Acessibilidade / Reportar erro

SABER E NÃO SABER: A RESPOSTA COMO PENSAMENTO EM COMPANHIA

KNOWING AND NOT KNOWING: THE ANSWER AS THINKING IN COMPANY

Não há privilégio maior que eu possa imaginar do que o de ter a oportunidade de me envolver com leitores que seguram um livro em suas mãos e se perguntam: qual é a ideia deste livro sobre si mesmo? Muito obrigada às seis autoras que compartilharam sua experiência de leitura de Textures of the Ordinary (doravante Textures) -, formando seus próprios questionamentos de uma forma que pudesse ajudar a levar além a ideia que o livro tem de si mesmo. Ao retornar a Textures em companhia dos comentários dessas autoras, sinto-me encorajada a refletir sobre algumas novas perspectivas que se abrem e a revisitar a sensação de chegar a obstáculos intransponíveis em outros casos. Tomo três questões conceituais, em sua derivação da etnografia e do engajamento criativo, com exemplos extraídos dos comentários das autoras. Em primeiro lugar, pergunto: como podemos reconfigurar o conceito de vida em uma multiplicidade que lhe seja inerente; em segundo lugar, há o trabalho do tempo, sua relação com a possibilidade e sua afinidade com o que poderia ser experimentado enquanto lenta corrosão do cotidiano ou sua destruição dramática; e em terceiro, a relação íntima entre ética e estética e as múltiplas formas que esta relação assume na vida cotidiana.

Vida

Fabiana Jardim e Mariana Côrtes reconfiguram a noção de vida mediante o olhar às aparências concretas desse conceito em Textures. Segundo Perig Pitrou (2022PITROU, Perig. 2022. Les anthropologues et la vie. Paris: Mimésis Éditions.), a onipresença de seu uso em tantos contextos faz parecer a muitos que se trata mais de uma metáfora do que de um conceito. Uma definição mais sólida de vida, alguns sugerem, nos faria amarrá-la mais estritamente a processos biológicos de reprodução, vitalidade e mortalidade, ou ao desdobramento linear de nascimento, crescimento e morte. O problema é que, como a noção de existência, a noção de vida também não admite predicados, razão pela qual existem tantas sinuosidades nas definições de dicionário, bem como nas definições legais ou médicas da vida. Nesses contextos, a vida é tratada como um conceito dicotômico, capaz de ser definido apenas em oposição à morte. A Seção 46 do Código Penal Indiano, por exemplo, afirma: “A morte representa o fim da vida de um ser humano, a menos que haja alguma contradição que apareça no contexto”. Este não é o lugar para tomarmos como objeto de nossas considerações a perspectiva tecnológica a partir da qual se decide quando uma pessoa pode ser declarada legalmente morta (por exemplo, mediante a determinação da cessação da respiração ou da morte cerebral), exceto para observar que a inclusão do contexto para determinar o que está vivo e o que está morto complica enormemente, antes de mais nada, a ideia de um significado literal do conceito de vida. Entre outros autores, a formulação altamente influente de Giorgio Agamben (1998AGAMBEN, Giorgio. 1998. Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life. Redwood City, California: Stanford University Press. ), baseada na antiga distinção grega entre bios (como a vida é vivida) e zoe (os fatos biológicos da vida), tem sido utilizada para sugerir que a regulação da vida em sua dimensão biológica define a política moderna, incluindo a dos regimes fascistas. As formulações de Foucault sobre a biopolítica também foram absorvidas de uma forma bastante facilitada, à medida que a referência à regulação da dimensão biológica da vida, apagando as sutilezas de suas distinções entre o poder exercido sobre os corpos individuais e o poder de moldar a população, é não raro ignorada. A questão complicada aqui é se o poder sobre a vida, o poder sobre os vivos e o poder de regular a população equivalem aos mesmos processos vagamente agrupados sob o termo biopolítica (Fassin 2009FASSIN, Didier. 2009. “Another politics of life is possible”. Theory, Culture & Society, 26.5:44-60.). Sem me aprofundar mais nesta questão, uma vez que critiquei a sedução do termo “vida nua” em outras oportunidades (Das 2022DAS, Veena. 2022. Slum Acts. Cambridge: Polity Press.), quero registrar como fiquei aliviada ao encontrar a ruptura de Jardim e Côrtes em relação a todo esse vocabulário ao dizerem que “Pareceu-nos que vida (cotidiana; das palavras; do trabalho ético sobre si e sobre as relações) e vitalidade (a abertura em deixar-se marcar pelo conhecimento e pelo sofrimento do outro e mover-se a partir do encontro) constituem veios importantes pelos quais o livro corre até seus leitores.” (grifo meu). Esta é uma leitura brilhante do papel da ideia de vida em Textures, às vezes até arrastando Foucault para as favelas de Delhi (cf. Capítulo 6, com o subtítulo “Foucault nas favelas de Delhi”) em vez de tentar encaixar o fluxo da vida nas distinções categóricas de bio e zoe.

