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SOLIDARIEDADE EM AÇÃO: UMA SEÇÃO EM FOCO CODESENHADA COM PESQUISADORES BRASILEIROS E INTERNACIONAIS

SOLIDARIDAD EN ACCIÓN: UN NÚMERO ESPECIAL CODISEÑADO CON INVESTIGADORES BRASILEÑOS E INTERNACIONALES

Resumo

O objetivo deste artigo é oferecer um modelo para colegas que desejam aproveitar a oportunidade de trabalhar juntos em todas as nacionalidades para questionar a solidariedade. Nesta seção Em Foco, vinte e dois pesquisadores (nove brasileiros e treze internacionais) trabalharam em seis pequenos grupos durante dois anos para escrever sobre suas experiências com práticas colaborativas. Partindo do conceito de solidariedade de Freire, os editores compartilharam as etapas do processo de co-design, bem como suas visões que resultaram em três temas: (a) a necessidade de aumentar a visibilidade da comunidade acadêmica brasileira; (b) nosso cuidado coletivo com linguagem e comunicação; e (c) como ao liderar este projeto nos repensamos de diferentes maneiras. Defendemos que o modelo da seção Em Foco coelaborada deve ser fundamentado na solidariedade quando utilizado por colegas de outros países. É uma solidariedade baseada na partilha da luta para mudar as desigualdades sociais com as pessoas e a vontade de doar e repensar a nós mesmos.

Palavras-chave:
Solidariedade; Freire; Internacionalização.

Resumen

El objetivo de este artículo es ofrecer un modelo para colegas que desean aprovechar la oportunidad de trabajar juntos en todas las nacionalidades para cuestionar la solidaridad. En este número especial, 22 investigadores (nueve brasileños y trece internacionales) trabajaron en seis pequeños grupos durante dos años para escribir sobre sus experiencias en prácticas colaborativas. Basados en el concepto de solidaridad de Freire, los editores compartieron las etapas del proceso de codiseño, así como sus puntos de vista, que dieron como resultado tres temas: (a) la necesidad de aumentar la exposición de la comunidad académica brasileña; (b) nuestra preocupación colectiva por el lenguaje y la comunicación; y (c) cómo al liderar este proyecto nos repensamos de diferentes maneras. Argumentamos que el modelo del número especial codiseñado debe basarse en la solidaridad cuando sea utilizado por colegas de otros países. Es una solidaridad basada en compartir la lucha por cambiar las desigualdades sociales con las personas y la voluntad de donar y repensarnos.

Palabras clave:
Solidaridad; Freire; internacionalización.

Abstract

The purpose of this paper is to offer a template for colleagues who wish to seize the opportunity to work together across nationalities to interrogate solidarity. In this Special Issue, twenty-two researchers (nine Brazilians and thirteen international) worked in six small groups for two years to write about their experiences with collaborative practices. Drawing on Freire’s concept of solidarity, the editors shared the steps of the co-design process as well as their views which resulted in three themes: (a) the need of heightening the exposure of the Brazilian academic community; (b) our collective care about language and communication; and (c) how in leading this project we rethought ourselves in different ways. We argue that the template of the co-designed Special Issue should be grounded on solidarity when utilised by colleagues in other countries. It is a solidarity based on sharing the struggle to change social inequalities with people and the will to give and rethink ourselves.

Keywords:
Solidarity; Freire; Internationalisation.

1 INTRODUÇÃO E CONCEITO DE SOLIDARIEDADE DE FREIRE

Este artigo surgiu como a possibilidade de aproveitar a oportunidade de trabalhar em conjunto entre as nacionalidades para interrogar a solidariedade - a seção em foco é um exemplo de como lograr isso. Inicialmente, o conceito de seção em foco brotou do desejo de uma das editoras (Luiza) de aumentar a visibilidade da comunidade acadêmica brasileira. Após concluir seu doutorado e se envolver com a literatura internacional sobre práticas colaborativas no desenvolvimento profissional docente em educação física (DPD-EF), Luiza percebeu que as diversas e ricas experiências vividas no Brasil nem sempre são compartilhadas e reconhecidas internacionalmente. Luiza convidou Carla e Cecilia para participar desse projeto inovador de cocriação de uma seção em foco. Queríamos fazer algo diferente da maioria das edições especiais anteriores, onde estudiosos internacionais e brasileiros escreveram artigos separadamente. Queríamos que pesquisadores internacionais e brasileiros entrassem em solidariedade e vivessem uma troca de conhecimentos. Seria possível para pesquisadores internacionais e brasileiros codesenhar uma seção Em Foco, entendendo essa parceria como um ato de solidariedade? A solidariedade poderia ser a base para a internacionalização da pesquisa?

