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ENTRE O LEGAL E O REAL: ESTUDO COMPARADO ENTRE A LEGISLAÇÃO ESPORTIVA DE BRASIL E ESPANHA

ENTRE LO LEGAL Y LO REAL: ESTUDIO COMPARATIVO ENTRE LA LEY DEPORTIVA DE BRASIL Y ESPAÑA

Resumo

Este artigo resulta de pesquisa que se dedicou ao estudo comparado das políticas esportivas de Brasil e Espanha. Teve como como objetivo principal analisar - de forma comparativa - a legislação esportiva de ambos os países após a constitucionalização do direito ao esporte. Adotando os procedimentos de estudos comparados e a técnica de pesquisa de análise de conteúdo, foram estudadas as legislações infraconstitucionais de Brasil e Espanha que regulamentam o setor esportivo. As análises demonstram: (i) a constituição de uma arquitetura híbrida de gestão da política esportiva, que combina ação tutelar do Estado com autonomização/liberalização do setor privado; (ii) o estímulo à criação de entidades cuja natureza jurídica alinha-se à perspectiva empresarial; (iii) a diversificação de fontes de financiamento ao esporte, em especial o de alto rendimento, mais atrativo ao mercado devido ao potencial de impulsionar a atividade comercial.

Palavras-chave:
Estudo comparado; Legislação esportiva; Brasil; Espanha

Resumen

Este artículo es el resultado de una investigación dedicada al estudio comparativo de las políticas deportivas en Brasil y España. Su objetivo principal era analizar, comparativamente, la legislación deportiva de ambos países después de la constitucionalización del derecho al deporte. Adoptando los procedimientos de estudios comparativos y la técnica de investigación de análisis de contenido, se estudiaron las leyes infraconstitucionales de Brasil y España que regulan el sector deportivo. Los análisis demuestran: (i) la constitución de una arquitectura híbrida de gestión de políticas deportivas, que combina la acción tutelar del Estado con la autonomía / liberalización del sector privado; (ii) alentar la creación de entidades cuya naturaleza jurídica esté alineada con la perspectiva comercial; (iii) la diversificación de las fuentes de financiamiento para el deporte, especialmente los de altos ingresos, más atractivos para el mercado debido al potencial para impulsar la actividad comercial.

Palabras clave:
Estudio comparativo; Legislación deportiva; Brasil; España

Abstract

This article is the result of a comparative study on sports policies in Brazil and Spain. Its main objective was to analyze - comparatively - the sports legislation from both countries after the right to sports entered their Constitutions. By following procedures from comparative studies and content analysis research techniques, we studied Brazil’s and Spain’s infra-constitutional laws regulating the sports sector. The analyses show: (i) the establishment of a hybrid sports policy management architecture combining tutelary action by the State with autonomy/liberalization of the private sector; (ii) encouragement towards creation of entities whose legal nature is aligned with a business perspective; (iii) diversification of funding sources for sports, especially for high-performance sports, which are more attractive to the market due to their potential to boost commercial activities.

Keywords:
Comparative study; Sports legislation; Brazil; Spain

1 INTRODUÇÃO

Entre a globalização perversa e a globalização como possibilidade (solidária)1 1 Referências a categorias presentes na obra do geógrafo brasileiro Milton Santos. , vivenciamos um mundo interconectado, capaz de derrubar fronteiras imaginárias para favorecer a internacionalização do capital e o fluxo financeiro e, ao mesmo tempo, erguer muros reais para demarcar desigualdades sociais, étnicas e culturais. No plano das relações internacionais, observamos a proliferação dos acordos bilaterais e multilaterais, relacionados a temas como imigração, segurança e comércio, como, por exemplo, contratos realizados entre diferentes blocos econômicos.

As possibilidades de se vivenciar um modelo global mais solidário, permeado por relações humanas mais equilibradas, parecem distantes. Ao contrário, identificamos a predominância da competição desenfreada por mercados e tecnologias, de uma relação desarmônica com o meio ambiente e a intensa exploração dos recursos naturais e humanos. Em meio a esse cenário de concorrência acirrada e iniquidades severas, identificamos projetos de reestruturação urbana das grandes cidades, parametrizados pela lógica empresarial, tendo como expectativa a construção de uma “Cidade Global” ou “Cidade Fantasia” (POYNTER, 2008POYNTER, Gavin. Regeneração urbana e legado olímpico de Londres 2012. In: RODRIGUES, Rejane Penna; PINTO, Leila Mirtes Magalhães; TERRA, Rodrigo; DACOSTA, Lamartine. Legados de megaeventos esportivos. Brasília: Ministério do Esporte; Rio de Janeiro: CONFEF, 2008. p. 121-152.).

O processo de reconfiguração acima, além de certa homogeneização da cultura e arquitetura destacada por Capel (2001CAPEL, Horacio. Dibujar el mundo: Borges, la ciudad y la geografía del siglo XXI. Barcelona: Ediciones del Serbal, 2001.), conduziu governos nacionais e locais à concorrência interurbana (HARVEY, 2004HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.) pela captação de grandes eventos internacionais, incluindo os esportivos. O Brasil lançou-se com “sucesso” nessa disputa, sediando nos anos de 2014 e 2016 a Copa do Mundo FIFA de Futebol e os Jogos Olímpicos de Verão. Para a preparação do país e da cidade do Rio de Janeiro para receber esses eventos, foram adotadas como referências concepções de planejamento de cidades-sede anteriores, dentre as quais estava Barcelona 1992, reconhecida internacionalmente como case a ser seguido (MASCARENHAS, 2008MASCARENHAS, Gilmar. O ideário urbanístico em torno do olimpismo. Barcelona (1992) e Rio de Janeiro (2007): Os limites de uma apropriação. In: PEREIRA, Elson Manoel. (org.) Planejamento Urbano no Brasil: conceitos diálogos e práticas. Chapecó: Argos, 2008.; 2014).