As muitas maneiras de Wittgenstein (2010WITTGENSTEIN, Ludwig. 2010 [1953]. Philosophical Investigations. Tr. G.E.M. Anscombe, P.M.S. Hacker and Joachim Schulte. Hoboken, New Jersey: John Wiley & Sons. [Versão em português utilizada nesta tradução: Investigações filosóficas. 2022. Tradução, organização, apresentação e vocabulário crítico: Giovane Rodrigues e Tiago Trajan. Posfácio: Marcelo Carvalho. São Paulo: Editora Fósforo.]) dar contornos à ideia de vida implicam perguntar: o que é viver? O que dá vida a algo? O que drena a vida de algo? A maravilhosa observação #432 de Investigações Filosóficas (IF), na qual Wittgenstein diz: “Cada sinal isoladamente parece morto. O que lhe dá vida - No uso ele ganha vida. Será que é no uso que ele contém em si seu sopro de vida? - Ou o sopro é o uso?”. A ideia de que esses são veios fundamentais através dos quais o livro flui ao encontro de seus leitores não diz respeito simplesmente ao conteúdo dos argumentos em Textures; aos meus ouvidos, um modo de estar com meus entrevistados e interlocutores, seja caminhando pelas favelas em Delhi, seja me envolvendo em intensas discussões com família, amigos, estudantes, é o veio através do qual um gosto pela vida fluiu para o meu ser. Adriana Vianna vai ainda mais longe do que eu ousava quando nomeia a própria antropologia como um ofício de reencontros, perdas e curas. Talvez eu esteja mais inclinada a dizer que não há cura para as criaturas da terra, mas como habitar essa condição terrena sem desejar mal no mundo é um aspecto do mundanismo do conhecimento antropológico que eu aprecio. Faço ainda outra observação aqui, inspirada pela justaposição de reencontros, perdas e curas. Embora desconfie da ideia de cura, quero pensar mais sobre como as pessoas que descrevo agiram em suas experiências de perda, às vezes catastróficas, às vezes apenas rotineiras e indignas. O que significava seguir em frente?

