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Como amar uma planta: experiência, diversidade e relações multiespecíficas no semiárido paraibano

How to love a plant: experience, diversity, and multispecies relations in Paraíba’s semiarid region

Cómo amar una planta: experiencia, diversidad y relaciones multiespecíficas en la región semiárida de Paraíba

Resumo

Baseado em um engajamento etnográfico desde 2015, o presente artigo pretende oferecer uma descrição do cultivo de alguns vegetais presentes no sistema agrícola tradicional do semiárido paraibano. Dividido em quatro partes, no primeiro momento descrevo a história e contextualizo a paisagem local e esses agricultores que se autodenominam como “agricultores experimentadores”, aqui, a noção nativa de “experiência” é central para a compreensão de suas práticas. Em seguida me concentro nos roçados sazonais de milho e feijão, momento em que ressalto a diversidade de variedades presentes nessas culturas. Posteriormente, quando descrevo o cultivo de arroz-vermelho, trago à superfície sua história e as relações multiespecíficas presentes no cultivo desta planta. Por fim, abordo de maneira mais ampla as chamadas “sementes da paixão”; quando enfatizo este gênero de conhecimento tradicional, abordo as relações de parentesco, vizinhança e outras parcerias por meio do cultivo e da circulação das plantas.

Palavras-chave:
Experiência; Conhecimentos tradicionais; Diversidade; Relações multiespécies; Amor

Abstract

Based on ethnographic research carried out since 2015, the present paper offers a description of the traditional agricultural systems in the semiarid region of the Brazilian state of Paraíba. First, I describe the history and the context of the local landscape and the peasants that survive in it, who call themselves “agricultores experimentadores” [experimental peasant]. Here, the emic notion of “experiência” [experience] is central for the understanding of their practices. Secondly, I focus on the seasonal crops of corn and beans, pointing out the diverse varieties of these crops that are cultivated. Third, I turn my attention to red-rice cultivation, I bring out the complex history and multi-species relations that exist in these crops. Finally, I approach (in a broad manner) the so called “sementes da paixão” [passion seeds]. While emphasizing traditional knowledge, I also engage with kinship relations, as well as neighborhood and other partnerships created through the cultivation and circulation of plants.

Keywords:
Experience; Traditional knowledge; Diversity; Multispecies relationships; Love

Resumen

Basado en un trabajo etnográfico realizado desde 2015, este artículo tiene como objetivo ofrecer una descripción de los sistemas agrícolas tradicionales existentes en la región semiárida de Paraíba. Dividido en cuatro partes, en primer lugar describo la historia y contextualizo tanto el paisaje local como a los agricultores que se llaman a sí mismos 'agricultores experimentadores', siendo aquí la noción nativa de 'experiencia' central para entender sus prácticas. En segundo lugar, me enfoco en los cultivos estacionales de maíz y frijol, donde destaco sobre todo la diversidad presente en estos cultivares. Posteriormente, cuando describo el cultivo de arroz rojo, saco a la superficie su compleja historia y las relaciones multiespecíficas presentes en el cultivo de esta planta. Finalmente, me acerco a las llamadas 'semillas de la pasión' de manera más amplia. Cuando enfatizo este tipo de conocimiento tradicional, abordo las asociaciones de parentesco, vecindad y outras camaraderías a través del cultivo y circulación de plantas.

Palabras clave:
Experiencia; Conocimiento tradicional; Diversidade; Relaciones multiespecie; Amor

Penso na troca de favores que se estabelece;

no mutualismo;

no amparo que as espécies se dão.

Nas descargas de ajudas;

no equilíbrio que ali se completa entre os rascunhos de vida dos seres minúsculos.

Manoel de Barros, Agroval, 1985.