Há um corpo de conhecimento produzido que destaca como a internacionalização das atividades de pesquisa se tornou uma área de destaque, principalmente no ensino superior (ANTELO, 2012ANTELO, Absael. Internationalization of research. Journal of International Education and Leadership, v. 2, n. 1, p. 6, 2012.; WOLDEGIYORGIS; PROCTOR; DE WIT, 2018WOLDEGIYORGIS, Ayenachew A.; PROCTOR, Douglas; DE WIT, Hans. Internationalization of research: key considerations and concerns. Journal of Studies in International Education, v. 22, n. 2, p. 161-176, 2018. DOI: https://doi.org/10.1177/1028315318762804
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). No entanto, este corpo de conhecimento descreve que existem diversos desafios econômicos e políticos ao trabalhar para a internacionalização das atividades de pesquisa no ensino superior (por exemplo, KNIGHT, 2012KNIGHT, Jane. Concepts, rationales, and interpretive frameworks in the internationalization of higher education. In: DEARDORFF, Darla K. et al. (ed.). The SAGE Handbook of International Higher Education. [S.l.]: Sage, 2012. p. 27-42.; RUMBLEY; ALTBACH; REISBERG, 2012RUMBLEY, Laura E.; ALTBACH, Philip G.; REISBERG, Liz. Internationalization within the Higher Education Context. In: DEARDORFF, Darla K. et al. (ed.). The SAGE Handbook of International Higher Education. [S.l.]: Sage, 2012. p. 1-536.; TAYLOR, 2004TAYLOR, John. Toward a strategy for internationalisation: lessons and practice from four universities. Journal of Studies in International Education, v. 8, n. 2, p. 149-171, 2004. DOI: https://doi.org/10.1177/1028315303260827
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). Uma crescente consideração dos rankings internacionais de universidades e o lugar dos indicadores de pesquisa dentro desses rankings é um exemplo disso. Os rankings são considerados os principais impulsionadores da internacionalização, enquanto as motivações socioculturais, como a solidariedade, parecem estar diminuindo de status (KNIGHT, 2012KNIGHT, Jane. Concepts, rationales, and interpretive frameworks in the internationalization of higher education. In: DEARDORFF, Darla K. et al. (ed.). The SAGE Handbook of International Higher Education. [S.l.]: Sage, 2012. p. 27-42.; RUMBLEY; ALTBACH; REISBERG, 2012RUMBLEY, Laura E.; ALTBACH, Philip G.; REISBERG, Liz. Internationalization within the Higher Education Context. In: DEARDORFF, Darla K. et al. (ed.). The SAGE Handbook of International Higher Education. [S.l.]: Sage, 2012. p. 1-536.; TAYLOR, 2004TAYLOR, John. Toward a strategy for internationalisation: lessons and practice from four universities. Journal of Studies in International Education, v. 8, n. 2, p. 149-171, 2004. DOI: https://doi.org/10.1177/1028315303260827
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).

No contexto neoliberal1 1 O contexto liberal se refere ao aumento do foco no controle e estratégias orientadas para o mercado no ensino superior, implementando indicadores estreitos e mensuráveis, como padrões de desempenho, avaliações dos alunos e referências (GIROUX, 2011). Essa virada de responsabilização teve um sério impacto sobre os formadores de professores e pesquisadores. do ensino superior, os principais impulsionadores da internacionalização têm sido vistos como disruptivos e insensíveis aos contextos menos privilegiados (como no caso dos países do Sul Global2 2 O Sul Global não denota uma localização geográfica, mas dá visibilidade a partes do mundo que historicamente foram dominadas, muitas vezes consideradas inferiores pelo Norte Global. Sul Global é o termo usado para descrever um agrupamento de países com características socioeconômicas e políticas que denotam que eles foram oprimidos por injustiças causadas pelos principais modos de dominação. , por exemplo) e, como consequência, parecem nutrir desigualdades (MACPHAIL; LUGUETTI, 2021MACPHAIL, Ann; LUGUETTI, Carla. Nurturing solidarity: considering the internationalization of research activities in kinesiology as a moral practice. International Journal of Kinesiology in Higher Education, v. 5, n. 2, p. 56-67, 2021. DOI: https://doi.org/10.1080/24711616.2020.1866469
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). Nessa lógica neoliberal, a relevância internacional da pesquisa inclui uma agenda altamente competitiva relacionada ao aumento da produtividade individual de pesquisadores, suas universidades e suas nações, atrelada ao uso da análise que apoia os rankings (WOLDEGIYORGIS; PROCTOR; DE WIT, 2018WOLDEGIYORGIS, Ayenachew A.; PROCTOR, Douglas; DE WIT, Hans. Internationalization of research: key considerations and concerns. Journal of Studies in International Education, v. 22, n. 2, p. 161-176, 2018. DOI: https://doi.org/10.1177/1028315318762804
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). Assim como outros estudiosos da área, acreditamos que há necessidade de criticar essa visão neoliberal de internacionalização da pesquisa orientada para o mercado, que visa maximização do lucro e controle (KHOO et al., 2019KHOO, Su-Ming et al. Moving from interdisciplinary research to transdisciplinary educational ethics: bridging epistemological differences in researching higher education internationalization(s). European Educational Research Journal, v. 18, n. 2, p. 181-199, 2019. DOI: https://doi.org/10.1177/1474904118781223
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; ROMANI-DIAS; CARNEIRO; BARBOSA, 2019ROMANI-DIAS, Marcello; CARNEIRO, Jorge; BARBOSA, Aline dos Santos. Internationalization of higher education institutions: the underestimated role of faculty. International Journal of Educational Management, v. 33, n. 2, p. 300-316, 2019. DOI: https://doi.org/10.1108/IJEM-07-2017-0184
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).

