Acessibilidade / Reportar erro

REESTRUTURAÇÕES PRODUTIVAS DE CORUMBÁ-MS NA REGIÃO PANTANEIRA

REESTRUTURACIONES PRODUCTIVAS DE CORUMBÁ-MS EN LA REGIÓN DEL PANTANAL

Resumo

É modelar em geografia o argumento de que a irrupção de agenciamentos econômicos ou técnicos significativos impacta o ritmo e o conteúdo das transformações no espaço preexistente onde essas forças incidem e que isso pode ser identificado numa perspectiva temporal de ciclos econômicos. Não se nega essa linha de raciocínio, pois, no caso de Corumbá-MS várias mudanças se processaram ciclicamente; porém, diferente de uma explicação unicausal e de mudanças abruptas, defendemos uma perspectiva socioespacial baseada na ideia de agentes e processos econômicos coexistentes e justapostos. Estes engendram reestruturações produtivas, cujo impacto pode ser sinuoso, e podem se realinhar em novas funções e dinâmicas geoeconômicas já em curso.

Palavras-chave:
Geografia Urbana; Reestruturação Socioespacial; Região Centro-Oeste; Corumbá-MS

Resumen

Es modelar en geografía el argumento de que la erupción de agencias económicas o técnicas significativas impacta el ritmo y contenido de las transformaciones en el espacio preexistente donde estas fuerzas están involucradas y que esto puede ser identificado en una perspectiva temporal de los ciclos económicos. A esta línea de razonamiento no se niega, porque, en el caso de Corumbá-MS, varios cambios fueron procesados cíclicamente, pero, a diferencia de una explicación unicausal y com cambios abruptos, defendemos una perspectiva socio-espacial basada en la idea de agentes y procesos económicos coexistentes yuxtapuestos. Estos engendran reestructuraciones productivas cuyo impacto puede ser sinuoso, y ellas pueden realinearse en nuevas funciones y dinámicas geoeconómicas ya en marcha.

Palabras-clave:
Geografía Urbana; Reestructuración Socioespacial; Región Centro-Oeste de Brasil; Corumbá-MS

Abstract

A fundamental geographical argument is that the irruption of significant economic or technical groupings impacts the rhythm and content of transformations in a preexisting space. These forces affect these spaces and are identified in a temporal perspective of economic cycles. This line of reasoning is undeniable since, in the case of Corumbá-MS, several changes occurred cyclically. Nevertheless, in contrast to a uni-causal explanation and abrupt changes, we defend a socio-spatial perspective based on the idea of coexisting and juxtaposed economic agents and processes, which provoke productive restructuring, whose impact can be sinuous and realign into new functions and ongoing geoeconomic dynamics.

Keywords:
Urban Geography; Socio-Spatial Restructuring; Midwest Region; Corumbá-MS

INTRODUÇÃO

Este trabalho se detém na crítica de duas tendências simplificadoras originadas das sínteses periódicas e cíclicas do desenvolvimento econômico dos lugares. A primeira tendência é pautar tais mudanças a partir de momentos críticos, cíclicos e unifatoriais. E associada a essa primeira tendência, o de ignorar outros agentes e processos produtivos que coexistem no espaço e cujas interações podem redirecionar o desenvolvimento local ou regional.

Aceitamos aqui que as mudanças que se processam nos lugares podem ter fases econômicas e serem cíclicas ao mesmo tempo, quando alternam momentos de crise ou avanços econômicos e estruturais. Porém a tese aqui é que também pode existirem coexistências espaciais quanto a outros processos e agentes, além disso tais mudanças nem sempre são radicais ou abruptas, mas se mostram num processo mais sinuoso e sob múltiplos fatores causais. Em defesa desse argumento, buscou-se de demonstrar a partir de uma análise geohistórica dos processos econômicos que vistos de forma anastomosados contribuíram decisivamente nas reestruturações econômicas do município de Corumbá-MS e a região do Pantanal.

É correto dizer que a explicação das mudanças socioespaciais pela perspectiva dos ciclos econômicos está muito presente nos estudos históricos, econômicos e geográficos. Em geral o que se busca, com essa perspectiva é identificar e determinar a ascensão e declínio de um local/região/país a partir de um motor produtivo decisivo e que elucidaria o curso do desenvolvimento local ou regional.

Não se está invalidando a perspectiva cíclica em sua essência, mas apenas relativizando seu efeito simplificado na compreensão do curso da formação socioespacial dos lugares ao abrir o flanco àqueles circuitos produtivos. Embora muitas vezes ignorados, esses circuitos podem adquirir proeminência e ser os vetores que vão realimentar os processos em declínio e redirecionar a economia local, fato que veremos no caso de Corumbá-MS.

Desse modo, o principal desafio de uma análise socioespacial é ir além de uma descrição sequencial de ciclos histórico-econômicos, mas identificar agentes e processos espaciais coexistentes e que podem estar ligados aos sistemas/circuitos preexistentes e que renovam o ciclo de continuidades e descontinuidades de um lugar.

A primeira parte deste trabalho torna explicita a dimensão teórica que o sustenta, em seguida, são abordados os seguintes aspectos em torno de Corumbá-MS: 1) contexto geoeconômico; 2) ciclos econômicos e produtivos de sua formação socioespacial; 3) como certas atividades como o comércio fluvial decaíram não por um, mas por múltiplos fatores internos e externos; 4) novas reestruturações econômicas determinaram a sustentabilidade econômica e espacial da região pantaneira apesar do refluxo de certos segmentos e circuitos econômicos.

A PERSPECTIVA TEÓRICA DO TRABALHO

Em geral as discussões em torno do desenvolvimento cíclico da economia capitalista decorrem das flutuações econômicas no que diz respeito basicamente para alternância entre duas antípodas de conjuntura econômica e estrutural: uma fase estável/estacionária e outra instável/descontínua.

Um corolário disso é que as formulações teóricas sobre os ciclos econômicos mutatis mutandis, dependem de análises históricas onde a dimensão do tempo é a primordial. Afinal, é no tempo que se poderia demarcar a marcha e as contramarchas da economia, tendo em melhor resolução as mudanças de comportamento e dinâmicas sistêmicas do mercado capitalista.

Isso é bem claro, por exemplo, na concepção clássica de ciclos econômicos em Schumpeter (1982)SCHUMPETER, J. A. Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. São Paulo: Abril Cultural, 1982, em que a análise histórica é central, ainda que ela seja combinada com a análises teóricas e estatísticas (EKERMAN R.; ZERKOWSKI, R, 1984EKERMAN R.; ZERKOWSKI, R. A análise teórica schumpeteriana do ciclo econômico. Revista Brasileira de Economia, v.38, n.3, p.205-228, 1984.).

Outro aspecto essencial comum nas teorias de ciclos econômicos são as demarcações de intervalos que se sucedem ou se justapõe entre uma fase estacionária/depressão e outro período de prosperidade/crescimento. Por exemplo, na perspectiva schumpeteriana há duas fases básicas (recessão/inovação) que correspondem a ciclos médios e longos, e no interior deles ou entre uma fase e outra, ciclos pequenos como as postuladas por Juglar1 1 Joseph-Clément Juglar foi o pioneiro na compreensão da periodicidade das flutuações ou ondaseconômicas a partir de dados estatísticos. Seu trabalho se direciona para ciclos menores que perfazem em suas descidas e subidas, movimentos de prosperidade, crise, liquidação e recessões. que se caracterizam por quatro fases (prosperidade, crise, liquidação e recessão).

Há ainda as ondas kondratieffs cujos ciclos são longos e se relacionam com momentos de significativas ondas de crise e adaptações da economia capitalista numa escala espacial muito mais ampla.

A crítica é a modelização desse processo em termos apenas temporais, que muitas vezes ignoram diversas interações espaciais, uma vez que esses esquemas e cíclicos do capital apesar de buscarem apresentar um sentido de processo econômico de altos e baixos, dão preferência ao fator tempo, cuja linearidade não corresponde a simultaneidade das trocas e cujas dinâmicas escapam a síntese dos modelos (LOBATO, 2006).

Essa crítica não nega a empiricidade das ondas e flutuações econômicas que podem ser reconhecidas em diferentes e justapostos tempos (curto, médio e longo prazo).

