análises propostas, note-se por fim que a crítica ao confinamento do lirismo puro constitui um dos móveis da obra de 1940. Como uma plataforma, ela é fixada em versos famosos do poema “Mundo grande”: “Outrora escutei os anjos,/ as sonatas, os poemas, as confissões patéticas./ Nunca escutei voz de gente./ Em verdade sou muito pobre” (Andrade, 2012aAndrade, Carlos Drummond de. Poesia 1930-1962. São Paulo: Cosac Naify , 2012a., p. 256). A eles subjaz um impulso antiartístico, que enumera e descarta experiências estéticas de alheamento à vida social (sonatas, poemas, confissões) para sugerir, com ares de purgação, um programa decorrente. Ele passa pela superação do ensimesmamento poético e pela adesão à dimensão socializadora da linguagem: escutar “voz de gente”. Digamos que o contraponto armado entre “Noturno à janela do apartamento” e “Privilégio do mar” encaminha uma solução radical para esse desafio: a partir das formas de linguagem que depara o poeta disposto a fraturar o lirismo, trata-se de interrogar as diferentes maneiras de tomar a palavra. Se este gesto - tomar a palavra, e sobretudo a palavra literária - é problema central para a poética do autor, as cenas de edifício por que passamos o elaboram em clave singular no quadro da experiência modernista brasileira. Em sua cifrada apreensão das questões do presente e do passado, os dois poemas dão parte de um tipo de politização mais especificado e profundo do que as abordagens habituais costumam atribuir à poesia “participante” ou “engajada” daqueles anos 1930. Ao manejar a densidade histórica dos materiais poéticos, “Noturno” e “Privilégio” indiciam o ancoramento social das vozes que a obra drummondiana recolhe e faz escutar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 1
    O presente artigo retoma o argumento de uma das seções de Literatura conflagrada: Jorge Amado, Rubem Braga e Carlos Drummond de Andrade na trincheira dos anos 1930, tese defendida em dezembro de 2021 na Universidade de São Paulo (Vonk, 2021Vonk, Arthur Vergueiro. Literatura conflagrada: Jorge Amado, Rubem Braga e Carlos Drummond de Andrade na trincheira dos anos 1930. Tese (doutorado em letras). São Paulo: PPGTLLC/Universidade de São Paulo, 2021.).
  • 2
    A título de nota auxiliar, lembre-se que Giovinezza é o título do hino do Partido Nacional Fascista italiano, e Balila, a organização da juventude fascista no país entre 1926 e 1937.
  • 3
    O poema “Convite ao suicídio”, de Drummond,saíra na revista Verde, em dezembro de 1927. Cf. a reprodução fac-similar em Pedro Puntoni e Samuel Titan Jr. (2014Puntoni, Pedro; Titan Jr., Samuel (orgs.). Verde. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, 2014.). Para a situação, na obra do autor, desse poema que nunca seria republicado, cf. John Gledson (2003Gledson, John. Influências e impasses: Drummond e alguns contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003., pp. 63-7) e Eucanaã Ferraz (2012Ferraz, Eucanaã. “Modos de morrer”. Cadernos de Literatura Brasileira, n. 27, 2012, pp. 113-7., pp. 113-7).
  • 4
    A esse respeito, lembre-se de uma das anotações que, ao enviá-lo em 1937 a Rodrigo Mello Franco de Andrade, Drummond acrescenta ao exemplar datiloscrito de Os 25 poemas da triste alegria, seu livro de juventude composto por volta de 1926 e nunca publicado. À margem do poema intitulado “Quase-nocturno, em voz baixa”, a nota consiste num levantamento lexical enfaticamente autocrítico, que não deixa dúvidas quanto à censura dirigida pelo poeta aos vícios do penumbrismo pré-modernista: “Instrumental poético da época: Silêncio, crepúsculo, humildade, malícia, repuxo, doçura da hora, quintal, arrabalde, nocturno./ Influência: Ronald de Carvalho (‘Quase-nocturno, em voz baixa’, ‘Ainda um nocturno’, ‘Biblioteca’, ‘Vê como a água sussurra’, ‘Doçura da hora’, ‘Longe do asphalto’: isto é, todo o livro)” (Andrade, 2012bAndrade, Carlos Drummond de. Os 25 poemas da triste alegria. São Paulo: Cosac Naify , 2012b., p. 35). Com o fito de caracterizar a correção estilística que guia a autocrítica drummondiana, é de se lembrar também “Purgação”, aforismo de 1941 recolhido três anos depois em Confissões de Minas (Andrade, 2011Andrade, Carlos Drummond de. Confissões de Minas. São Paulo: Cosac Naify, 2011. , p. 181).
