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REESCALONAMENTO ESPACIAL DO ESTADO DESENVOLVIMENTISTA NO BRASIL

Resumo

O presente trabalho pretende oferecer uma contribuição ao debate sobre economia política regional e urbana no Brasil ao explorar as relações entre o Estado, as instituições e as escalas espaciais na produção e regulação do desenvolvimento espacial desigual no país. Para tanto, com base em contribuições recentes na Geografia anglo-saxã, busca-se examinar as tensões e crises do Estado desenvolvimentista em suas estratégias e projetos espaciais. Nesse sentido, pretende-se adaptar alguns dos pressupostos teóricos ao contexto brasileiro, de modo a incorporar sua forma de Estado e processos de reescalonamentos específicos. Adota-se uma metodologia processual para analisar como a urbanização e o desenvolvimento regional acabam criando mecanismos próprios de deslocamento e de geração de crises regulatórias, assim como estratégias correspondentes de intervenção política para resolvê-las. Nesse trabalho, partimos da ideia de que a a hegemonia é disputada em múltiplas escalas, o que permite estabelecer as relações entre mudanças no bloco hegemônico e nas formas espaciais do Estado.

Palavras-chaves:
Estado Desenvolvimentista; Escalas Espaciais; Reescalonamento

Resumen

Este trabajo pretende ofrecer una contribución al debate sobre la economía política urbana y regional en Brasil para explorar las relaciones entre las instituciones estatales y las escalas espaciales en la producción y regulación del desarrollo espacial desigual en el país. Para ello, sobre la base de las contribuciones recientes a la Geografía anglosajona, buscamos analizar las tensiones y crisis en las estrategias y proyectos de desarrollo espacial del Estado. En este sentido, tenemos la intención de adaptar algunos de los supuestos teóricos para el contexto brasileño, con el fin de incorporar su forma de Estado y los procesos de rescalonamientos específicos. Adoptamos una metodología de procedimiento para analizar cómo la urbanización y el desarrollo regional terminan creando sus propios mecanismos de desplazamiento y generación de las crisis de regulación, así como de las correspondientes estrategias de intervención política para resolverlos. En este trabajo, se parte de la idea de que la hegemonía es disputada en múltiples escalas, lo que permite establecer las relaciones entre los cambios en el bloque hegemónico y las formas espaciales del Estado.

Palabras Cles:
Estado Desarrolista; Escalas Espaciales; Rescalonamientos

Abstract

This paper aims to contribute to the debate on the urban and regional political economy in Brazil by exploring the relationships between the State, the institutions and spatial scales in the production and regulation of uneven spatial development in the country. Therefore, based on recent contributions in Anglo-Saxon geography, the tensions and crises of the developmental State are examined through their spatial strategies and projects. In this sense, the intention is to adapt some of the theoretical background to the Brazilian context in order to incorporate the form of its State and specific rescaling processes. A procedural methodology is used to analyze how urbanization and regional development end up creating their own mechanisms of displacement and generation of regulatory crises, as well as the corresponding strategies of political intervention to resolve them. This study is based on the idea that hegemony is contested on multiple scales, which allows the relationship between changes in the hegemonic bloc and the spatial forms of the State to be established.

Key words:
Developmental State; Spatial Scales; Rescaling

INTRODUÇÃO

Esse artigo pretende oferecer uma contribuição ao debate sobre economia política regional e urbana no Brasil ao explorar as relações entre o Estado, as instituições e as escalas espaciais na produção e regulação do desenvolvimento espacial desigual no país. A temática das escalas espaciais vem ganhando relevo nas discussões sobre planejamento regional e urbano no Brasil, em debates que incluem a crítica ao desenvolvimento local endógeno, a evolução da governança urbana e metropolitana e a capacidade diferencial de exercício do poder pelos atores no território. Embora essa relevância adquirida seja positiva, é preciso tomar alguns cuidados para que o debate sobre escalas não assuma um aspecto normativo ou essencialista. Em outras palavras, pensamos que as discussões devem priorizar as relações entre as escalas e, principalmente, os processos que provocam mudanças nessas relações (reescalonamentos).

Também é necessária uma rigorosa reflexão sobre a produção das escalas e admitir que, se a questão regional é uma questão do Estado (EGLER, 2010EGLER, Claudio. Questão Nacional e Gestão do Território no Brasil. In: Castro, I.E; Gomes, P.C.C; Corrêa, R.L. (Org). Geografia: conceitos e temas. 13ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2010. 352p.), é necessário aprofundar o entendimento do reescalonamento espacial do Estado e analisar os pressupostos teóricos e manifestações concretas desse fenômeno no Brasil. Conforme pretendemos demonstrar, essas manifestações assumem características particulares no tempo e no espaço, de modo que uma mera transposição de experiências observadas em outros contextos pode ser problemática.

Em primeiro lugar, ressaltamos a diferença na própria forma do Estado em relação ao que Jessop (2002) classificou como Keynesian Welfare National State (KWNS), o que impossibilita de encontrarmos no Brasil algum tipo de "keynesianismo espacial". A forma de Estado (Desenvolvimentista) brasileiro precisaria, necessariamente, assumir sua realidade de subdesenvolvimento. Isso implica que as tendências à crise dessa forma estatal e desse regime de regulação espacial assumem características peculiares.

Para analisar a evolução de projetos regulatórios e da espacialidade estatal, seguiremos a metodologia processual adotada por Neil Brenner (2004)BRENNER, Neil. New State Spaces: Urban Governance and the Rescaling of Statehood. Oxford: Oxford University Press, 2004, 351p., segundo a qual o objeto da pesquisa não é uma dada configuração escalar do aparato estatal, nem escalas específicas do poder do Estado. O que nos interessa é entender a seletividade espacial e escalar do Estado como uma expressão, um meio e um produto de estratégias políticas. Dessa forma, assim como Brenner, faremos uso da Abordagem Estratégica-Relacional, que vem sendo desenvolvida e aperfeiçoada por Bob Jessop (2008)JESSOP, Bob. State Power. Cambridge: Polity Press, 2008. há vários anos.

Seguindo a metodologia processual proposta por Brenner (2004)BRENNER, Neil. New State Spaces: Urban Governance and the Rescaling of Statehood. Oxford: Oxford University Press, 2004, 351p., analisamos como a urbanização e o desenvolvimento regional acabam criando formas específicas de deslocamento e de geração de crises regulatórias, assim como estratégias correspondentes de intervenção política para resolvê-las. Nesse sentido, será dado destaque para a co-evolução de estratégias e projetos espaciais do Estado e sua relação com as forças políticas e o bloco hegemônico ao longo do que denominamos "desenvolvimentismo espacial". Esta evolução por sua vez está imbricada com as alterações de rumo e contradições nas estratégias de acumulação e no projeto hegemônico desenvolvimentista, que culminaram na sua crise.

O presente artigo, além dessa introdução, está organizado da seguinte forma. Na segunda seção, destacam-se alguns elementos e influências do arcabouço teórico de reescalonamento espacial do Estado proposto por Brenner (2004)BRENNER, Neil. New State Spaces: Urban Governance and the Rescaling of Statehood. Oxford: Oxford University Press, 2004, 351p.. A terceira seção aborda o "desenvolvimentismo espacial" e a configuração de um ajuste espaço-temporal desenvolvimentista. A regulação espacial do desenvolvimentismo, com enfoque no período pós 1964, é discutida na quarta seção. Por fim, será dado destaque ao esforço de aperfeiçoamento regulatório contido no II PND e a consequente crise do Estado desenvolvimentista.

ANTECEDENTES TEÓRICOS

É possível afirmar que o estudo basilar para o entendimento do reescalonamento espacial do Estado é o livro New State Spaces , de Neil Brenner (2004)BRENNER, Neil. New State Spaces: Urban Governance and the Rescaling of Statehood. Oxford: Oxford University Press, 2004, 351p.. Neste trabalho, o autor realiza sofisticada construção teórica na qual agrega critica e seletivamente determinados elementos da Teoria do Estado, da Geografia Política e Geografia Econômica anglo-saxã (com forte influência da Abordagem da Regulação) e da Economia Política Internacional na incorporação de uma teoria do desenvolvimento espacial desigual a uma teoria do Estado. Com efeito, a contribuição do autor representou importantes avanços na construção de uma teoria espacial do Estado, ao sugerir conceitos para analisar a entender as políticas territoriais e escalares implicadas na sua complexa reestruturação espacial.

Diante da incorporação da "virada escalar" nos estudos sobre o poder do Estado, Brenner "desenvolveu uma sofisticada teoria que ancora as versões do Novo Regionalismo sobre a produção de novos espaços político-econômicos em uma compreensão da reestruturação espacial do Estado sob a globalização" na qual as formas contemporâneas do espaço do Estado são "intimamente relacionadas às lutas sobre formas de acumulação e regulação no após-fordismo" (OOSTERLYNCK, 2010OOSTERLYNCK, Stjin. Regulating Regional Uneven Development and the Politics of Reconfiguring Belgian State Space. Antipode, 42: 1151-1179, 2010, p. 1156). Dessa forma, além das questões teóricas (quais são as formas espaciais concretas do poder do Estado e como elas evoluem), o autor apresenta novas questões metodológicas (categorias para explicar a reestruturação espacial do Estado), de periodização e variação contextual (comparativa); e de análise conjuntural, relacionada a como as formações herdadas são reconstituídas (BRENNER, 2010aBRENNER, Neil; PECK, Jamie; THEODORE, Nik, 2010a. Variegated neoliberalization: geographies, modalities, pathways. Global Networks 10(2): 1-41, 2010.). O arcabouço dos "novos espaços do Estado" envolve também a mobilização de um vocabulário conceitual para analisar as estratégias políticas voltadas para o reescalonamento do Estado e as formas pelas quais elas operam através do Estado e reproduzem e transformam o seu desenho institucional (OOSTERLYNCK, 2010OOSTERLYNCK, Stjin. Regulating Regional Uneven Development and the Politics of Reconfiguring Belgian State Space. Antipode, 42: 1151-1179, 2010).