A questão é que se no tempo há a identificação de marchas/contramarchas no desenvolvimento sistêmico de um mercado (seja qual for sua escala geográfica) é no espaço que vai se tornar apreensível o conteúdo e estruturações dessas flutuações em termos de agentes, interações espaciais e processos.

E a tese que buscamos demonstrar é que ao se analisar historicamente o desenvolvimento local, no caso Corumbá-MS, pode-se acompanhar processos produtivos que intrinsicamente denotavam problemas estruturais e juntos com eventos externos precipitaram mudanças cíclicas na economia local. Porém, sob uma paisagem de simultaneidade que revelam que essas mudanças cíclicas se desdobraram sob diversas interações produtivas e que resultaram em mudanças mais sinuosas e complexas.

No que tange ao foco socioespacial desse trabalho, vamos discutir as fases e ciclos de mudanças do espaço corumbaense a partir de três concepções espaciais essenciais. A primeira é o da produção do espaço, a segunda é a reestruturação espacial produtiva e a terceira diz respeito ao entendimento do espaço no âmbito das sincronicidades e simultaneidades espaciais.

A primeira concepção decorre da ideia de produção do espaço como uma diversidade de agentes/agenciamentos constituindo espaços sociais de diversas formas, conteúdos e estruturas espaciais. São espaços em reestruturações e justaposições permanentes devido a um quadro de forças produtivas, conjunturas históricas e culturais dinâmicas e não raro com diversas contradições (LEFEBVRE, 2013LEFEBVRE, H. La producción del espacio. Trad e Introdução Emilio Martinez Gutiérrez. Madrid: Editora Capitain Swing (Col. Entrelíneas), [1974] 2013.).

Já a noção de reestruturação espacial produtiva2 2 Embora o foco aqui seja mais na escala local/regional na concepção de Edward Soja (1993), areestruturação espacial e produtiva sempre está ligada num plano maior às mudanças produtivas do capitalismo. deriva da produção social, mas aqui o foco está em reconhecer os processos multifatoriais que dão sentido às mudanças no espaço. São processos e fatores econômicos, políticos etc. que inserem no espaço novas trajetórias ao seu desenvolvimento, embora não estejam totalmente deslindados de processos pretéritos ou das rugosidades (SANTOS, 2006SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4.a. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.). Em outras palavras, são circuitos e fluxos que se fundem ou se anastomosam estabelecendo novas dinâmicas sociais e econômicas no espaço.

A terceira concepção acentua a dimensão temporal das mudanças no e pelo espaço. As teorias ou formulações socioespaciais, como em Henri Lefebvre, Milton Santos, Doreen Massey, sempre destacaram a espacialização do tempo num quadro de sincronicidades e simultaneidades de agentes e processos.

Elas diferem bastante das abordagens que veem as mudanças espaciais apenas numa perspectiva linear, unicentrada e sequenciada temporalmente, que acaba encapsulando as diversas narrativas numa única temporalidade e escala geográfica (MASSEY, 2008MASSEY, D. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.).

De forma oposta a essa linearidade, autores como Lefebvre (2013)LEFEBVRE, H. La producción del espacio. Trad e Introdução Emilio Martinez Gutiérrez. Madrid: Editora Capitain Swing (Col. Entrelíneas), [1974] 2013. e Santos (2006)SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4.a. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. destacam que as mudanças no espaço são regidas não apenas por um evento espacial, mas por diversos eventos ou tempos desiguais, uns mais antigos e outros mais recentes, que se justapõem no território. Ainda que haja inicialmente assincronia de suas dinâmicas e circuitos, eles podem confluir e determinar o curso de desenvolvimento local ou regional.

É com essas três assunções que podemos falar de reestruturação espacial como um momento emergente de forças, agentes e circuitos econômicos que coexistem e que podem adquirir proeminência econômica ou funcional em face de novas conjunturas geoeconômicas (fatores internos e/ou externos).

Essas formulações teóricas serão utilizadas para jogar luz no processo da formação social e econômica de Corumbá e também nos possibilitam desenvolver uma geografia múltipla em termos de desdobramentos, agentes e relações interespaciais.

CONTEXTO GEOECONÔMICO DA REGIÃO CORUMBAENSE

Corumbá-MS está numa posição geográfica importante no território brasileiro, situada no centro geográfico da América do Sul. Isto a coloca em várias condições geopolíticas e geoeconômicas, entre elas a navegação na Bacia Platina, as trocas e o comércio transfronteiriço e ser parte da rota entre Atlântico e Pacífico.

Sua população atual é de aproximadamente 112 mil habitantes3 3 Informação gerada em IBGE pelo site institucional: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/ms/corumba.html Acesso em 10/3/2021. e está num ritmo de crescimento demográfico contínuo, embora, seja relevante o fato da cidade viver constantes interfluxos populacionais na fronteira, uma vez que a cidade recebe migrantes de diversas nacionalidades (bolivianos, paraguaios, haitianos, venezuelanos e outras), isso confere uma flutuação da sua população e ao mesmo tempo um componente de forte sociodiversidade na cidade.

Um aspecto relevante é a extensão do seu território: o município é o 11º em extensão territorial entre os municípios brasileiros, fato que faz com que represente 44% do território do pantanal sul-mato-grossense (ABDON; SILVA, 1998ABDON, M. M ; SILVA, J. S. Delimitação do Pantanal Brasileiro e suas sub-regiões. Pesquisa Agropecuária Brasileira, v. 33, n. 10 Número Especial, p. 1703-1711, out. 1998. Disponível em: .). Corumbá também incorpora distritos urbanos, extensa área rural, populações ribeirinhas, comunidades indígenas quilombolas e áreas de mineração. Sua hinterlândia ainda abrange um enclave geográfico que é a cidade de Ladário e as vizinhas cidades bolivianas de Puerto Quijarro e Puerto Suarez.

Por agregar uma estrutura econômica e institucional relevante nessa região geográfica, Corumbá exerce uma centralidade urbana na região do pantanal sul e na fronteira com a Bolívia. Centralidade que se vale de um arco de serviços públicos, como universidade, hospitais, atividades administrativas, jurídicas e militares, e particulares, além de concentrar um comércio tradicional significativo na região. Outro aspecto que fortalece sua centralidade são as atividades econômicas de médio e grande porte estrutural, como as portuárias e extrativas minerais - setores que se articulam com serviços complementares como transportadoras, oficinas e escritórios.

A cidade também se serve de significativa intermodalidade, com ligações que se dão através da Rodovia Federal 262, que conecta, no sentido Leste-Oeste, o Sudeste e o Centro-Oeste, além do porto fluvial, que liga Norte-Sul, escoando pelo Rio Paraguai minérios extraídos no próprio município e parte da produção de grãos de outras regiões do Estado, que aproveitam a navegabilidade do Rio Paraguai e a isenção de impostos para exportação.

Ainda que Corumbá seja um espaço periférico e fornecedor de comanditeis, o que esta breve contextualização geoeconômica e geográfica mostra é que a cidade de Corumbá, longe de algum isolamento, em realidade não apenas participa dos efeitos do crescimento econômico e estrutural sul-mato-grossense como também desenvolve escalas de trocas além do espaço centro-oestino.

Continuaremos abordando como as reestruturações funcionais e econômicas que apesar dos altos e baixos de alguns setores econômicos não determinaram a interrupção do desenvolvimento de Corumbá-MS no tempo longo.

O ARGUMENTO CÍCLICO E LINEAR DO PROGRESSO E DA DECADÊNCIA DE CORUMBÁ-MS

No que tange esse estudo de caso, o principal argumento em torno da perspectiva cíclica é que a cidade de Corumbá perdeu os rumos do seu progresso local e regional com a decadência portuária, cujo ciclo de prosperidade foi interrompido, sobretudo, pela implantação da Ferrovia Noroeste do Brasil nos anos de 1910 e com sua ligação ao sudeste brasileiro, esse é um caso que se enquadra na concepção schumpeteriana de quando um ciclo interrompido não decorre de causas interiores, mas por fatores externos.