No entanto as relações entre Brasil e Espanha são anteriores e não se restringem à esfera esportiva. Os países herdaram vínculo histórico, que remonta às marcas da colonização ibérica nas Américas, posteriormente reforçado pela imigração espanhola, pelos laços econômico-comerciais e pela proximidade histórica e cultural. Para Lima (2017LIMA, Sérgio Eduardo Moreira. (org.). A importância da Espanha para o Brasil: histórias e perspectivas. Brasília: FUNAG, 2017., p. 10), os países possuem uma peculiaridade histórica que se expressa na capacidade “de contribuir de maneira efetiva para o diálogo intercultural e inter-religioso, bem como para a harmonia entre tradição e inovação”.

Não obstante essa histórica relação, Brasil e Espanha vivenciam realidades sociais, políticas e econômicas diversas, permeadas por desafios interpostos por suas particularidades histórico-culturais, bem como por um modelo de economia global de acentuada concentração da acumulação de capital, que aprofunda diferenças entre centro e periferia. Essas condições distintas se expressam materialmente em setores da sociedade, como, por exemplo, o esportivo. Para compreender melhor essas diferenças, entre os anos de 2018 e 2020, desenvolvemos projeto de pesquisa mais amplo.

Neste artigo, apresentamos um dos resultados deste projeto, que se refere à análise da configuração política das políticas de esporte destes países. O termo adotado para essa dimensão de análise pode suscitar inferências sobre possível avaliação da conjuntura política, das configurações de governos e suas relações com setores da sociedade civil, grupos de pressão e de poder. No entanto, a proposta para este texto é mais restrita e circunscreve-se à coleta de dados sobre a ação estatal no setor esportivo, a partir de levantamento e análise do ordenamento legal.

Em relação à produção científica sobre o tema identificamos dois grupos: (i) análises sobre a constitucionalização do esporte (ATHAYDE et al., 2016ATHAYDE, Pedro Fernando Avalone; CARVALHO, Miguel; MATIAS, Wagner Barbosa; CARNEIRO, Fernando Henrique Silva; SANTOS, Samir. Panorama sobre a constitucionalização do direito ao esporte no Brasil. Motrivivência, v. 28, n. 49, p. 38-53, dez. 2016.; PACHOT ZAMBRANA, 2016PACHOT ZAMBRANA, Karel Luis. El derecho constitucional al deporte en la doctrina y el derecho comparado. Cuestiones Constucionales, n. 35, p. 119-150, dic. 2016.; CAMARGOS, 2017CAMARGOS, Wladimyr Vinycius de Moraes. A Constitucionalização do Esporte no Brasil. Autonomia Tutelada: Ruptura e Continuidade 2017. 188 f., Tese (Doutorado em Direito) -Universidade de Brasília, Brasília, 2017.; CANAN, STAREPRAVO e SOUZA, 2017CANAN, Felipe; STAREPRAVO, Fernando Augusto; SOUZA, Juliano de. Posições e tomadas de posições na constitucionalização do direito ao esporte no Brasil. Movimento (Porto Alegre), v. 23, n. 3, p. 1105-1118, jul./set. 2017.) e (ii) sobre as características da legislação esportiva local (ARAUJO et al., 2017ARAUJO, Silvana Martins de; ARAUJO, Raffaelle Andressa dos Santos; NUNES, Aline Silva Andrade; MOUTINHO, Andreia Maciel Santos; TEIXEIRA, Pablo Linhares. O Esporte como Direito Social: notas sobre a legislação esportiva no estado do Maranhão. In: JORNADA INTERNACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS, 8., 2017, São Luís. Anais... Maranhão: UFMA, 2017.; WERLE e VAZ, 2019WERLE, Verônica; VAZ, Alexandre Fernandez. Sobre a constituição e desenvolvimento da legislação esportiva de Florianópolis (1986 - 2015). Licere, v. 22, n.1, p. 331-358, 2019.). Além disso, localizamos um conjunto de estudos comparados ou transnacionais sobre sistemas e políticas esportivas nacionais (BERGSGARD, et al., 2007BERGSGARD, Nils Asle; HOULIHAN, Barrie; MANGSET, Per; NODLAND, Svein Ingve; ROMMETVEDT, Hilmar. Sport Policy: A comparative analysis of stability and change. Oxford: Elsevier, 2007.; SCHEERDER, WILLEM e CLAES, 2017SCHEERDER, Jeroen; WILLEM, Annick; CLAES, Elien. Sport policy systems and sport federations: a cross-national perspective. London: Palgrave Macmillan, 2017.; ROCHA, 2018ROCHA, Cíntia Csucsuly. Políticas públicas e organização esportiva: estudo comparado Brasil-Espanha. 2018. 188 f., il. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade de Brasília, Brasília, 2018.).

Partimos do pressuposto de que o reconhecimento do esporte como direito pela legislação do país é passo importante, porém insuficiente para sua concretização. A confirmação de determinado setor ou fenômeno na condição de direito nas normas vigentes engendra uma expectativa de direito que, em muitos casos, não se consubstancia em direito efetivado. Tal condição não anula a importância deste reconhecimento para que o esporte possa ser reclamável judicialmente. Nesse sentido, é corriqueiro que a previsão de um direito venha acompanhada pela descrição do dever estatal, fundamento para o exercício do controle social democrático.

