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Entre o bairro e a prisão: tráfico e trajectos

RESENHAS

Miguel Chaves

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa

CUNHA, Manuela Ivone. 2002. Entre o bairro e a prisão: tráfico e trajectos. Lisboa: Fim de Século. 356pp.

Há cerca de uma década que Manuela Ivone Cunha se tem debruçado sobre o universo prisional, concretamente a prisão feminina de Tires, a mais emblemática cadeia de mulheres existente em Portugal.

Este trabalho deu origem a diversos artigos publicados em revistas internacionais, bem como a uma primeira obra intitulada Malhas que a Reclusão Tece. Questões de Identidade numa Prisão Feminina (1994, Cadernos do Centro de Estudos Judiciários, Lisboa).

O conjunto do trabalho da autora representa um esforço de análise sistemática da realidade prisional, erigido em um confronto permanente com abordagens sociológicas e antropológicas desenvolvidas em contexto internacional, culminando na construção de uma visão extremamente original deste universo, na qual se sustenta que os muros e os limites físicos da cadeia estão hoje longe de constituir a melhor forma de circunscrever a prisão enquanto objeto de análise. Pelo contrário, a realidade empírica observada no interior da prisão contemporânea obriga-nos, cada vez mais, a ultrapassar as suas fronteiras, centrando-nos quer em regiões urbanas que a ela se encontram indelevelmente ligadas, quer na análise da própria política criminal de caráter classista que inconscientemente lhe serve de suporte. Como a própria autora refere: "a continuidade entre o interior e o exterior é constitutiva da prisão, a ponto desta não poder mais ser pensada senão através de um constante movimento de zapping entre ambos" (:19).

Neste sentido, embora ancorada na realidade prisional, a perspectiva de Manuela Ivone Cunha está longe de poder ser "catalogada" na classe dos estudos prisionais, pois percorre vários domínios — do gênero à família, da pobreza à exclusão — apresentando-se igualmente como um sofisticado exemplo de articulação entre micro e macroanálise.

O presente livro — que mereceu a atribuição do Prêmio Sedas Nunes de Ciências Sociais, porventura o mais importante do gênero concedido em Portugal — tem como base a revisitação etnográfica da prisão feminina onde a autora já havia pesquisado há uma década atrás. No entanto, se a sua intenção inicial era a de desenvolver uma espécie de re-study, depressa se apercebe que o ambiente prisional sofrera, ao longo da década de 90, transformações tão relevantes que os quadros conceituais de que dispunha dificilmente poderiam resistir à erosão provocada pela passagem do tempo. Assim, reentrar nesta cadeia significava, antes de mais nada, repensar o meio prisional e reaprender a interrogá-lo: tudo estava, portanto, em aberto — a aventura teórica, metodológica, relacional e existencial no mundo prisional tinha como que voltado ao início.

Em Entre o Bairro e a Prisão, Manuela Ivone Cunha começa por analisar o modo como as concepções do sistema penitenciário, filiadas a um "modelo doméstico-autoritário", transitaram progressivamente para um "modelo de gestão burocrático-legal". Esta mudança de paradigma da política prisional surge acompanhada de uma alteração das finalidades da própria cadeia. Mais do que prosseguir nos ideais de reabilitação e de tratamento comportamental que constituíram, ao longo dos séculos XIX e XX — por vezes mais no discurso do que na prática — o "modernismo penal" e a criminologia positivista, encontramo-nos perante um sistema penitenciário que já não reivindica tanto "um projeto próprio", passando a relevar "menos da razão ortopédica do que da razão gestionária, menos da transformação dos indivíduos que da sua contenção" (:307). Todavia, esta perda progressiva do caráter ideológico da prisão que se registra em nível internacional, e que parecia pré-anunciar um recuo da sua importância no tratamento das "patologias sociais", deparou-se, paradoxalmente, com uma intensificação da envolvente ideologia externa, caracterizada por um intenso apelo repressivo fortemente enraizado no "problema da droga", e por uma alteração da política criminal desenvolvida a este propósito.

Com efeito, a partir do início dos anos 90, as transgressões mais graves, particularmente o narcotráfico, sofreram um forte endurecimento das penas. Nesse mesmo período, alguns bairros onde se desenvolve o comércio de drogas a varejo passaram a ser alvo de uma ofensiva permanente e sem precedentes realizada pelos aparelhos policiais através de processos que, "dada a dificuldade em deslindar as responsabilidades individuais pela droga encontrada num determinado local" (:309), tendem a coletivizar as detenções e, naturalmente, as condenações.