Para compreender este argumento, precisamos fazer uma reconstrução geohistórica desse processo cíclico. Comecemos pela fundação do povoamento corumbaense4 4 Primeiro com o Forte Coimbra em 1775 e depois com o povoado de Albuquerque em 1778,que daria origem ao distrito de Corumbá. , a partir do Império na segunda metade do século XVIII: o povoamento visava consolidar o domínio territorial no extremo centro-oeste a fim de assegurar a continuidade da produção aurífera na região cuiabana e afastar qualquer ameaça externa (QUEIROZ, 2009QUEIROZ, P. R. C. A navegação na bacia do Paraná e a integração do antigo sul de Mato Grosso ao mercado nacional. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, p. 1-31, 2009.). Portanto, desde o início, Corumbá teve um papel geopolítico importante como núcleo de defesa e na consolidação do limite territorial com a Bolívia e Paraguai.

Mas foi a liberação do comércio fluvial no Rio Paraguai em 1856 - após diversas negociações entre os países platinos - que determinou de modo significativo o curso de desenvolvimento geoeconômico tanto de Corumbá como da região mato-grossense nesse período (QUEIROZ, 2009QUEIROZ, P. R. C. A navegação na bacia do Paraná e a integração do antigo sul de Mato Grosso ao mercado nacional. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, p. 1-31, 2009.). Corumbá, então, se tornava uma porta de entrada fluvial, conectando a longínqua região mato-grossense com cidades da Bacia Platina e cidades litorâneas brasileiras (VALVERDE, 1972VALVERDE, O. Fundamentos geográficos do planejamento rural do município de Corumbá. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 34, n. 1, jan./mar. 1972.; QUEIROZ, 2009QUEIROZ, P. R. C. A navegação na bacia do Paraná e a integração do antigo sul de Mato Grosso ao mercado nacional. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, p. 1-31, 2009.).

Contudo, a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1864-1870) acabou interrompendo esse nascente comércio, que foi retomado após o fim do conflito. Foi nesse período da retomada da navegação que o núcleo urbano corumbaense começou de fato a experimentar os efeitos da abertura comercial extrarregional. A cidade se tornava um centro comercial significativo na economia mato-grossense e na ligação com cidades platinas.

Todavia, esse desenvolvimento comercial de Corumbá também se deveu às intervenções do governo imperial, como isenções de impostos de importação, e aos investimentos que aumentaram o contingente militar na cidade e a construção de estruturas militares (QUEIROZ, 2009QUEIROZ, P. R. C. A navegação na bacia do Paraná e a integração do antigo sul de Mato Grosso ao mercado nacional. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, p. 1-31, 2009.). Esses fatores tiveram peso também no povoamento, pois aumentaram o consumo interno e comércio na cidade. Seja como for, uma nova geometria espacial na região mato-grossense tomava forma à medida que Corumbá se firmava como principal porta de entrada fluvial para o Centro-Oeste.

Essa geometria espacial5 5 Esse termo que se origina de Doreen Massey (2000 ; 2007) ao se referir as trocas econômicascujas interações espaciais ou poder são assimétricas entre agentes e/ou locais, em que novos trajetos ou caminhos geram avanço/decadência de lugares que perdem/ganham importância econômica nessa nova geometria de comércio e poder no espaço, aliás essa é uma discussão presente também em Raffestin no clássico “Por uma Geografia do Poder” baseava-se no encurtamento temporal6 6 De seis meses de viagem pela rota terrestre para um ou dois meses com a navegação fluvialtendo como referências a distância entre Cuiabá às cidades do litoral sudeste (SOUZA, 2008). (até porque a distância física era maior pelas vias fluviais do que pelas terrestres) da ligação do sertão oestino com os centros econômicos do sudeste e sul do país, bem como da dos portos platinos, como Buenos Aires e Montevidéu. Corumbá passou, assim, a ser um polo urbano intermediário entre Cuiabá - capital da província - e centros urbanos litorâneos no Brasil, na Bacia Platina e na Europa.

A importação de bens de consumo manufaturados europeus eram os principais produtos comercializados entre Cuiabá e Corumbá7 7 São diversas mercadorias, como bem destaca Xavier (2006) como o cimento inglês, o vinhoportuguês, refinados tecidos franceses, máquinas pesadas para a indústria, ferragens, móveis, utilidades domésticas, tecidos, artigos de luxo, bebidas finas, sal, cristais e porcelanas ou novidades da moda. , já que a região não os produzia e dependia das demoradas e exaustivas vias terrestres pelo interior (MAMIGONIAN, 1986MAMIGONIAN, A. Inserção de Mato Grosso ao mercado mundial e a gênese de Corumbá. Geosul, n.1, 1986., SOUZA, 2008SOUZA, J. C. Sertão cosmopolita: tensões da modernidade de Corumbá (1872-1918). São Paulo: Alameda, 2008.; FREITAS, 2017FREITAS, E. P. Corumbá (MS) e as metamorfoses nas políticas brasileiras de ordenamento territorial e seus impactos na região de fronteira Brasil-Bolívia. Geofronter, v. 1, n. 4, p. 16-29, 2017.). A navegação de Corumbá para Cuiabá era realizada por embarcações de menor porte, que, também por outras conexões fluviais, chegavam aos portos de Miranda e Aquidauana. Essas cidades, por sua vez, prolongavam o comércio de manufaturados pelos caminhos terrestres para os campos de vacaria (próximos a Campo Grande) e o Vale do Parnaíba, regiões mais a leste de Mato Grosso (QUEIROZ, 2009QUEIROZ, P. R. C. A navegação na bacia do Paraná e a integração do antigo sul de Mato Grosso ao mercado nacional. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, p. 1-31, 2009.).

Em termos de simultaneidades no espaço é preciso dizer que esse período de comércio fluvial coexistiu com a reativação da pecuária no Pantanal após a guerra contra o Paraguai, inclusive com o aproveitamento do rebanho para a produção e exportação de charque, caldo e extrato de carne, embora sob uma maior concentração fundiária no pantanal (ITO, 2000ITO, C. A. Corumbá: O Espaço da Cidade Através dos Tempos. Campo Grande - MS: UFMS, 2000.; CONTE, 2018CONTE, C. H. A formação socioespacial de Corumbá e a atividade pecuária. Caderno de Geografia, v. 28, n. 53, p. 510-530, 2018.).

Vejamos que enquanto o comércio fluvial se descava na cidade, a reativação da pecuária na região também deu com a entrada do capital estrangeiro, sobretudo de comerciantes e estancieiros platinos, que, com créditos disponibilizados por seus países de origem e apoio do capital inglês, podiam efetivamente investir na produção de extrato de carne, couro e charqueadas.

Outro circuito que paralelamente se destacava no espaço pantaneiro e de Corumbá, com impactos sucessivos no comércio com a região platina e com investimento estrangeiro foi o da erva-mate sul-mato-grossense, que passou a concorrer com a erva-mate platina e a sulista brasileira (QUEIROZ, 2009QUEIROZ, P. R. C. A navegação na bacia do Paraná e a integração do antigo sul de Mato Grosso ao mercado nacional. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, p. 1-31, 2009.; FREITAS, 2017FREITAS, E. P. Corumbá (MS) e as metamorfoses nas políticas brasileiras de ordenamento territorial e seus impactos na região de fronteira Brasil-Bolívia. Geofronter, v. 1, n. 4, p. 16-29, 2017.).

Contudo, essa estrangeirização na região pantaneira atraiu a preocupação do Império brasileiro, que aumentou ainda mais com as crescentes compras de lotes de terras na região, com o domínio portenho da circulação fluvial do Rio Paraguai e com a fixação de argentinos e uruguaios no controle da produção de charques na região Oeste de Mato Grosso.

Todos esses fatores acabaram por precipitar a reação do Império brasileiro, que reorganizou a geopolítica da região (QUEIROZ, 2009QUEIROZ, P. R. C. A navegação na bacia do Paraná e a integração do antigo sul de Mato Grosso ao mercado nacional. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, p. 1-31, 2009.) assegurando maior presença do Estado brasileiro na bacia platina e aumentou o controle da navegação e os subsídios para as empresas mercantes, que passaram a ter o monopólio da navegação. Em realidade a economia pantaneira e platina estava sob interferência do Estado, o que constitui um fator interno bastante relevante no ciclo econômico da região.

