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O FUTEBOL E A SOCIABILIDADE: A GINGA HABERMASIANA E DIONISÍACA

FÚTBOL Y SOCIABILIDAD: LA GINGA HABERMASIANA Y DIONISÍACA

Resumo

O objetivo deste ensaio é compreender a configuração do futebol na sociedade brasileira relacionando três autores: Roberto Da Matta, Gilberto Freyre e Jürgen Habermas. Jürgen Habermas e sua Teoria do Agir Comunicativo será o alicerce das discussões com os outros dois autores. O primeiro abordando a questão do futebol e a dramatização da sociedade, e o segundo, aproximando a dicotomia entre apolíneo e dionisíaco. Como provocação, o ensaio procura discutir e problematizar a relação identidade, poder e reificação como questões candentes para os estudos socioculturais da educação física e do esporte.

Palavras-chave:
Futebol; Brasilidade; Habermas; Cultura.

Resumen

El objetivo de este ensayo es comprender la configuración del fútbol en la sociedad brasileña relacionando a tres autores: Roberto DaMatta, Gilberto Freyre y Jürgen Habermas. Jürgen Habermas y su Teoría de la Acción Comunicativa serán la base de las discusiones con los otros dos autores; el primero abordando el tema del fútbol y la dramatización de la sociedad, y el segundo, abordando la dicotomía entre apolíneo y dionisiaco. Como provocación, el ensayo busca discutir y problematizar la relación entre identidad, poder y cosificación como temas candentes para los estudios socioculturales de la educación física y el deporte.

Palabras clave:
Fútbol; Brasilidad; Habermas; Cultura.

Abstract

The objective of this essay is to understand the configuration of football in Brazilian society by relating three authors, Roberto DaMatta, Gilberto Freyre and Jürgen Habermas. Jürgen Habermas and his Theory of Communicative Action will be the foundation of the discussions with the other two authors. The first addresses the issue of football and the dramatisation of society, and the second approaches the dichotomy between Apollonian and Dionysian. As a provocation, the essay seeks to discuss and problematise the relationship between identity, power and reification as burning issues for sociocultural studies of Physical Education and sport.

Keywords:
Football; Brazilianness; Habermas; Culture.

1 INTRODUÇÃO

Neste ano de 2022 comemoramos o cinquentenário da publicação do livro Universo do Futebol: esporte e sociedade brasileira, tendo como principal autor o antropólogo brasileiro Roberto DaMatta1 1 Não é o intuito profetizar, no entanto, acredito que o livro O Futebol nas ciências humanas no Brasil, organizado por Sérgio S. Giglio e Marcelo W. Proni e publicado pela editora da Unicamp em 2020 será um outro marco nos estudos sobre futebol. Para termos uma ideia, o livro organizado por DaMatta tinha como co-autores Luiz Felipe Baêta Neves, Arno Vogel e Simoni Lahud Guedes. No livro organizado por Giglio e Proni temos a contribuição de 51 pesquisadores e pesquisadoras, e a professora Simoni L. Guedes figura nestas duas grandes obras, fazendo jus à dedicatória dos organizadores. . Livro seminal nos estudos do futebol no Brasil. Neste livro o autor se pergunta os motivos que levaram o futebol a ser uma paixão nacional, o drama que o envolve nas arquibancadas, nos bares e nas conversas de fins de semana, trazendo com singela polidez e com uma estética de poucos o sistema social que o futebol faz representar na nossa sociedade. Este ensaio busca, de maneira tímida, dialogar com o grande mestre Roberto DaMatta.

O futebol é um fenômeno sociocultural que representa a principal manifestação esportiva no Brasil. Compreender como ele participa da nossa configuração cultural se faz pertinente como forma de melhor descrever a sociedade brasileira, visto que é um dos fenômenos sociais que sintetiza a nacionalidade de grande abrangência territorial e diversidade cultural.

Este ensaio tem como objetivo trazer ao debate várias faces do processo de apropriação do futebol. Para tal, algumas características foram incorporadas como ferramentas de análise deste fenômeno: (a) a relação orgânica entre futebol, nação e brasilidade, expressas pela reinterpretação cultural desta modalidade pelo povo brasileiro; (b) a ressignificação brasileira de como jogar e valorizar o futebol como um patrimônio nacional; e (c) os territórios e as identidades do futebol.

O autor de referência neste trabalho será Jürgen Habermas2 2 Valer-me-ei do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, publicado em 1928, para a interpretação da Teoria do Agir Comunicativo, combinando a sisudez de Habermas, como apontado no livro de Stuart Jefries Grand Hotel Abyss: The Lives of the Frankfurt School, e o bailado, e o samba, e as metáforas brasileiras, para absorver e ressignificar as categorias habermasianas. Por isso coloco no título do ensaio ginga habermasiana. , filósofo alemão, e um dos mais importantes autores do século XXI. Dentre várias obras de referências nas humanidades destacarei os dois volumes da Teoria do Agir Comunicativo. Principalmente os conceitos de mundo da vida, sistema dinheiro, sistema poder, ação comunicativa e ação estratégica.