Vamos considerar a discussão de Letícia Ferreira sobre o Estado ou a evocação de Camila Pierobon do casal amoroso se casando contra os desejos e as normas de seus pais e das comunidades mais amplas às quais pertencem. Ambas as autoras desenvolvem seus argumentos através das ações de indivíduos nomeados específicos - Kh, Sanjay Gupta, Prem Singh -, debatidas por Ferreira, e o casal Kuldip e Saba, nos comentários de Pierobon. Ao tomar esse modo de argumentação, essas autoras (como outros também) estão completamente sintonizadas com o simples fato de que esses indivíduos não aparecem como tipos sociais em Textures. Em vez disso, suas singularidades são de extrema importância no texto porque as histórias de Kh, Sanjeey Gupta e Prem Singh nos ajudam a identificar os traços do Estado na vida cotidiana de uma maneira que um olhar direto para o aparelho de Estado pode não revelar. Da mesma forma, a paisagem institucional que Kuldip e Saba atravessam em suas tentativas de afastar os perigos de seus parentes quando fogem, como deixar na delegacia de polícia uma carta com o reconhecimento firmado de um advogado, a qual atestava que Saba estava partindo deliberadamente com Kuldip, revela um mundo inteiro. O simples ato de apelar à lei de forma preventiva em relação a maneiras de afastar as ameaças à família e sua honra, a condensação dos medos de Saba quando ela suspeita que seu pai pode apresentar uma acusação criminal contra Kuldip por sequestrar sua filha, e que a polícia pode estar favoravelmente inclinada a “recuperá-la” - tudo isso encontra nós grossos nas histórias de sequestro de meninas em conflitos comunais, bem como suposições patriarcais tácitas através das quais os mecanismos legais funcionam em conjunto com as linhas de suspeita em torno dos muçulmanos. Traços dessas suposições que informam como a lei funciona ao rés do chão são encontrados na trágica história de Kh, mas o caso toma um rumo totalmente diferente em razão de uma série de contingências e da coragem que essa criança de 8 anos é capaz de reunir e das ficções legais que fazem o caso contra seu sequestrador ter sequência no tribunal. Na notável perseverança de Sanjeev Gupta, vemos sucesso limitado em mobilizações comunitárias para conquistar pela insistência direitos para tornar um bairro habitável, enquanto no caso de Prem Singh, vemos a união do absurdo e do trágico produzindo ainda outro tipo de visão sobre os aspectos grotescos do poder em nível global. As favelas têm tais segredos para revelar - de que outra forma entender a convocação do presidente Bush a agir de acordo com suas palavras e a genuinamente viver segundo suas reivindicações de liderança do mundo livre com o saneamento do esgoto no bairro de Prem Singh - um chamado ao dever escrito em um cartão-postal que chega à Casa Branca e até provoca uma resposta absurda? O entrelaçamento do trágico e do cômico, as linhas de esperança e desespero dão expressão concreta às profundas reflexões de Cavell sobre o caráter misterioso da vida cotidiana, mas eles não são simples ilustrações de uma teoria. Essas descrições concretas, em verdade, conferem vida à teoria, mostrando que as questões filosóficas podem surgir e surgem em qualquer lugar na trama da vida.

Tempo

Adriana Vianna considera Textures um livro desconcertante e posso testemunhar que lê-lo tem efeitos semelhantes em mim. Isto ocorre, em parte, porque em algum momento da escrita eu tive de me deixar levar por minha escrita e acompanhá-la por onde quer que ela me levasse. Alguns amigos próximos e leitores atentos do texto viram Textures como um encontro de etnografia e autobiografia e, como diz Vianna, o livro carrega um sentido de re-contar, embora ela não comente minha tendência de deixar as coisas pelo meio. No entanto, é esta característica da minha escrita que se relaciona muito com o que herdei dos modos indianos de contar histórias e da abertura de textos a tradições de comentários contínuos que se estendem por séculos. Deixar as coisas pelo meio pressupõe que podemos ser capazes de retorná-las - ou trai a confiança de que os outros terão condições de fazer mais e melhor com essas ideias. Gostaria de dizer, no entanto, que minha tendência de continuar realizando trabalho de campo nos mesmos lugares, com as mesmas famílias, registrando a simultaneidade e a sucessão de eventos em minha vida com a vida dos meus entrevistados e interlocutores, é muito semelhante à minha permanência junto a determinados textos que tenho lido ao longo dos anos, retornando às mesmas palavras e às mesmas frases neles presentes e me perguntando de que maneira elas podem revelar um novo rosto. Vianna vê esses aspectos do meu estar com as pessoas e com os textos como um certo modo pelo qual o conhecimento antropológico se constitui. Aqui estão algumas frases de seu comentário que me impressionam:

[...] entende[-se], com especial força em Textures of the Ordinary, como somos criadoras e criaturas do tempo em nosso ofício. Se a compreensão de certas situações etnográficas pode se alterar de maneira significativa em diferentes momentos, isto se deve menos a qualquer propriedade esclarecedora por si só que o tempo guardaria, e mais ao modo como podemos nos ver diante de novos espantos e opacidades em nossas relações com outros e conosco mesmas.

Frases breves, pequenos gestos aparentemente ordinários podem, assim, ser agregados retrospectivamente a este momento dramático, permitindo entrever quão profundas eram as decepções ali acumuladas. Se isto permite indicar uma vez mais o caráter elusivo do ordinário, sua capacidade de se esconder justo porque se apresenta diante de nossos olhos como se fosse banal também permite refletir sobre quão pouco percebemos às vezes sobre quem somos em nossas relações no “estar com” [being-with] que marca o trabalho de campo [...]. Mas não se trata apenas de ocultamentos ou revelações externas, como fica evidente quando ela nos traz outra situação, anos mais tarde, envolvendo a fase final de vida de sua sogra. É nos desafios de vivenciar falas e gestos incompatíveis com a pessoa que conhecia até então que a opacidade do self e do conhecimento se mostram com mais força. Não há, como ela diz, uma “chave única” que revele os segredos da vida compartilhada com os outros.