A literatura sobre reescalonamento do Estado vem se expandindo rapidamente em diversos campos da política estatal, como administração pública e análise política, sendo que temas como relações intergovernamentais, federalismo, descentralização, localismo, agência coletiva e políticas setoriais específicas têm sido crescentemente analisados sob este prisma, que já foi objeto de edições especiais em periódicos destacados (BRENNER, 2010aBRENNER, Neil; PECK, Jamie; THEODORE, Nik, 2010a. Variegated neoliberalization: geographies, modalities, pathways. Global Networks 10(2): 1-41, 2010.; BRANDÃO, 2011BRANDÃO, Carlos. Descentralização enquanto modo de ordenamento especial do poder e de reescalona- mento territorial do estado: trajetórias e desafios para o Brasil. In. DALLABRIDA, Valdir. Governança territorial e desenvolvimento. Rio de Janeiro, Garamond, 2011; KLINK E DENALDI, 2014KLINK, J. J. ; DENALDI, R. . On financialization and state spatial fixes in Brazil. A geographical and historical interpretation of the housing program My House My Life. Habitat International, v. 44, p. 220-226, 2014.; ANTIPODE, 2010; CAMBRIDGE JOURNAL OF REGIONS, ECONOMY and SOCIETY, 2009). O arcabouço do reescalonamento espacial do Estado constitui também referência importante numa influente abordagem sobre processos de neoliberalização (BRENNER, PECK E THEODORE, 2010BRENNER, Neil; PECK, Jamie; THEODORE, Nik, 2010a. Variegated neoliberalization: geographies, modalities, pathways. Global Networks 10(2): 1-41, 2010.).

Recentemente, verifica-se a utilização deste arcabouço em um número crescente de contextos e países, sendo importante testá-lo e adaptá-lo à realidade brasileira, de modo a trabalhar criticamente com os conceitos apresentados e aperfeiçoar seu potencial comparativo.

A metodologia processual empregada estuda a reestruturação espacial do Estado com base em políticas territoriais e escalares, de modo que não foca em nenhuma escala espacial específica do Estado. Dessa forma, embora Brenner sublinhe principalmente os processos de urbanização (entendida como um problema regulatório sistêmico do capitalismo), seu arcabouço se aplica igualmente bem à escala regional (OOSTERLYNCK, 2010OOSTERLYNCK, Stjin. Regulating Regional Uneven Development and the Politics of Reconfiguring Belgian State Space. Antipode, 42: 1151-1179, 2010). Com efeito, a abordagem proposta e adotada neste trabalho se preocupa de forma mais geral com os processos de desenvolvimento espacial desigual sob o capitalismo. A questão urbana, entendida desta forma, é uma "questão escalar". Assim, consideramos que "a problemática da escala geográfica - sua organização espacial, produção social, contestação política, e sua reconfiguração histórica - foi inserida no coração da questão urbana" (BRENNER, 2010bBRENNER, Neil; PECK, Jamie; THEODORE, Nik, 2010a. Variegated neoliberalization: geographies, modalities, pathways. Global Networks 10(2): 1-41, 2010., p.69). Essa nova concepção surgiu como consequência dos debates sobre globalização e com o reconhecimento de transformações cruciais "na organização institucional não só da escala urbana, mas também de mais amplas e globais hierarquias escalares e redes interescalares nas quais as cidades estão imersas" (BRENNER, 2010bBRENNER, Neil; PECK, Jamie; THEODORE, Nik, 2010a. Variegated neoliberalization: geographies, modalities, pathways. Global Networks 10(2): 1-41, 2010., p.67). Embora este arcabouço tenha sido desenvolvido durante os debates sobre globalização, suas categorias analíticas foram aplicadas para entender o espaço institucional do Estado herdado, incluindo: i) as paisagens regulatórias historicamente específicas em um território nacional; ii) os padrões historicamente específicos de formação de crises, desenvolvimento desigual e contestação sócio-política que emergiram nestes territórios a partir da crise do modo de desenvolvimento fordista-keynesiano; iii) a interação das iniciativas neoliberais com o arcabouço regulatório, padrões espaciais e contestação sócio-política existentes, que muitas vezes assumem um caráter path dependent (BRENNER E THEODORE, 2002BRENNER, Neil; THEODORE, Nik. Cities and the Geographies of "Actually Existing Neoliberalism". Antipode, 34, 2002, pp.349-379., p.357).

Dessa forma, torna-se importante entender a ocorrência e manifestações destes fenômenos, bem como a estrutura escalar e sua maleabilidade histórica na organização espacial assumida pela forma de Estado Desenvolvimentista. Consideramos que o desenvolvimentismo como projeto hegemônico não produzia uma configuração estável, mas sim uma forma dinâmica e disputada de mudança espacial (ver SWYNGEDOUW, 2004).

De maneira surpreendente, o Estado costuma assumir um papel analítico secundário nas teorias sobre desenvolvimento espacial desigual (COX, 2008COX, Kevin R. Globalization, uneven development and capital: reflections on reading Thomas Friedman's The World Is Flat. Cambridge Journal of Regions, Economy and Society, p.1-22, 2008.). Isto não implica que o Estado (geralmente, na escala nacional) não seja estudado como uma entidade com diferentes poderes dentro de uma estrutura hierárquica mundial, ou como produtor de desigualdades através de suas políticas. No entanto, poucos autores lograram integrar de fato o Estado na necessária transição de uma lei do desenvolvimento desigual para uma teoria do desenvolvimento desigual, na qual a produção de escalas espaciais assume um papel explicativo acerca da desterritorialização/reterritorialização do capital e do poder do Estado em meio a processos simultâneos de equalização e diferenciação das condições de produção. Com efeito, é necessário reconhecer que "a forma geral do Estado é escalar e espacialmente articulada desde o início" (COLLINGE, 1998, p.6) e então analisar os processos causadores de mudanças em sua forma. A contribuição de Brenner (2004)BRENNER, Neil. New State Spaces: Urban Governance and the Rescaling of Statehood. Oxford: Oxford University Press, 2004, 351p., cujas influências, conceitos e esforço de síntese construtiva encontram-se esquematizados na Figura 1, visa a superar essa lacuna.

Figura 1
Antecedentes e Influências Teóricas

Primeiro, com base em contribuições da Geografia Política e da Economia Política Internacional, é trabalhada a ideia de que a espacialidade do Estado não é fixa, o que não se restringe à sua organização escalar. É preciso evitar o nacionalismo metodológico e a limitação a um imaginário espacial rígido, o que dificulta o reconhecimento de formas espaciais emergentes. O nacionalismo metodológico não pode ser superado considerando-se apenas as relações entre países num cenário geopolítico. Torna-se necessário observar também as transformações nas escalas, na territorialidade estatal e na emergências de redes, que fornecem informações cruciais sobre a escala nacional. Nesse sentido, o debate sobre escalas espaciais e sobre novos processos de destreterritorialização tem muito a contribuir nas discussões sobre a globalização e sobre a crise regulatória do Estado Nacional.

A influência dos geógrafos britânicos (a "terceira geração" de regulacionistas) forneceu importantes elementos para o entendimento da produção das escalas e sua relação com o desenvolvimento desigual. A partir da discussão sobre modos locais de regulação e da sobreposição escalar das formas institucionais do modo de regulação foi possível avançar na concepção de que não há uma escala "ideal" e de que a regulação se extende a diversas dimensões socio-espaciais, como arranjos interescalares, territoriais, aos lugares e redes. É importante mencionar o profícuo diálogo desses autores com a Abordagem Estratégica-Relacional (AER) do Estado, elaborada por Bob Jessop. Outro diálogo possível, mas menos óbvio, reside na semelhança entre o conceito de regulação empregada e a noção da reprodução das relações sociais de produção, desenvolvida por Lefebvre (1973)LEFEBVRE, Henri. A Re-Produção das Relações de Produção. Porto: Publicações Escorpião, 1973.. Ambos rejeitam a ênfase na coerência, dominante no estruturalismo althusseriano, e dedicam-se a entender as condições de permanência, repetição e produção de mudanças nas relações sociais, nas quais o Estado e o espaço cumprem papel crucial.