Em países do Sul Global como o Brasil, enfrentamos diversos desafios com a internacionalização da pesquisa onde tal internacionalização pode ser considerada um fenômeno incipiente (GUIMARÃES et al., 2020GUIMARÃES, Felipe Furtado et al. The mission statements of the federal universities and the projection of internationalization in Brazil. System, v. 94, 2020.). Os desafios para a internacionalização no Brasil incluem principalmente a invisibilidade da produção acadêmica do Sul Global devido à hegemonia do inglês, dominado por modelos e conceitos do Norte Global (GUIMARÃES et al., 2020GUIMARÃES, Felipe Furtado et al. The mission statements of the federal universities and the projection of internationalization in Brazil. System, v. 94, 2020.). Pesquisadores e universidades brasileiras lutam com os critérios utilizados para rankings que tendem a favorecer universidades do Norte Global ou universidades de língua inglesa e, como tal, esses rankings não conseguem capturar a realidade (e especificidades) das universidades do Sul Global (FINARDI; GUIMARÃES; MENDES, 2020FINARDI, Kyria Rebeca; GUIMARÃES, Felipe F.; MENDES, Ana Rachel. Reflecting on Brazilian Higher Education (Critical) Internationalization. International Journal of Higher Education, v. 6, p. 1-23, 2020.).

A internacionalização da pesquisa no Sul Global pode ser usada tanto para reforçar o legado da colonização quanto para se libertar dele. Nesse sentido, pode ocorrer o reforço da colonização, por exemplo, quando as ideologias da internacionalização estrangeira do Norte Global são aplicadas a contextos locais sem as devidas adaptações às necessidades e valores locais. Nessa modalidade colonizadora, os países do Norte Global buscam implantar seu padrão educacional e infundir seus valores nos países do Sul Global, ampliando seu domínio intelectual, cultural e financeiro (FINARDI; GUIMARÃES; MENDES, 2020FINARDI, Kyria Rebeca; GUIMARÃES, Felipe F.; MENDES, Ana Rachel. Reflecting on Brazilian Higher Education (Critical) Internationalization. International Journal of Higher Education, v. 6, p. 1-23, 2020.). Para Tuhiwai Smith (2012)TUHIWAI SMITH, Linda. Decolonizing methodologies. 2. ed. London: Zed Books, 2012., a pesquisa decolonizadora consiste em três elementos interligados: (a) a desvinculação do saber e do pensamento da lógica do Norte Global; (b) práticas contrárias as ações e modos de ser que personificam o poder colonial; e (c) a redistribuição de poder, incluindo terra e recursos materiais. Uma lente decolonizadora aporta uma crítica radical de como se deu a internacionalização da pesquisa nos países do Sul Global.

Usando uma lente decolonizadora, defendemos que a internacionalização deve ser vista como uma ‘prática moral’ (MACPHAIL; LUGUETTI, 2021MACPHAIL, Ann; LUGUETTI, Carla. Nurturing solidarity: considering the internationalization of research activities in kinesiology as a moral practice. International Journal of Kinesiology in Higher Education, v. 5, n. 2, p. 56-67, 2021. DOI: https://doi.org/10.1080/24711616.2020.1866469
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) onde a noção de solidariedade poderia ser uma forma de nutrir comunidades cultivadas por pesquisadores e não se basear em filiações geográficas ou institucionais particulares, mas em um conjunto compartilhado de valores que podem amplificar a solidariedade em direção ao ‘othering3 3 A ideia de ‘othering’ é crucial para entender as barreiras para entrar em solidariedade com os oprimidos. Os oprimidos nesse contexto são os países do Sul Global. Na relação entre pessoas em que alguns são vistos comos ‘outros’/não-iguais, nós desumanizamos membros de nossa sociedade. Como pesquisadores, deveríamos interromper o processo que posiciona pessoas como ‘outros’ e nos envolver com todos como pessoas. (FINE, 1994FINE, Michelle. Working the hyphens: Reinventing self and other in qualitative research. In: DENZIN, Norman; LINCOLN, Yvonne (ed.). Handbook of qualitative research. California: Sage Publications, 1994. p. 70-82.; FREIRE, 1987FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.; ZEMBYLAS, 2017ZEMBYLAS, Michalinos. Love as ethico-political practice: Inventing reparative pedagogies of aimance in “disjointed” times. Journal of Curriculum and Pedagogy, v. 14, n. 1, p. 23-38, 2017. DOI: https://doi.org/10.1080/15505170.2016.1277572
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). Sugerimos o conceito freireano de solidariedade nutrida pelo compartilhamento da luta com as pessoas, e a vontade de dar e repensar a nós mesmos.

A revolução não é feita pelos líderes para o povo, nem pelo povo para os líderes, mas por ambos agindo juntos em uma solidariedade inabalável. Essa solidariedade só nasce quando os líderes a testemunham por meio de seu encontro humilde, amoroso e corajoso com o povo (FREIRE, 1987FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p.102).

Na Pedagogia do Oprimido, Freire argumentou que a solidariedade exige ‘luta com as pessoas’; é uma postura radical e exige que se coloque na situação daqueles com quem se é solidário. Freire (1987FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p. 22) defendia uma pedagogia que ‘deve ser forjada com, e não para, os oprimidos (sejam indivíduos ou povos) na luta incessante pela reconquista de sua humanidade’.