Introdução

Neste artigo, por meio de algumas histórias que envolvem conexões e vínculos entre humanos e plantas no semiárido paraibano, local onde realizo pesquisa desde 2015, pretendo oferecer um relato dessa rede de conhecimentos tradicionais que ainda se mantém nesta região a despeito de todas as investidas de colonizar os corpos humanos e mais que humanos que ali habitam. O caso etnográfico que apresento pode ser descrito como uma guerra de mundos que não se resume apenas a conflitos propriamente bélicos. Travada também no plano ontológico, a violência se apresenta de maneira difusa, não diretamente através do sangue jorrado no chão, mas incidindo na morte de diferentes maneiras de existir. Trata-se, como afirmou Marisol de La Cadena (2018DE LA CADENA, Marisol. 2018. “Natureza incomum: histórias do antropo-cego”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69:95-117. ), de uma “guerra silenciosa” em nome do progresso, sobre o que pode ou não existir segundo distintas óticas de mundo. Ou ainda, nos termos de Vandana Shiva (2003SHIVA. Vandana. 2003. Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. Tradução: Daniel de Abreu Azevedo. São Paulo: Gaia. ), uma luta entre sistemas de saber, cujo campo de batalha se constitui em essencial nas diferentes maneiras de estabelecer relações com a terra.

Assim, meu foco volta-se sobretudo para a descrição de alguns cultivos com especial importância nesta região, em que abordo a morfologia social das roças, os usos e os sistemas manejo da terra, e respectivamente os efeitos práticos que determinados modos de vida e produção imprimem na textura das paisagens. Ao empilhar histórias nem sempre convergentes e confrontá-las, espero que minha narrativa ganhe contornos inesperados. Se em alguns momentos as ideias de dominação e controle assumem o primeiro plano, em outros, o vínculo estabelecido é de outro tipo: o que vem a superfície são biografias entrecruzadas, através de relações de cuidado entre seres que se cultivam em mutualidade. Minhas narrativas envolvem também subversão, resistência e amor. Em suma, o que pretendo expor aqui é uma luta contínua pela manutenção de um modo de existência próprio, que não obstante toda a violência imposta pela máquina do “desenvolvimento” e as forças transformadoras da história, se mantém vivo.

Outro alvo em meu horizonte reside na tentativa de levar adiante a hipótese de Manuela Carneiro da Cunha acerca da existência de uma espécie de afinidade eletiva entre os povos tradicionais do mundo e um certo gosto ou paixão pela diversidade;1 1 “O que estou tentando apontar é que há uma razão prática óbvia para tamanha diversidade de variedades de mandioca. Um gosto, uma paixão pela diversidade parece ser uma boa razão suficiente. [...] Argumento que as sociedades indígenas e locais parecem valorizar enormemente a própria diversidade como um bem em si. Isto inclui variedades de espécies vivas e de paisagens. Assim, eles prestam atenção às mínimas características e tendem a deter extensos sistemas de classificação.” (2017:264-265). No contexto do semiárido, este traço pode ser observado através de um caráter compósito que pretendo evidenciar adiante, no qual há ao menos três dimensões que se conectam: 1. a diversidade biogeomorfológica da paisagem; 2. a diversidade de técnicas e práticas; 3. e a agrobiodiversidade propriamente cultivada.

Começo com a história do algodão na região do Seridó, uma narrativa de sucessivos “desmantelos” que deixou marcas permanentes nas pessoas e na paisagem. Em seguida, teço algumas notas sobre o cultivo de milho e feijão, atividade esta difundida por quase a totalidade dos agricultores habitantes do semiárido, momento em que enfatizo a diversidade de variedades presente nestes cultivares. Posteriormente, abordo a cultura do arroz-vermelho, a história de repressão que envolve esta planta e toda a complexidade de seu cultivo em uma região com baixos índices pluviométricos, quando o foco se volta propriamente para as relações interespecíficas que este vegetal estabelece. Por fim, disserto acerca das relações entre humanos e plantas em um sentido um pouco mais abrangente, movimento que nos leva às relações de parentesco, vizinhança e outras parcerias implicadas no entrecruzar de biografias humanas e vegetais.