Nesse aspecto, é necessário evitar uma leitura vulgar da regulação, que exagera a coerência do regime de acumulação e enfatiza a transição de regimes de acumulação, especialmente numa interpretação equivocada sobre o pós-fordismo. A temporalidade da regulação deve focar especificamente na mudança e não em comparações binárias entre situações passadas e possíveis sucessoras (GONZALEZ, 2004GONZÁLEZ, Sara. ¿Es la teoría de la regulación todavía relevante para la comprensión de la sociedad capitalista actual? Respuesta a Horacio Capel. Biblio 3W, Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales. Vol. IX, nº 526, 5 de agosto de 2004). Em outras palavras, "é muito melhor estudar as formas existentes de regulação que estão se posicionando do que pensar em sua coerência" (LIPIETZ, 1993 apud GONZALEZ 2004GONZÁLEZ, Sara. ¿Es la teoría de la regulación todavía relevante para la comprensión de la sociedad capitalista actual? Respuesta a Horacio Capel. Biblio 3W, Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales. Vol. IX, nº 526, 5 de agosto de 2004). Por fim, deve-se destacar o caráter eurocêntrico das interpretações sobre o fordismo e sua crise, sobre o keynesianismo espacial e a centralidade da Ordem de Westphalia (BECKER, 1999BECKER, Bertha. Brasil-Tordesilhas, ano 2000. Revista Território. Rio de Janeiro. ano IV, n" 7. p. 7-23, jul./dez. 1999.). Daí decorre a necessidade de (re)trabalhar esses conceitos à luz do que chamamos de desenvolvimentismo espacial. Com efeito, alguns aspectos importantes da alteração nas formas institucionais e organizacionais do Estado em torno da intervenção econômica e lutas hegemônicas em diversas escalas foram desenvolvidos por Oliveira (1981b)OLIVEIRA, Fabrício Augusto de. A reforma tributária de 1966 e a acumulação de capital no Brasil. São Paulo: Editora Brasil Debates, 1981. ao explicar a intervenção estatal na questão regional brasileira. Estas contribuições, complementadas por considerações sobre mudanças nos regimes e escalas de acumulação e regulação, nas estratégias de acumulação, seletividades territoriais e escalares e alterações nos graus de hegemonia fornecem elementos fundamentais para o entendimento do reescalonamento espacial do Estado no período populista (BARCELLOS DE SOUZA, 2012BARCELLOS DE SOUZA, Marcos. Espacializando o desenvolvimentismo: imaginário, escalas e regulação.Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 14 , n.2 / Nov, 2012.). Pretendemos, a seguir, desdobrar alguns destes conceitos mediadores para entender os processos de reescalonamento durante o desenvolvimentismo-militar. A interpretação utilizada pretende aproveitar a possibilidade de maior detalhamento histórico, incorporando também as estratégias de manutenção da hegemonia dentro da sociedade civil, que acabam desaparecendo na análise de Brenner (2004)BRENNER, Neil. New State Spaces: Urban Governance and the Rescaling of Statehood. Oxford: Oxford University Press, 2004, 351p. sobre o fordismo atlântico da Europa Ocidental (OOSTERLYNCK, 2010OOSTERLYNCK, Stjin. Regulating Regional Uneven Development and the Politics of Reconfiguring Belgian State Space. Antipode, 42: 1151-1179, 2010).

DESENVOLVIMENTISMO ESPACIAL E AJUSTE ESPAÇO-TEMPORAL

Para entender o desenvolvimentismo espacial torna-se necessário discutir qual forma de Estado produziu esse regime regulatório. Em primeiro lugar, é preciso admitir que as teorias do Estado desenvolvimentista (dentre as quais a cepalina) são tipicamente centradas no Estado, o que representa problemas para o entendimento de sua espacialidade (BARCELLOS DE SOUZA, 2012BARCELLOS DE SOUZA, Marcos. Espacializando o desenvolvimentismo: imaginário, escalas e regulação.Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 14 , n.2 / Nov, 2012.). Embora ressaltemos a relativa diversidade de abordagens sobre o Estado no Brasil, argumentamos que a abordagem da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) assumiu posição dominante na caracterização do desenvolvimentismo. No conjunto de ideias-força do desenvolvimentismo cepalino se destacam: "i) o enquadramento do paradigma na relação entre centro e periferia; ii) a orientação do desenvolvimento para dentro; iii) o papel da tecnologia; iv) a industrialização substitutiva; v) o papel ativo do Estado" (IGLESIAS, 2010, p.48).

Uma das limitações típicas das abordagens desenvolvimentistas é sua ênfase, por vezes exagerada, na autonomia da burocracia e na capacidade do Estado em detrimento do balanço de forças sociais e políticas. Elas também insistem em afirmar que coerência interna, identidade corporativa e uma organização coesa são elementos chave dos Estados Desenvolvimentistas (JESSOP E SUM, 2006JESSOP, Bob; SUM, Ngai-Ling. Beyond the regulation approach: putting capitalist economies in their place. Cheltenham: Edward Elgar, 2006, 479p, p.155). Nesse sentido, a abordagem estratégica-relacional do Estado de Jessop tem mais afinidades com as interpretações de Poulantzas e Gramsci do que com a de Weber, possibilitando um diálogo mais próximo com autores como Oliveira (1981)OLIVEIRA, Fabrício Augusto de. A reforma tributária de 1966 e a acumulação de capital no Brasil. São Paulo: Editora Brasil Debates, 1981., Fiori (1995)FIORI, José Luís. Em busca do dissenso perdido: ensaios críticos sobre a festejada crise do Estado. Rio de Janeiro: Insight, 1995. e Cardoso (1993)CARDOSO, Fernando Henrique. O Modelo Político Brasileiro e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Editora/ Bertrand Brasil, 5ª Edição, 1993.. De início, cabe lembrar que é necessária a distinção entre os paradigmas de políticas e os paradigmas teóricos. Neste caso, mesmo interpretações sofisticadas sobre o subdesenvolvimento e as políticas desenvolvimentistas, como a cepalina, correram o risco de serem "absorvidas" (ou mal interpretadas) por paradigmas de políticas que tinham "suas próprias mitologias usadas para justificar e guiar estratégias econômicas e políticas específicas" (JESSOP E SUM, 2006JESSOP, Bob; SUM, Ngai-Ling. Beyond the regulation approach: putting capitalist economies in their place. Cheltenham: Edward Elgar, 2006, 479p). De todo modo, neste caso há uma preferência por abordagens centradas no Estado em detrimento de uma abordagem relacional.

Utilizando uma construção do tipo-ideal inspirada em Jessop (2005)JESSOP, Bob. A regulationist and state-theoretical analysis. In: BOYD, Richard and NGO, Tak-Wing (Ed). Asian States: Beyond the Developmental Perspective. London, [UK] ; New York : Routledge Curzon, 2005., podemos analisar os quatro tipos de intervenção (econômica, social, escalar e governança) adotados pelo Estado para garantir o crescimento econômico. A partir de versões estilizadas destes tipos de intervenção e do papel do Estado no modo de regulação e regime de acumulação desenvolvimentista, pretendemos avançar nos determinantes espaço-temporais desta forma de Estado. Podemos adiantar que, diferentemente do KWNS (Keynesian Welfare National State) do fordismo atlântico, e do LWNS (Listian Workfare National State) do desenvolvimentismo no Leste Asiático, o Estado brasileiro assumiu a forma de um Estado Nacional de welfare Cepalino (ENw C).

No que tange à promoção das condições para acumulação lucrativa, o Estado é Cepalino, na medida em que aposta no empresariado nacional para o avanço da Industrialização por Substituição de Importações (ISI) e dá especial destaque ao planejamento, centralização e nacionalismo econômico num modelo de crescimento "voltado para dentro". Nesse contexto, o Setor Produtivo Estatal foi fundamental na alocação dos investimentos e regulação das margens de lucro. As políticas desenvolvimentistas sofreram várias influências teóricas além das teorias cepalinas, como o protecionismo de List, as intervenções sobre a demanda efetiva keynesianas e a preocupação com o crescimento desequilibrado de Hirschmann, Myrdal e Perroux, este último uma referência fundamental nos anos 1970 em virtude de suas teorias sobre polos de crescimento. Não obstante estas considerações, a importância intelectual e política da CEPAL permitem classificá-la como principal referência teórica na construção do Estado Desenvolvimentista em sua orientação econômica.

Em relação à reprodução da força de trabalho como mercadoria fictícia, é possível afirmar que o Estado Desenvolvimentista assume uma orientação de welfare . Este elemento, no entanto, precisa ser analisado com cuidado, pois não se tratou de um Estado Social que assumiu como compromisso o pleno emprego e a garantia de direitos sociais básicos à toda população como política social e de sustentação da demanda efetiva. Tampouco a relação salarial deu-se de modo a incorporar sistematicamente os ganhos de produtividade em acréscimos na remuneração dos trabalhadores em geral, como resultado de ampla liberdade de negociação dos sindicatos e estabelecimento de um modelo corporativista tripartite. No entanto, a categoria Welfare deve ser analisada além de seus aspectos puramente normativos e positivos e entendida como uma forma capitalista do Estado na regulação social e política das suas relações com o mercado e a sociedade (DRAIBE, 1993DRAIBE, Sonia. O Welfare State no Brasil: Características e Perspectivas. Caderno de Pesquisa n. 8, NEPP/UNICAMP, 1993.). Destarte, é possível argumentar que a Seguridade Social brasileira desenvolveu-se segundo algumas das características gerais das formas de intervenção dos Estados capitalistas, porém com um caráter redistributivo limitado e dentro de uma estrutura institucional fragmentada e do tipo meritocrático-particularístico (corporativista/clientelista) de Welfare State (DRAIBE, 1993DRAIBE, Sonia. O Welfare State no Brasil: Características e Perspectivas. Caderno de Pesquisa n. 8, NEPP/UNICAMP, 1993.). É possível, então, apontar o caráter complementar das políticas sociais ao modelo de Industrialização por Substituição de Importações e ao crescimento voltado para dentro, que dependia da consolidação de uma classe média com poder de compra suficiente e de altas taxas de urbanização e migração rural.