O fato é que, de um centro urbano remoto e desligado dos grandes centros, Corumbá, durante esse período do comércio fluvial, adquiriu status regional de maior destaque e de maior integração que em períodos anteriores. Isso se refletiu na vida urbana, que vivia uma atmosfera relativamente cosmopolita graças a várias iniciativas culturais, como o surgimento de uma imprensa local, clubes esportivos e salões de festas usufruídos pelo segmento comercial e rural local (SOUZA,2008SOUZA, J. C. Sertão cosmopolita: tensões da modernidade de Corumbá (1872-1918). São Paulo: Alameda, 2008.).

Do império para a república, o Estado brasileiro interveio em prol de maior cooperação com os países platinos da Bolívia e Paraguai. Isso gerou novas iniciativas na região, sobretudo, com a chegada da Ferrovia Noroeste do Brasil no início do século XX, conectando o Sudeste à região Oeste do país. Isso acabou definindo uma nova geometria espacial no Centro-oeste. Ela possibilitava o acesso desses países platinos ao Atlântico e fortaleceu a expansão da economia regional do Sudeste brasileiro, que expandiu seu mercado consumidor e aumentou seu alcance a matérias-primas.

Com efeito, a Ferrovia Noroeste do Brasil não apenas abre um novo caminho para o Sudeste brasileiro, que dessa forma se torna mais uma porta de entrada para o Centro-Oeste, favorece o desenvolvimento econômico de vários núcleos urbanos ao longo desse eixo, como foi o caso da cidade Campo Grande.

Um argumento bastante ressaltado é que o eixo ferroviário da Noroeste do Brasil foi determinante pela decadência comercial e fluvial de Corumbá (REYNALDO, 2007REYNALDO, N. I. Comércio e navegação no rio Paraguai (1870-1940). In. XI Jornadas Interescuelas/Departamentos de História. Departamento de História. Facultad de Filosofía y Letras. Universidad de Tucumán, 19 a 22 de setembro de 2007, Tucumán, 2007. Disponível em: https://www.aacademica.org/000-108/81.pdf Acesso em 23/04/2020.
https://www.aacademica.org/000-108/81.pd...
; MAMIGONIAN, 1986MAMIGONIAN, A. Inserção de Mato Grosso ao mercado mundial e a gênese de Corumbá. Geosul, n.1, 1986.), uma vez que a ferrovia teria freado o ritmo de crescimento regional ascendente de Corumbá com o deslocamento do eixo geoeconômico platino para o sudeste brasileiro, barrando a projeção urbana e regional de Corumbá no Centro-Oeste. Desse modo, haveria um antes e depois da ferrovia na história de Corumbá quanto à identificação de um ciclo de apogeu e decadência.

Em contrapartida a essa tese, defendemos que, no caso de Corumbá, a cidade não parou ou entrou em decadência. Há de fato a mudança da geometria espacial e econômica da região com a chegada da ferrovia, mas existem outros fatores que veremos a seguir que implicaram novas reestruturações econômicas na cidade e região. Reestruturações baseadas em circuitos ou outros setores produtivos paralelos no espaço, que se redefiniam e que até reacenderam setores anteriormente decadentes, processo que chamaremos de reestruturações espaciais produtivas.

O que está em jogo aqui é que o ciclo de comércio importador portuário que vivia Corumbá foi um ciclo que se justapunha paralelamente a outros processos produtivos emergentes, como vimos com os circuitos da pecuária e erva-mate. Circuitos que sustentariam novos ciclos econômicos. Ademais, eram atividades ligadas a uma divisão territorial do trabalho relativamente diversificada (importação de mercadorias, exportação de minérios, mercado de carne bovina).

Outro flanco de discussão, e que veremos à frente, é que o ciclo das atividades comerciais portuárias no Rio Paraguai na segunda metade do século XIX não se encerrou de modo abrupto. Diferente disso, as atividades portuárias sofreram redefinições econômicas e funcionais sob a dinâmica de outros segmentos produtivos e que deram sustentabilidade econômica e urbana para a cidade, tal como se sucedeu com a emergência das atividades extrativas minerais e a consequente refuncionalização portuária (figura 1):

Figura 1
Comércio portuário de Corumbá e Ladário entre 1800 - 1970.

O MODELO DE COMÉRCIO FLUVIAL PLATINO E SEU IMPACTO EM CORUMBÁ

Quando se diz “o ciclo comercial portuário de Corumbá sofreu decadência”, temos de compreender logo de início que se está fazendo referência a um ciclo que perfaz um arco de várias décadas. Nesse grande arco temporal, Corumbá conseguiu intermediar um circuito de trocas numa grande escala de alcance, atingindo a Bacia Platina e centro urbanos brasileiros importantes, como Rio de Janeiro e Santos (MAMIGONIAN, 1986MAMIGONIAN, A. Inserção de Mato Grosso ao mercado mundial e a gênese de Corumbá. Geosul, n.1, 1986.), mas foi também um desenvolvimento que se deu sob diversas continuidades e descontinuidades, ou seja, ciclos intermediários.

O ciclo do comércio fluvial foi dos anos de 1850, quando Corumbá foi habilitada por decreto imperial, ao livre trânsito de embarcações nacionais e estrangeiras pelo Rio Paraguai, passando pela paralização devido à Guerra do Paraguai e outros eventos de altos e baixos que ocorreram no século XX indo até a década de 1940, quando esse modelo comercial chegou ao esgotamento.

É necessário articular muitos fatores e situações que atuaram de forma conjuntural para explicar a crise do comércio pela navegação fluvial em Corumbá no começo do século XX e que a precipitaram, sendo que a entrada da ferrovia não é um desses fatores.

Um desses fatores se deu com o próprio declínio das importações de mercadorias da Europa e dos países platinos que chegavam até Cuiabá pela hidrovia. Esse declínio derivou de diversas circunstâncias políticas e econômicas externas, como o período da Primeira Grande Guerra, mas, sobretudo, nos anos de depressão econômica, que diminuíram sensivelmente os fluxos de mercadorias e capitais em diversas partes do mundo (CORRÊA, 1999CORRÊA, L.S. História e fronteira: o Sul de Mato Grosso, 1870-1920. Campo Grande: Ed. UCDB, 1999.; QUEIROZ, 2009QUEIROZ, P. R. C. A navegação na bacia do Paraná e a integração do antigo sul de Mato Grosso ao mercado nacional. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, p. 1-31, 2009.).

Afora o peso dessas duas grandes conjunturas, temos ainda os problemas decorrentes de fatores internos que, no caso da navegação comercial de Corumbá, já eram crônicos e anteriores aos anos de 1900. Os mais comuns eram manter a própria estrutura portuária e fluvial. Havia na verdade uma constante dificuldade e deficiência na manutenção dos portos e sistemas alfandegários por parte do Estado brasileiro, o que limitava a própria captação de recursos e prejudicava a fluidez desse comércio fluvial. Além disso, a própria navegação do Rio Paraguai e alguns dos seus afluentes exigia grandes somas de recursos, como para os serviços de dragagens.

A grande distância geográfica entre a capital do Rio de Janeiro e a região corumbaense era outro fator a ser considerado, uma vez que havia demora tanto dos diagnósticos dos problemas como das decisões para solucioná-los, sem contar que estamos falando de uma área de enorme extensão geográfica e ainda com poucos núcleos urbanos para favorecer uma logística mais sustentável e eficiente.

Pesou também a transição do Império para a República, pois foi uma transição tumultuada, que na região centro-oestina era atravessada por ásperas disputas políticas locais. Esse contexto enfraquecia as tomadas de decisões do Estado na melhoria das estruturas portuárias e de navegação.

Diante da dificuldade estatal para gerir a navegação fluvial, a solução em parte encontrada pelo Estado brasileiro foi concessionar empresas privadas. Contudo, esta alternativa também não conseguiu resolver os problemas e gerar uma sustentabilidade mais consistente do comércio fluvial.

Um exemplo disso eram as subvenções à Cia. Lloyd Brazileiro, que era uma das companhias que tinha a concessão para transportar mercadorias e passageiros pelo Rio Paraguai. Essas subvenções e/ou isenções concedidas visavam ser a garantia do serviço prestado e da manutenção da comunicação de Corumbá com os portos platinos e nacionais. Todavia, a empresa era frequente alvo de constantes reclamações de usuários e comerciantes locais quanto à qualidade de seus serviços prestados (REYNALDO, 2007REYNALDO, N. I. Comércio e navegação no rio Paraguai (1870-1940). In. XI Jornadas Interescuelas/Departamentos de História. Departamento de História. Facultad de Filosofía y Letras. Universidad de Tucumán, 19 a 22 de setembro de 2007, Tucumán, 2007. Disponível em: https://www.aacademica.org/000-108/81.pdf Acesso em 23/04/2020.
https://www.aacademica.org/000-108/81.pd...
).