Uma história de desmantelo

A ideia de “desmantelo” é parte importante no léxico de meus amigos “agricultores experimentadores”, podendo ser mobilizada ora como adjetivo, ora como verbo, ora como substantivo. Uma pessoa pode ser desmantelada, uma coisa pode se desmantelar, ou ainda, o desmantelo pode ser grande. O termo pode ser compreendido como uma espécie de atualização de uma degeneração virtual que as coisas podem sofrer. Um desmantelo ocorre quando alguém não desempenha seu papel esperado, isto é, quando há uma falta de cuidado, seja pela incidência ou falta de determinadas ações. Quando algo se desmantela, os humanos estão sempre englobados na rede como sujeito oculto, de modo que o desmantelo das coisas surge como consequência do desmantelo das pessoas. A título de glosa, expressões outras como desarranjo, dissolução ou desmoronamento, ainda que não se trate de sinonímias, poderiam oferecer alguma aproximação com o significado de desmantelo. Eu evoco esta ideia porque me parece que a história do algodão nesta região pode ser interpretada como uma história de “desmantelo”, ou ainda, outra possibilidade residiria em descrevê-la como uma história de sucessivos “desmantelamentos”.

A região do Seridó tem como centro de origem e dispersão uma espécie de algodão conhecida por algodão “mocó” ou “seridó” (Gossypium hirsutum L. Marie galante.). Este algodão é dotado de alguns traços singulares em relação a seus parentes das Américas, como o ciclo vegetativo longo, a característica de algodão arbóreo, além da perfeita adequação à ecologia da caatinga em virtude de sua ligação histórica com o ambiente. Ao que tudo indica, ele era parte dos sistemas agrícolas das etnias autóctones desta região no passado, que se destacavam na arte da tecelagem (Moreira et. al. 1989MOREIRA, José de Alencar Nunes; FREIRE, Elêusio Curvêlo; SANTOS, Robério Ferreira dos; BARREIRO NETO, Miguel. 1989. “Algodoeiro mocó: uma lavoura ameaçada de extinção”. Embrapa Algodão-Documentos (INFOTECA-E). :7-8).

O movimento de colonização no semiárido logrou êxito em “desmantelar” as relações sociais nativas, seja através da catequese, da escravidão, ou mesmo do extermínio dos povos indígenas que habitavam este território. Muito se fala do gado como companheiro na migração de populações do litoral rumo ao sertão, mas outro elemento importante na fixação do grande domínio nas terras do interior nordestino foi a implantação da cotonicultura como atividade econômica. Neste caso, diferente da maior parte dos projetos de monocultura, a espécie produtiva era nativa e não exótica, como ocorreu no próprio litoral do Nordeste com a cana-de-açúcar. Dotado de fibras longas (que podia ser comparado ao famigerado algodão egípcio) e morfologicamente resistente aos regimes de estiagem característicos da região, o algodão interessava tanto aos grandes proprietários locais, que observavam na espécie uma oportunidade para aferir ganhos econômicos significativos e escapar do fardo da miséria ao qual acreditavam estar submetidos em virtude da peculiaridade ecológica da caatinga, quanto ao mercado têxtil, pois, como lembra Oswaldo Lamartine (1980LAMARTINE, Oswaldo. 1980. Sertões do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal.:54), “a indústria - dizem os economistas - tem fome de fibras longas”.

A produção do então chamado ouro branco teve início com o estímulo comercial provocado pela Guerra de Secessão. A partir de então, seu cultivo em regime de monocultura foi predominante durante os primeiros três quartos do século XX no semiárido paraibano. Na década de 1930, Campina Grande, cidade para onde migrava o algodão produzido no Seridó, se tornou a segunda maior comerciante de algodão arbóreo do mundo, perdendo apenas para Liverpool (Morais 2010MORAIS, Lenildo Dias de. 2010. O algodão arbóreo no semiárido: o papel da pesquisa agropecuária pública no Vale do Piancó-Estado da Paraíba. Dissertação de Mestrado, UnB.:18). A plantation de algodão enredava toda a população, rural e urbana, sem distinções de gênero e idade, de modo que havia poucas brechas para ocupações alheias à monocultura, e na medida em que se expandiam as plantações, ampliava-se o processo de imobilização da mão de obra. A situação de trabalho degradante era tamanha que para alguns, como Seu Inácio Garcia, agricultor que vivenciou o auge da produção de algodão trabalhando como morador, a analogia com a escravidão não é exagerada.