Para Freire, a solidariedade caracteriza-se também pela vontade de doar-se. Ao contrário dos equívocos comuns, doar não se refere à autoprivação ou a ‘desistir’ de algo. Em vez disso, doar é uma atividade produtiva que aumenta a alegria, a percepção e a habilidade do dador, bem como do receptor (CHABOT, 2008CHABOT, Sean. Love and revolution. Critical Sociology, v. 34, n. 6, p. 803-828, 2008. DOI: https://doi.org/10.1177/0896920508095100
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). Finalmente, quem se compromete com a solidariedade deve se reexaminar constantemente, o que requer um profundo renascimento (FREIRE, 1987FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.). Isso resulta em um processo de transformação pessoal e social para todos. É um processo de abrir os próprios olhos como pesquisadores e ver o mundo com outros olhos, aliado ao desejo de também abrir os olhos dos outros (CAHILL; RIOS-MOORE; THREATTS, 2008CAHILL, Caitlin; RIOS-MOORE, Indra; THREATTS, Tiffany. Different eyes/open eyes: Community-based participatory action research. In: CAMMAROTA, Julio; FINE, Michelle (ed.). Revolutionizing education: youth participatory action research in motion. New York, NY: Routledge, 2008. p. 89-124.). Repensar-se está ligado à relacionalidade: os sujeitos se fazem nas e pelas relações (GAZTAMBIDE-FERNÁNDEZ, 2012GAZTAMBIDE-FERNÁNDEZ, Rubén A. Decolonization and the pedagogy of solidarity. Decolonization: Indigeneity, Education & Society, v. 1, n. 1, p. 41-67, 2012.). Ao nos solidarizarmos com as pessoas, repensamos a nós mesmos: não somos quem ou o que pensamos que somos fora dos relacionamentos - não existe ‘eu’ fora do ‘nós’ e não existe ‘nós’ sem ‘eles’ (GAZTAMBIDE- FERNÁNDEZ, 2012).

Ainda que se reconheça que a internacionalização poderia ser uma ‘prática moral’, há uma lacuna nos estudos empíricos nessa área, particularmente em intervenções ou ações solidárias. O objetivo deste artigo é compartilhar uma possível maneira pela qual colegas possam compartilhar coletivamente a noção de solidariedade. Especificamente, concentramo-nos aqui em compartilhar os passos que as editoras deram para implementar este projeto e sua visão que questiona a noção de solidariedade.

2 O PROCESSO CODESENHADO: UM MODELO PARA FUTURAS EDIÇÕES ESPECIAIS

Este projeto foi uma iniciativa de estudiosas brasileiras (Luiza, Carla e Cecilia) e nasceu da necessidade não apenas de divulgar o trabalho realizado no Brasil, mas também de dialogar com pesquisas realizadas no contexto internacional. A posição das editoras era de que a internacionalização deveria se basear na solidariedade como um aspecto fundamental para transformar as condições sociais e materiais de desigualdade. Com base nessa noção de solidariedade em práticas colaborativas para o desenvolvimento profissional docente em educação física (DPD-EF), quatro temas foram selecionados para esta seção em foco: (a) tipos de DPD-EF colaborativo; (b) o processo de facilitação no desenvolvimento e cultivo de DPD-EF colaborativo; (c) o processo de desenvolvimento de DPD-EF colaborativo; e (d) metodologias inovadoras em DPD-EF colaborativo.

Participaram vinte e dois pesquisadores: nove brasileiros e treze internacionais (alocados na Austrália, Canadá, Irlanda, Nova Zelândia, Portugal, Estados Unidos e Turquia) (ver Tabela 1). Os pesquisadores foram selecionados a partir da literatura nacional e internacional sobre práticas colaborativas (pesquisadores de produtividade na área). Além disso, houve uma dimensão pessoal nesta seleção, uma vez que as Editoras conheciam os indivíduos como parte da comunidade acadêmica do DPD-EF e sua provável disposição positiva para tal projeto. Os pesquisadores receberam um e-mail das Editoras (Luiza, Carla e Cecilia) sendo convidados a participar da seção em foco e da pesquisa.

Tabela 1
Participantes e países (e cidades/estados brasileiros) representados

Luiza idealizou a seção em foco coelaborada com o desejo de aumentar a visibilidade da comunidade acadêmica brasileira. Luiza é uma educadora de professores e pesquisadora brasileira que investigou o DPD de professores e comunidades de aprendizagem nos últimos quatro anos (GONÇALVES et al., 2022GONÇALVES, Luiza Lana; PARKER, Melissa; LUGUETTI, Carla; CARBINATTO, Michele. The facilitator’s role in supporting physical education teachers’ empowerment in a professional learning community. Sport, Education and Society, v. 27, n. 3, p. 272-285, 2022. Available at: https://doi.org/10.1080/13573322.2020.1825371. Accessed on: Jun. 20, 2022.
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). Luiza convidou Carla e Cecilia para serem coautoras da seção em foco no início de 2020. Carla é uma professora brasileira que vive na Austrália, professora e pesquisadora com experiência em justiça social e comunidades de aprendizagem (LUGUETTI; OLIVER, 2021LUGUETTI, Carla; OLIVER, Kim L. A transformative learning journey of a teacher educator in enacting an activist approach in Physical Education Teacher Education. Curriculum Journal, v. 32, n. 1, p. 118-135, 2021. DOI: https://doi.org/10.1002/curj.81
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). Cecilia é uma brasileira radicada no Canadá com vasta experiência em práticas colaborativas de pesquisa e DPD-EF. Luiza, Carla e Cecilia atuaram como facilitadoras no processo codesenhado. Além disso, elas também participaram dos pequenos grupos de redação, escrevendo artigos para a seção em foco. Luiza foi considerada pesquisadora brasileira neste estudo e Carla e Cecilia pesquisadoras internacionais devido às suas carreiras na Austrália (três anos) e Canadá (20 anos), respectivamente.