Face ao exposto, este artigo apresenta como objetivo analisar - de forma comparativa - a legislação esportiva de Brasil e Espanha após a constitucionalização do direito ao esporte2 2 Neste texto adota-se o entendimento que há uma constitucionalização do direito ao esporte na Espanha, devido ao fato de que na Constituição Espanhola de 1978 o dever dos poderes públicos de fomentar o esporte está inserido dentro do artigo 43, coadunando-se com o primeiro item inicial que se refere ao reconhecimento do direito à promoção da saúde. Ademais, corroboramos Pachot Zambrana (2016), que aponta a Espanha como um dos casos no qual o reconhecimento juridicamente vinculativo do direito ao desporto é consagrado em normas infraconstitucionais, nomeadamente aquelas de regulamentação do esporte, o que consequentemente garante uma relativa e considerável eficácia jurídica. .

2 METODOLOGIA

No plano mais geral, a pesquisa que origina este artigo caracteriza-se como uma pesquisa social de abordagem qualitativa, fundamentada no método dialético. Marconi e Lakatos (2019MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2019., p. 108) caracterizam o método dialético como aquele que “penetra o mundo dos fenômenos através de sua ação recíproca, da contradição inerente ao fenômeno e da mudança dialética que ocorre na natureza e na sociedade”. Com relação à pesquisa qualitativa, seguimos as etapas do processo científico, propostas por Minayo (2013MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2013.), a saber: a) fase exploratória; b) trabalho de campo; e c) análise e tratamento do material empírico e documental.

A fase exploratória teve início com a elaboração do projeto de pesquisa para concorrer a edital de agência de fomento, no qual realizamos a delimitação do objeto, o levantamento das hipóteses, o delineamento metodológico, a organização do cronograma e o planejamento da execução financeira. Complementarmente, compõe esse momento o processo de submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília, posteriormente aprovado por meio do Parecer nº 4.008.482.

A etapa de trabalho de campo desenvolveu-se a partir de duas trajetórias. Neste artigo, apresentamos os resultados do levantamento do material documental. Segundo a classificação proposta por Marconi e Lakatos (2019MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2019.), a pesquisa documental foi composta por fontes escritas primárias, que correspondem à legislação esportiva vigente publicada após a constitucionalização do direito ao esporte.

A legislação espanhola foi coletada no site da Agencia Estatal Boletín Oficial del Estado3 3 Disponível em: https://www.boe.es/. Acesso em: 31 mar. 2020. e o ordenamento legal brasileiro localizado por meio do Portal da Legislação4 4 Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/. Acesso em: 31 mar. 2020. . O primeiro critério de inclusão adotado para escolha dos documentos diz respeito à disponibilidade/publicidade em endereços eletrônicos dos governos centrais. Além deste, foram observados: (i) Legislação de âmbito nacional que trata da regulamentação do direito ao esporte, incluindo aquelas que tratam da gestão e do financiamento para o setor (Constituição e leis infraconstitucionais); (ii) Legislação que regulamenta os dispositivos gerais da Constituição e das Leis Gerais do Esporte; (iii) Legislação que regulamenta a organização do setor esportivo. Os critérios de exclusão foram: (i) Legislação nacional sobre o direito ao esporte que não esteja disponível nos endereços eletrônicos dos governos centrais; (ii) Legislação exclusiva de modalidades esportivas; (iii) Legislação que regulamenta programa ou projeto específico (como, por exemplo, a Lei nº 10.891/2004, que institui o Programa Bolsa-Atleta); (iv) Resoluções, Portarias e/ou boletins informativos.

A terceira e última etapa corresponde à análise e ao tratamento do material documental. Em função do objeto de estudo e do objetivo concebido para este texto, construímos uma amálgama de modelos e técnicas de pesquisa, constituída pelos estudos comparados e pela análise de conteúdo.

Sartori (1999SARTORI, Giovanni. Comparación y método comparativo. In: SARTORI, Giovanni; MORLINO, Leonardo. (orgs.). La comparación en las ciencias sociales. Madrid: Alianza Editorial, 1999., p. 32) afirma que existem muitas razões para compararmos, sendo uma delas o aprendizado com a experiência dos outros, pois “quien no conoce otros países no conoce tampoco el proprio”. Carvalho (2014CARVALHO, Elma Júlia Gonçalves de. Estudos comparados em educação: novos enfoques teórico-metodológicos. Acta Scientiarum Education, v. 36, n. 1, 2014.) compartilha do mesmo pensamento ao considerar que os estudos comparados ampliam o campo de compreensão sobre as características assumidas por determinadas políticas em distintas realidades nacionais, a partir da identificação de semelhanças e diferenças entre elas.

A perspectiva comparada no âmbito da administração pública estuda as semelhanças e diferenças entre várias unidades de análise, nos níveis da organização, da gestão e da política, com o objetivo de consolidar uma base de conhecimento institucionalizado, que auxilie na tomada de decisão dos gestores (GUESS; GABRIELYAN, 1998GUESS, George M.; GABRIELYAN, Vache. Comparative and international administration. In: RABIN, Jack; HILDRETH, W. Bartley; MILLER, Gerald J. (eds.). Handbook of public administration. 2. ed. New York: Marcel Dekker, 1998.; SANTISO, 2003SANTISO, Carlos. Reinventing Leviathan. The politics of administrative reform in developing countries. In: HEREDIA, B.; SCHNEIDER, R. B. (eds.). Public Administration and Development. Miami: North South Center Press, 2003.).