  • 5
    Para uma caracterização dos traços distintivos do arranha-céu projetado por Joseph Gire e Elisiário Bahiana, muitos dos quais evocados pelo poema, cf. Paulo Cesar da Costa Gomes (2020Gomes, Paulo Cesar da Costa. “Um edifício chamado A Noite”. Terra Brasilis (Nova Série), n. 13, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://journals.openedition.org/terrabrasilis/5766 >. Acesso em: 26/1/2021.
    https://journals.openedition.org/terrabr...
    ); para uma breve descrição do edifício no quadro de aclimatação e desenvolvimento da arquitetura moderna no Brasil, cf. Hugo Segawa (2010Segawa, Hugo. Arquiteturas do Brasil (1900-1990). 3. ed., São Paulo: Edusp, 2010., pp.63-6);enfim,para a sugestão dos vínculos entre o edifício e as formas do poder e da hegemonia cultural, sobretudo por meio da Rádio Nacional, que nele se instala em 1936 (um ano antes da publicação do poema de Drummond), cf. Sérgio Augusto (2021Augusto, Sérgio. “Gigante apequenado”. Piauí, n. 178, 2021, p. 78. , p. 78).
  • 6
    A respeito da configuração modelar do intérieur burguês na Paris do século XIX, cf. Walter Benjamin (2019Benjamin, Walter. As passagens de Paris. Porto: Assírio & Alvim, 2019., pp. 327-43).
  • 7
    Até onde pudemos verificar, as implicações da menção à Ilha Rasa no poema foram anotadas por Wilberth Salgueiro (2014Salgueiro, Wilberth. “Sentimento do mundo: movimentos e armadilhas de um livro-farol”. In: Pires, Antônio Donizeti; Andrade, Alexandre de Melo (orgs.). No pomar de Drummond: nova seara crítica. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014, pp. 57-85., pp. 79-80) e Vagner Camilo (2020Camilo, Vagner. “Figurações espaciais e mapeamentos na lírica social de Drummond”. In: Camilo, Vagner. A modernidade entre tapumes: da poesia social à inflexão neoclássica na lírica brasileira moderna. Cotia: Ateliê Editorial, 2020, pp. 73-106., p. 81).
  • 8
    As duas citações — do comandante Pereira da Cunha e do então jornalista Gilberto Amado, respectivamente — constam de artigos e documentos reproduzidos em Edmar Morel (2016Morel, Edmar. A Revolta da Chibata. 6. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016. , pp. 103 e 62). Sobre o interesse que o episódio suscita em meio à radicalização intelectual brasileira no decênio de 1930, vale lembrar o destino de duas publicações, cuja má fortuna registra também a reação varguista à memória da revolta: o de L’Almirant noir, livro no qual o surrealista Benjamin Péret, em estadia no Brasil, trabalhava quando foi detido pela Polícia Política do Distrito Federal, que confiscou e destruiu seus documentos e anotações antes de expulsá-lo do país em 1931; e o de A revolta de João Cândido, livreto de autoria de Adão Pereira Nunes que Aparício Torelly, o “Barão de Itararé”, começou a publicar em capítulos em seu Jornal do Povo em outubro de 1934, o que provocou uma batida e a detenção do jornalista comunista, conduzida ao arrepio da lei por oficiais da Marinha. A respeito, cf., respectivamente, Dainis Karepovs (2019Karepovs, Dainis. “Benjamin Péret: um audacioso indesejado”. Agulha - Revista de Cultura, n. 137, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2019/06/dainis-karepovs-benjamin-peret-um.html >. Acesso em: 17/7/2021.
    https://arcagulharevistadecultura.blogsp...
    ) e Edgar Morel (2016Morel, Edmar. A Revolta da Chibata. 6. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016. , p. 56).
  • 9
    Acreditamos, por isso, ser possível argumentar que a estrutura relacional de Sentimento do mundo, estudada por Vagner Camilo (2020Camilo, Vagner. “Figurações espaciais e mapeamentos na lírica social de Drummond”. In: Camilo, Vagner. A modernidade entre tapumes: da poesia social à inflexão neoclássica na lírica brasileira moderna. Cotia: Ateliê Editorial, 2020, pp. 73-106.) com recurso ao conceito de mapeamento cognitivo, atua não apenas no plano das articulações espaciais, ou da “cartografia lírico-social” investigada pelo crítico, mas em grau mais profundo e sistemático, o das próprias formas poéticas e discursivas, entendidas em sua densidade histórica e social.
Editora responsável: Renata Francisco.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    18 Ago 2023
  • Aceito
    16 Nov 2023
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