Durante o projeto, nós, como editoras, convidamos Ann MacPhail como pesquisadora sênior em pedagogia do esporte para assumir o papel de amiga crítica (MACPHAIL; TANNEHILL; ATAMAN, 2021MACPHAIL, Ann; TANNEHILL, Deborah; ATAMAN, Rebecca. The role of the critical friend in supporting and enhancing professional learning and development. Professional Development in Education, p. 1-14, 2021. DOI: https://doi.org/10.1080/19415257.2021.1879235
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). Ann e Carla já haviam publicado anteriormente um artigo onde exploravam os desafios vivenciados por Ann, ao tentar potencializar a internacionalização de suas atividades de pesquisa (MACPHAIL; LUGUETTI, 2021MACPHAIL, Ann; LUGUETTI, Carla. Nurturing solidarity: considering the internationalization of research activities in kinesiology as a moral practice. International Journal of Kinesiology in Higher Education, v. 5, n. 2, p. 56-67, 2021. DOI: https://doi.org/10.1080/24711616.2020.1866469
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). Assim, a interação, os questionamentos e as provocações de Ann possibilitaram ampliar a compreensão e a elucidação das circunstâncias em que o estudo foi desenvolvido. A seção em foco coprojetada foi uma forma de Ann e Carla imaginarem o conceito de solidariedade em ação que haviam defendido anteriormente (MACPHAIL; LUGUETTI, 2021MACPHAIL, Ann; LUGUETTI, Carla. Nurturing solidarity: considering the internationalization of research activities in kinesiology as a moral practice. International Journal of Kinesiology in Higher Education, v. 5, n. 2, p. 56-67, 2021. DOI: https://doi.org/10.1080/24711616.2020.1866469
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).

O processo codesenhado começou após um ano de negociação dos detalhes da seção em foco com a Revista Movimento e do planejamento das ações iniciais do projeto (ver Tabela 2). Durante o projeto, foram realizados cinco encontros virtuais via Zoom com todos os pesquisadores. Antes do primeiro encontro, solicitamos aos pesquisadores que enviassem uma pequena biografia apresentando sua linha de pesquisa e as áreas de interesse com no máximo 250 palavras (ver Figura 1). Compartilhamos todas as biografias com todos os pesquisadores e pedimos que selecionassem os pesquisadores com quem gostariam de trabalhar e os temas que gostariam de trabalhar em seus artigos. Com base nas respostas dos pesquisadores, os agrupamos em seis pequenos grupos.

Tabela 2
Passos, datas e meses equivalentes

Figura 1
Exemplo de uma das biografias

No primeiro encontro virtual, explicamos o projeto aos pesquisadores (mencionando a filosofia baseada na solidariedade, por exemplo). Além disso, compartilhamos a constituição dos seis pequenos grupos criados com base nas respostas às biografias e temas. Esclarecemos que o processo de criação dos grupos considerou os seguintes critérios: (a) os temas escolhidos; (b) os pesquisadores com quem mutuamente queriam trabalhar (correspondências); (c) a necessidade de mesclar pesquisadores internacionais e brasileiros; (d) o domínio da linguagem (previamente perguntado). Atribuímos salas de apoio a cada grupo, os membros se apresentaram e debateram possibilidades de trabalhar juntos. No total, seis salas temáticas foram criadas com três pesquisadores em cada uma. Sugerimos que cada grupo se encontrasse pelo menos uma vez antes de nosso segundo encontro. Também pedimos aos pesquisadores que enviassem resumos à equipe editorial com ideias iniciais para o trabalho colaborativo proposto. Por fim, incentivamos os grupos a convidar outros pesquisadores se assim o desejassem. Ao final, um pesquisador teve que deixar o projeto e outros cinco pesquisadores foram adicionados ao grupo inicial.

No segundo encontro virtual, sugerimos que os pequenos grupos apresentassem seus resumos (em um slide) e dialogassem com o grupo completo. Além disso, pedimos aos pesquisadores que compartilhassem os principais desafios e facilitadores do processo (por exemplo, qual foi a experiência de cada grupo no processo de redação do resumo?). A terceira reunião refinou os artigos por meio de discussões colaborativas. Inicialmente, compartilhamos as ideias sobre a apresentação de um simpósio em uma conferência internacional e solicitamos a opinião de todos. Em seguida, cada pequeno grupo compartilhou o que fez, seguido de uma discussão coletiva.

A quarta e quinta reuniões foram coprojetadas para revisar colaborativamente todos os seis artigos (três em cada reunião) com o objetivo de refiná-los por meio de discussão colaborativa. Cada pequeno grupo recebeu um artigo para revisão com um mês de antecedência como tempo pensado para ler e preparar uma apresentação de dez minutos a fim de compartilhar suas revisões. Após as apresentações dos revisores, realizamos nova discussão em grupo de dez minutos, onde todos os pesquisadores puderam contribuir e fornecer feedback sobre os artigos. Após a reunião, os pesquisadores tiveram dois meses para revisar os comentários sobre seus respectivos artigos e devolvê-los aos revisores. Conforme sugerido por alguns dos pesquisadores, as editoras encorajaram a todos a enviar as correções de volta ao grupo que revisou o artigo e buscar sua opinião final antes da submissão.