Tentarei fazer um pequeno diálogo entre Gilberto Freyre3 3 Gilberto Freyre defende uma democracia racial na sua trilogia Casa Grande & Senzala de 1933, Sobrados & Mucambos de 1936 e Ordem & Progresso de 1957. Apresenta a mestiçagem como um fator de equilíbrio das relações sociais no Brasil, camuflando um racismo institucionalizado durante os anos de escravização brasileira. No Prefácio do livro de Mário Filho, O Negro no Futebol Brasileiro de 1947, Freyre faz a mesma analogia pensando agora no futebol, construindo uma narrativa que esse espaço é racialmente democrático. Há uma ampla bibliografia desmistificando este imaginário. O estudo recente de Marcel Tonini (2020) “Essa é uma realidade”: os racismos vividos e narrados por negros em várias áreas de atuação no futebol brasileiro aborda essas questões com muita competência. Para maiores discussões sobre a obra de Freyre recomendo Cf. Jessé Souza: Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira (2000); David Lehmann: Gilberto Freyre: a reavaliação prossegue (2008). Não compartilho com as ideias de Gilberto Freyre e ojerizo o conceito de democracia racial, no entanto, neste estudo, vou me valer da dualidade dionisíaco e apolíneo que Freyre utilizou em crônicas esportivas. A dualidade freyreana foi adaptada pela antropóloga americana Ruth Benedict no livro Padrões de Cultura de 1934. e Roberto DaMatta4 4 Roberto DaMatta em texto no Jornal da Tarde de 2006 intitulado Dionísio contra Apolo utiliza as referências de Freyre: “Trata-se do confronto de um futebol que Gilberto Freyre - invocando o deus grego da ambiguidade e do excesso - chamou de dionisíaco, o nosso; em luta com um estilo de jogar, no qual o carisma que leva às jogadas individuais dá lugar ao entrosamento automático e rotineiro da equipe, num jeito de jogo sistemático, previsível, racional e apolíneo: o deles” (DAMATTA, 2006, p. 83). e o pensamento habermasiano. Com o primeiro, relacionarei o antagonismo entre apolíneo e dionisíaco para referir-se à dança com os pés, fazendo uma analogia entre mundo da vida, onde seria o espaço do dionisíaco, e o sistema poder e moeda, onde seria ou se daria o espaço do apolíneo. Com Roberto DaMatta a ideia de dramatização e identidade cultural substanciaria as relações simbólicas que ocorrem no mundo da vida, envolvendo o mundo objetivo, social e subjetivo.

Para construir o argumento deste texto, primeiramente trabalharei com as categorias habermasianas. Em outro momento, dialogarei com as reflexões de Roberto DaMatta sobre as dramatizações do futebol e suas expressões culturais, construindo pontes com os conceitos de estruturas da linguagem e atos de fala, para em seguida relacionar alguns temas que sumarizam a dicotomia freyriana de apolíneo e dionisíaco e a dicotomia habermasiana sistemas e mundo da vida.

2 BREVES COMENTÁRIOS ACERCA DA TEORIA DO AGIR COMUNICATIVO

Para Habermas, a partir da publicação dos dois volumes da Teoria do Agir Comunicativo (2012a; 2012b), o mundo da vida é o armazém do saber humano, local de desenvolvimento da sociedade e da sua produção simbólica, que representa estruturas normativas, subjetivas, objetivas e associativas fundamentais para a consolidação da vida em comunidade (BETTINE, 2021aBETTINE, Marco. A incorporação da solidariedade social e identidade do ‘eu’ na “teoria do agir comunicativo”. Contraponto. v. 8, n. 1, p. 279-293, 2021a. Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/contraponto/article/view/109683. Acesso em: 8 fev. 2023.
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).

O sistema, por sua vez, é formulado pela perspectiva de ganhos sobre o outro, a partir da colonização do mundo da vida e incorporação da linguagem voltada para o uso estratégico (BETTINE 2021bBETTINE, Marco. A incorporação do conceito de sistemas na “teoria do agir comunicativo”: primeiras aproximações. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea. v. 9, n. 2, p. 343-367, 2021b. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/article/view/34427. Acesso em: 8 fev. 2023.
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). O sistema, para Habermas, é dividido entre sistema dinheiro e sistema poder. Habermas, segundo a interpretação aqui proposta, aponta que a evolução material das sociedades é uma consequência de sua evolução cultural (HABERMAS, 2012bHABERMAS, Jurgen. Teoria do agir comunicativo sobre a crítica da razão funcionalista. São Paulo, Martins Fontes, 2012b. v. 2.). Ele estuda o desenvolvimento da sociedade por meio da evolução social, tendo como ponto de partida a linguagem, preocupando-se com as formas de interação do homem no mundo (GUTIERREZ; ALMEIDA, 2013GUTIERREZ, Gustavo Luis; ALMEIDA, Marco Bettine. Teoria da ação comunicativa (Habermas): estrutura, fundamentos e implicações do modelo. Veritas, v. 58, n.1, jan./abr. 2013. DOI: https://doi.org/10.15448/1984-6746.2013.1.8691
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).

As estruturas simbólicas do mundo da vida se reproduzem pelo caminho para constituir um saber válido, construindo uma solidariedade e formando pessoas capazes de falar e agir. O processo de novas formas de entendimento e construção de saberes é possível pela estrutura integrativa do mundo da vida, como: (a) dimensão semântica, (b) espaço social (c) tempo histórico. Porém há o outro lado, os sistemas, onde ocorrem as manifestações de crise e distúrbios de reprodução, as patologias da sociedade, que na reprodução cultural aparecem como perda de sentido da cultura, perda de legitimidade da sociedade e na personalidade há a crise de orientação e crise educacional. Na sociedade atual o mercado e suas variações para a virtualidade, constitui o principal exemplo de funções e contextos que escoam pelas mãos das pessoas, não percebendo a dinâmica deste sistema dentro da realidade que as cerca.