Este duplo processo acabou por conduzir-nos à segunda grande mutação do meio prisional, que é também a mais profundamente dissecada nesta obra. Referimo-nos às transformações ocorridas na estrutura da população prisional. Com efeito, em lugar dos contingentes heterogêneos do ponto de vista das origens sociais, das proveniências geográficas e das infrações cometidas que se podiam encontrar em décadas anteriores, deparamo-nos, a partir da segunda metade da década de 90, com uma população fortemente homogeneizada. A esmagadora maioria das reclusas encontra-se detida por processos relacionados com o narcotráfico, tendo sido recrutada nos mais baixos estratos sociais, mais concretamente em certos bairros degradados e estigmatizados onde a venda de drogas é alvo de um intenso escrutínio policial.

Assim, de uma situação em que a população prisional apenas se conhecia intramuros, transitamos para uma outra, em que fortes contingentes de pessoas ligadas há muito por vínculos de parentesco, de vizinhança e de amizade ora são detidos de forma simultânea, ora vão se revezando em território prisional, cumprindo penas bastante longas.

Esta interpenetração, diria mais, esta incorporação mútua entre bairro e prisão tornam impossível, como a autora demonstra, analisar estes contextos separadamente, obrigando-a, logo de saída, a reavaliar a pertinência da concepção goffmaniana de "instituição total" no estudo da prisão contemporânea.

De fato, como privilegiar este modelo conceitual em um contexto prisional onde desde a década de 70 entraram "em declínio os ideais de reabilitação cometidos à prisão" (:323)? Como sustentá-lo, em um momento em que as delimitações físicas e simbólicas da cadeia tornam-se tênues, convertendo a prisão em um locus de análise em que as oposições analíticas dentro/fora não só perdem pertinência, como podem converter-se em um fator de perturbação, na compreensão de uma realidade que, na verdade, é constituída com base na combinatória de espaços e de feixes relacionais múltiplos que urge identificar e entretecer?

Todo o esforço de Manuela Ivone Cunha vai pois no sentido de criar uma "interface analítica" que permita dar conta do modo como, através desta interligação, o cotidiano prisional, as relações entre as reclusas, as vivências e os quadros representacionais internos à cadeia — bem como as concepções do tempo e do corpo que emergem no quadro prisional — transformaram-se radicalmente.

A ruptura que a autora empreende com a concepção da cadeia como entidade fechada permite-lhe ainda discutir vários aspectos que extravasam o seu argumento central como, por exemplo, o modo com que a economia familiar e vicinal do tráfico em Portugal distingue-se de outros mercados a varejo no quadro internacional — significativamente o da economia das drogas nos guetos norte-americanos. Com efeito, nos contextos urbanos do narcotráfico em Portugal, as concepções de gênero conjugam-se com a economia a varejo do tráfico de uma forma original, tendo como conseqüência uma participação muito efetiva das mulheres, quer como meras assalariadas, quer como "pequenas empresárias" do comércio de drogas. O narcotráfico acaba por constituir-se, assim, em uma oportunidade ilegal para um vasto conjunto de mulheres habitantes de regiões urbanas, as quais se mantiveram em uma situação de extrema marginalização econômica e simbólica ao longo de décadas e de sucessivas gerações.

Esta última constatação coloca-nos perante um outro aspecto extremamente fundamental desta obra. Referimo-nos à sua manifesta relevância política, dimensão que se torna particularmente patente no último capítulo intitulado "Uma janela partida". Aí Manuela Ivone Cunha demonstra-nos como todo esse processo de aprisionamento e as lógicas de transformação do universo prisional que com ele se encontram conjugadas podem, em larga medida, ser entendidos como correspondendo à instauração de uma "política da indiferença" — expressão utilizada por Miguel Vale de Almeida no prefácio do livro, ao constatar estarmos "perante um processo de constituição de grupos humanos como que "definidos" para o aprisionamento, em um processo que vai garantindo a continuação incólume da verdadeira economia do tráfico" (:14).

E, de fato, que outra expressão que não "indiferença" poderia traduzir melhor a discricionariedade de todo este quadro penológico, bem como a denegação e o desconhecimento dessa discricionariedade? Que outro termo poderia ser utilizado quando se constata que a intensificação extremada do combate ao narcotráfico "não se exerce propriamente sobre traficantes tout court, mas concretamente sobre traficantes das ditas "massas laboriosas"? (:326).

Em suma, Entre o Bairro e a Prisão é pois um estudo de caso que depressa sente a imperativa necessidade de extravasar os limites do que seria o seu "território natural". Através de uma janela com grades, ele procura lançar um profundo olhar sobre as formas de exclusão, de desigualdade e de dominação que se registam na sociedade portuguesa contemporânea, mas que se reproduzem em escala global. E deixa-nos perplexos com o que a partir dessa nesga aparente é possível vislumbrar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2006
  • Data do Fascículo
    Out 2006
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