3 QUESTIONANDO A NOÇÃO DE SOLIDARIEDADE: PERSPECTIVAS DAS EDITORAS

Argumentamos que o modelo da seção em foco codesenhada poderia ser usado por colegas de outros países se fundamentado na solidariedade. Esta seção interroga a noção de solidariedade na perspectiva das editoras que resultou em três temas: (a) a necessidade de aumentar a visibilidade da comunidade acadêmica brasileira; (b) nosso cuidado coletivo com linguagem e comunicação; e (c) como, ao liderar este projeto, repensamo-nos de diferentes maneiras.

3.1 AUMENTANDO A VISIBILIDADE DA COMUNIDADE ACADÊMICA BRASILEIRA

Quando esta seção em foco codesenhada começou, havia o desejo de reconhecer a produção de conhecimento de acadêmicos brasileiros como forma de aumentar a visibilidade da comunidade acadêmica brasileira. Como editoras, somos brasileiras vivendo e trabalhando fora do Brasil em países do Norte Global. Assim, somos conscientes e vivenciamos a falta de reconhecimento e valorização do que acadêmicos de países do Sul Global enfrentam. Vivenciamos a invisibilidade da produção acadêmica do Sul Global devido à hegemonia do inglês (GUIMARÃES et al., 2020GUIMARÃES, Felipe Furtado et al. The mission statements of the federal universities and the projection of internationalization in Brazil. System, v. 94, 2020.). Vivemos, às vezes, em dois mundos em termos de compartilhamento de conhecimento: o mundo brasileiro (Sul Global) e o Norte Global.

A experiência de Luiza com o contexto internacional durante seu doutorado foi o catalisador para a concepção desta seção em foco. Ao ler e vivenciar práticas colaborativas no Brasil e no exterior, Luiza percebeu dois mundos com rico conhecimento, mas sem diálogo entre (e dentro das) duas comunidades. Consideramos, então, necessária a criação de um projeto que reconhecesse e privilegiasse a produção de conhecimento dos estudiosos brasileiros.

Nossa intenção com esta seção em foco foi iniciar o diálogo entre esses dois mundos (Brasil e Norte Global). Reconhecemos que o Brasil produz conhecimento sobre práticas colaborativas de DPD-EF, mas não dialoga com o contexto internacional. É um exemplo disso o fato de que a maior parte da produção brasileira sobre práticas colaborativas de DPD-EF é publicada e está em português e, às vezes, usa palavras-chave diferentes para definir o corpo da pesquisa (por exemplo, pesquisa-ação, estágio escolar). Assim, a produção de conhecimento brasileira fica isolada, em certo sentido, devido à supervalorização das publicações em inglês.

Como editoras, vimos a seção em foco como uma oportunidade de criar um espaço de compartilhamento de conhecimento, especialmente aumentando as possibilidades de produção de conhecimento brasileiro. Repetimos consistentemente a nós mesmas e a todo o grupo envolvido na seção em foco que este projeto deveria desafiar a construção social de mentes colonizadas que acreditam que os países não falantes de inglês são menos importantes ou menos informados.

3.2 CUIDADO COM A LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO

Como editoras, compartilhamos um cuidado coletivo com a linguagem e a comunicação. Sabíamos que a linguagem seria um problema neste projeto. Estávamos trabalhando com vinte e dois pesquisadores e o inglês era a segunda ou terceira língua para muitos (incluindo as Editoras). Além disso, tínhamos oito acadêmicos em nosso grupo que não falavam português e sabíamos que precisaríamos nos comunicar principalmente em inglês ou traduzir o tempo todo.

Embora enfrentássemos desafios na comunicação, os pesquisadores envolvidos no projeto se preocupavam com as estratégias de comunicação. A fim de facilitar a comunicação dentro do grupo, algumas estratégias foram adotadas: tradução simultânea em algumas reuniões, envio de e-mails nos dois idiomas e liberdade para redigir o artigo na primeira língua dos pesquisadores. Esse tipo de trabalho consumia muito tempo, mas era essencial para criar um ambiente seguro.

Também tivemos que ser abertas ao compartilhar nossas emoções e sentimentos durante as reuniões. O inglês era a segunda e terceira língua para as editoras e estávamos compartilhando nossas emoções e sentimentos em relação às lutas com a linguagem. Luiza, por exemplo, compartilhou suas experiências de estudar internacionalmente sem ser proficiente em inglês com um dos membros que sentia vergonha de suas habilidades em inglês. Pedimos a ajuda da Carla Vidoni (brasileira morando nos EUA há mais de 20 anos) quando não conseguíamos fazer as traduções para nossos colegas brasileiros. Alguns de nossos colegas internacionais também compartilharam seus sentimentos sobre não serem capazes de falar outro idioma além do inglês. As estratégias adotadas e a demonstração da vulnerabilidade dos membros em relação à linguagem nos ajudaram a criar um ambiente de cuidado onde pessoas diversas podem entender umas às outras.