Desta forma, podemos caracterizar o modelo brasileiro durante o desenvolvimentismo como um "welfare" incompleto, que exercia algum poder de regulação sobre a demanda agregada, mas que nunca almejou funcionar como mecanismo de redistribuição do produto. A incompletude se manifestava também na inexistência de garantias institucionalizadas de renda mínima, uma característica definidora dos Welfare States desenvolvidos. Por outro lado, o welfare brasileiro se distancia do Workfare praticado nos Estados desenvolvimentistas do Leste Asiático. Nesse caso, o modelo exportador como modo de desenvolvimento demandou elevados investimentos em capital humano, uma economia aberta que dependia mais da flexibilidade da oferta do que da demanda interna e de uma complexa divisão do trabalho entre vários locais de produção, configurando um tipo de "produção imitativa flexível" na qual a pressão sobre os salários decorria da demanda internacional (JESSOP E SUM, 2006JESSOP, Bob; SUM, Ngai-Ling. Beyond the regulation approach: putting capitalist economies in their place. Cheltenham: Edward Elgar, 2006, 479p).

O ENwC é Nacional na medida em que "políticas econômicas e sociais foram perseguidas dentro da matriz historicamente específica (e socialmente construída) de uma economia nacional, um estado nacional e uma comunidade nacional imaginada" (JESSOP, 2005JESSOP, Bob. A regulationist and state-theoretical analysis. In: BOYD, Richard and NGO, Tak-Wing (Ed). Asian States: Beyond the Developmental Perspective. London, [UK] ; New York : Routledge Curzon, 2005., p.27). A matriz escalar deste ajuste espaço-temporal tem sua dominância na escala nacional, que assume as principais responsabilidades em termos de política econômica e social. Discursos como o nacionalismo econômico, a Segurança Nacional e a ideia de Brasil Potência foram empregados em diferentes momentos para sustentar a dominância da escala territorial nacional.

Por fim, o ENwC é estatal pois ao coube ao Estado através do planejamento, coordenação, centralização fiscal e investimentos públicos "disciplinar" o mercado, controlar (ou tutelar) os sindicatos e a sociedade civil e promover as políticas de integração regional e desenvolvimento urbano. A intervenção estatal top down foi o principal mecanismo de governança utilizado para acumulação de capital, reprodução da força de trabalho e políticas públicas. O crescente "estatismo" será uma das tendências à crise deste tipo de Estado.

Seguindo os conselhos de Jessop (2005)JESSOP, Bob. A regulationist and state-theoretical analysis. In: BOYD, Richard and NGO, Tak-Wing (Ed). Asian States: Beyond the Developmental Perspective. London, [UK] ; New York : Routledge Curzon, 2005. e Jessop e Sum (2006)SADDI, Fabiana. Política e economia no federalismo do governo Geisel. Revista de Economia Política, vol. 23, nº 2 (90), abril-junho/2003, adotaremos uma perspec- tiva regulacionista para melhor especificar o que denominamos de ENwC. Com efeito, o ajuste espaço-temporal facilita a consolidação do compromisso institucionalizado do qual o regime de acumulação e o modo de regulação dependem.

A dimensão continental do Brasil e o enorme esforço de construção de um modelo de crescimento voltado para dentro implicam em formas específicas de deslocamentos/ajustes. O ajuste espaço-temporal desenvolvimentista continha diversos mecanismos de fugas para frente e de amortecimento, de modo a manter sua coerência estruturada e adiar sua substituição por outro ajuste. Dentre esses, podemos destacar o financiamento inflacionário, a ocupação da fronteira agrícola e mineral, as migrações, o regionalismo, a agricultura itinerante, o "terciário inchado" e a mobilidade social seletiva. O estabelecimento de um ajuste espaço-temporal administrado na escala nacional não implica a inexistência de tensões na busca de imposições de outros ajustes em outras escalas. Um ajuste espaço-temporal é entendido como o estabelecimento de alguns limites territoriais e temporais que permitem a reprodução de uma "coerência estruturada", escolhendo vencedores e perdedores dentro e fora de um dado espaço econômico, associado a seus padrões específicos (embora contestados) de distribuição desigual de benefícios e desenvolvimento espacial desigual (JESSOP, 2008JESSOP, Bob. State Power. Cambridge: Polity Press, 2008.). Neste sentido, um ajuste espaço-temporal supõe uma seletividade espacial do Estado, relacionada a uma estratégia de acumulação. O ajuste espaço-temporal desenvolvimentista necessitava regular as tensões entre a internacionalização e a construção de um receptáculo territorial nacional, os regionalismos (que tentavam impor seus ajustes próprios) e o poder central, a ambiguidade do municipalismo e da escala local na gramática política brasileira e os esforços de compartimentação do território empreendido por diversos agentes. Esses conflitos e tensões serão importantes na institucionalização de escalas espaciais e na construção de narrativas escalares concorrentes ao longo do desenvolvimentismo.

Na construção de tipos ideais como o KWNS, o LWNS ou o ENwC, o foco da análise reside em seus aspectos estruturais. A evolução da AER ajuda a apontar as contradições, dilemas estratégicos e conjunturas críticas destas formas de Estado. Explorar a dialética entre os projetos e estratégias espaciais do Estado sob esta ótica ilustra as lutas sociais e seletividades espaciais, escalares e estratégicas em tela. Neste sentido, escolhemos algumas situações que representam estas seletividades e suas conjunturas de mudanças, o que reflete em parte alterações no bloco no poder e na organização territorial-escalar do Estado. O ponto de partida é tratar o Estado não como um sujeito (que atua ou deve atuar de certa forma) ou um objeto (usado por classes, partidos, ou burocracia para avançar seus interesses), mas como uma relação social e, portanto, como um projeto em andamento ao invés de uma estrutura acabada. Nas palavras de Jessop (2008, p.3)JESSOP, Bob. State Power. Cambridge: Polity Press, 2008., "ele muda de forma e aparência de acordo com as atividades que desempenha, a escala na qual opera, as forças políticas agindo em sua direção e as circustâncias nas quais atuam". A concepção do Estado como um "local, gerador e produto de estratégias" incorpora essas relações.

O Quadro 1 sintetiza o que Neil Brenner (2004)BRENNER, Neil. New State Spaces: Urban Governance and the Rescaling of Statehood. Oxford: Oxford University Press, 2004, 351p. definiu como as estratégias espaciais e projetos espaciais do Estado. De início, cumpre assinalar que as ideias da CEPAL supunham que a integração produtiva provocaria algum grau de equalização espacial:

Quadro 1
Projetos e Estratégias Espaciais do Estado

em primeiro lugar, como garantia da estabilidade do espaço nacional nos planos político, econômico e social - aspecto vital às classes dominantes e que passa pela equipendência (igualdade de peso) entre as regiões -; em segundo, porque se acreditava - graças às ideias cepalinas - que a integração produtiva e a expansão das relações capitalistas na indústria e na agricultura, com o consequente aumento da produtividade e da renda regional, levariam a um maior equilíbrio regional (RODRIGUEZ, 1994RODRIGUEZ, Vicente. Os Interesses Regionais e a Federação Brasileira. Ensaios FEE, Porto Alegre, (15)2, 338-352, 1994., p.340-1).

A estratégia equalizadora, no entanto teve vida curta, proporcional ao fracasso da SUDENE em atingir seus objetivos de industrialização, colonização e reforma agrária.

A REGULAÇÃO ESPACIAL DURANTE O PERÍODO DESENVOLVIMENTISTA-MILITAR

A política regional do pós-guerra é marcada pela adequação à estratégia de acumulação do modelo ISI. No que tange às estratégias espaciais do Estado, a fase nacional-desenvolvimentista das políticas regionais é caracterizada pela combinação de uma estratégia espacial concentradora (no Sudeste, decorrente do Plano de Metas) com uma estratégia espacial equalizadora, cuja maior representação foi a criação da SUDENE em 1959. Isso implicou numa seletividade espacial dupla, por São Paulo, onde se concentrou a maioria dos investimentos, e pelo Nordeste, onde se realizou a primeira grande experiência de planejamento regional.

A convivência entre uma estratégia espacial concentradora parcialmente contrabalançada por uma estratégia equalizadora foi encerrada com a reconfiguração do aparelho estatal decorrente da transição no bloco no poder e no regime de acumulação. A partir da configuração de uma hegemonia de "duas nações" e do fordismo periférico " selvagem", uma nova estratégia espacial baseada na integração nacional vai coexistir com a estratégia de acumulação concentradora do capitalismo associado e uma nova camada regulatória será sobreposta ao aparelho do Estado e aos projetos e estratégias anteriores (BARCELLOS DE SOUZA, 2012BARCELLOS DE SOUZA, Marcos. Espacializando o desenvolvimentismo: imaginário, escalas e regulação.Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 14 , n.2 / Nov, 2012.). As condições desta coexistência mudarão ao longo do período, como ilustram os planos de desenvolvimento e as alterações na seletividade territorial e escalar das políticas. No entanto, embora seja possível afirmar que a estratégia de integração nacional ambicionava uma desconcentração espacial decorrente da ocupação do território, na maior parte do período existia uma clara subordinação dessa estratégia ao projeto de eficiência, dependente da concentração espacial de recursos humanos e de capital para o prosseguimento da ISI. Apesar dessa "subordinação", seria um equívoco cair no economicismo. É importante destacar os conflitos que cruzam o Estado à medida que novos interesses e atores surgiam e tentavam direcionar territorialmente e escalarmente os projetos e estratégias espaciais estatais. Estes conflitos sugerem mais nuances e impedem que se caracterize uma política espacial simplesmente concentradora no período.