As sociedades modernas demonstram que há uma diferenciação sistêmica, possibilitando que haja um espaço de conflito orientado por interesses e um outro espaço onde o potencial comunicativo é exercido. Mas esta é uma luta constante do mundo da vida tentando conter as formas teleológicas da ação, que tentam invadir suas esferas.

A diferenciação do sistema de mercados destrói as formas tradicionais de solidariedade. Formas democráticas de formação política e a imposição de uma moral universalista desagregam relações sociais estabelecidas pelo consenso.

Ao incrementar a análise com os modos de utilização da linguagem, Habermas construiu uma referência simbólica de mundos que compõe o mundo da vida, que seriam o mundo objetivo (instituições sobre as quais são possíveis enunciados verdadeiros); mundo social (relações interpessoais reguladas legitimamente) e mundo subjetivo (vivências a que o sujeito tem acesso privilegiado para se manifestar de modo veraz diante de um público). As manifestações comunicativas estão inseridas ao mesmo tempo em diferentes relações com o mundo. O agir comunicativo depende de um processo cooperativo em que o sujeito utiliza os três componentes do mundo da vida. Verständigung (entendimento) significa a união dos participantes da comunicação sobre a validade de uma fala; Einverständnis (consenso) significa reconhecimento intersubjetivo de uma pretensão de validade que o falante une a uma ação de fala.

As estruturas simbólicas do mundo da vida se reproduzem pelo caminho para constituir um saber válido, construindo uma solidariedade e formando pessoas capazes de falar e agir. O processo de novas formas de entendimento e construção de saberes é possível pela estrutura integrativa do mundo da vida, pois consegue reproduzir processos antigos com novas situações de ação e integrar novos mundos da vida5 5 No desenvolvimento da sociedade há um processo de diferenciação dos componentes do mundo da vida. No plano cultural existe um processo de formalização dos conceitos valorativos, pressupostos da comunicação, procedimentos da argumentação, valores fundamentais abstratos. No nível da sociedade se impõem princípios de ordem jurídica e moral. Finalmente no nível do sistema da personalidade, as estruturas cognitivas adquiridas no processo de socialização vão criando caminhos próprios afastando-se dos conteúdos culturais que formavam o pensamento concreto, ampliando as visões de mundo, permitindo ao sujeito exercitar competências interpretativas. , seja por meio da dimensão semântica (tradição cultural), seja por meio do espaço social (de grupos socialmente integrados), seja por meio do tempo histórico (gerações que se sucedem). “Esses processos de reprodução cultural, de integração social e de socialização correspondem, enquanto componentes estruturais do mundo da vida, a cultura, a sociedade e a pessoa” (HABERMAS 2012bHABERMAS, Jurgen. Teoria do agir comunicativo sobre a crítica da razão funcionalista. São Paulo, Martins Fontes, 2012b. v. 2., p. 252).

O campo semântico, o espaço social e o tempo histórico são dimensões em que os atos comunicativos se realizam. As interações que formam a rede da prática comunicativa configuram a forma que a cultura, sociedade e pessoa se refletem. E esta reflexão se estende ao mundo da vida.

Do outro lado, temos as manifestações de crise e distúrbios de reprodução, as patologias da sociedade, que na reprodução cultural aparece como perda de sentido da cultura, perda de legitimidade da sociedade e na personalidade, há a crise de orientação e crise educacional. Na integração social as formas de manifestação das patologias são a perda de uma identidade coletiva na cultura, anomia na sociedade e na personalidade a alienação. No âmbito da socialização, os distúrbios levam a uma quebra de tradições na cultura, falta de interesse nos assuntos coletivos na sociedade, e na personalidade as psicopatologias como a depressão e as fobias sociais.

A complexificação sistêmica se dá por complexos de instituições que se apoiam sob o mundo da vida: “a diferenciação segmentária é institucionalizada na forma de relações de parentesco; a estratificação, na forma de status; a organização estatal, na forma de poder político; e o primeiro mecanismo de controle, na forma de relações entre pessoas detentores de direitos” (HABERMAS, 2012bHABERMAS, Jurgen. Teoria do agir comunicativo sobre a crítica da razão funcionalista. São Paulo, Martins Fontes, 2012b. v. 2., p. 301, grifos do autor).

O Futebol, como objeto da Teoria do Agir Comunicativo, analisado neste ensaio, foi pensado nas formas de apropriação pela linguagem e pelas formas de interação, bem como pelo processo de complexificação sistêmica (ALMEIDA, 2011ALMEIDA, Marco Bettine. O Esporte como matriz da sociabilidade espontânea: um olhar pelo referencial habermasiano. Journal of ALESD. v. 1, n. 1 p. 100 - 110, 2011.). A expressão simbólica do futebol via Teoria do Agir Comunicativo é refletida como parte do mundo da vida, construindo as relações próprias da comunidade, passando por gerações, até caracterizar-se por um dos sistemas dinheiro ou poder, integrado de ações conjuntas, identificadas por suas ideologias, crenças, expressões, formas de ser e estar na vida de determinada comunidade, região ou país.

A partir desse referencial podemos perceber o futebol em diferentes dimensões: como prática no espaço das relações espontâneas - mundo da vida; como prática ensinada na escola e sancionada pelas instituições estatais - sistema poder; ou ainda, como futebol de massa, que reflete um sistema que tem base na reificação6 6 Habermas emprega o conceito de Reificação no sentido de Lukács, que seria uma radicalização da alienação. - sistema dinheiro.