3.3 LIDERANDO O PROJETO E NOS REPENSANDO

Como editoras, percebemos como ao liderar e vivenciar esse projeto nos repensamos de diferentes maneiras. Mais do que facilitar as atividades, também fizemos parte dos pequenos grupos colaborando com pesquisadores brasileiros e internacionais. Estávamos em três grupos diferentes e a ação e reflexão dessa experiência nos fez repensar-nos de maneiras diferentes. Nossa compreensão de como colaborar com as pessoas, por exemplo, viu-se ampliada. Luiza e Cecilia aprenderam sobre si mesmas nesse processo, principalmente negociando diferentes perspectivas em práticas colaborativas. Ambas aprenderam como as práticas colaborativas na academia podem ser difíceis e exigem paciência. Apesar de ambas terem experiência com práticas colaborativas, trabalhavam neste momento com pesquisadores e o novo contexto exigia que fossem pacientes e desenvolvessem novas habilidades sobre como colaborar.

Carla mudou a forma como se via. Liderar esse projeto fez Carla repensar sua posicionalidade. Ela se deu conta de seu desconhecimento da realidade brasileira, das teorias e dos modos de pensar brasileiros. Carla mencionou: ‘Estava pensando em como aprendi que não sou brasileira porque, trabalhando com Marcos e Luiz, percebi que não conheço a realidade brasileira’. Carla percebeu-se mais como uma outsider (estudiosa do Norte Global, por exemplo) do que como insider (estudiosa brasileira), e tal percepção lhe gerou sensações diferentes do que ela esperava ou gostaria. Ao compreender sua posição externa ao contexto brasileiro apesar de ser brasileira, Carla refletiu sobre como poderia ou estaria reforçando o poder colonial. Seu desconhecimento da realidade brasileira se refletia em suas publicações mais em inglês e talvez sua mente colonizada, que deveria ser desafiada.

4 SOLIDARIEDADE EM AÇÃO: PENSAMENTOS FINAIS

Quanto mais radical a pessoa é, mais plenamente entra na realidade para que, conhecendo-a melhor, possa transformá-la melhor. Esse indivíduo não tem medo de confrontar, de ouvir, de ver o mundo desvelado. Essa pessoa não tem medo de conhecer as pessoas ou de entrar em diálogo com elas. Esta pessoa não se considera proprietária da história ou de todos os povos, ou libertadora dos oprimidos; mas ela se compromete, dentro da história, a lutar ao lado deles (FREIRE, 1987FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p.13).

Neste artigo, oferecemos um modelo para colegas que desejam codesenhar uma seção em foco que questione a noção de solidariedade. Como disse Freire, desejamos poder dialogar na luta pela libertação. Como brasileiras, estávamos cientes das desigualdades sociais na academia e das estruturas de opressão. Não queríamos ver as pessoas trazerem uma mensagem de ‘salvação’, mas criar um espaço de diálogo onde pudéssemos lutar não pelo povo, mas apenas com o povo (FREIRE, 1987FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.). Procuramos propor uma forma de organizar uma seção em foco que reconheça que a internacionalização é uma ‘prática moral’. Sugerimos uma forma de intervir ou agir em prol da solidariedade. Freire (1987)FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. descreveu que descobrir-se opressor pode causar uma angústia considerável, mas não leva necessariamente à solidariedade com o oprimido. O opressor só se solidariza com o oprimido quando deixa de considera-lo como uma categoria abstrata (‘othering’) e o vê como pessoa ou pessoas que foram injustamente tratadas, privadas de sua voz, ludibriadas na venda de seu trabalho - ‘quando ele para de fazer gestos piedosos, sentimentais e individualistas e arrisca um ato de amor’ (FREIRE 1987FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p. 35).

Partindo do conceito de solidariedade de Freire, discutimos como nossa intenção genuína neste projeto representaria a vanguarda da produção de conhecimento brasileira no tema. Esta experiência nunca foi sobre recolonizar nossas mentes e práticas. No entanto, constantemente tivemos que nos forçar como editoras a nos afastarmos da ideia de othering pesquisadores brasileiros. Entramos nesse projeto considerando os pesquisadores brasileiros e internacionais como coconstrutores e agentes do conhecimento (DONÁ, 2007DONÁ, Giorgia. The microphysics of participation in refugee research. Journal of Refugee Studies, v. 20, n. 2, p. 210-229, 2007. DOI: https://doi.org/10.1093/jrs/fem013
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), mas foi justamente vivendo essa experiência que realmente percebemos a riqueza do diálogo e da solidariedade para contestar a colonização na internacionalização da pesquisa. Não queríamos que pesquisadores internacionais ‘dessem voz aos brasileiros’, ‘salvassem-nos’ ou ‘internacionalizassem-nos’, reproduzindo o que e como pesquisadores internacionais acríticos têm falado ‘de’ e ‘para’ Outros (DE MARTINI UGOLOTTI; CAUDWELL, 2022DE MARTINI UGOLOTTI, Nicola; CAUDWELL, Jayne. Leisure and forced migration: lived lived in asylum systems. In: DE MARTINI UGOLOTTI, Nicola; CAUDWELL, Jayne (ed.). Leisure and Forced Migration: lived lived in asylum systems. New York, NY: Routledge, 2022. p. 1-18.; FINE, 1994FINE, Michelle. Working the hyphens: Reinventing self and other in qualitative research. In: DENZIN, Norman; LINCOLN, Yvonne (ed.). Handbook of qualitative research. California: Sage Publications, 1994. p. 70-82.). Para Fine (1994FINE, Michelle. Working the hyphens: Reinventing self and other in qualitative research. In: DENZIN, Norman; LINCOLN, Yvonne (ed.). Handbook of qualitative research. California: Sage Publications, 1994. p. 70-82., p. 71), a pesquisa está sempre implicada no hífen Eu-Outro: ‘quando optamos por travar uma luta social com aqueles que foram explorados e subjugados, trabalhamos o hífen, revelando muito mais sobre nós mesmos, e muito mais sobre as estruturas responsáveis pela estigmatização de outros’. Convidamos pesquisadores a se juntarem a nós no trabalho do hífen (FINE, 1994FINE, Michelle. Working the hyphens: Reinventing self and other in qualitative research. In: DENZIN, Norman; LINCOLN, Yvonne (ed.). Handbook of qualitative research. California: Sage Publications, 1994. p. 70-82.), exercitando a reflexividade em termos de nossa própria posicionalidade e suposições.