Acho que essas frases fornecem uma formulação maravilhosa de como um ritmo temporal distinto daquele da separação entre trabalho de campo e escrita ou o de visitar o mesmo local de trabalho de campo como um “reestudo” traz à baila certos aspectos que estavam ocultos anteriormente ou aos quais não poderíamos prestar atenção. Há, no entanto, dois pontos adicionais sobre os quais meus interesses conceituais no cotidiano, em particular a relação entre o evento e o cotidiano e o nascimento do cotidiano eventual do útero do cotidiano real exigiram um envolvimento de longo prazo que tive o privilégio de manter com comunidades e famílias.

Muitas vezes pensei em um comentário que Stanley Cavell (2005CAVELL, Stanley. 2005 [1982]. “The fact of television”. In: William Rothman(ed.), Cavell on Film. Albany, NY: State University of New York Press. pp. 59-86. [1982]) fez em sua escrita sobre a questão da TV, quando ele discute o modo de presença (ou ausência) de atores para espectadores no teatro, no cinema e na TV ao vivo. Respondendo a uma observação de Bazin sobre se poderíamos dizer que o modo de presença de um ator na tela de um filme para nós pode ser visto como uma retransmissão através de espelhos, Cavell diz que, embora ele entenda que na televisão ao vivo o que nos é apresentado está acontecendo simultaneamente à sua apresentação, ele se surpreende ao observar: “Mas na televisão ao vivo o que está presente para nós enquanto acontece não é o mundo, mas um evento que se destaca do mundo. Seu objetivo não é revelar, mas fazer a cobertura (como com uma arma), manter algo em vista.” (Cavell 2005CAVELL, Stanley. 2005 [1982]. “The fact of television”. In: William Rothman(ed.), Cavell on Film. Albany, NY: State University of New York Press. pp. 59-86. :72). Eu acho notável que a própria comoção de ver os eventos enquanto acontecem equivale a arrancar o evento do mundo. Foi esta preocupação que me guiou a dizer em Textures que a antropologia não fala primeiro. Sua tarefa é manter-se acordada quando os demais adormeceram. Espero que, por mais vago que seja meu entendimento dessa complexa relação entre o evento e o mundo do qual ele surge, o misterioso trabalho do tempo (particularmente o tempo contínuo, voltando, retornando) que desafia o tempo de distinção de um antes e um depois, possa iluminar ainda mais o comentário de Vianna de que em nossa profissão, enquanto antropólogos, somos criadores e criaturas do tempo. Estou bastante ciente e ainda intrigada com a inquietação que minha escrita parece ter criado entre alguns antropólogos proeminentes que pensam que o tema do cotidiano tal como desdobrado em minha escrita é uma espécie de tentativa velada de negar o bem (Robbins 2016ROBBINS, Joel. 2016. "What is the matter with transcendence? On the place of religion in the new anthropology of ethics". Journal of the royal anthropological institute, 22.4:767-781.; por favor, vejam meus comentários anexados ao artigo, pp. 785 a 791). Uma das passagens filosóficas às quais retorno continuamente pertence ao ensaio intitulado “Declinando do declínio” de Cavell. Gostaria de citá-la na íntegra porque mostra que o cotidiano que nutre as sementes da destruição e alimenta a violência que se pode transformar em destruição catastrófica é também o cotidiano que nos dá os meios de contestar suas desigualdades e injustiças:

O apelo ou “abordagem” de Wittgenstein ao cotidiano descobre que o cotidiano (real) é uma cena tão permeada de ilusão, de transe e de artifícios (de necessidade) quanto o haviam dito Platão ou Rousseau ou Marx ou Thoreau. Sua ‘filosofia do cotidiano (por vir) é a proposição de uma prática que se dispõe, que assume a responsabilidade, de dar conta, precisamente (não digo exclusivamente) dessa cena de ilusão e perda; vai abordá-la, ou, conforme eu diria, vai censurá-la, de maneira íntima o bastante para poder revirá-la - ou pari-la; como se o real fosse o útero que contém os termos daquilo que virá, ao final. [...] A filosofia (enquanto escalada) mostra a violência que deve ser recusada (desobedecida) (Cavell 1989CAVELL, Stanley. 1989. “Declining Decline: Wittgenstein as a Philosopher of Culture”. In: This New Yet Unapproachable America. Chicago: The University of Chicago Press. pp. 29-76. [Versão em português: “Declinando do declínio: Wittgenstein, filósofo da cultura”. Esta América nova, ainda inabordável. 1997. São Paulo: Editora 34. pp. 35-75.]:46 [1997:50]).