Procurando não segmentar a ideia do futebol, trabalhamos a sua relação definida pelas totalidades das tradições técnicas e instituições derivadas de um sistema histórico, parte integrante e indissociável do saber partilhado por determinada comunidade. Com o fenômeno de complexificação sistêmica apontado por Habermas (2012b)HABERMAS, Jurgen. Teoria do agir comunicativo sobre a crítica da razão funcionalista. São Paulo, Martins Fontes, 2012b. v. 2., nas sociedades atuais o futebol praticado espontaneamente dá espaço para os formatos sistêmicos. O futebol parece viver o que Habermas denomina de patologias da modernidade, como os casos de corrupção na FIFA (HORNE, 2017HORNE, John. Sports mega-events - three sites of contemporary political contestation. Sport in Society, v. 43, n. 3, p.1-13, 2017. DOI: https://doi.org/10.1080/17430437.2015.1088721
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; BAYLE; RAYNER, 2018BAYLE, Ernest; RAYNER, Holl. Sociology of a scandal: the emergence of ‘FIFAgate’. Soccer & Society, v.19, n. 4, p. 593-611, 2018.), transações entre jogadores sem transparência (BETTINE; GRAEF; GUTIERREZ, 2019BETTINE, Marco; GRAEF, Billy; GUTIERREZ, Diego. Foreign Media Reports About Brazil’s Mega Sporting Events: Soft Power, Periphery and Dependence. Movimento, v. 24, n. 4, p. 1000 - 1024, 2019. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.82438
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), jogadores de países em desenvolvimento transformados em commodities7 7 Considero importante a leitura dos seguintes textos para compreender o contexto das patologias: Cf. ZIAKAS, For the benefit of all? Developing a critical perspective in mega-event leverage, HORNE, Sports mega-events - three sites of contemporary political contestation, DAMO; OLIVEN, O Brasil no horizonte dos megaeventos esportivos de 2014 e 2016: sua cara, seus sócios e seus negócios, BAYLE; RAYNER, Sociology of a scandal: the emergence of ‘FIFAgate’. .

As “peladas”, os jogos “espontâneos” com suas diferentes manifestações locais, são uma forma de expressão cultural que, nitidamente, sofreu com os avanços e transformações da sociedade urbanizada. No entanto, há outros conceitos habermasianos que possibilitam lutarmos contra essa reificação sistêmica, a sociedade civil organizada e a esfera pública, que seriam as organizações transnacionais como: Play the Game, Against Modern Football, Sport for the Peace e Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa.

O desenvolvimento das grandes cidades, e a reprodução do espaço urbano pelas grandes corporações foram implacáveis aos campos de várzea e aos parques públicos, restringindo outras formas de expressão futebolísticas e criando em torno de si a reprodução do movimento, o mercado de atletas, bem como a dependência aos meios de comunicação como são hoje as mídias sociais.

As apresentações nos estádios e suas centenas de câmeras tornaram-se panópticos, disseminando hábitos, costumes e, posteriormente, moldando as relações interpessoais. Na prática do futebol informal e cultural ocorreram os dois processos apontados anteriormente: (a) a mecanização do futebol por meio da incorporação da tecnologia (radicalização do apolíneo), e (b) a substituição da busca de uma prática despretensiosa (dionisíaco) por uma necessidade de consumo, por meio da reificação, mostrando que o futebol é parte integrante do processo de transformação cultural.

O processo de apropriação do mundo da vida é complexo, incorporando aspectos como a perda de identidade, o afastamento dos símbolos sagrados coletivos e a destruição de uma moral (HABERMAS, 2012aHABERMAS, Jurgen. Teoria do agir comunicativo, racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo, Martins Fontes, 2012a. v 1.). Nesse sentido, o mundo da vida parece viver, desde a constituição da sociedade moderna, uma luta diária com a indústria cultural, procurando incorporar a tecnologia e reconvertê-la em instrumento de uma sociabilidade espontânea ou autêntica (BETTINE, 2020BETTINE, Marco. Para compreender a Teoria do Agir Comunicativo de Jürgen Habermas. São Paulo: AnnaBlume/Fapesp, 2020. v. 1.). No caso do futebol, particularmente, vive-se a dualidade entre suas novas tecnologias e a reificação, em que o futebol de rua pode ser percebido enquanto espaço de resistência nos parques, nos mangues, nas várzeas, nas praias, de maneira descompromissada.

O futebol definido aqui não é aquele que permanece inalterado no tempo, mas o que preserva e incentiva a socialização espontânea, além da formação coletiva de identidade do grupo que o dramatiza, conforme expõe Da Matta (1982) em Universo do Futebol. Esta dimensão parece ser a característica fundamental do mundo da vida.

O futebol como prática cultural via Teoria do Agir Comunicativo seria essencialmente uma relação social. A essência dessa identidade cultural, segundo DaMatta (1982)DAMATTA, Roberto. Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro. In: DAMATTA, Roberto (org.) Universo do futebol. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982. p. 19-42., é estar ligada à formação de uma brasilidade. Sendo mais um interlocutor do mundo da vida, servindo para a evolução da linguagem, das instituições e para a formação da personalidade. O que DaMatta sumariza muito bem ao descrever a passagem do indivíduo para a pessoa. Isto é, quando o jogador entra em campo, ele garante um status de pessoa que o conecta às teias de significado de sua comunidade, e, não estamos falando aqui da seleção brasileira, estamos falando dos jogos que ocorrem longe das câmeras e dos jornalistas que contam as novelas dos pop’s da bola. Este sujeito, trabalhador das grandes megalópoles, torna-se pessoa aos sábados e domingos quando joga bola com seu grupo social de referência. Pode-se afirmar que o futebol é parte do mundo da vida, por meio da integração entre as pessoas, da busca do jogar, do querer aprender uma técnica corporal e da vontade de competir.