No caso particular deste estudo, aplicamos esse suposto metodológico à esfera das políticas esportivas. Segundo Rocha (2018ROCHA, Cíntia Csucsuly. Políticas públicas e organização esportiva: estudo comparado Brasil-Espanha. 2018. 188 f., il. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade de Brasília, Brasília, 2018., p. 20), “o conhecimento sobre as políticas e organização do esporte no contexto espanhol permite, ao mesmo tempo, alargar nosso campo de visão sobre a realidade esportiva brasileira”.

Complementarmente, utilizamos o procedimento de pesquisa de análise de conteúdo, que, conforme Bardin (2016BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.), é composta por três polos cronológicos: a) pré-análise; b) exploração do material; c) tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação.

A pré-análise consistiu na leitura flutuante como técnica adotada para familiarização inicial com o corpus de análise, selecionado de forma a priori em função dos objetivos estabelecidos e da representatividade dentro do universo estudado (política nacional de esporte). Após a seleção, os textos foram organizados em dois grupos (legislação brasileira e legislação espanhola) e transpostos para o software de análise de dados qualitativos MAXQDA, versão 2020.

Com o auxílio dessa ferramenta, realizamos a fase de exploração do material em duas etapas. A primeira correspondeu à codificação a partir de unidades de registro temáticas e unidades de contexto do tipo parágrafos. Posteriormente, categorizamos o material seguindo os critérios semânticos que agruparam as unidades de registro e contexto.

A codificação e a categorização foram balizadores para a última etapa da análise de conteúdo, que Franco (2018FRANCO, Maria Laura Puglisi Barbosa. Análise de Conteúdo. 5. ed. Campinas: Autores Associados, 2018.) separa em três momentos: descrição, inferência e interpretação. Na descrição realizamos a enumeração das características do texto, descrevendo seus objetivos gerais e o contexto histórico-social no qual foram produzidos. A etapa da inferência “pressupõe a comparação de dados, obtidos mediante discursos e símbolos, com os pressupostos teóricos de diferentes concepções de mundo, de indivíduo e de sociedade” (FRANCO, 2018FRANCO, Maria Laura Puglisi Barbosa. Análise de Conteúdo. 5. ed. Campinas: Autores Associados, 2018., p. 33-34). As inferências e interpretação (significação) dos dados foram desenvolvidas a partir das categorias semânticas de maior destaque, adotando como suporte teórico estudos de referência vinculados à temática da política de esporte em âmbito nacional.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1 LEIS GERAIS DO ESPORTE

Scheerder, Willem e Claes (2017SCHEERDER, Jeroen; WILLEM, Annick; CLAES, Elien. Sport policy systems and sport federations: a cross-national perspective. London: Palgrave Macmillan, 2017.), em quadro comparativo utilizado para analisar sistemas de política esportiva e as federações de treze países, incluem dentro do perfil de cada país três dimensões: estrutura, direção e suporte. No âmbito da direção ou gestão, por meio da qual se estabelecem as relações entre as federações esportivas e os órgãos governamentais de esporte, os autores listam os quadros legislativo e da estrutura política, incluindo as legislações esportivas específicas e não específicas. Neste estudo focalizaremos a legislação esportiva específica, entendida como aquela cuja finalidade é a regulamentação do setor esportivo, ao passo que a não específica cita o esporte tangencialmente ou aborda-o como meio para fins vinculados a outros setores, como, por exemplo, saúde, educação e cultura.

Na Espanha, anterior ao Brasil, o capítulo terceiro, do Título I, da Constituição de 1978 preceitua a responsabilidade do Estado de fomentar a prática esportiva, posto que estabelece aos poderes públicos a promoção da educação sanitária, da educação física e do esporte, bem como a adequada utilização do lazer (ócio). Tais preceitos são reforçados na descrição das competências das Comunidades Autônomas (ESPANHA, 1978). De acordo com Bodin (2011BODIN, Dominique. Inclusión social y práctica deportiva. El deporte como herramienta de construcción ciudadana en la España democrática, 1975-2000. In: PUJADAS, Xavier (org.). Atletas y ciudadanos: historia social del deporte en España 1870-2010. Madrid: Alianza, 2011.), a legislação espanhola produzida no período de 1975 a 2000 reflete a necessidade de construir um esporte para todos, a partir de um processo de transição marcado pela gênese de uma política social esportiva paralela ao desenvolvimento e um novo marco democrático.

A primeira vez que o tema do esporte aparece nas Constituições brasileiras é no ano de 1967, sob a vigência da ditadura militar, entre as competências da União. No entanto, na Constituição de 1988, o esporte, além de uma responsabilidade estatal, é reconhecido como um direito, conforme destaca o texto constitucional: “dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um” (BRASIL, 1988).

Partindo de levantamento anterior realizado por Rocha (2018ROCHA, Cíntia Csucsuly. Políticas públicas e organização esportiva: estudo comparado Brasil-Espanha. 2018. 188 f., il. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade de Brasília, Brasília, 2018.), a Figura 1 apresenta as normas infraconstitucionais em vigor de Brasil e Espanha vinculadas à temática esportiva e que serão objeto de análise deste artigo. É importante destacar que não foram incluídas normas espanholas que se referem à regulamentação de regime local e cuja finalidade fogem ao escopo desta pesquisa. A título de exemplo, citamos o Real Decreto 1363/2007, ausente deste estudo, pois tem como principal finalidade a formação técnica para a prática profissional no âmbito do sistema esportivo espanhol.

Figura 1
Legislação esportiva de Brasil e Espanha.