No que tange aos projetos espaciais do Estado, é necessário ter em mente os processos de centralização financeira e administrativa iniciados após 1964 visando adequá-los à estratégia de acumulação nacional. No primeiro caso, destaca-se os efeitos da Reforma Tributária de 1966 e sua relação com a reestruturação do Estado. Naquele momento, a centralização de recursos e poder na União ocorreu através da transferência de alguns impostos para sua competência; a vinculação das transferências de recursos dos Fundos de Participação dos Estados e Municípios, subordinando-os às decisões da União e compatibilizando-os com os requisitos da acumulação; e a decisão federal sobre as alíquotas do ICMS (OLIVEIRA, 1981OLIVEIRA, Fabrício Augusto de. A reforma tributária de 1966 e a acumulação de capital no Brasil. São Paulo: Editora Brasil Debates, 1981.).

Em relação à centralização administrativa, entre 1967-1974 verificou-se a expansão da presença regional da máquina administrativa central e de suas agências descentralizadas (fundações, autarquias, empresas estatais). A centralização através da reprodução da estrutura administrativa federal pelos governos estaduais permitiu que o governo central moldasse essa estrutura, já que os estados acreditavam que o modelo facilitaria a transferência de recursos. De fato, facilitou a realização de convênios entre Estados e a União, configurando uma forma precária de coordenação intergovernamental, na qual a União elaborava as políticas e cabia aos Estados acatá-las (SALLUM JR, 1996SALLUM JR., Brasilio. Federação, autoritarismo e democratização. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, 8(2): pp. 27-52, out. 1996.).

A centralização administrativa foi acentuada pelo governo militar com a justificativa de melhor coordenação da política econômica e do aparelho do Estado, o que repercutiu na montagem de "superórgãos" encarregados de integrar órgãos e políticas menores. Esse procedimento também foi adotado para a coordenação das políticas territoriais. Apesar de continuar responsáveis pela administração dos incentivos fiscais e fundos de investimento regionais e de cooptarem as elites regionais, as superintendências regionais perderam prestígio e importância.

Dito isso, é útil lembrar que a institucionalidade da SUDENE como projeto espacial do Estado foi montada com vistas a uma seletividade espacial baseada numa estratégia de acumulação de ISI regional e na contenção de lutas populares contra hegemônicas. O golpe de 1964 evidenciou a impossibilidade da primeira e representou a "solução" para a segunda. Assim, o tipo de seletividade espacial pelo Nordeste foi perdendo a importância e assumindo uma dimensão mais relacionada à expansão do capitalismo do Centro-Sul (a qual não privilegiaria por excelência o Nordeste) e subordinação do regionalismo local.

Uma nova forma de seletividade espacial no eixo nacional-regional, gestada principalmente no interior do segmento hegemônico no controle do aparelho do Estado - era uma meta antiga das Forças Armadas, reforçando o papel do Estado como gerador de estratégias - ganhou força durante a elaboração do Plano de Integração Nacional (PIN), lançado em 1967. Nesse caso, a integração nacional ganha relevância como estratégia espacial do ENwC, sendo sua meta a expansão da fronteira econômica do país . O conceito de fronteira assumirá significados distintos e legitimará políticas diferentes, abrangendo as Regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Apesar do Nordeste constar nos objetivos do PIN, sua execução privilegiou a Amazônia e, em segundo lugar, o Centro-Oeste.

No caso da Amazônia, as políticas militares para a região assumem uma qualidade diferente daquelas decorrentes da construção de Brasília e dos eixos Rodoviários. Isso foi consequência das mudanças do modelo de desenvolvimento e de alterações no bloco no poder, que revestiram a doutrina de segurança nacional com um viés geopolítico. Dentre as principais políticas para a região nos fins dos anos 1960 destacam-se: i) a criação da SUDAM e emprego dos mesmos incentivos fiscais aplicados no Nordeste, em 1968; ii) a criação da SUFRAMA (exceção em meio às Superintendências macrorregionais), revigorando o papel da Zona Franca de Manaus, em 1967; iii) o conteúdo geopolítico expresso na meta de colonização e povoamento; e iv) um programa de colonização "oficial", apoiando o assentamento de pequenos produtores (em geral, nordestinos) nas faixas ao redor das rodovias.

Além dessas metas oficiais, as políticas espaciais na região Norte apresentaram outra sorte de objetivos. Em primeiro lugar, as obras de infraestrutura e ocupação do território liberaram vasta área de terras que foram utilizadas como investimento pelo capital do Centro-Sul devido ao seu preço quase nulo e enorme valor futuro. Além disso, o processo de reforma agrária posto em prática cumpriu com o objetivo de assentar os colonos em terras devolutas, mas mantendo intocada a propriedade fundiária no resto do país (NABUCO, 2007NABUCO, Maria Regina. A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil. etc, espaço, tempo e crítica. Revista Eletrônia de Ciências Humanas e Sociais e outras coisas. Setembro de 2007, n°2 (6), vol. 1.). Como destaca Maria Regina Nabuco (2007)NABUCO, Maria Regina. A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil. etc, espaço, tempo e crítica. Revista Eletrônia de Ciências Humanas e Sociais e outras coisas. Setembro de 2007, n°2 (6), vol. 1., em meados dos anos 1970 a importância relativa (ou seletividade espacial) da Amazônia nos planos de desenvolvimento regional do governo foi reduzida. Dentre os motivos para isso, a autora assinala a baixa produtividade agrícola, o "fechamento" das melhores terras pelos capitalistas do Centro-Sul e a elevação dos custos de transporte para os mercadores consumidores devido à alta do preço do petróleo.

Em resposta a esse "esvaziamento", algumas medidas serão lançadas através do II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento). Antes de discutilas, cabe destacar a proeminência assumida pela Região Centro-Oeste na estratégia espacial de integração nacional, na mesma época em que o planejamento na Amazônia perdeu sua importância inicial. Naquele momento, a preocupação com a fronteira econômica representou a guinada em direção à adoção de programas para a expansão e modernização agrícola e agroindustrial. O Centro-Oeste desempenhou papel de destaque nessa estratégia, pois apresentava grande disponibilidade de terras férteis e baratas, num contexto de elevação dos preços internacionais de alimentos e matérias-primas (NABUCO, 2007NABUCO, Maria Regina. A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil. etc, espaço, tempo e crítica. Revista Eletrônia de Ciências Humanas e Sociais e outras coisas. Setembro de 2007, n°2 (6), vol. 1.).

Dentre as prioridades da SUDECO (Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste), criada em 1967, pode-se destacar: i) a integração de novas terras para produção agrícola; ii) o planejamento da migração, de modo a fixar as populações ao promover a integração rural-urbano; e (iii) a articulação produtiva com o exterior, através do corredor de exportações baseado no desenvolvimento tecnológico da agropecuária e na industrialização da produção (GUIMARÃES NETO, 2010GUIMARÃES NETO, Leonardo. Antecedentes e Evolução do Planejamento Territorial no Brasil. In: FAVARETO, Arilson...[et al]. Políticas de desenvolvimento territorial rural no Brasil: avanços e desafios- Brasília: IICA, 2010. (Série Desenvolvimento Rural Sustentável; v.12).). Com efeito, o II PND foi a norma institucional que permitiu a incorporação da fronteira do Centro-Oeste brasileiro, definindo como uma das suas metas a melhor integração entre as regiões e a aproximação do urbano e do rural, sustentada pela modernização agroindustrial (NABUCO, 2007NABUCO, Maria Regina. A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil. etc, espaço, tempo e crítica. Revista Eletrônia de Ciências Humanas e Sociais e outras coisas. Setembro de 2007, n°2 (6), vol. 1., p. 75). Nas outras regiões, o plano também implicou numa ocupação mais agressiva das fronteiras, com a implementação dos "polos de desenvolvimento" rurais. Assim, proliferaram programas de caráter agroindustrial e agro mineral, como o POLAMAZONIA, o POLOCENTRO e o POLONORDESTE, que reforçaram a concentração fundiária e não se destinaram a enfrentar os problemas regionais (BERCOVICI, 2003BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Editora Max Limo- nad, 2003.).

O II PND representou um reescalonamento da política regional e a reafirmação do Estado no território, substituindo a escala macrorregional das superintendências pela escala de atuação dos polos de desenvolvimento (e sua irradiação regional, nacional e internacional). Essa nova seletividade escalar deu-se pela definição de que o desenvolvimento regional seria feito pela articulação do Estado e do grande capital, nacional e estrangeiro, cristalizada nos Grandes Projetos de Investimento. A política dos polos representou um "atalho" que ultrapassou a escala para a qual as superintendências regionais foram desenhadas, ressaltando a incoerência daquelas diante do "retalhamento" das regiões.

A estratégia de reescalonamento espacial do Estado, concretizada nos polos de desenvolvimento, representava uma mudança nos "modos de conexão escalar/global" (JESSOP E SUM, 2006JESSOP, Bob; SUM, Ngai-Ling. Beyond the regulation approach: putting capitalist economies in their place. Cheltenham: Edward Elgar, 2006, 479p), condizente como o modelo de capitalismo associado e a internacionalização produtiva e financeira. A manipulação dos fluxos internos e externos aos polos nem sempre foi bem sucedida, produzindo outros padrões de desenvolvimento desigual mediados pelo Estado em várias escalas e decorrentes da dificuldade de "filtração" espacial e retenção local dos excedentes gerados. Nesse sentido, verificou-se: poucos efeitos de atração; o uso de mão de obra pouco qualificada (ou o não aproveitamento da mão de obra local) e fluxos migratórios desordenados; alocação de recursos em pontos privilegiados, aumentando a dependência tecnológica e de pesquisa em relação a outras regiões e países; risco de criação de "polos dentro de polos", aumentando desigualdades em regiões atrasadas; o risco de enclave; o aumento da concentração industrial ao invés de difusão; e aplicação em atividades agrárias que privilegiavam velhos chefes locais (BOMFIM, 2007BOMFIM, Paulo Roberto. A Ostentação estatística: um projeto geopolítico para o território nacional: Estado e planejamento no período pós 64. Tese (Doutorado em Geografia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.).