A complexificação do futebol se dá nas sociedades modernas com a (a) institucionalização do futebol e (b) racionalização dos movimentos. A análise aqui proposta preocupa-se com as três tendências do futebol, segundo a interpretação da teoria habermasiana. A primeira tendência é a que vê o futebol pelos olhos da cultura - como componente do mundo da vida; a segunda tendência discute o papel do Estado como grande meio de controle do futebol - sistema poder; e a última tendência aponta a função do mercado como reificador do futebol - sistema dinheiro. Portanto, o futebol expressa as três esferas: Mundo da Vida, Sistema Poder e Sistema Dinheiro.

Com isso, observa-se o crescimento das preocupações com o público, com o consumidor, com a venda, com o espetáculo do corpo como elemento de consumo e de notável atenção e visibilidade. Walter Benjamin (1985BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. v. 1.) via o esporte como pertencimento, isto é, uma proximidade entre atleta e público, uma sensação deste no sentido de que ele também pode tomar parte e se posicionar perante o espetáculo ou na sua prática cotidiana.

Guy Debord (1997)DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. São Paulo: Contraponto Editora, 1997. afirma que a sociedade é espetacularizada e o espetáculo é a relação social mediada por imagens. No sentido apontado acima, e articulado com a visão habermasiana, o futebol se transforma em objeto de uso das outras esferas sociais, para ter um papel de destaque, utilizando-as para seu próprio enriquecimento sistêmico.

3 FOOT-BALL E A CULTURA BRASILEIRA

As fronteiras sociais do futebol começaram a ser transpostas através da formação de times improvisados pelos setores populares e, o que antes era simples curiosidade destas camadas, passou a ser prática cotidiana. Como hoje assistimos crianças jogando futebol com pedras, bola de meias, ontem não era diferente. O futebol era praticado com materiais improvisados, jogado em terrenos desocupados, tornando-se uma representação da existência negada em outros campos sociais, alastrando-se pelos subúrbios. Logo, as equipes e clubes foram se constituindo pela iniciativa de pequenos comerciantes, operários e artesãos (FRANCO JR., 2007FRANCO JR., Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Cia. Das Letras, 2007.).

O surgimento das organizações esportivas vincula-se ao processo de identidades, como a formação de grupos de imigrantes, bairros ou etnias. Mas o futebol surge também como potencializador da sociabilidade espontânea e construção de laços tão profundos quanto outros eventos sociais, como o carnaval e o samba (DAMATTA, 1982DAMATTA, Roberto. Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro. In: DAMATTA, Roberto (org.) Universo do futebol. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982. p. 19-42.). Para DaMatta “o futebol institui abertamente a malandragem como arte de sobrevivência e o jogo de cintura como estilo nacional” (1994, p.17).

Esse processo de popularização não ocorreu sem antagonismos, pois o campo simbólico dominante do futebol era o elitista, utilizando as categorias de Bourdieu (2000)BOURDIEU, Pierre. O campo econômico: a dimensão simbólica da dominação. Campinas: Papirus, 2000., os habiti dominantes tinham tanto os instrumentos para a prática do futebol quanto os saberes, as regras, as técnicas e as terminologias inglesas. Tal processo de elitização do futebol foi longo, por exemplo, o Jornal dos Sports, na matéria de 06 de agosto de 1915, alertava que o “futebol é um esporte que só pode ser praticado por pessoas da mesma educação e cultivo, se formos obrigados a jogar com um operário a prática torna-se um suplício, um sacrifício, mas nunca uma diversão”. Nesta reportagem, o periódico busca fortalecer o habitus elitista do futebol que já havia ganhado uma popularização. Mesmo com as proibições nos clubes de elite, a prática livre ocorria em outros territórios, como nas margens dos rios, nas várzeas, nas praias, nos campinhos, nos morros, atrás das fábricas, ao lado da escola. Isto é, havia a restrição de jogar nos clubes particulares, todavia, nas ruas, nos terrenos baldios, a prática começa a aparecer de forma cada vez mais espontânea.

Outros pontos de vista podem ser associados, como a incorporação do futebol na cultura popular. Para alguns autores como Caldas (1990)CALDAS, Wladimir. Pontapé inicial: memórias do futebol brasileiro. São Paulo: IBRASA, 1990. e Guedes (2009)GUEDES, Simoni. Futebol e identidade nacional: reflexões sobre o Brasil. In: PRIORE, Mary Del; MELLO, Victor Andrade de. História do esporte: no Brasil: do Império aos dias atuais. São Paulo: Unesp, 2009. p. 453-480., a prática do futebol faz parte de uma ritualização de festa. Podemos pensar também a discussão eliasiana (ELIAS; DUNNING, 1992ELIAS, Norbert; DUNNING, Erik. Memória e sociedade a busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.) de mimese, do caráter mimético das sociedades, do poder de imitação na formação da sociedade, pelo processo de teias e significados simbólicos e como o futebol participa dessa configuração social, na representação da guerra, nas cores, nos hinos, na formação de identidades, e nos rituais que surgem no tempo e com o tempo que o ressignifica. O futebol é ritualizado e se ritualiza. Mas, o importante neste processo de disseminação do futebol, na interpretação aqui proposta, é que o futebol e os valores esportivos, utilizando expressão de Sevcenko (2000)SEVCENKO, Nicolau. Orfeu estático da metrópole. São Paulo: Cia das Letras, 2000. no Orfeu extático na metrópole, provocaram um êxtase coletivo na sociedade brasileira.