A ética do cuidado surgiu como forma de garantir que estávamos ouvindo a maioria das vozes, apesar da diversidade de idiomas. Desenvolvemos coletivamente estratégias para incluir todos os pesquisadores do projeto o máximo que pudemos, e isso consumiu tempo, e ainda assim foi recompensador. Compartilhamos nossas vulnerabilidades e isso criou um espaço onde acreditamos que os pesquisadores se preocupam uns com os outros (HOOKS, 1994HOOKS, Bell. Teaching to transgress: education as the practice of freedom. New York: Routledge, 1994.). Interações de cuidado entre pesquisadores brasileiros e internacionais proporcionaram uma abordagem culturalmente responsiva única, na qual as relações de poder foram reveladas. Discutimos como ao liderar e vivenciar este projeto nos repensamos de diferentes maneiras. Exploramos práticas colaborativas na academia em um nível que nunca experimentamos antes. Isso nos ensinou como ser melhores ouvintes e desenvolver a paciência para negociar diversas perspectivas. Segundo Freire (1987)FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., quem se compromete autenticamente com o povo, deve se reexaminar constantemente e isso requer um profundo renascimento. Somente por meio do ‘companherismo com os oprimidos é que os opressores podem compreender seus modos característicos de viver e se comportar, que em diversos momentos refletem a estrutura de dominação’ (FREIRE, 1987FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p.15).

Por fim, acreditamos que esta seção em foco codesenhada pode ser estendida a outros contextos para apresentar a possibilidade de colocar em ação a solidariedade. Sugerimos que a estrutura de encontros baseada no diálogo e na reflexão possa ser implementada em outros contextos como forma de cocriar conhecimento e internacionalizar a pesquisa. Consideramos a solidariedade como a raiz da internacionalização da pesquisa. Numa lógica neoliberal crescente onde a pesquisa inclui uma agenda e rankings altamente competitivos com modelos e conceitos dominados do Norte Global (FINARDI; GUIMARÃES; MENDES, 2020FINARDI, Kyria Rebeca; GUIMARÃES, Felipe F.; MENDES, Ana Rachel. Reflecting on Brazilian Higher Education (Critical) Internationalization. International Journal of Higher Education, v. 6, p. 1-23, 2020.; GUIMARÃES et al., 2020GUIMARÃES, Felipe Furtado et al. The mission statements of the federal universities and the projection of internationalization in Brazil. System, v. 94, 2020.), este projeto lembrou-nos o que significa internacionalização crítica. Não nos envolvemos nessa jornada para maximizar o lucro, controlar a pesquisa ou colonizar o Sul Global. Envolvemo-nos com a intenção da luta com as pessoas e a vontade de doar e repensar a nós mesmas. Enfatizamos o convite a que outros pesquisadores façam o mesmo.

  • 1
    O contexto liberal se refere ao aumento do foco no controle e estratégias orientadas para o mercado no ensino superior, implementando indicadores estreitos e mensuráveis, como padrões de desempenho, avaliações dos alunos e referências (GIROUX, 2011GIROUX, Henry A. On critical pedagogy. New York: Bloomsbury Academic, 2011.). Essa virada de responsabilização teve um sério impacto sobre os formadores de professores e pesquisadores.
  • 2
    O Sul Global não denota uma localização geográfica, mas dá visibilidade a partes do mundo que historicamente foram dominadas, muitas vezes consideradas inferiores pelo Norte Global. Sul Global é o termo usado para descrever um agrupamento de países com características socioeconômicas e políticas que denotam que eles foram oprimidos por injustiças causadas pelos principais modos de dominação.
  • 3
    A ideia de ‘othering’ é crucial para entender as barreiras para entrar em solidariedade com os oprimidos. Os oprimidos nesse contexto são os países do Sul Global. Na relação entre pessoas em que alguns são vistos comos ‘outros’/não-iguais, nós desumanizamos membros de nossa sociedade. Como pesquisadores, deveríamos interromper o processo que posiciona pessoas como ‘outros’ e nos envolver com todos como pessoas.
  • FINANCIAMENTO
    O presente trabalho foi realizado sem o apoio de fontes financiadoras.

ÉTICA DE PESQUISA

A pesquisa seguiu os protocolos vigentes nas Resoluções 466/12 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil.

RESPONSABILIDADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira*

*Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2022
  • Aceito
    21 Out 2022
  • Publicado
    15 Dez 2022
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