Nesta passagem, Cavell estava interessado em contestar a noção profundamente falha de que a lealdade de Wittgenstein ao cotidiano e de permitir que as coisas aconteçam era um sinal de sua disposição política conservadora e medo burguês de mudança. O que Cavell queria oferecer era a noção de crítica, esforçando-se, abrindo caminho para sair da ilusão digna do transe através da figura temporal da transfiguração e não da transformação radical. “A percepção de Wittgenstein é que o ordinário tem, e apenas ele, o poder de mover o ordinário, de deixar o habitat humano habitável, de transfigurar aquilo que é o mesmo”.

Assim, os termos do ordinário real são o que dão os meios para não somente abordar determinada cultura, mas para criticá-la, transformá-la renarrando, recobrando, recontando. Aqui estão os convites para pensar além, acerca das relações entre o evento e o mundo, e uma imagem do tempo que permitiria que essa relação se desdobrasse de acordo com seus próprios ritmos e tempos. O repensar de Vianna do conhecimento antropológico através de sua compreensão do tempo não nega o rico trabalho em múltiplas durações, ou a relação entre o real e o virtual ou entre simultaneidade e sucessão, mas astutamente capta uma sensibilidade em Textures que me fez ver por que acho os finais muito mais dolorosos na criação do conhecimento antropológico do que deixar as coisas pelo meio.

Ética/Estética

Uma forma particular que identifico na descrição etnográfica é uma espécie de abreviação que cobre os detalhes que nos abririam para um mundo, em vez de simplesmente arrancar o evento do mundo. Estou impressionada com as reflexões de Pierobon sobre este assunto. Escreve ela:

Quanto mais habitamos a vida com as pessoas, mais diversas são as estéticas possíveis de compartilhamento de experiências. Por isso, a atenção à gama de entonações e humores faz parte daquilo que Veena Das chama de “atenção aos detalhes” (Das 2020DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary: Doing Anthropology after Wittgenstein. New York: Fordham University Press.). Tons, subtons e humores criam sensações e imagens acústicas cujo desafio é, exatamente, o de transmiti-las em formato textual. O que quero dizer é: descrever e transmitir no texto um momento de alegria é bastante diferente de escrever: “ele sorriu”, mesmo porque um sorriso pode significar exatamente o oposto.

Sinto aqui a junção da expressão com a ética e a estética. Traz à mente a intrigante afirmação de Wittgenstein - “ética e estética são uma só” - carregando a tonalidade de um aforismo (Wittgenstein 1965WITTGENSTEIN, Ludwig, 1965. "A Lecture on Ethics". Philosophical Review, 74:3-12.; Stengel 2004STENGEL, Kathrin, 2004. “Ethics as Style: Wittgenstein’s Aesthetic Ethics and Ethical Aesthetic”. Poetics Today, 25:4:609-635.). Em Textures, procurei transmitir esse sentido da junção da ética e da estética da seguinte forma:

Para muitas das mulheres e dos homens que conheci em meu trabalho etnográfico, palavras e gestos não eram usados simplesmente como mensagens, mas expressavam a textura de como se está com os outros. Juntamente com uma etiqueta e uma estética da narração, a linguagem pode ser vista, assim, como revelando a natureza do mundo e do self. Para muitos dos meus entrevistados, o que era importante não era simplesmente o conteúdo da comunicação, mas também a maneira - de forma que o respeito próprio, a dignidade e a honra dos participantes de uma comunicação não fossem prejudicados. Uma questão ainda mais sutil era proteger o que as pessoas diziam ser o “coração” da outra pessoa, dil rakhna. A modalidade da ética ordinária atravessa as linhas do público e do privado de maneiras importantes à medida que se passa de considerações relativas à salvaguarda da dignidade do outro em situações públicas para salvaguardar “o coração” em contextos privados e íntimos (Das 2020DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary: Doing Anthropology after Wittgenstein. New York: Fordham University Press.: 101).