No artigo, Antropologia do óbvio - notas em torno do significado do futebol brasileiro, DaMatta (1994)DAMATTA, Roberto. Antropologia do óbvio - Notas em torno do significado social do futebol brasileiro. Revista USP, n. 22, 1994. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i22p10-17
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dramatiza o futebol brasileiro como forma de constituir nossa nacionalidade, por meio da bandeira, o hino e as cores, utilizadas nas mais diversas manifestações políticas e culturais brasileiras na atualidade. Por exemplo, nas manifestações de junho de 2013 quando futebol e política mais uma vez entraram em cena nas diversas capitais brasileiras, ouviam-se vozes de que ‘meu partido é o Brasil’ e as camisetas da seleção brasileira de futebol se espraiavam pelas ruas amarelando o desastroso protesto8 8 A opinião pública internacional mudou a forma de pensar a relação entre o futebol, o Brasil e a Copa do Mundo em 2013, quando tivemos as jornadas de junho no Brasil, um pouco antes de iniciar a Copa das Confederações. A mídia internacional perguntava-se se o Brasil ainda era o país do futebol. Vários autores como Avritzer (2016), Dantas, (2016) e Szwako (2016), discutindo os impasses da democracia no Brasil, nos mostram uma leitura bem consistente dos protestos de 2013 ao golpe de 2016. Outro estudo importante para entender inclusive o rechaço da população à realização da Copa das Confederações e a Copa do Mundo da FIFA no Brasil é o estudo de Ângela Alonso (2017), denominado Política das Ruas: protestos em São Paulo de Dilma a Temer. .

4 A DANÇA DIONISÍACA NO MUNDO DA VIDA

Uma vertente que discute a apropriação do futebol pelo brasileiro também parte de algumas discussões de Mauss (1974)MAUSS, Marcel. As técnicas corporais. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU, 1974. v. 2., p. 209-233. sobre técnica corporal representativa de uma identidade cultural específica. Se hoje podemos falar em mimetismo no caso do futebol em nossa sociedade (FRANCO JR., 2007FRANCO JR., Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Cia. Das Letras, 2007.), este ocorreu porque a população brasileira dominava determinadas técnicas do corpo que lhe permitiram se servir do futebol como instrumento de lazer, de atividade social ou identitária. A técnica do corpo, segundo Marcel Mauss, pode ser entendida como as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo.

Segundo Barreto (2004)BARRETO, Túlio Velho. Freyre e o futebol-arte. Revista USP, n. 62, p. 233-238, 2004. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i62p233-238
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036....
, Gilberto Freyre começou a escrever sobre futebol em 1929 no Jornal A Província, publicado em Pernambuco. Depois de diversos textos, escreveu em 1938 o emblemático texto Foot-ball Mulato, publicado no Diário de Pernambuco. É famosa a passagem que destacarei: “(...) os nossos floreios com a bola, há alguma coisa de dança ou capoeiragem que marca o estilo brasileiro de jogar futebol”. Freyre pensava o futebol como arte e sublimação de vários elementos de nossa formação social e cultural. Nas palavras de Gilberto Freyre, elementos da cultura nacional, consolidadas pela abertura ao negro e mulato, permitiu uma síntese com o jogo dos pés. Em conferência proferida nos Estados Unidos em 1944 Freyre afirma: “O jogo brasileiro de futebol é como se fosse uma dança” (FREYRE, 2001FREYRE, Gilberto. Interpretação do Brasil: aspectos da formação social brasileira como processo de amalgamamento de raças e culturas. São Paulo: Cia. das Letras, 2001., p.182).

Interessante pensarmos a expressão “jogo brasileiro”, ela se distancia do elemento formal, da modalidade esportiva futebol, ou mesmo do futebol brasileiro. O elemento jogo aparece como fundamental e, posteriormente, a locução adjetiva ‘futebol brasileiro’, como sendo algo do Brasil. Nada mais cultural e simbólico que essa referência, representação nítida do Mundo da Vida habermasiano, ou do Homo Ludens de Huizinga.

“O jogo brasileiro é dionisíaco, uma expressão das danças populares, que é expansivo, alegre, improvisado” (FREYRE, 2001FREYRE, Gilberto. Interpretação do Brasil: aspectos da formação social brasileira como processo de amalgamamento de raças e culturas. São Paulo: Cia. das Letras, 2001., p.182). Segundo DaMatta (1982DAMATTA, Roberto. Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro. In: DAMATTA, Roberto (org.) Universo do futebol. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982. p. 19-42., p.82), o futebol “proporciona uma experiência exemplar de legitimidade”, engendrando um espaço primordialmente democrático. Outra abordagem é pensá-lo como metáfora de nação, como o futebol se tornou um dos instrumentos brasileiros de pensar e de, sobretudo, classificar o mundo.

Nas décadas de 50 a 70, a imprensa brasileira (Mario Filho, Nelson Rodrigues, José Lins do Rego, João Saldanha, Armando Nogueira) passou a associar o futebol ao imponderado, ao improviso, e utilizou-se disso como forma de simbolizá-lo como um importante traço cultural do jeito brasileiro de viver. Os cronistas auxiliaram neste processo de construção da identidade, como afirmaria Hobsbawm (1997)HOBSBAWN, Eric. Introdução: A invenção das tradições. In: HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. (org.) A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 9-24. na introdução do livro A Invenção das tradições, inventando uma magia que todos creem, pois, nosso futebol nessa tradição inventada é extraordinário, insólito, admirável e dionisíaco. As vozes desses cronistas criaram um universo no qual foi possível identificar o futebol com a cultura nacional. Ao criticar a forma de jogar dos europeus frente à nossa, mostra-se que este conflito é mais uma maneira de valorizar as características brasileiras, mais um jeito de reforçar o Dionísio.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta deste ensaio foi promover aproximações da Teoria do Agir Comunicativo e determinadas categorias de Gilberto Freyre e Roberto DaMatta. Nessa discussão percebemos que o futebol continua a partilhar uma espécie de operador simbólico da sociedade brasileira, capaz de promover o fluxo de mão dupla entre as expressões produzidas pelos jogadores brasileiros nos gramados, mediadas pelas tecnologias e mídias sociais, construindo singularidades no cotidiano nacional e, participando ativamente da vida política brasileira.