Essas reclamações abrangiam problemas de encalhe de navios, demora para a chegada de mercadorias, que, em decorrência disso, estragavam. As tarifas eram elevadas, o que encarecia as mercadorias e desestimulava seu comércio. A própria precariedade do porto e das embarcações colocava em risco a própria segurança de passageiros, além de muitas vezes carregar produtos além da sua capacidade de carga.

Havia ainda os desvios quase forçados para portos platinos que os navios que partiam da Europa ou Brasil faziam para pagamentos de tarifas, às vezes abusiva, o que tornava mais caros os fretamentos e estimulava o contrabando e a sonegação nos portos brasileiros (REYNALDO, 2007REYNALDO, N. I. Comércio e navegação no rio Paraguai (1870-1940). In. XI Jornadas Interescuelas/Departamentos de História. Departamento de História. Facultad de Filosofía y Letras. Universidad de Tucumán, 19 a 22 de setembro de 2007, Tucumán, 2007. Disponível em: https://www.aacademica.org/000-108/81.pdf Acesso em 23/04/2020.
https://www.aacademica.org/000-108/81.pd...
).

E, por fim, as próprias condições naturais (hídricas e fluviais) afetavam sensivelmente o comércio fluvial, como nos longos períodos de diminuição do volume dos rios pantaneiros, o que atrasava ou impedia a navegação, sobretudo no eixo Corumbá-Cuiabá (REYNALDO, 2007REYNALDO, N. I. Comércio e navegação no rio Paraguai (1870-1940). In. XI Jornadas Interescuelas/Departamentos de História. Departamento de História. Facultad de Filosofía y Letras. Universidad de Tucumán, 19 a 22 de setembro de 2007, Tucumán, 2007. Disponível em: https://www.aacademica.org/000-108/81.pdf Acesso em 23/04/2020.
https://www.aacademica.org/000-108/81.pd...
).

Portanto, o que se pode depreender era que o fluxo das transações comerciais se mantinha, mas com sérios e profundos problemas conjunturais e crônicos de infraestrutura portuária e de navegação.

As fragilidades estruturais e de gestão não significam que o comércio portuário que ligava Corumbá à Cuiabá não era lucrativo; ao contrário, geravam uma significativa afluência mercantil, tanto que em Corumbá houve um vivo comércio com instalação de casas bancárias importantes, hotéis e restaurantes refinados (SOUZA, 2008SOUZA, J. C. Sertão cosmopolita: tensões da modernidade de Corumbá (1872-1918). São Paulo: Alameda, 2008.).

Mas é preciso também destacar que esse comércio internacionalizado e importador (QUEIROZ, 2009QUEIROZ, P. R. C. A navegação na bacia do Paraná e a integração do antigo sul de Mato Grosso ao mercado nacional. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, p. 1-31, 2009.) estava predominantemente nas mãos de alguns comerciantes bem capitalizados: uma burguesia mercantil composta muitas vezes por estrangeiros e migrados para a cidade já com significativas reservas de capital para investimento (CORRÊA, 1985CORRÊA, L. S. Corumbá: o comércio e o casario do porto (1870-1920) In: Casario do porto de Corumbá. Campo Grande: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 1985. p.23-57; LAMOSO, 2001LAMOSO, L, P. A exploração de minério de ferro no Brasil e no Mato Grosso do Sul. 2001. Tese (Doutorado em Geografia) - Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Universidade de São Paulo, São Paulo.; XAVIER, 2006XAVIER, L. O. F. Oeste Brasileira: entre o contraste e a integração. 2006. Tese de Doutorado (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, Brasília.; QUEIROZ, 2009QUEIROZ, P. R. C. A navegação na bacia do Paraná e a integração do antigo sul de Mato Grosso ao mercado nacional. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, p. 1-31, 2009.). Portanto, uma fração da classe comercial em Corumbá efetivamente aproveitou essa afluência econômica. Veremos agora de que forma a ferrovia entrou em cena na reestruturação econômica de Corumbá e região mato-grossense.

O PAPEL DA FERROVIA NO REORDENAMENTO ECONÔMICO DO PANTANAL

A Ferrovia Noroeste do Brasil foi inaugurada em 1914 e permitiu a ligação ferroviária do Centro-Oeste para o Centro-Sul brasileiro, que, por sua vez, constituiu um eixo gerador de crescimento econômico e demográfico entre Três Lagoas e Porto Esperança no território sul-mato-grossense9 9 Contudo, ainda não havia ainda desmembramento territorial entre Mato Grosso e Mato Grossodo Sul, o que ocorreu em 1977. .

Com efeito, longe de limitar o crescimento de Corumbá, a ferrovia trouxe tantos benefícios para Corumbá quanto as atividades portuárias, pois esse caminho terrestre abria de vez uma conexão direta e fluida com o Sudeste brasileiro, região que nesse período já experimentava franco crescimento econômico e mercantil, sobretudo com a emergência de São Paulo, cujo crescimento era impulsionado pela lavoura cafeeira e uma maquinofatura nascente.

É importante ressaltar que o desenvolvimento diferencial do Sudeste brasileiro sempre esteve vinculado geograficamente com o sertão centro-oestino. Cidades como Cuiabá, Cáceres e outras cidades mato-grossenses desde suas origens tinham uma orientação geoeconômica com Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo10 10 Processo que se originava do movimento monçoeiro, que eram expedições de bandeirantespara o sertão oestino entre os séculos XVIII e XIX. Expedições que se davam sobretudo pelos rios e que tinham o objetivo de escravizar indígenas e explorar auríferas. , ou seja, havia uma conexão com o Sudeste via rotas terrestres paralelas e até anterior às atividades de navegação comercial com a porta de entrada em Corumbá.

A chegada da ferrovia no início do século XX apenas rearticulou numa intensidade muito maior o fluxo de pessoas, mercadorias e comércio com a região Sudeste, com destaque para a pecuária, que, no caso da região corumbaense, concentrava grandes rebanhos (SILVESTRE, 2014SILVESTRE, E. A. A pecuária como determinante econômico da ocupação de campo grande, Mato Grosso do Sul: 1870 a 1929. Revista de história, v. 6, n. 12, p. 31-53, 2014.) e que, antes da fase portuária e durante a mesma, já era produtora de produtos primários, como carne e couro para outras regiões via as estradas boiadeiras.

Com efeito, a ferrovia reordenou o setor pecuário pantaneiro, que já existia e buscava melhores condições competitivas (CONTE, 2018CONTE, C. H. A formação socioespacial de Corumbá e a atividade pecuária. Caderno de Geografia, v. 28, n. 53, p. 510-530, 2018.). Ademais, é preciso acrescentar que este reordenamento da pecuária não foi tão radical, mas um processo de marchas e contramarchas, até mesmo porque a plena ligação ferroviária com Corumbá somente se efetivaria em 1952.

Portanto, a ferrovia foi essencial para a reestruturação econômica e funcional de Corumbá ao atrelar parte da economia pantaneira ao mercado consumidor que mais crescia no país. Pode-se compreender, assim, que Corumbá vivia economicamente entre diferentes centros gravitacionais ao longo de seu curso histórico, estando em primeiro plano ora a Bacia do Prata, ora o Sudeste brasileiro.

Vamos demonstrar a seguir que, além dos ciclos econômicos de setores produtivos se justaporem no espaço geográfico corumbaense, isso ocorreu de modo anastomosado, isto é, seus tempos e durações não ocorreram como descontinuidades abruptas e radicais: foram sinuosas e até se realinharam em novas funções e dinâmicas geoeconômicas já em curso.

AS CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES PRODUTIVAS DO ESPAÇO CORUMBAENSE

Podemos agora apresentar num panorama mais congruente as continuidades e descontinuidades dos ciclos econômicos, porém numa perspectiva mais conjuntural e sinuosa em termos de reestruturações que deram sustentabilidade à geoeconomia corumbaense e pantaneira ao longo de todo o século XX.