No tempo que existia algodão, todo mundo era escravo. Agricultor, pobre, todo mundo era escravo dos proprietários. Começava a cortar algodão no fim do ano, e já começava a fazer aquela conta para fazer a feira, ia atrás daquela arrumação, o proprietário arrumava... Quando ia apanhar o algodão, já devia uma contona! Às vezes o pobre fazia a conta no dia que vendia o algodão e ainda ficava faltando um pedaço. Acontecimento [pausa], o peso era de pedra, o proprietário fazia o que queria, recebia o algodão no peso da pedra, mas depois vendia no peso da balança romana e então crescia um bocadão. Mas não tinha essa de repor um quilo para o morador não, era só para ele, uma escravidão triste.

Em paralelo a este movimento, ao incorporar progressivamente áreas não cultivadas, o que se seguiu foi um segundo “desmantelamento”, agora, toda a vegetação nativa precisava ser extinta para a introdução de uma só cultura. O agricultor Heleno Bento nos oferece uma descrição detalhada desse processo.

Na época do algodão a gente sempre plantava quando desmatava, aproveitava no primeiro ano e plantava milho e feijão consorciado com algodão. Só que a partir do segundo ano em diante, já não plantava mais o milho e o feijão junto com algodão; teria que ter outra área para plantar, porque o algodão cobria e não produzia mais. A gente sempre desenvolvia mais áreas aumentando o roçado porque a gente cultivava o algodão, mas precisava também das culturas de subsistência, o milho, feijão, jerimum, melancia, essas coisas.

Mas, como tudo que é sólido se desmancha no ar, esse mundo aparentemente estável também veio sucumbir ao “desmantelo”. Seu algoz, o bicudo (Anthonomus grandis), um inseto minúsculo de aproximadamente sete milímetros, foi responsável por dissolver este projeto de domesticação e controle de vidas humanas e outras que humanas, promovendo uma devastação sobre a devastação provocada pela monocultura de ouro branco. A primeira aparição do inseto no Brasil data de 1983 e, dotado de forças avassaladoras, bastaram três anos para que ele decretasse por completo o fim da monocultura de algodão na região do Seridó. História que me foi narrada por Inácio Garcia em um tom apoteótico.

Veio um tal de um inseto chamado bicudo, que deu a liberdade a todo agricultor, o algodão caiu, ninguém quis nem mais de graça, foi ele quem tirou o pobre da escravidão. Ai pronto, acabou-se a escravidão, e foram atrás de remissão, atrás de outra forma, cortar uma lenha, trabalhar um dia aqui, outro acolá, essa coisa. […] Hoje todo mundo anda vestido, o bicudo acabou com tudo, e ninguém quer mais plantar. […] Agora tinha que era demais, a Embrapa ainda bateu em cima, arrumou inseticida, mas não teve jeito não, ele venceu. Tirou o pobre da escravidão.

Porém, após tanto tempo de exploração do ouro branco seguido da dissolução de toda a monocultura pelo bicudo, pode-se afirmar que o resultado na paisagem é o que os agricultores costumam chamar de “desmantelo grande”. Hoje, a região do Seridó se confunde com o núcleo de desertificação que leva seu nome, o Núcleo de Desertificação do Seridó. Este, por sua vez, compreende a maior área de desertificação da Paraíba, cuja razão para o atual estado de baixa biodiversidade é justamente a plantation de algodão do passado, além do corte de lenha para cerâmica industrial e pecuária extensiva (Costa et al. 2009COSTA, Thomaz; OLIVEIRA, Maria; ACCIOLY, Luciano; SILVA, Flávio. 2009. “Análise da degradação da caatinga no núcleo de desertificação do Seridó (RN/PB)”. Revista Brasileira de Engenharia Agrícola e Ambiental, Campina Grande, PB, v. 13:961-974, Suplemento..). Como o algodão era, além da principal atividade agrícola, a principal atividade econômica local, após este acontecimento foi necessário reconstituir a vida através de outros meios.