Os projetos espaciais do ENwC que interagiram com as estratégias e seletividades espaciais analisadas não se resumem à centralização financeira e administrativa e à configuração de Superintendências encarregadas da execução das políticas regionais. A produção de fronteiras internas desempenhou papel fundamental na regulação espacial e política do desenvolvimentismo. As relações entre o poder central e as oligarquias regionais no Brasil sempre foram marcadas por diversas tensões, o que implicou na necessidade de acomodar os interesses conflitantes. A redefinição de fronteiras internas é um elemento importante no contexto brasileiro, no qual foi empregada diversas vezes como tecnologia de poder pelo Estado (MARTINS, 2001MARTINS, Herbert. A Fragmentação do Território Brasileiro: a criação de novos estados no Brasil. Caderno CRH, Salvador, n. 35, p. 263-288, jul./dez. 2001). No período desenvolvimentista foram criados diversos territórios, sendo que depois alguns foram elevados à categoria de Estados da Federação. Assim, assiste-se à criação dos Estados do Acre (1962), Mato Grosso do Sul (1979), Rondônia (1981) e a fusão do Rio de Janeiro (1975). Essa criação de Estados enquadrava-se no projeto de "engenharia política" do governo federal com o objetivo de "fabricar" maiorias no Congresso através da manipulação das regras eleitorais.

A Constituição de 1946 garantiu maior autonomia aos municípios, ao lhes dar liberdade na definição de impostos e uma parcela maior de transferência de recursos federais e estaduais, o que implicou na multiplicação de municípios e num novo pacto territorial que duraria até 1964. Cataia (2006)CATAIA, Marcio. A geopolítica das fronteiras internas na constituição do território: o caso da criação de novos municípios na região Centro-Oeste do Brasil durante o regime militar. Scripta Nova, Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Vol. X, n. 218 (22), agosto de 2006. ilustra como a criação de municípios nesse período correspondia a projetos espaciais do Estado que acompanhavam a colonização espontânea, visando estender a presença do Estado a áreas que não contavam com a ajuda do governo estadual e eram distantes das sedes municipais.

A estratégia espacial de integração nacional a partir do governo militar apoiou-se na criação de municípios como projeto espacial do Estado e princípio de ordenação racional do território, somente possível através da centralização do poder. Os dispositivos de intervenção federal sobre os municípios são vários, incluindo a vinculação das receitas do recém criado Fundo de Participação dos Municípios, a competência sobre a criação de novos municípios (que antes pertencia aos Estados), a nomeação dos prefeitos de municípios em áreas de segurança nacional pelo Presidente da República e a nomeação dos prefeitos das capitais pelos governadores estaduais.

Durante o período entre 1964-1967, a criação de municípios concentrou-se no Centro-Sul, o que é condizente com a divisão do trabalho comandada pela estratégia espacial concentradora. No entanto, entre fins dos anos 1960 e fins dos anos 1970, a criação de novos municípios desloca-se para o Centro-Oeste, o que ilustra "o uso que o poder central fez das fronteiras municipais como um dos elementos de integração da região Centro-Oeste à economia nacional e internacional" (CATAIA, 2006). Nesse sentido, a estratégia espacial de integração nacional e modernização agrícola dos militares demandou a ampliação e modernização dos sistemas de transportes e comunicações, o que possibilitou não apenas o desenvolvimento econômico daqueles espaços, mas também a expansão da malha política, facilitando a difusão de ordens pelo poder central.

A estratégia espacial de integração via modernização agrícola foi acompanhada do projeto espacial que consistia na criação de novos municípios para regular os conflitos sociais, econômicos e políticos. A concentração de novos municípios no Centro-Oeste a partir de fins dos anos 1960, dado o papel que os municípios assumiam na divisão escalar da regulação, implica numa preocupação diferenciada do Estado na regulação de conflitos locais e no estabelecimento de nova divisão espacial da regulação que permitisse sua maior presença e controle político e econômico na área.

No que tange aos projetos espaciais do Estado no período 1964-74, cabe mencionar ainda a institucionalização das Regiões Metropolitanas (RMs), em 1973. Naquele momento foram criadas oficialmente nove Regiões Metropolitanas, ao redor das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre e Curitiba. Segundo Souza (2003)SADDI, Fabiana. Política e economia no federalismo do governo Geisel. Revista de Economia Política, vol. 23, nº 2 (90), abril-junho/2003, as RMs foram criadas como resposta à urbanização acelerada dos anos 1970 e atendiam aos objetivos de centralização e controle dos territórios mais dinâmicos pelo regime militar. O modelo adotado, apesar de se basear em clara demarcação jurídico-política-territorial pelo poder central, não criou os incentivos para cooperação entre o Estado e os municípios ou entre os municípios que integram uma RM. Também não gerou uma identidade regional em torno das RMs, dado o pouco interesse dos cidadãos, a inexistência de participação política e as grandes disparidades intra RMs.

Dito isso, o II PND representou não apenas uma tentativa de reajustar o modo de regulação à crise dinâmica do regime de acumulação , mas também um esforço de resolver contradições provocadas pelo desenvolvimento espacial desigual, promovendo um nova relação entre projetos e estratégias espaciais do Estado. Isso ocorreu porque o padrão de "fugas para frente" que ajudava a sustentar o ajuste espaço-temporal desenvolvimentista eventualmente esbarrava em limites estruturais. Como veremos, as circunstâncias que levaram à implementação do Plano consistiram num desses limites. No entanto, as tentativas de recalibragem engendraram contradições ainda mais complexas, cuja evolução culminou na crise do Estado Desenvolvimentista. Recordaremos brevemente a seguir alguns padrões de desenvolvimento desigual e as tensões produzidas:

A fragilidade concreta dos polos de desenvolvimento enquanto política econômica- espacial

  • O ano de 1970 representou o auge da concentração industrial em São Paulo, sobretudo nos segmentos mais dinâmicos (bens de capital e bens de consumo duráveis) a partir da instalação da indústria pesada, com o Plano de Metas, e seus efeitos de encadeamento regionais (CANO, 1998CANO, Wilson. Desequilíbrios regionais e concentração industrial no Brasil, 1930-1995. Campinas, SP: UNICAMP, IE, 1998. (30 anos de Economia - UNICAMP).).

  • A urbanização acelerada no período foi a consequência do forte crescimento demográfico entre os anos 1950 e 1960, do desenvolvimento industrial acelerado e das levas migratórias, especialmente para as duas metrópoles do Sudeste. Na década de 1970, o aumento médio anual da população urbana já era maior que o da população total e nesse contexto, a metropolização ganha relevo. Até 1960, apenas as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro tinham mais de um milhão de habitantes e poderiam ser consideradas metrópoles. No entanto, o crescimento de grandes cidades ocorre em todas as regiões do país ao longo da década de 1970, sobretudo na faixa de cidades entre 250 mil e 500 mil habitantes e entre 500 mil e 2 milhões de habitantes (SOUZA, 2004SOUZA, Maria Adélia A. de. O II PND e a política urbana brasileira: uma contradição evidente. In: DEÁK, Csaba; SCHIFFER, Sueli Ramos (orgs.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: Edusp, 2004.). Entre 1950 e 1980, a participação das atuais regiões metropolitanas no total da população brasileira saltou de 17,95% para 28,93%. Naquele contexto, programas de desconcentração industrial, interiorização do desenvolvimento e incentivo às cidades médias ganhavam relevo.

  • A legislação urbanística não se adaptou às mudanças demográficas, econômicas e sociais no período, voltando-se mais para a regulação das oportunidades de ganho do capital imobiliário - assentadas na segregação espacial-do que com a regulação social da cidade e a necessária provisão de infraestrutura urbana e moradia para todos (QUINTO JR, 2003).

  • O "esmaecimento da Federação" (SALLUM Jr, 1996SALLUM JR., Brasilio. Federação, autoritarismo e democratização. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, 8(2): pp. 27-52, out. 1996.) causado pela Reforma Tributária de 1966-1967 e a promulgação de Atos Institucionais pelo Executivo provocou tensões entre níveis de governo, políticos, segmentos do aparelho de Estado e sociedade civil. A centralização, como vimos, surge como necessidade não apenas econômica mas também política do bloco hegemônico. A nova federação após o golpe facilitou a execução de políticas públicas federais através do estabelecimento de convênios e do condicionamento das transferências e repasses dos Fundos de Participação a medidas como a fixação de mínimos com gastos em capital para as prefeituras. Ademais, estabeleceu um tipo especial de relação com os governos estaduais, suas empresas estatais e bancos estaduais. Segundo Lopreato (2000, p.118)LOPREATO, Francisco. O endividamento dos governos estaduais nos anos 90. Economia e Sociedade, Campinas, (15): 117-158, dez. 2000., "O acesso ao mercado de crédito [via agências de crédito federais ou empréstimos externos] permitiu que os Estados se livrassem das amarras existentes no campo tributário e superassem os problemas criados com a concentração de poder tributário na esfera federal". No que tange aos aspectos políticos, além da subordinação dos governos estaduais houve uma tentativa de homogeneização das elites regionais pelo governo Médici, pois, dadas as regras de seleção do regime, o espaço para lutas se restringia à cúpula do Estado (SALLUM JR, 1996SALLUM JR., Brasilio. Federação, autoritarismo e democratização. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, 8(2): pp. 27-52, out. 1996.).