Abaixo das Constituições nacionais, destacamos inicialmente as leis localizadas no topo das cadeias representadas na Figura 1, a Lei nº 9.615/1998 (BRASIL, 1988) e Lei nº 10/1990 (ESPANHA, 1990). Essas normas têm a competência de estabelecer diretrizes gerais para a regulamentação do esporte em âmbito nacional, sendo possível denominá-las de “Leis Gerais do Esporte”. Em ambos os casos identificamos um conjunto de atualizações/alterações nos dispositivos destas normas ao longo do tempo5 5 No caso brasileiro, a última mudança ocorreu recentemente em 2018 (Lei nº 13.756/2018), enquanto no espanhol foi em 2015 (Real Decreto-ley 5/2015). .

Chaker (1999CHAKER, André-Nöel. Study of National Sports Legislation in Europe. Strasbourg: Council of Europe Publishing, 1999.), em estudo sobre a legislação e a política nacional de esporte em dezenove países membros do Conselho da Europa, conclui pela existência de dois modelos principais de legislação esportiva na Europa: o modelo intervencionista no sul e no leste e o modelo não intervencionista no norte e no oeste da Europa. Burriel Paloma e Puig (1999) classificam a organização do esporte espanhol como de modelo intervencionista, caracterizado por uma ampla “legalização específica” do fenômeno esportivo. Diferentemente destes autores, percebemos a presença de composição híbrida na legislação esportiva de Brasil e Espanha, uma vez que oscilam entre a intervenção estatal e a autonomia/liberalização do setor esportivo, conforme explicito, por exemplo, no artigo 217 da Constituição Federal brasileira e no objetivo da principal lei esportiva espanhola.

O objetivo fundamental da nova Lei é regular o quadro jurídico em que a prática desportiva deve ser exercida no âmbito do Estado, rejeitando, por um lado, a fácil tentação de assumir uma função pública excessiva e, por outro, a propensão a abdicar de toda responsabilidade na organização e racionalização de qualquer setor da vida coletiva (ESPANHA, 1990, tradução nossa).

Em seu artigo de abertura, a Lei nº 10/1990 apresenta como seu objeto “a organização do Esporte, de acordo com as competências correspondentes à Administração do Estado” (ESPANHA, 1990, tradução nossa). Em seu preâmbulo há reconhecimento de que o dever constitucional de fomentar o esporte foi cumprido inicialmente pela publicação da Lei nº 13/1980, porém o processo autonômico e a evolução do esporte impuseram a necessidade de renovação da norma. Segundo Rocha (2018ROCHA, Cíntia Csucsuly. Políticas públicas e organização esportiva: estudo comparado Brasil-Espanha. 2018. 188 f., il. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade de Brasília, Brasília, 2018.), a Lei nº 10/1999 mantém a lógica da descentralização para implementação das ações esportivas, conforme legislação anterior, porém promove alteração substancial no foco e direcionamento das políticas de esporte na Espanha.

É importante lembrar que quatro anos antes, em 1986, Barcelona foi eleita cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 1992. Edição olímpica que, segundo Proni (2004PRONI, Marcelo Weishaupt. A metamorfose dos Jogos Olímpicos (1896-1996). In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 17., 2004, Campinas. Anais... Campinas: ANPUH, 2004., p.11), selou de forma “definitiva a transformação das Olimpíadas num megaespectáculo dirigido pela lógica do mercado e segundo os interesses do mundo dos negócios”. Embora a Lei nº 10/1990 reconheça aspectos diferenciados do fenômeno esportivo como atividade livre e voluntária, Lasarte Álvarez et al. (2008LASARTE ÁLVAREZ, Javier; HERMOSÍN ÁLVAREZ, Montserrat; ARRIBAS LEÓN, Mónica; RAMOS PRIETO, Jesús. Deporte y fiscalidad. Sevilla: Junta de Andalucia, 2008.) afirmam que, a partir desta Lei, o Estado espanhol priorizou iniciativas direcionadas à cooperação com o esporte profissional (de alto rendimento), ao passo que a promoção do esporte entre os jovens e pessoas com deficiência (esporte popular/para todos) tornou-se secundária.

A Figura 2 traz nuvem de palavras referente ao conteúdo das leis gerais do esporte de Brasil e Espanha. Esse recurso heurístico nos auxilia na visualização primária das unidades de registro do tipo palavra que se destacam no interior das unidades de contexto do texto das leis. A título de exemplo, a partir da imagem podemos observar o destaque dado às entidades de regulação, administração e prática esportiva, que organizam a estrutura sistêmica deste setor.

Figura 2
Nuvem de palavras da Lei nº 10/1990 (Espanha) e Lei nº 9.615/1998 (Brasil).

A estruturação de um sistema esportivo vincula-se diretamente a temas como a divisão de responsabilidades e competências entre os entes, os mecanismos e formas de garantia do direito ao esporte e as interações e interfaces desta estrutura sistêmica, seja entre órgãos e esferas governamentais, seja entre elas e agentes do setor privado. Entretanto, a despeito do destaque de termos vinculados a essas questões, o conteúdo, sobretudo no caso brasileiro, não garante a consolidação efetiva do sistema e não o protege de distorções, conforme apontado por relatório do Tribunal de Contas da União, em 2014.

[…] o SND consiste em sistema privado, dependente, no entanto, de recursos públicos para sua subsistência, contrariando o disposto na Lei 9.615/1998, para a qual as entidades a serem beneficiadas com recursos públicos federais devem ter autonomia e viabilidade financeiras (TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2014, p. 92).