Em termos de conjuntura, o primeiro ponto a considerar é o que se depreende de Lefebvre (2013)LEFEBVRE, H. La producción del espacio. Trad e Introdução Emilio Martinez Gutiérrez. Madrid: Editora Capitain Swing (Col. Entrelíneas), [1974] 2013.: uma produção do espaço constituída de diversas forças e justaposições de práticas espaciais e econômicas cuja interconexão e dinâmicas alcançaram escalas maiores com o capitalismo. Esse processo espacial e econômico emerge com a industrialização, que intensificou a rede de trocas e passou a englobar espaços (mercados) cada vez mais amplos e distantes.

Neste processo de expansão capitalista que se origina dos grandes centros europeus é que se incorporam perifericamente a Bacia Platina e o Centro-Oeste brasileiro tanto como exportadores de matérias-primas quanto como importadores de mercadorias manufaturadas desses grandes centros econômicos.

É nesse contexto que se deve dizer que a região corumbaense não vivia tão somente do comércio de mercadorias importadas. Nesse período, a navegação fluvial e as rotas terrestres serviam à exportação de variados produtos do pantanal, como o gado bovino de corte, a extração de sal, a poaia11 11 Tubérculo de uso medicinal bastante requisitado pelo mercado europeu; um dos primeirosprodutos extrativos da província de Mato Grosso, cujo comércio se destacou a partir da segunda metade do século XIX. , o cultivo da erva-mate e o extrato de carne, exportados para os países platinos e região sudeste (QUEIROZ, 2009QUEIROZ, P. R. C. A navegação na bacia do Paraná e a integração do antigo sul de Mato Grosso ao mercado nacional. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, p. 1-31, 2009.).

É nesse quadro que desde os anos de 1870 Corumbá e sua hinterlândia pantaneira se ajustaram perifericamente. Por isso, pode-se dizer que Corumbá não viveu tão-somente um dinamismo econômico local e endógeno, mas regional e exógeno, pois estava inserida numa geometria econômica transnacional, sendo a cidade e o Centro-Oeste parte dela.

O segundo ponto é avaliar o que representou essa dimensão de mudanças na geoeconomia mato-grossense desse período em que se destacou o comércio fluvial e se inseriu Corumbá. A esse respeito, autores como Medrano (1989)MEDRANO, L. I. Z. A livre navegação dos rios Paraná e Uruguay: uma análise do comércio entre o Império brasileiro e a Argentina (1852-1889). 1989. Tese (Doutorado em História), USP, São Paulo. e Queiroz (2009)QUEIROZ, P. R. C. A navegação na bacia do Paraná e a integração do antigo sul de Mato Grosso ao mercado nacional. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, p. 1-31, 2009. chamam a atenção para a superestimação desse período, pois em realidade foi um processo mais modesto em termos urbanos, demográficos12 12 Num espaço temporal de quatro décadas (anos de 1870 aos anos de 1910) a população seelevou de 6 mil para aproximadamente 15 mil habitantes, já no auge do comércio importador. e econômicos do que costuma ser apresentado.

É fato que o período comercial da navegação fluvial não chegou a desencadear uma guinada na cadeia produtiva mato-grossense nem provocou uma inserção mais robusta e concorrencial com outras regiões brasileiras no período entre os séculos XIX e XX. Apesar de uma maior circulação comercial de produtos manufaturados na região, isso não teve um impacto significativo em outros setores econômicos, como pecuária e agricultura.

Na prática, era uma economia muito dependente dos gastos públicos e isenções de impostos à importação, que de fato alimentava o comércio, mas não beneficiava a exportação, pois esta sofria altas tributações (XAVIER, 2006XAVIER, L. O. F. Oeste Brasileira: entre o contraste e a integração. 2006. Tese de Doutorado (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, Brasília.; QUEIROZ, 2009QUEIROZ, P. R. C. A navegação na bacia do Paraná e a integração do antigo sul de Mato Grosso ao mercado nacional. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, p. 1-31, 2009.). Diga-se de passagem, as tributações onerosas ao sistema produtivo acabaram estimulando o contrabando para regiões platinas e brasileiras, como de charque, erva-mate e couro, por rotas terrestres e até mesmo pelo porto corumbaense (XAVIER, 2006XAVIER, L. O. F. Oeste Brasileira: entre o contraste e a integração. 2006. Tese de Doutorado (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, Brasília.).

Outro fator que dificultava a maior pujança da economia centro-oestina era a concorrência com outras regiões do país. Por exemplo, ainda que a região desenvolvesse atividades econômicas que abastecessem outras regiões, como a carne e a erva-mate, é preciso destacar que estas não eram atividades exclusivas do centro-oeste: concorria com menos vantagens comparativas com outras regiões, como o gado mineiro e a erva-mate sulina, que estavam próximas dos grandes mercados consumidores.

Portanto, quando comparamos ou justapomos esse quadro com a escala do espaço econômico brasileiro desse período, o que se evidencia é que a região mato-grossense e Corumbá nela inserida, constituíam na verdade um espaço em gradual integração inter-regional, ou seja, passaram de um isolamento econômico para uma integração com a economia platina e brasileira.

Tudo isso fazia parte daquele processo evidenciado por Milton Santos (1983) de um tímido e lento processo de articulação dos arquipélagos econômicos brasileiros, que antes estavam bastante isolados e ficavam sob quase total controle das demandas do mercado externo.

Portanto, a inserção de Corumbá na geoeconomia local, regional e nacional conquistada com a navegação fluvial não pode ser vista num quadro de uma profunda reestruturação geoeconômica. Isso também não invalida o argumento de que os fluxos de pessoas, mercadorias e serviços decorrentes das atividades comerciais fluviais não tenham sido muito mais significativos em termos de mudança com as fases anteriores.

Porém, mesmo numa escala local, é preciso reiterar que Corumbá não tinha uma dependência produtiva ou comercial exclusiva. O que se costuma ignorar é que outros setores produtivos na região corumbaense e pantaneira também se desenvolviam (erva-mate, carne, mineração, pesca) e se justapunham, chegando a atingir diferentes extratos de sua população e constituindo outros espaços sociais e produtivos na região. Esse fato espacial e econômico é desprezado, mas é justamente o que deu à cidade as condições para continuar seu crescimento, mesmo com a crise comercial fluvial a partir do século XX.

Outro aspecto que favoreceu as reestruturações produtivas foi a intermodalidade de transportes, a começar pelo próprio porto de Corumbá, que se coligou ao Porto Esperança mais a jusante do Rio Paraguai, onde a ferrovia Noroeste já chegava em 1914. Essa coligação favoreceu que Corumbá continuasse atuando na distribuição de mercadorias importadas de outros países, assim como continuasse importando produtos manufaturados da região Sudeste e abastecendo as amplas regiões mato-grossenses (QUEIROZ, 2009QUEIROZ, P. R. C. A navegação na bacia do Paraná e a integração do antigo sul de Mato Grosso ao mercado nacional. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, p. 1-31, 2009.).

Além disso, as atividades comerciais portuárias que entraram em declínio na Grande Depressão Econômica e nas Grandes Guerras encontraram novas refuncionalizações em período posterior, sobretudo nos anos de 1950 e 1960, com o desembarque do trigo vindo da Argentina para os moinhos do Mato Grosso. Além disso, o porto passou a escoar gado de corte pantaneiro por meio de navios currais, que, por sua vez, se interligavam com o transporte ferroviário para os frigoríficos da Região Sudeste (GALEANO, 2006GALEANO, R. D. Transportes de commodities do agronegócio e de minerais na Fronteira Brasil-Bolívia: um estudo sobre a estrutura portuária em Corumbá, Ladário e Puerto Quijarro. 2006. Dissertação (Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande.). Nos anos de 1970, o porto corumbaense, em articulação com a nova Rodovia 262, se tornou também uma das saídas da produção de grãos para o mercado nacional e internacional.

O que se torna nítido é a inversão da predominância do eixo importador para o exportador, isto é, de uma cidade que intermediava a importação de mercadorias entre os mercados europeus e platinos para o norte de Mato Grosso, passou a ser uma cidade portuária que direcionava o escoamento da produção mineral e agropecuária da região para outros mercados num sistema intermodal de transportes.