Podemos descrever esse cotidiano pelos modos de se vestir, falar e, principalmente, as marcas que as crianças, jovens e adultos trazem nos corpos, como diria Marcel Mauss. São os cortes e tingimento nos cabelos, que são mutáveis, e as tatuagens9 9 Cf. PÉREZ A Identidade à Flor da Pele. Etnografia da Prática da Tatuagem na Contemporaneidade. Mana, v. 12, n. 1, p. 179-206, 2006. que carregam traços simbólicos duradouros.

Os argumentos desenvolvidos é que há uma tensão entre um processo de reificação do corpo, do atleta e do futebol, e, ao mesmo tempo, os argumentos desenvolvidos por DaMatta sobre a identidade nacional e as dramatizações da vida que o futebol representa, principalmente o conceito de pessoa, tornando o futebol um objeto interessante para compreendermos a complexificação sistêmica, a colonização do mundo da vida, as patologias da modernidade e a luta diária do mundo da vida via sociedade civil organizada.

As características singulares que Freyre definiu em o Foot-Ball Mulato demonstra uma peculiaridade no estilo brasileiro e da cultura, longe dos holofotes e das grandes mídias sociais, que representam o gesto, o brincar, o driblar e o jogar.

A dualidade apresentada por Freyre me lembra de Pieter Bruegel, particularmente o quadro de 1559 O combate entre o Carnaval e a Quaresma, este mesmo pintor é que nos ofereceu grande contribuição no quadro de 1560 Jogos Infantis. Um pouco destas duas obras-mestras são inspiração para esse ensaio, pois no primeiro, claramente o dionisíaco e o apolíneo se enfrentam, e no segundo, o jogo aparece como dramatização das relações sociais, como elemento agregador de relações sociais que se configuram em determinada comunidade no mundo da vida.

Como toda e qualquer criação de símbolos e identidades, as construções sociais são produzidas mediante o acobertamento de diferenças culturais. Quando escrevo este ensaio estou ciente que a totalidade do mundo é bem maior que as minhas mãos, daí, portanto, várias tensões e contradições não puderam ser atendidas por muitos motivos. Destaco a incapacidade interpretativa deste sujeito pesquisador. Talvez o grande mérito deste ensaio é demonstrar a riqueza de elementos simbólicos do Universo Futebol, para contribuir com esse fascinante mundo intersticial entre o futebol, a sociabilidade e a ginga comunicativa dionisíaca.