Na legislação espanhola destacam-se, ainda que em menor monta, as sociedades anônimas esportivas (sociedades anónimas deportivas - SAD). Para Varsi Rospigliosi (2007), a SAD seria uma das formas de associativismo espanhol, compondo o primeiro grau das associações esportivas espanholas. Segundo o autor, essa nova forma de organização e promoção esportiva resulta da conversão/inserção de entidades originalmente constituídas como associações civis à esfera empresarial. Espartero Casado (2009) destaca que um fator determinante ao legislador para a proposta da SAD, no caso espanhol, foi a preocupação de que os participantes do esporte profissional não voltassem a se endividar.

Em função dos processos de mercantilização e espetacularização que caracterizam o esporte contemporâneo (MARQUES; GUTIERREZ; MONTAGNER, 2009MARQUES, Renato Francisco Rodrigues; GUTIERREZ, Gustavo Luis; MONTAGNER, Paulo César. Novas configurações socioeconômicas do esporte contemporâneo. Revista da Educação Física/UEM, v. 20, n. 4, p. 637-648, 4. trim. 2009.), percebe-se, a partir do direito comparado, a presença de personalidade jurídica com essas características na legislação de outros países mesmo que com nomenclaturas distintas, como, por exemplo, França em1975, Itália em 1981 e Brasil em 1998. No caso brasileiro, a Lei nº 9.615/1998 prevê a possibilidade de entidades desportivas profissionais constituírem-se regularmente em sociedade empresária. Mais especificamente, em relação à modalidade do futebol, tramita atualmente no legislativo brasileiro o Projeto de Lei nº 5.082 de 20166 6 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2082511. Acesso em: 14 abr. 2020. , que dispõe sobre o “clube-empresa” e visa fomentar a participação da iniciativa privada no setor.

3.2. CARACTERÍSTICAS DA LEGISLAÇÃO ESPORTIVA

Excluindo-se as normas gerais do esporte de Brasil e Espanha, repetimos o procedimento de mapeamento das unidades de registro contidas nas legislações esportivas de caráter mais específico (Figura 3). Na Espanha notamos que o escopo das normas selecionadas se reflete na ênfase de termos atinentes às sociedades anônimas esportivas (Real Decreto 1251/1999) e à comercialização dos direitos audiovisuais das competições de futebol profissional (Real Decreto-ley 5/2015).

Figura 3
Nuvem de palavras da legislação esportiva espanhola e brasileira.

De acordo com Almeida (2015ALMEIDA, Pedro. Futebol, Mercantilismo e Identidade no Século XXI. Fórum Sociológico, n. 26, p. 7-16, 2015., p. 9), “os processos de comercialização e mercantilização foram conquistando um espaço cada vez maior nas estruturas envolventes na organização e governação do futebol, quer a nível europeu, quer a nível mundial”. Moscoso Sánchez, Rodríguez Díaz y Fernández Gavira (2014) afirmam que a crise do Estado de Bem-Estar e a hegemonia dos mercados no sistema esportivo europeu se evidencia na realidade espanhola.

Na legislação brasileira, contingente maior de documentos e a presença do Decreto nº 7.984/2013 - de caráter mais geral - são fatores que repercutem na distribuição mais equilibrada entre os termos, com destaque àqueles mais genéricos (Ministério, entidades, Esporte e administração), que se referem à organização esportiva, registro semelhante àquele diagnosticado na análise da Lei nº 9.615/1998. Evidência importante à expressão “recursos” que sinaliza para conclusão apontada pelo estudo de Athayde et al. (2016ATHAYDE, Pedro Fernando Avalone; CARVALHO, Miguel; MATIAS, Wagner Barbosa; CARNEIRO, Fernando Henrique Silva; SANTOS, Samir. Panorama sobre a constitucionalização do direito ao esporte no Brasil. Motrivivência, v. 28, n. 49, p. 38-53, dez. 2016.), em que, ao estudarem a legislação esportiva infraconstitucional no Brasil, os autores assinalam como um dos focos a criação, ampliação e diversificação de fontes de financiamento para o esporte, sobretudo na manifestação de alto rendimento.

Para interpretação e avaliação do conteúdo da legislação esportiva de Brasil e Espanha, realizamos a leitura integral dos documentos e, por meio de software de análise qualitativa, a codificação dos textos, a partir de categorias de análise, que emergiram dos dados coletados. Conforme disposto na Tabela 1, o código/categoria predominantemente atribuído, desconsiderando as subcategorias, foi “organização esportiva”, que diz respeito às normas e diretrizes de regulamentação dos atores (público e privados) que organizam e participam da política e dos sistemas esportivos em âmbito nacional.

Tabela 1
Distribuição geral das Categorias de análise da legislação (Brasil e Espanha).

A Figura 4 demonstra as especificidades do grupo de legislação esportiva de cada um dos países. Para isso construímos uma matriz de códigos na qual é possível visualizar as categorias e subcategorias que aparecem com maior evidência/frequência dentro dos grupos de documentos (legislação brasileira e legislação espanhola). A imagem confirma os destaques anteriores ao realçar a subcategoria de “sociedades anônimas” no caso espanhol e a categoria do “financiamento” no Brasil.

Figura 4
Matriz de códigos da legislação esportiva (Brasil e Espanha).

Além disso, no conjunto brasileiro podemos ressalvar as categorias “justiça esportiva” e “organização esportiva”. A primeira é composta pelos temas relacionados à ordem e ao sistema jurídico esportivos, bem como aqueles concernentes à regulamentação do exercício profissional da atividade esportiva, aspectos vastamente apresentados na Lei Pelé (Lei nº 9615/1998). Já a segunda categoria, de forma mais abrangente, refere-se à estrutura organizacional do Estado voltada ao esporte, com definição de sua composição e das competências de seus agentes.