A atividade mineradora também teve um papel importante nos ciclos posteriores da economia corumbaense, sobretudo a partir dos anos de 195013 13 Nos anos de 1910 já se iniciava de forma significativa com capital belga a mineração pelaCompanhia do Urucum. , quando ela se tornou bastante operante no minério de ferro e manganês, com significativos aportes financeiros de empresas públicas e privadas (HANY, 2005HANY, F. E. S. Corumbá, Pantanal de Mato Grosso do Sul: periferia ou espaço central? 2005. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais). Programa de Pós-Graduação Escola Nacional de Ciências Estatísticas - ENCE/IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Rio de Janeiro.; MATIAS, 2014MATIAS, S. S. Considerações sobre a questão da vulnerabilidade ambiental na cidade de Corumbá-MS. Dourados-MS: Universidade Federal da Grande Dourados. 2014. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Geografia) - Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados, 2014.). Como destacou Lamoso (2012)LAMOSO, L. P. Reflexões sobre a Corumbá do início do século XXI. In: MORETTI, Edvaldo Cesar; BANDUCCI JUNIOR, Álvaro. (Org.). Pantanal: territorialidades, culturas e diversidade. Campo Grande: Editora UFMS, 2012, v. 1, p. 141-171. a mineração é em si uma atividade com seu próprio ciclo de expansão e retração com impactos diretos para geoeconomia local e regional, dinâmica que decorre em grande parte das flutuações de preço e demandas externas.

Nos anos de 1970 a pecuária entrou em crise no Pantanal e vários pecuaristas faliram. Apontam-se duas causas: maior frequência das cheias na região (ISQUIERDO, 2010ISQUIERDO, S. W. G. O Relevo do Sítio Urbano de Corumbá. VI Seminário Latino-Americano de Geografia Física. Universidade de Coimbra, 2010.) e a concorrência com o gado bovino em outras áreas do Centro-Oeste (região de Campo Grande e Goiás). Porém, entrava em cena o turismo como atividade econômica significativa em Corumbá. Ele se consolidou como um setor importante na economia pantaneira desde os anos de 1980 (LAMOSO, 2012LAMOSO, L. P. Reflexões sobre a Corumbá do início do século XXI. In: MORETTI, Edvaldo Cesar; BANDUCCI JUNIOR, Álvaro. (Org.). Pantanal: territorialidades, culturas e diversidade. Campo Grande: Editora UFMS, 2012, v. 1, p. 141-171.) e atuou na reestruturação econômica corumbaense, sobretudo atenuando as crises da pecuária e da retração econômica nos anos de 1980 que atingiram a produção industrial da cidade e seu comércio (BRITO, 2011BRITO, N. M. Mineração e desenvolvimento regional em Corumbá-MS. 2011. Dissertação (Dissertação de Mestrado em Geografia). Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados-MS.).

Na Figura 2 abaixo destacam-se de forma sintética os ciclos e as reestruturações da região corumbaense desde o início do século XX.

Figura 2
Geoeconomia corumbaense no Pantanal Sul.

Atualmente Corumbá é uma cidade multimodal, que articula atividades portuárias, rodoviárias, ferroviárias, além do gasoduto Brasil-Bolívia. Contudo, há também outros indicativos de mudanças em Corumbá e região quanto às dimensões estruturais e societárias, como aumento da população urbana e dos fluxos migratórios transfronteiriços (MANETTA, 2009); expansão do tecido urbano e aumento da periferização na cidade; necessidades prementes para melhoria das ligações comunicacionais e viárias regionais entre os distritos e cidades próximas14 14 Muitas destas informações preliminares emergiram de observações diretas e consulta a jornaisdiários, como Correio Corumbaense e Diário do Pantanal. .

Essas dinâmicas espaciais e socioeconômicas recentes expandem de forma impactante seus efeitos para o bioma do Pantanal e seus sistemas bióticos e abióticos, pois não deixam de ser pressões econômicas e demográficas que se dão de dentro para fora e se associam com aquelas que já se davam de fora para dentro desse geossistema natural15 15 Como é o caso do avanço da cultura de soja e outras agriculturas de larga escala em áreas doperipantanal (bordas do Pantanal), que resultam em desmatamento e perda crescente da cobertura original, colocando em risco esse bioma devido aos processos de assoreamento e alagamento permanente em algumas áreas da planície pantaneira e com impactos na vida econômica e cultural daqueles que lá vivem. .

Todos esses aspectos precisam ser analisados de forma mais sistemática, pois sugerem uma maior densificação econômica e funcional ou uma nova reestruturação geoeconômica em andamento.

CONCLUSÕES

Este trabalho buscou desenvolver uma análise socioespacial numa perspectiva menos radical e linear, levando em conta o conjunto de agenciamentos sociais e econômicos que coexistem no espaço e que engendram reestruturações futuras. Ainda assim, não nega os ciclos econômicos predominantes que vigoram no tempo longo, mas que de forma paralela também coexistem com outras atividades também em curso.

O que se demonstra no caso de Corumbá é que os espaços urbanos, rurais e portuários tinham dinâmicas justapostas e paralelas no âmbito da sua formação socioespacial, embora com ritmos e conteúdos diferenciados. Além disso, nem sempre as mudanças produtivas e econômicas se dão por eventos disruptivos, que cortam totalmente com o ciclo anterior, e sem ligações com ciclos econômicos emergentes. Como vimos no caso de Corumbá, havia outros circuitos econômicos ocorrendo e que foram se redefinindo e até reativaram setores em decadência, como as atividades portuárias da cidade.

Em realidade, Corumbá-MS não parou no passado: seus ciclos econômicos pretéritos se reestruturaram sob lógicas e arranjos produtivos e modais coexistentes. A cidade continuou sustentando crescimento demográfico, econômico e estrutural mesmo durante as crises e descontinuidades do seu setor econômico portuário.

Houve declínio de setores econômicos ao longo da histórica corumbaense e pantanal, mas não declínio da cidade quanto a seu curso de crescimento, ainda que tenha sido um crescimento de certa forma disfuncional, pois também gerou novos problemas e desafios urbanos e ambientais.

Por último, visamos mostrar que o estudo geoeconômico não pode depender apenas de um olhar sequencial e linear dos fatos, mas também de como os fatos e/ou processos espaciais são desdobrados numa geografia de simultaneidades e coexistências e que potencialmente engendram novos rumos e reestruturações socioespaciais.