Pierobon me faz ver mais claramente o nó da ética e da estética e o que requer uma atenção mais robusta a essas questões. Sem ser capaz de resolver algumas das dificuldades de pensar sobre esta questão, gostaria de compartilhar algumas reflexões adicionais. Há muitos lugares em Textures onde me refiro direta ou indiretamente aos impulsos estéticos na vida cotidiana e estou inclinada a dizer que, do mesmo modo que a ética (como escrevi muitas vezes) não constitui um domínio separado da vida, mantido à parte, com seu próprio vocabulário de ser e dever, de norma e fato, a estética também não funciona em meu trabalho como um domínio especializado reservado à contemplação de obras de arte e a reflexões sobre a beleza e o gosto. Não estou contestando qualquer teoria da estética que se concentre nessas questões ou na experiência do sublime. No entanto, à medida que se pensa que as preocupações éticas brotam ao nosso redor dos assuntos da vida, enquanto as preocupações estéticas aparecem apenas em circunstâncias especiais, quero dizer que entendo que a estética das relações também brota de todos os lugares e sustenta as relações ou as corrói. Sandra Laugier herdou a preocupação com a estética ordinária quando também quis voltar sua atenção à arte popular, como nos seriados de TV, para pensar a formação de julgamentos por meio da experiência compartilhada, como Brandel em sua representação da vida literária em Berlim (Brandel 2023BRANDEL, Andrew. 2023. Moving Words: Literature, History, and Migration in Berlin. Toronto Canada: University of Toronto Press.), e estas são certamente maneiras importantes de mostrar como a estética ordinária se une à ética ordinária na criação de valores democráticos ou, de outro modo, como ela pode produzir maneiras sutis pelas quais uma performance de valores democráticos encobre o sufocamento de alguns. Estas são questões difíceis de resolver em abstrato.

O que me impressiona, portanto, são os ritmos da fala cotidiana, as inflexões gramaticais, o tom, pois estes ressoam com a estética do literário não em oposição às formas ordinárias de falar, mas de maneiras que podem extrair a força das palavras cotidianas ordinárias e fazê-las ressoar com a possibilidade de que a vida poderia ser isso, a vida que eu vivo e outra que está ao alcance. Aqui está um exemplo do Capítulo 2 de Textures - um fragmento de um diálogo imaginário que um líder local “performou” como insulto sutil ao membro eleito da Assembleia Legislativa, que não fez nada para ajudar em um projeto para regularizar o serviço de eletricidade no bairro que ele representava. Ele mostra as estreitas conexões entre representação estética e política, mas a estética toma sua forma das convenções sânscritas sobre o uso do caso profundo gramatical. Como escrevi:

Sanjeev Gupta cria um diálogo imaginário no qual ele distribui sua narração entre a voz de um político imaginário e o “nós” que representa o bairro. [...] Esse diálogo traz à nossa presença a figura imaginária do político - no sentido de Goffman (1974), essas são figuras que foram trazidas à baila pelos atos de narração do orador. Sanjeev Gupta não é um narrador neutro aqui; em vez disso, o efeito da ironia é alcançado por frases como “Aji sahib, aap hote kaun hain?” [...], em que o tratamento respeitoso de sahib (significando um homem branco, um oficial) e aap (honorífico de segunda pessoa) são justapostos a aji, termo de tratamento que pode colocar em suspeita as frases respeitosas que se seguem. Curiosamente, as expressões de Sanjeev Gupta aqui se baseiam nas maneiras poderosas pelas quais o vocativo é usado na gramática e na estética sânscritas - usos que foram completamente absorvidos pelos atos de fala da vida cotidiana, como verifiquei em meus locais de trabalho de campo. Em um ensaio perspicaz sobre a lógica do vocativo, Chakrabarti (2013CHAKRABARTI, Arindam. 2013. “Now Kali, I Shall Eat You Up: On the Logic of the Vocative”. In: A. Raghuramaraj, Ramchandra Gandhi: The Man and his Philosophy. Abingdon, Oxfordshire: Routledge . pp. 194-207. ) argumenta que no nome vocativamente flexionado (por exemplo, Hari torna-se Hare, Shakuntala torna-se Shakuntale), a questão não é simplesmente a de sentido ou, de fato, de referência, mas sim de fornecer um comentário sobre o que se segue na frase (Das 2020DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary: Doing Anthropology after Wittgenstein. New York: Fordham University Press.:82).