Na legislação espanhola, além do destaque da “justiça esportiva”, análogo ao caso brasileiro, destaca-se também a subcategoria “Estado e entidades esportivas”. Nessa codificação estão presentes os trechos do grupo de documentos que se reportam diretamente à relação entre os órgãos governamentais e as entidades esportivas de natureza privada. Não obstante a autonomia e liberdade organizativa, é possível observarmos na atuação do Conselho Superior de Esportes (Consejo Superior de Deportes) o que denominamos de modelo híbrido de regulamentação da política esportiva nacional, ou de autonomia tutelada ou “assistência tutelar” (CAMARGOS, 2017CAMARGOS, Wladimyr Vinycius de Moraes. A Constitucionalização do Esporte no Brasil. Autonomia Tutelada: Ruptura e Continuidade 2017. 188 f., Tese (Doutorado em Direito) -Universidade de Brasília, Brasília, 2017.), adequada à manutenção de fundamentos de tutela do Estado sobre o esporte, sem comprometimento das ações de liberalização do setor.

No tocante ao financiamento público do esporte brasileiro, ainda que não seja o cerne deste texto, são necessárias duas observações acerca dos critérios de planejamento estabelecidos na legislação. Inicialmente, é importante ressaltar que a Lei Pelé e o Decreto nº 7.984/2013 determinam que os recursos do extinto Ministério do Esporte - atual Secretaria Especial do Esporte - devem ser utilizados conforme o disposto no Plano Nacional do Desporto - PND. No entanto, até o presente momento, inexiste esse dispositivo, sendo o gasto público com o esporte orientado pelos instrumentos de planejamento governamental7 7 Referimo-nos ao Plano Plurianual - PPA, a Lei de Diretrizes Orçamentárias - LDO e a Lei Orçamentária Anual - LOA. .

Um segundo destaque diz respeito ao financiamento do esporte de alto rendimento, sobretudo no que se refere ao repasse realizado às entidades de administração esportiva. O artigo nº 56-A, da Lei nº 9.615/1998, estabelece a necessidade de firmar contrato de desempenho junto à Secretaria Especial do Esporte. Entretanto, a despeito da realização dos repasses, não foi celebrado junto a este órgão nenhum contrato com as entidades esportivas. O Tribunal de Contas da União em auditoria sobre o Sistema Nacional do Desporto (SND) apontou o seguinte: “[...] a ausência de PND impacta na assinatura dos contratos de desempenho das entidades beneficiárias de recursos públicos com o ME” (TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2014).

A legislação espanhola tem uma abordagem mais generalista sobre o tema do financiamento público. Ao todo foram apenas cinco segmentos codificados nesta categoria. Entre as definições apresentadas nos documentos encontra-se a competência do Conselho Superior de Esportes em conceder auxílio financeiro às entidades esportivas, realizando o acompanhamento de sua aplicação conforme os critérios previstos na Lei nº 10/1990. Ademais, o Conselho é responsável por autorizar as despesas plurianuais das federações esportivas espanholas, determinar a destinação do patrimônio líquido destas em caso de dissolução, controlar os subsídios que seriam concedidos e autorizar a garantia e a alienação de seus imóveis, quando eles tiverem sido financiados total ou parcialmente com recursos públicos do Estado (ESPANHA, 1990).

Podemos afirmar que a legislação esportiva brasileira e espanhola são corolários do processo de desenvolvimento e transformação do esporte moderno. A principal modificação deste fenômeno sociocultural em tempos recentes foi sua liberalização e mercantilização. Segundo Rodríguez-Díaz (2008), o processo de mercadorização do esporte na Espanha tem seu ápice nos anos 1990, com a manutenção atual da hegemonia do modelo esportivo de alto rendimento em relação ao esporte para todos, o que denota semelhança com trajetória histórica da política de esporte brasileira.

Essa dinâmica de incorporação dos preceitos do mercado a sua organização e promoção não é uma prerrogativa da esfera esportiva e se espraia para diferentes campos da vida social. No espectro esportivo, essa visão/transformação é protagonizada pelas indústrias esportiva, midiática e de entretenimento, enredadas às entidades de administração e prática esportiva. Sujeitos que propulsionam o chamado esporte espetáculo, subsumido à condição de mercadoria, focado na indução ao consumo esportivo e, portanto, garantindo as condições geral de reprodução e acumulação do capital (MANDEL, 1982MANDEL, Ernest. O Estado na fase do Capitalismo Tardio. In: MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Os economistas)). Um processo que se acentua durante ciclos de grandes eventos esportivos e que exige uma adequação (modernização) por parte do quadro legislativo.

Para assegurar a continuidade e o aprofundamento deste processo, minorando os riscos, os sujeitos coletivos acima destacados atuam junto ao Estado para garantir o respaldo legal e econômico. Nesse sentido, observamos uma legislação esportiva que, por um lado, mantém a função reguladora e tutelar do Estado e, por outro lado, assegura a autonomia e a liberdade de organização das entidades esportivas, estimulando a configuração empresarial e ampliando/diversificando as fontes de financiamento para este setor.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciamos esse texto destacando o processo de globalização e as dinâmicas integrativas que compõem o paradoxal cenário internacional. A despeito das particularidades e pluralidade que ensejam essa paisagem, é possível identificarmos elementos de generalidade que a caracteriza como, por exemplo, os movimentos de financeirização, acumulação e concentração de capitais, processos que uma vez importados de determinados setores econômicos se espraiam por toda a tessitura social.