A análise dos projetos e estratégias espaciais no período 1964-73 ilustra a aparente contradição entre estratégias espaciais que tinham uma sustentação urbana, voltada para a ISI ou para a interiorização do desenvolvimento, e projetos espaciais "anti-urbanos". Uma observação estratégica-relacional do II PND, com sua complexa conjuntura e rebatimentos duradouros sobre a crise desenvolvimentista, pode ajudar a explicar os desdobramentos desta contradição.

O II PND não conseguiu unificar os diferentes momentos do circuito do capital segundo sua estratégia de acumulação, que visava a renovação da estratégia de ISI e o desenvolvimento dos sementos de bens intermediários e bens de capital. Esta consistia em conferir hegemonia econômica ao capital produtivo estatal, o que implicava na aceitação geral dessa posição, especialmente por parte do capital produtivo nacional e pelo capital financeiro nacional (LESSA, 1998LESSA, Carlos. A Estratégia de Desenvolvimento 1974/76: sonho e fracasso. Campinas: Editora do IE/Unicamp, 1998). Na prática, a construção civil (articulada ao capital financeiro) e a grande engenharia nacional exerciam a dominação econômica, ou seja, através do controle de formas extra-econômicas privilegiadas de acesso ao Estado, tinham a capacidade de impor seus interesses econômico-corporativos sobre as outras frações do capital. No entanto, apenas a dominação econômica é incapaz de garantir a integração do circuito do capital e sustentar a acumulação no longo prazo, dados os efeitos negativos que impunha ao capital industrial. Em outras palavras, seria necessária a destruição de uma rede de compromissos baseados em interesses econômicos específicos que sustentavam a estratégia de ISI anterior e a construção de uma nova rede de compromissos "que agilizasse as transferências de renda necessárias para a implementação da indústria de bens de capital e de insumos pesados" (DIAS E AGUIRRE, 1993DIAS, Guilherme da Silva; AGUIRRE, Basília. Crise político-econômica: as raízes do impasse. In: SOLA, Lourdes (Org.). Estado, Mercado e Democracia. Política e economia comparadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 311).

A abordagem deve ser acrescida dos conflitos no interior do aparelho do Estado, que podem ser apreendidos à luz do projeto hegemônico e se manifestam nos custos políticos do bipartidarismo, na desconcentração de poder entre agências do Estado, na intervenção através da nomeação de governadores e conflitos no interior das Forças Armadas.

A tentativa de promover um encaixe entre a nova estratégia de acumulação e o prosseguimento do projeto hegemônico desenvolvimentista dependia da capacidade de "institucionalização" do regime. Pode-se argumentar que esse seria o passo fundamental para fazer a transição de uma "hegemonia de duas nações" para o tipo de Revolução Passiva que os militares almejaram inicialmente. Os conflitos presentes na tentativa de compatibilizar o projeto hegemônico com a estratégia de acumulação buscarão um ajuste espacial através dos projetos e estratégias espaciais do Estado.

Além de evitar qualquer privilégio analítico entre o político ou o econômico, ao privilegiar a dialética entre ambos a AER permite uma compreensão melhor das diferentes estratégias em circulação e sua seleção e retenção através do Estado. Conforme Aguirre e Saddi (1997)AGUIRRE, Basília; SADDI, Fabiana. Uma alternativa de interpretação do II PND. Revista de Economia Política, vol 17, n.4(680, 1997. ANTIPODE. Volume 42, n. 5, pp 1151-1179, Novembro 2010., é possível que o Estado Desenvolvimentista assuma uma dupla dominação, através de uma forma racional-legal e outra neopatrimonialista baseada na aliança com elites atrasadas, o que influencia suas formas de expansão. Dessa forma, havia a necessidade de novos programas capturarem novos grupos, num processo de expansão desordenada, já que os antigos resistem a sair do governo e sua permanência é assentida através da negociação de benefícios. Conforme argumenta Jessop (2008)JESSOP, Bob. State Power. Cambridge: Polity Press, 2008., o que importa no neopatrimonialismo como governamentalidade é como estas formas de poder imanentes em certas relações sociais circulam. Ou seja, como podem ser colonizadas e reproduzidas em mecanismos mais gerais que sustentam formas de dominação mais amplas; e como podem ser articuladas a objetos de governança específicos. O mais importante, portanto, é sua articulação com estratégias concretas de poder do Estado e de classe. Essas relações serão calibradas pelas estratégias e projetos espaciais do Estado e pelo realinhamento do pacto federativo.

Estas mudanças se manifestaram no esforço de revitalização da federação como forma de controlar o processo de institucionalização do regime no período de 1974 até 1982 (SALLUM JR, 1996SALLUM JR., Brasilio. Federação, autoritarismo e democratização. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, 8(2): pp. 27-52, out. 1996.). A derrota do partido do governo nas eleições foi determinante nesse sentido pois, a partir de sua fragmentação, o governo central passa a considerar os governadores como aliados estratégicos, revertendo a tendência de centralização. Através da desconcentração produtiva, Geisel se aproxima dos governadores e valoriza politicamente as elites regionais mudando as regras eleitorais para favorecer as elites das regiões menos desenvolvidas e urbanizadas.

As mudanças no federalismo fiscal acompanharam o novo pacto político, destacando-se: i) a recomposição gradual das alíquotas dos FPE e FPM (Fundos de Participação Estadual e Municipal), até o original de 20%; ii) eliminação da condicionalidade das transferências do FPE e aumento do seu volume para as regiões Norte e Nordeste ; iii) aumento da alíquota do ICM (com tratamento privilegiado a Estados do Norte e Nordeste); iv) expansão dos convênios como forma de articulação das burocracias estaduais e federal, priorizando aplicação de recursos nos Estados do Norte e Nordeste ; v) alteração nos limites de créditos de Estados e municípios; vi) facilitação do acesso ao crédito externo pelos bancos estaduais. Como argumenta Saddi (2003), o federalismo se junta com os mecanismos político-eleitorais como recurso político na promoção do projeto do governo, almejando alterar a articulação com Estados e municípios, o redirecionamento dos investimentos e a distribuição da renda regional.

O realinhamento do federalismo durante o governo Geisel tomaria outro rumo com o Pacote de Abril em 1977 e o reajuste das forças políticas importantes na decisão de prosseguir com a substituição de importações e de "controlar" a liberalização política (AGUIRRE E SADDI, 1997AGUIRRE, Basília; SADDI, Fabiana. Uma alternativa de interpretação do II PND. Revista de Economia Política, vol 17, n.4(680, 1997. ANTIPODE. Volume 42, n. 5, pp 1151-1179, Novembro 2010.). Dessa forma, o Pacote de Abril promoveu mudanças nas regras eleitorais que aumentavam a repre- sentação de espaços mais atrasados e aliados ao governo. É nesse sentido que a descentralização do governo Geisel pode ser entendida como paradoxal, pois abriu um espaço para que Estados e municípios passassem a criticar o sistema fiscal, o que produziu resultados inesperados. O Executivo, ao transferir mais poder, sofrerá pressões para transferir mais recursos e para atenuar a dependência financeira dos Estados, e "perde o controle no processo de transição política" (SADDI, 2003SADDI, Fabiana. Política e economia no federalismo do governo Geisel. Revista de Economia Política, vol. 23, nº 2 (90), abril-junho/2003, p.42).

A consequência será um "federalismo de impasse", que descentralizou recursos mas não as competências e que iria ter rebatimentos na própria Constituição de 1988. Ademais, a super-representação dos Estados mais atrasados somada ao poder de veto dos governadores irá travar as necessárias reformas tributária e fiscal (idem). Como argumenta Sallum Jr (1996), é necessário falar de dois movimentos distintos de descentralização no Brasil: o primeiro, de descentralização controlada (ou top down), entre 1974 e 1982; e o segundo, iniciado a partir das reformas de 1983/4 e culminante na Constituição de 1988, como uma descentralização "arrancada" (ou bottom up), promovido pelo avanço de novos centros de poder no interior do Estado, impulsionados pela base da sociedade e facilitado pelo contexto internacional.

Para finalizar a discussão sobre estratégias e projetos espaciais do Estado durante o desenvolvimentismo, cumpre apresentar um breve comentário sobre a política urbana no período. A Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) surgiu como um capítulo do II PND, embora houvesse nítidas contradições entre ambos. Em geral, o problema consistia no embate entre uma visão "econômica", setorialista e preocupada com a eficiência, e outra "espacial" do planejamento urbano, que visava a desconcentração e o ordenamento territorial. A visão vencedora foi a econômica/ setorialista, que atendia aos interesses hegemônicos do centro sul (especialmente os investimentos nas Regiões Metropolitanas do Sul e Sudeste) e acabou desvirtuando o Programa das Cidades Médias. A proposta de uma integração entre planejamento territorial e urbano - e considerando o viés setorialista -, privilegiaria, no Plano, as Regiões Metropolitanas, mas na prática isso não ocorreu dadas as já mencionadas dificuldades de coordenação intergovernamental (Souza, 2004SOUZA, Celina. Regiões Metropolitanas: condicionantes do regime político. Lua Nova n.59, 2003.).

Em suma, a natureza e objetivos dos projetos e estratégias espaciais durante o Desenvolvimentismo-militar estão reunidos nos quadros 2 e 3.