  • 1
    Não é o intuito profetizar, no entanto, acredito que o livro O Futebol nas ciências humanas no Brasil, organizado por Sérgio S. Giglio e Marcelo W. Proni e publicado pela editora da Unicamp em 2020 será um outro marco nos estudos sobre futebol. Para termos uma ideia, o livro organizado por DaMatta tinha como co-autores Luiz Felipe Baêta Neves, Arno Vogel e Simoni Lahud Guedes. No livro organizado por Giglio e Proni temos a contribuição de 51 pesquisadores e pesquisadoras, e a professora Simoni L. Guedes figura nestas duas grandes obras, fazendo jus à dedicatória dos organizadores.
  • 2
    Valer-me-ei do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, publicado em 1928, para a interpretação da Teoria do Agir Comunicativo, combinando a sisudez de Habermas, como apontado no livro de Stuart Jefries Grand Hotel Abyss: The Lives of the Frankfurt School, e o bailado, e o samba, e as metáforas brasileiras, para absorver e ressignificar as categorias habermasianas. Por isso coloco no título do ensaio ginga habermasiana.
  • 3
    Gilberto Freyre defende uma democracia racial na sua trilogia Casa Grande & Senzala de 1933, Sobrados & Mucambos de 1936 e Ordem & Progresso de 1957. Apresenta a mestiçagem como um fator de equilíbrio das relações sociais no Brasil, camuflando um racismo institucionalizado durante os anos de escravização brasileira. No Prefácio do livro de Mário Filho, O Negro no Futebol Brasileiro de 1947, Freyre faz a mesma analogia pensando agora no futebol, construindo uma narrativa que esse espaço é racialmente democrático. Há uma ampla bibliografia desmistificando este imaginário. O estudo recente de Marcel Tonini (2020)TONINI, Marcel. “Essa é uma realidade”: os racismos vividos e narrados por negros em várias áreas de atuação no futebol brasileiro. In: GIGLIO, Sergio S.; PRONI, Marcelo W. (org.) O Futebol nas ciências humanas no Brasil. Campinas: Unicamp, 2020. p. 740-760.Essa é uma realidade”: os racismos vividos e narrados por negros em várias áreas de atuação no futebol brasileiro aborda essas questões com muita competência. Para maiores discussões sobre a obra de Freyre recomendo Cf. Jessé Souza: Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira (2000SOUZA, Jessé. Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira. Tempo Social, v. 12, n.1, p. 69-100, 2000.); David Lehmann: Gilberto Freyre: a reavaliação prossegue (2008LEHMANN, David. Gilberto Freyre: a reavaliação prossegue. Horizontes Antropológicos, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-71832008000100015
    https://doi.org/10.1590/S0104-7183200800...
    ). Não compartilho com as ideias de Gilberto Freyre e ojerizo o conceito de democracia racial, no entanto, neste estudo, vou me valer da dualidade dionisíaco e apolíneo que Freyre utilizou em crônicas esportivas. A dualidade freyreana foi adaptada pela antropóloga americana Ruth Benedict no livro Padrões de Cultura de 1934.
  • 4
    Roberto DaMatta em texto no Jornal da Tarde de 2006 intitulado Dionísio contra Apolo utiliza as referências de Freyre: “Trata-se do confronto de um futebol que Gilberto Freyre - invocando o deus grego da ambiguidade e do excesso - chamou de dionisíaco, o nosso; em luta com um estilo de jogar, no qual o carisma que leva às jogadas individuais dá lugar ao entrosamento automático e rotineiro da equipe, num jeito de jogo sistemático, previsível, racional e apolíneo: o deles” (DAMATTA, 2006DAMATTA, Roberto. A bola corre mais que os homens. Rio de Janeiro: Rocco, 2006., p. 83).
  • 5
    No desenvolvimento da sociedade há um processo de diferenciação dos componentes do mundo da vida. No plano cultural existe um processo de formalização dos conceitos valorativos, pressupostos da comunicação, procedimentos da argumentação, valores fundamentais abstratos. No nível da sociedade se impõem princípios de ordem jurídica e moral. Finalmente no nível do sistema da personalidade, as estruturas cognitivas adquiridas no processo de socialização vão criando caminhos próprios afastando-se dos conteúdos culturais que formavam o pensamento concreto, ampliando as visões de mundo, permitindo ao sujeito exercitar competências interpretativas.
  • 6
    Habermas emprega o conceito de Reificação no sentido de Lukács, que seria uma radicalização da alienação.
  • 7
    Considero importante a leitura dos seguintes textos para compreender o contexto das patologias: Cf. ZIAKAS, For the benefit of all? Developing a critical perspective in mega-event leverageZIAKAS, For the benefit of all? Developing a critical perspective in mega-event leverage. Leisure Studies, v. 34, n. 6, p. 689-702, 2015. DOI https://doi.org/10.1080/02614367.2014.986507
    https://doi.org/10.1080/02614367.2014.98...
    , HORNE, Sports mega-events - three sites of contemporary political contestation, DAMO; OLIVEN, O Brasil no horizonte dos megaeventos esportivos de 2014 e 2016: sua cara, seus sócios e seus negóciosBENJAMIM, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. v. 1., BAYLE; RAYNER, Sociology of a scandal: the emergence of ‘FIFAgate’.
  • 8
    A opinião pública internacional mudou a forma de pensar a relação entre o futebol, o Brasil e a Copa do Mundo em 2013, quando tivemos as jornadas de junho no Brasil, um pouco antes de iniciar a Copa das Confederações. A mídia internacional perguntava-se se o Brasil ainda era o país do futebol. Vários autores como Avritzer (2016)AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016., Dantas, (2016)DANTAS, Alexis T.; JABBOUR, Elias Marco K.; SOBRAL, Bruno Leonardo B.. A recriação conservadora do Estado: impasses no reformismo progressista e popular e o golpe de 2016. Revista da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia. v.12, n.19, p.5-38, 2016. DOI: https://doi.org/10.5418/RA2016.1219.0001
    https://doi.org/10.5418/RA2016.1219.0001...
    e Szwako (2016)SZWAKO, José. O fascismo contemporâneo brasileiro ou o mundo segundo o conservadorismo. Revista Escuta, n. especial, p.1-10, 2016., discutindo os impasses da democracia no Brasil, nos mostram uma leitura bem consistente dos protestos de 2013 ao golpe de 2016. Outro estudo importante para entender inclusive o rechaço da população à realização da Copa das Confederações e a Copa do Mundo da FIFA no Brasil é o estudo de Ângela Alonso (2017)ALONSO, Angela. A Política das Ruas: protestos em São Paulo de Dilma a Temer. Novos estudos CEBRAP, n. especial, p.49-58, 2017. Disponível em: https://novosestudos.com.br/wp-content/uploads/2018/07/Angela-Alonso_A-pol%C3%ADtica-das-ruas.pdf. Acesso em: 8 fev. 2023.
    https://novosestudos.com.br/wp-content/u...
    , denominado Política das Ruas: protestos em São Paulo de Dilma a Temer.
  • 9
    Cf. PÉREZ A Identidade à Flor da Pele. Etnografia da Prática da Tatuagem na Contemporaneidade. Mana, v. 12, n. 1, p. 179-206, 2006.
  • FINANCIAMENTO
    O presente trabalho foi realizado com o apoio da Fapesp, n. protocolo 2018/11558-6.
  • COMO REFERENCIAR

    BETTINE, Marco. O futebol e a sociabilidade: a ginga habermasiana e dionisíaca. Movimento, v. 29, p. e29007, jan./dez. 2023. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.121508

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Editado por

RESPONSABILIDADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira*
*Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2022
  • Aceito
    29 Nov 2022
  • Publicado
    14 Abr 2023
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Felizardo, 750 Jardim Botânico, CEP: 90690-200, RS - Porto Alegre, (51) 3308 5814 - Porto Alegre - RS - Brazil
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