Há outros casos, por exemplo, no caso da doação de presentes, em que há uma estética comum embutida nos gestos corretos, no tom de voz, no uso de partículas, nunca inocente em sânscrito ou línguas vernáculas na Índia; ou a maneira como as mulheres lembram o evento catastrófico de um estupro em que a densa história de significados poéticos ligados a palavras como trovões e relâmpagos em épicos clássicos e no folclore são embutidos no discurso cotidiano com o poder de significar através da ressonância o que não pode ser dito diretamente (Das 2020DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary: Doing Anthropology after Wittgenstein. New York: Fordham University Press.:321). O ponto que eu quero colocar é que a ética ordinária, como a vejo, não pode senão ser expressa através da estética ordinária; e a estética ordinária não está em uma esfera de pura contemplação, mas está profundamente implicada no ético.

Para um outro ponto que coloco e que deve, por ora, permanecer uma possível linha de investigação futura, tomo o ensaio de Cavell (2004CAVELL, Stanley. 2004. “The Investigations’ everyday aesthetics of itself.” In: The Literary Wittgenstein. Abingdon, Oxfordshire: Routledge. pp. 33-45.), “A estética cotidiana de si mesma em Investigações”. Neste ensaio, os leitores são convidados a uma jornada com Cavell enquanto ele explora a fantasia da lógica e da prova formal, e os prazeres que ela oferece, na leitura do Tractatus de Wittgenstein. Ele então pergunta que tipo de transfiguração pode acontecer quando o prazer dessas perspicazes conexões matemáticas, a alegria da prova final, pode se transformar em outro registro, o da unidade ou reordenação de palavras ordinárias? Estas são palavras que não se destinam a alinhar-se como premissas para uma conclusão, mas dão um novo significado à ordem lógica - elas marcam a estética cotidiana. Cavell descobre que os aforismos proporcionam tais prazeres do encontro de arranjos perspicazes nos aforismos informais semelhantes a provas que aparecem em vários lugares em IF. De minha parte, encontrei uma alegria semelhante na maneira com que a ordenação de palavras em textos sânscritos traz o caso-profundo da gramática para repercutir na poética e no ritual e na conversa cotidiana. Outros encontram a estética comum no compartilhamento de experiências como a de seriados de TV (Laugier 2023LAUGIER. Sandra 2023. TV-Philosophy: How TV Series Change Our Thinking. Exeter: University of Exeter Press. ) ou em decifrar a vida literária de uma cidade global em suas ruas. Estas são questões que exigem uma reflexão muito mais profunda do que meu preparo permite, mas noto a insistência de Pierobon na multiplicidade de formas estéticas através das quais a ética encontrou expressão, digamos, em Kuldip e Saba enquanto tentavam encontrar um espaço para seu amor no mundo, renovadas pelas pequenas mudanças que pais e parentes estavam dispostos a realizar no ambiente político do ódio comunal.

O comentário curto, porém desafiador, de Manuela Cordeiro nos leva à sua própria experiência de devoção vaishnav e da leitura do grande épico Mahabharata para trazer à tona certos temas em Textures que se relacionam com a minha própria imersão em textos sânscritos que incluem os textos mimamsa sobre teorias de sacrifício ritual, os épicos, bem como a filosofia da gramática e da poética que formam regiões de pensamento profundamente interconectadas nas tradições indianas. Resumidamente, meu objetivo tem sido trazer as teorias bem desenvolvidas desses textos para dar sustentação a algumas questões nas discussões filosóficas em andamento, bem como encontrar maneiras de tornar os pensamentos de tais tradições disponíveis para a reflexão em âmbito antropológico. Cordeiro observa como a teoria do sacrifício parece distinta, vista da perspectiva do mimamsa, em que os deuses são secundários ao mantra e à oferenda ritual. Eles são a criação da linguagem - shabda matra devah - trazida à existência através da invocação. Existe uma relação muito complexa entre desejo e ação, que simplesmente não se traduz na simplicidade das categorias transacionais que Mauss usou para explicar a realização do sacrifício védico. Aqui está a última citação de Textures que elenco neste texto e espero que ela transmita a riqueza que apagamos quando nos permitimos ser silenciados por declarações feitas por filósofos ocidentais altamente respeitados no sentido de que “tudo o que vale a pena encontrar pode ser encontrado na Bíblia” e “eu digo isso sem saber nada do budismo”. Será que temos aqui o antídoto?