Quadro 2
Estratégias Espaciais do ENwC (ou Desenvolvimentismo Espacial)
Quadro 3
Projetos Espaciais do ENwC (ou Desenvolvimentismo Espacial)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Antes de assinalar as contradições na regulação do desenvolvimento desigual, cumpre sintetizar brevemente os resultados das políticas espaciais empreendidas. Em relação à questão mais geral da desconcentração industrial regional, pode-se argumentar que os resultados foram ambíguos, dada a variedade de estratégias implementadas e as seletividades espaciais que as orientaram, além da decisão de evitar transferência de capital e recursos que prejudicasse a eficiência global da economia. Assim, concordamos com Bercovici (2003)BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Editora Max Limo- nad, 2003. a respeito da não intencionalidade clara, ou melhor, da ausência de prioridade do Estado na promoção de políticas de desconcentração industrial. No entanto, conforme argumenta Egler (1996)EGLER, Claudio. Crise e Dinâmica das Estruturas Produtivas Regionais no Brasil. In: Castro, I.E; Gomes, P.C.C; Corrêa, R.L. (Org). Brasil: questões atuais da reorganização do território. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. 470p., ao fim dos anos 1980 o país apresentava estruturas produtivas regionalizadas especializadas e diferenciadas, com razoável grau de complementariedade entre elas, sendo inadequada uma análise baseada em relações centro-periferia. Apesar de a indústria continuar fortemente concentrada no Sudeste, principalmente nos setores de bens de capital e consumo durável, a indústria de bens intermediários, especialmente a química, consolida-se e apresenta padrão bem menos concentrado, com destaque para a produção no Nordeste. Além disso, destaca-se uma produção razoável de bens de consumo duráveis e de capital na Região Norte - devido à Zona Franca de Manaus - e a instauração de um moderno complexo agroindustrial no centro-oeste. Paralelamente aos efeitos desses polos de dinamismo sobre as estruturas produtivas regionalizadas nos quais se inserem, verifica-se o surgimento de poderosos grupos econômicos regionais, que passariam a ter influência política significativa nos rumos das políticas econômicas.

Não obstante esses avanços, algumas questões permaneceram insolúveis, enquanto novos problemas surgiram. No que tange ao Nordeste por exemplo, cumpre assinalar que o tipo de industrialização foi concentrador em termos de escala do capital, uma vez que os incentivos fiscais não beneficiaram pequenos e médios capitais. Ademais, a modernização alcançada não significou uma mudança nas normas de sociabilidade e estruturas mais localizadas de poder, como se verificava pelo alto peso do setor agropecuário sobre a população ocupada (OLIVEIRA, 1990OLIVEIRA, Francisco de. A Metamorfose da Arribaçã: fundo público e regulação autoritária na expansão econômica do Nordeste. Novos Estudos Cebrap, n.27, 1990.). O padrão industrial continuaria regido pela dependência e complementariedade em relação à indústria do Sudeste (BERCOVICI, 2003BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Editora Max Limo- nad, 2003.).

A metropolização chegaria com algum atraso, mas nos 1980 a concentração urbana e seus problemas se reproduziriam no Nordeste e no Norte, expondo o fracasso da PNDU. O desenvolvimento de uma classe média urbana opositora nas regiões atrasadas teve relevância crucial na luta pela democracia e derrocada do regime autoritário. Por outro lado, a aposta do II PND numa aliança com oligarquias não capitalistas também cobrou seu preço: além de serem mais orientadas por uma racionalidade substantiva, quando os investimentos das estatais atrasaram ou arrefeceram, as elites regionais juntaram-se a sua contraparte capitalista e aumentaram a "solidão" do Estado.

A modernização limitada das economias e elites regionais promovida pelos investimentos em infraestrutura do II PND teve outra consequência problemática: serviram como uma base para que estes Estados praticassem a guerra fiscal alguns anos mais adiante (ABRUCIO e COSTA, 1998ABRUCIO, Fernando e COSTA, Valeriano. Reforma do Estado e o Contexto Federativo Brasileiro. Série Pesquisas, n.12. Fundação Konrad Adenauer, 1998.). Além disso, a desconcentração industrial baseada principalmente em segmentos intensivos em recursos naturais foi um facilitador para que essas regiões buscassem uma integração passiva e baseada em commodities após a liberalização comercial seguida da quebra dos encadeamentos produtivos inter-regionais.

O que ficaria mais nítido, no entanto, seriam as tensões e os efeitos deletérios do "federalismo de impasse", resultado do maior poder adquirido pelos governadores, sobretudo após as eleições de 1982. A partir de então teria início a segunda onda de descentralização, agora de natureza bottom up. O federalismo de impasse, não obstante, foi marcado por elevado endividamento e agravamento das finanças estaduais e pelo estabelecimento de relações que barrariam as reformas fiscal e tributária até o Plano Real, em 1994.

Com base no que discutimos, podemos afirmar que o II PND foi também uma tentativa de aperfeiçoar os mecanismos de regulação espacial do desenvolvimentismo, o que não significa necessariamente enfrentar o problema da produção do desenvolvimento desigual. Com efeito, o que ocorreu foi o reconhecimento dos custos políticos de uma centralização tributária autoritária e da necessidade do Estado desenvolver as regras de seleção de novos interesses para não ficar "trancado" em determinadas trajetórias, o que implicou em ampliar a sua condição como "local" de estratégias. Paralelamente ao estabelecimento dessas regras, o poder do Estado foi exercido por meio da busca por uma coerência entre suas estratégias e projetos espaciais. Em algumas áreas esta coerência foi alcançada, como na integração nacional via modernização agrícola do Centro-Oeste e a política de criação de municípios na região; ou na relação entre a revitalização da Federação e a ampliação das alíquotas dos Fundos de Participação e criação dos Fundos de Investimentos Regionais, como o FINOR. Em outros momentos, a coerência foi apenas temporária, como no aumento da representação das áreas atrasadas, com suas elites conservadoras, e a maior participação das modernas empresas estatais nessas regiões; ou entre a descentralização "controlada", com o fim das condicionalidades sobre as transferências, e a perda do controle dos governadores sobre as finanças estaduais.

Em todo caso, da mesma maneira em que fracassou ao recalibrar o modo de regulação da economia para dar prosseguimento à ISI, o II PND também falhou em promover uma normalização do alcance espaço-temporal da regulação, ou seja, em fornecer um horizonte de decisões razoavelmente convergente e estável aos agentes. Ademais, mesmo com uma proposta desconcentradora, não conseguiu eliminar os padrões de desenvolvimento espacial desigual que se manifestavam e ainda aprofundou algumas dessas tendências, além de produzir outras.

Assim como ocorreu com o KWNS, o ENwC que surgiu durante o pós guerra também se sustentava em novas formas de organizar, produzir e transformar o espaço político-econômico. A "arquitetura regulatória" do desenvolvimentismo espacial era composta por diversos projetos e estratégias espaciais do Estado, cujas projeções escalares e territoriais correspondiam ao equilíbrio de forças no bloco hegemônico e às formas de seletividade estrutural e estratégica do Estado. Em linhas gerais, verificou-se uma forte regulação política centralizada dos espaços urbanos através da dependência de recursos e transferências e negociações "bilaterais" que promoviam uma ampla diferenciação espacial na oferta de serviços. O ENwC sustentava-se também na extensão de seu controle para áreas pouco habitadas e estratégicas através da criação de municípios. Apesar de vultosos investimentos em infraestrutura, as estratégias espaciais do Estado priorizaram a busca de economias de aglomeração essenciais para o modelo ISI e a ocupação/exploração do território vis a vis a equalização da distribuição da indústria e serviços no mesmo. Essa combinação teve impactos na (re)produção e sancionamento de ambientes construídos e padrões de uso do solo característicos, marcados pela especulação, segregação, periferização e informalidade.

O tipo de regime de regras interescalar nacionalizado que cobria as cidades, regiões e outros espaços subnacionais consistia nas transferências, empréstimos, convênios, fundos de participação e fundos de investimento regionais, e contribuía para reforçar a dominância da escala nacional.

Sem embargo, em meio ao rompimento de solidariedades prévias devido a uma estratégia de acumulação incapaz desde o início de ser duradoura; ou em decorrência dos conflitos que se intensificavam e cruzavam o aparelho do Estado ameaçando o projeto hegemônico desenvolvimentista, novos agentes e relações ganhavam relevância. O período de crise que se assomava oferecia a esses agentes possibilidades estratégicas e horizontes de ação distintos, o que tornava difícil precisar as condições para uma nova estabilização. Entre esses agentes, podemos destacar os governadores, o empresariado e a sociedade civil organizada, manifesta no novo sindicalismo e no movimento municipalista.

O ENwC sofrerá tensões nas suas quatro áreas de intervenção: a crise no modelo de ISI, as pressões para a consolidação de um Welfare completo e descentralização das políticas sociais, a emergência de centros de poder subnacionais e da financeirização do capital, e o surgimento de modelos de governanças bottom up, cruzados pela proliferação de redes de políticas públicas. Será dessa forma que a crise do desenvolvimentismo, redemocratização, descentralização e neoliberalismo convergem na reestruturação do Estado, produzindo novos reescalonamentos. Com efeito, a neoliberalização, enquanto processo de reestruturação permanente e contraditória de uma governança pró-mercado, tem origens em múltiplos espaços, escalas e circuitos interconectados sendo que mais importante do que apontar algum marco definitivo é tentar reconstruir esse processo, ou seja, rastrear as geografias históricas do neoliberalismo a partir da crise do desenvolvimentismo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2016
  • Aceito
    21 Out 2016
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