NOTE

  • 1
    Joseph-Clément Juglar foi o pioneiro na compreensão da periodicidade das flutuações ou ondaseconômicas a partir de dados estatísticos. Seu trabalho se direciona para ciclos menores que perfazem em suas descidas e subidas, movimentos de prosperidade, crise, liquidação e recessões.
  • 2
    Embora o foco aqui seja mais na escala local/regional na concepção de Edward Soja (1993)SOJA, E.W. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social. Trad. Vera Ribeiro. Rev. Bertha Becker; Lia Machado. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editores, 1993., areestruturação espacial e produtiva sempre está ligada num plano maior às mudanças produtivas do capitalismo.
  • 3
    Informação gerada em IBGE pelo site institucional: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/ms/corumba.html Acesso em 10/3/2021.
  • 4
    Primeiro com o Forte Coimbra em 1775 e depois com o povoado de Albuquerque em 1778,que daria origem ao distrito de Corumbá.
  • 5
    Esse termo que se origina de Doreen Massey (2000MASSEY, D. Um sentido global de lugar. In: Arantes, Antônio (org). O espaço da diferença. Campinas: Papirus,p. 177-186, 2000. ; 2007) ao se referir as trocas econômicascujas interações espaciais ou poder são assimétricas entre agentes e/ou locais, em que novos trajetos ou caminhos geram avanço/decadência de lugares que perdem/ganham importância econômica nessa nova geometria de comércio e poder no espaço, aliás essa é uma discussão presente também em Raffestin no clássico “Por uma Geografia do Poder”
  • 6
    De seis meses de viagem pela rota terrestre para um ou dois meses com a navegação fluvialtendo como referências a distância entre Cuiabá às cidades do litoral sudeste (SOUZA, 2008SOUZA, J. C. Sertão cosmopolita: tensões da modernidade de Corumbá (1872-1918). São Paulo: Alameda, 2008.).
  • 7
    São diversas mercadorias, como bem destaca Xavier (2006)XAVIER, L. O. F. Oeste Brasileira: entre o contraste e a integração. 2006. Tese de Doutorado (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, Brasília. como o cimento inglês, o vinhoportuguês, refinados tecidos franceses, máquinas pesadas para a indústria, ferragens, móveis, utilidades domésticas, tecidos, artigos de luxo, bebidas finas, sal, cristais e porcelanas ou novidades da moda.
  • 8
    Ladário é uma cidade portuária de aproximadamente 23 mil habitantes que se constitui comoum enclave no território corumbaense.
  • 9
    Contudo, ainda não havia ainda desmembramento territorial entre Mato Grosso e Mato Grossodo Sul, o que ocorreu em 1977.
  • 10
    Processo que se originava do movimento monçoeiro, que eram expedições de bandeirantespara o sertão oestino entre os séculos XVIII e XIX. Expedições que se davam sobretudo pelos rios e que tinham o objetivo de escravizar indígenas e explorar auríferas.
  • 11
    Tubérculo de uso medicinal bastante requisitado pelo mercado europeu; um dos primeirosprodutos extrativos da província de Mato Grosso, cujo comércio se destacou a partir da segunda metade do século XIX.
  • 12
    Num espaço temporal de quatro décadas (anos de 1870 aos anos de 1910) a população seelevou de 6 mil para aproximadamente 15 mil habitantes, já no auge do comércio importador.
  • 13
    Nos anos de 1910 já se iniciava de forma significativa com capital belga a mineração pelaCompanhia do Urucum.
  • 14
    Muitas destas informações preliminares emergiram de observações diretas e consulta a jornaisdiários, como Correio Corumbaense e Diário do Pantanal.
  • 15
    Como é o caso do avanço da cultura de soja e outras agriculturas de larga escala em áreas doperipantanal (bordas do Pantanal), que resultam em desmatamento e perda crescente da cobertura original, colocando em risco esse bioma devido aos processos de assoreamento e alagamento permanente em algumas áreas da planície pantaneira e com impactos na vida econômica e cultural daqueles que lá vivem.

REFERÊNCIAS

  • ABDON, M. M ; SILVA, J. S. Delimitação do Pantanal Brasileiro e suas sub-regiões. Pesquisa Agropecuária Brasileira, v. 33, n. 10 Número Especial, p. 1703-1711, out. 1998. Disponível em: .
  • BRITO, N. M. Mineração e desenvolvimento regional em Corumbá-MS. 2011. Dissertação (Dissertação de Mestrado em Geografia). Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados-MS.
  • CONTE, C. H. A formação socioespacial de Corumbá e a atividade pecuária. Caderno de Geografia, v. 28, n. 53, p. 510-530, 2018.
  • CORRÊA, L. S. Corumbá: o comércio e o casario do porto (1870-1920) In: Casario do porto de Corumbá. Campo Grande: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 1985. p.23-57
  • CORRÊA, L.S. História e fronteira: o Sul de Mato Grosso, 1870-1920. Campo Grande: Ed. UCDB, 1999.
  • HANY, F. E. S. Corumbá, Pantanal de Mato Grosso do Sul: periferia ou espaço central? 2005. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais). Programa de Pós-Graduação Escola Nacional de Ciências Estatísticas - ENCE/IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Rio de Janeiro.
  • FREEMAN, C. Inovação e ciclos econômicos de desenvolvimento econômico. Ensaios FEE, Porto Alegre, v.5, n.1, p. 5-20, 1984.
  • FREITAS, E. P. Corumbá (MS) e as metamorfoses nas políticas brasileiras de ordenamento territorial e seus impactos na região de fronteira Brasil-Bolívia. Geofronter, v. 1, n. 4, p. 16-29, 2017.
  • GALEANO, R. D. Transportes de commodities do agronegócio e de minerais na Fronteira Brasil-Bolívia: um estudo sobre a estrutura portuária em Corumbá, Ladário e Puerto Quijarro. 2006. Dissertação (Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande.
  • ISQUIERDO, S. W. G. O Relevo do Sítio Urbano de Corumbá. VI Seminário Latino-Americano de Geografia Física. Universidade de Coimbra, 2010.
  • ITO, C. A. Corumbá: O Espaço da Cidade Através dos Tempos. Campo Grande - MS: UFMS, 2000.
  • CORRÊA, Roberto Lobato. Estudos Sobre a Rede Urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
  • EKERMAN R.; ZERKOWSKI, R. A análise teórica schumpeteriana do ciclo econômico. Revista Brasileira de Economia, v.38, n.3, p.205-228, 1984.
  • LAMOSO, L, P. A exploração de minério de ferro no Brasil e no Mato Grosso do Sul. 2001. Tese (Doutorado em Geografia) - Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • LAMOSO, L. P. Reflexões sobre a Corumbá do início do século XXI. In: MORETTI, Edvaldo Cesar; BANDUCCI JUNIOR, Álvaro. (Org.). Pantanal: territorialidades, culturas e diversidade. Campo Grande: Editora UFMS, 2012, v. 1, p. 141-171.
  • LEFEBVRE, H. La producción del espacio. Trad e Introdução Emilio Martinez Gutiérrez. Madrid: Editora Capitain Swing (Col. Entrelíneas), [1974] 2013.
  • MAMIGONIAN, A. Inserção de Mato Grosso ao mercado mundial e a gênese de Corumbá. Geosul, n.1, 1986.
  • MASSEY, D. Um sentido global de lugar. In: Arantes, Antônio (org). O espaço da diferença. Campinas: Papirus,p. 177-186, 2000.
  • MASSEY, D. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
  • MASSEY, D. A mente geográfica. Geographia (UFF), v. 19, n. 20, p. 36-40, 2017.
  • MATIAS, S. S. Considerações sobre a questão da vulnerabilidade ambiental na cidade de Corumbá-MS. Dourados-MS: Universidade Federal da Grande Dourados. 2014. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Geografia) - Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados, 2014.
  • MEDRANO, L. I. Z. A livre navegação dos rios Paraná e Uruguay: uma análise do comércio entre o Império brasileiro e a Argentina (1852-1889). 1989. Tese (Doutorado em História), USP, São Paulo.
  • QUEIROZ, P. R. C. A navegação na bacia do Paraná e a integração do antigo sul de Mato Grosso ao mercado nacional. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, p. 1-31, 2009.
  • REYNALDO, N. I. Comércio e navegação no rio Paraguai (1870-1940). In. XI Jornadas Interescuelas/Departamentos de História. Departamento de História. Facultad de Filosofía y Letras. Universidad de Tucumán, 19 a 22 de setembro de 2007, Tucumán, 2007. Disponível em: https://www.aacademica.org/000-108/81.pdf Acesso em 23/04/2020.
    » https://www.aacademica.org/000-108/81.pdf
  • SANTOS, M. A Urbanização Brasileira. Hucitec, São Paulo, 1993.
  • SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4.a. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
  • SCHUMPETER, J. A. Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. São Paulo: Abril Cultural, 1982
  • SILVESTRE, E. A. A pecuária como determinante econômico da ocupação de campo grande, Mato Grosso do Sul: 1870 a 1929. Revista de história, v. 6, n. 12, p. 31-53, 2014.
  • SOJA, E.W. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social. Trad. Vera Ribeiro. Rev. Bertha Becker; Lia Machado. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editores, 1993.
  • SOUZA, J. C. Sertão cosmopolita: tensões da modernidade de Corumbá (1872-1918). São Paulo: Alameda, 2008.
  • XAVIER, L. O. F. Oeste Brasileira: entre o contraste e a integração. 2006. Tese de Doutorado (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, Brasília.
  • VALVERDE, O. Fundamentos geográficos do planejamento rural do município de Corumbá. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 34, n. 1, jan./mar. 1972.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2021
  • Aceito
    09 Fev 2022
  • Publicado
    15 Fev 2022
Universidade Federal do Ceará UFC - Campi do Pici, Bloco 911, 60440-900 Fortaleza, Ceará, Brasil, Tel.: (55 85) 3366 9855, Fax: (55 85) 3366 9864 - Fortaleza - CE - Brazil
E-mail: edantas@ufc.br