Assim, homens e deuses estão engajados através do sacrifício em recriar o que é destruído em um reino, criando-o em outro - assim como o desejo por objetos específicos tem de ser educado, pois a experiência do desejo como o desejo impessoal (apuruṣeya) pelo céu pode se tornar a fonte das ações kratvārtha através das quais o mundo está sendo sempre renovado. Fui bastante ousada em 1980, quando concluí a palestra dizendo: “O sacrifício védico pode ser visto como uma alternativa global à ideia cristã de sacrifício, em vez de uma forma restritiva de sacrifício incluída no símbolo inclusivo do sacrifício de Cristo” (1983:460). Claro, minha ideia passou despercebida, mas nunca se esgotou para mim (Das 2020DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary: Doing Anthropology after Wittgenstein. New York: Fordham University Press.:347-348).

Tradução de Bruno Gambarotto

Referências

  • AGAMBEN, Giorgio. 1998. Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life Redwood City, California: Stanford University Press.
  • BRANDEL, Andrew. 2023. Moving Words: Literature, History, and Migration in Berlin Toronto Canada: University of Toronto Press.
  • CAVELL, Stanley. 1989. “Declining Decline: Wittgenstein as a Philosopher of Culture”. In: This New Yet Unapproachable America Chicago: The University of Chicago Press. pp. 29-76. [Versão em português: “Declinando do declínio: Wittgenstein, filósofo da cultura”. Esta América nova, ainda inabordável. 1997. São Paulo: Editora 34. pp. 35-75.]
  • CAVELL, Stanley. 2004. “The Investigations’ everyday aesthetics of itself.” In: The Literary Wittgenstein Abingdon, Oxfordshire: Routledge. pp. 33-45.
  • CAVELL, Stanley. 2005 [1982]. “The fact of television”. In: William Rothman(ed.), Cavell on Film Albany, NY: State University of New York Press. pp. 59-86.
  • CHAKRABARTI, Arindam. 2013. “Now Kali, I Shall Eat You Up: On the Logic of the Vocative”. In: A. Raghuramaraj, Ramchandra Gandhi: The Man and his Philosophy Abingdon, Oxfordshire: Routledge . pp. 194-207.
  • DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary: Doing Anthropology after Wittgenstein New York: Fordham University Press.
  • DAS, Veena. 2022. Slum Acts Cambridge: Polity Press.
  • FASSIN, Didier. 2009. “Another politics of life is possible”. Theory, Culture & Society, 26.5:44-60.
  • LAUGIER. Sandra 2023. TV-Philosophy: How TV Series Change Our Thinking Exeter: University of Exeter Press.
  • PITROU, Perig. 2022. Les anthropologues et la vie Paris: Mimésis Éditions.
  • ROBBINS, Joel. 2016. "What is the matter with transcendence? On the place of religion in the new anthropology of ethics". Journal of the royal anthropological institute, 22.4:767-781.
  • STENGEL, Kathrin, 2004. “Ethics as Style: Wittgenstein’s Aesthetic Ethics and Ethical Aesthetic”. Poetics Today, 25:4:609-635.
  • WITTGENSTEIN, Ludwig, 1965. "A Lecture on Ethics". Philosophical Review, 74:3-12.
  • WITTGENSTEIN, Ludwig. 2010 [1953]. Philosophical Investigations Tr. G.E.M. Anscombe, P.M.S. Hacker and Joachim Schulte. Hoboken, New Jersey: John Wiley & Sons. [Versão em português utilizada nesta tradução: Investigações filosóficas. 2022. Tradução, organização, apresentação e vocabulário crítico: Giovane Rodrigues e Tiago Trajan. Posfácio: Marcelo Carvalho. São Paulo: Editora Fósforo.]

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Cunha Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Jul 2023
  • Aceito
    05 Jul 2023
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistamanappgas@gmail.com