O esporte, como importante fenômeno sociocultural contemporâneo, não se aparta dessa condição, embora isso ocorra globalmente de forma desigual. E, nesse sentido, conquanto a análise comparativa nos possibilite identificar elementos de especificidade e distinção nas legislações esportivas brasileira e espanhola, ambas convergem para elementos necessários ao atendimento da generalidade da transformação recente do setor esportivo, que diz respeito a seu processo de espetacularização e mercantilização.

Ao adaptar-se e garantir o respaldo legal ao processo supracitado, a legislação assume determinadas características destacadas neste estudo. Dentre elas, aquelas que mais se avultam são: (i) a constituição de uma arquitetura híbrida de gestão da política esportiva, que combina ação tutelar do Estado com autonomização/liberalização do setor privado; (ii) o estímulo à criação de entidades cuja natureza jurídica alinha-se à perspectiva empresarial; (iii) a diversificação de fontes de financiamento ao esporte, em especial o de alto rendimento, mais atrativo ao mercado devido ao potencial de impulsionador a atividade comercial.

Finalmente, é necessário reconhecer os limites deste estudo, uma vez que analisa apenas um indicador dentre outros aspectos que compõe uma matriz de avaliação da política esportiva nacional. Conforme alertamos ainda na introdução, existem hiatos entre o consignado nos textos legais, a composição da agenda e o de fato implementado no campo da ação prática. Isso significa que as conclusões deste estudo precisam ser confrontadas com outros indicadores de análise, como, por exemplo, o acompanhamento da execução orçamentária e a mensuração da efetividade e alcance de programas e projetos voltados à promoção da prática esportiva.

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  • FINANCIAMENTO

    O presente trabalho foi realizado com apoio financeiro da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal, por meio do Edital nº 04/2017.
  • ÉTICA DE PESQUISA

    O projeto de pesquisa foi encaminhado e aprovado ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília, posteriormente aprovado por meio do Parecer nº 4.008.482.
  • 1
    Referências a categorias presentes na obra do geógrafo brasileiro Milton Santos.
  • 2
    Neste texto adota-se o entendimento que há uma constitucionalização do direito ao esporte na Espanha, devido ao fato de que na Constituição Espanhola de 1978 o dever dos poderes públicos de fomentar o esporte está inserido dentro do artigo 43, coadunando-se com o primeiro item inicial que se refere ao reconhecimento do direito à promoção da saúde. Ademais, corroboramos Pachot Zambrana (2016PACHOT ZAMBRANA, Karel Luis. El derecho constitucional al deporte en la doctrina y el derecho comparado. Cuestiones Constucionales, n. 35, p. 119-150, dic. 2016.), que aponta a Espanha como um dos casos no qual o reconhecimento juridicamente vinculativo do direito ao desporto é consagrado em normas infraconstitucionais, nomeadamente aquelas de regulamentação do esporte, o que consequentemente garante uma relativa e considerável eficácia jurídica.
  • 3
    Disponível em: https://www.boe.es/. Acesso em: 31 mar. 2020.
  • 4
    Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/. Acesso em: 31 mar. 2020.
  • 5
    No caso brasileiro, a última mudança ocorreu recentemente em 2018 (Lei nº 13.756/2018), enquanto no espanhol foi em 2015 (Real Decreto-ley 5/2015).
  • 6
  • 7
    Referimo-nos ao Plano Plurianual - PPA, a Lei de Diretrizes Orçamentárias - LDO e a Lei Orçamentária Anual - LOA.

HOMENAGEM

WAGNER BARBOSA MATIAS

Este artigo foi desenvolvido em parceria com o professor/pesquisador Wagner Barbosa Matias. Infelizmente, Wagner não poderá acompanhar sua publicação, pois, no dia 05 de junho de 2021, faleceu devido às complicações advindas da COVID-19, encerrando abrupta e precocemente um futuro brilhante na Educação Física brasileira. Nosso grupo de pesquisa, o Avante-UnB, perdeu um ser humano repleto de qualidades, capaz de unir o coletivo, arrefecer os ânimos durante as polêmicas e agregar novos membros de forma solidária e generosa. A perda nos deixou órfãos do seu conhecimento, empatia e companheirismo. Baiano, filho, esposo, amigo, pesquisador, gestor e professor, Wagner era um sujeito comprometido com a universidade pública, de qualidade, socialmente referenciada, e com a ciência emancipadora. Nesse sentido, perde, igualmente, a Educação Física brasileira, tolhida das substantivas contribuições de Wagner Matias ao debate das políticas públicas de Educação Física, Esporte e Lazer e, especialmente, à crítica da economia política do esporte/futebol, debate no qual sua tese “A economia política do futebol e o ‘lugar’ do Brasil no mercado-mundo da bola” foi pioneira no cenário nacional. Infelizmente, a morte desse jovem marido, amigo, camarada, pesquisador e militante representa outra derrota da ciência para o negacionismo e obscurantismo genocida que se abateu sobre o nosso país. Ficam o luto e a dor, mas, ao mesmo tempo, a responsabilidade de levar adiante seus sonhos e ideais de mundo melhor, de um outro esporte, de uma outra Educação Física e de outro Brasil. A luz de seu trabalho, espírito crítico e de sua memória será mantida acesa pelo Avante-UnB. Nossos sentimentos à família, em especial, à sua esposa Wilka e ao seus pais, Lidiomar e Maria José. Wagner jamais será esquecido! #Wagnerpresente

Editado por

RESPONSABILIDADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga *, Elisandro Schultz Wittizorecki *, Ivone Job *, Mauro Myskiw *, Raquel da Silveira *
* Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2020
  • Aceito
    14 Jun 2021
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