É nesse contexto que vivem alguns agricultores que se autodenominam como “agricultores experimentadores”, exímios conhecedores da caatinga com os quais tanto aprendo desde então. Trata-se, em suma, de pequenas famílias que resistiram à derrocada da agricultura como modo de existência, investindo seus esforços em reatualizar aquelas práticas do passado que, em virtude da pressão exercida pela plantation, por um tempo mantiveram-se suspensas, ou de maneira marginal em pequenas porções de terra chamadas pela literatura do campesinato de “roçadinhos” (Garcia Jr 1989GARCIA JR, Afrânio. 1989. Sul, O caminho do roçado. Estratégias de reprodução camponesa e transformação. São Paulo: Marco Zero e Brasília, UnB/CNPq.; Heredia 1979HEREDIA, Beatriz M. Alasia de. 1979. A morada da vida. Rio de Janeiro: Paz e Terra. ). Na contramão da história hegemônica, cujo objetivo sempre foi “combater a seca” e subjugar sua natureza, eles preferem coabitar esta paisagem através de diversas técnicas de “convivência com o semiárido”.2 2 Tal oposição entre estes dois modos de se relacionar com o bioma tem sido operacionalizada conceitualmente através do contraste entre “combate à seca” e “convivência com o semiárido”. Essa disputa ontológica, por sua vez, tem como efeito implicações pragmáticas na textura da paisagem a partir da implementação de diferentes projetos e políticas públicas direcionadas para a região. Uma revisão minuciosa acerca do conflito pode ser encontrada em Silva (2003) e Malvezzi (2007). A estas distintas práticas, que eles inventam e desenvolvem em seus respectivos sítios - como captação, armazenamento e reutilização de recursos hídricos, técnicas agrícolas, armazenagem e aproveitamento dos recursos naturais - os “agricultores experimentadores” dão o nome de “experiências”.3 3 O referido termo foi explorado por vários autores na história da antropologia, e nem sempre empregado com o mesmo sentido (ver, por exemplo, Lienhardt 1961; Goldman 2006; Needham 1972; Carvalho 1993). Examinar estas variações e estes contrastes exigiria outro trabalho, de modo que aqui me concentro sobretudo no emprego nativo da expressão.

As experiências como gênero de conhecimento

Entre os agricultores do semiárido, as “experiências” se configuram como um modo privilegiado de conhecimento, de maneira que se observa uma vasta elasticidade semântica para o referido termo. Este é o nome popular dado à meteorologia difundida por todo o bioma, isto é, às previsões de períodos de seca e chuva baseadas na observação do comportamento e no movimento de outros seres, como animais e plantas, astros e ventos,4 4 Na literatura acerca dos povos agricultores do semiárido, diversos autores notaram este conhecimento em diferentes momentos históricos e contextos etnográficos (ver, por exemplo, Cunha 1905; Queiroz 1930; Willems 1961; Woortmann & Woortmann 1997; Pennesi & Souza, 2012; Taddei, 2017). como pode também se referir a técnicas e práticas de caça locais.5 5 Ao abordar este gênero de conhecimento, Jorge Luan Teixeira chama a atenção para a indissociabilidade entre mobilidade, observação e criação narrativa através do que denomina de “enlinhado ecológico” (2019:239). O termo emprestado do vocabulário nativo aponta para uma espécie de emaranhamento, “bagunça, onde coisas estão misturadas, enroladas” (Virgilio 2014:49 citado em Teixeira 2019:256). Assim, as “experiências” se constituem através de um saber acumulado em etologia que consiste sobretudo em decodificar em meio a uma multiplicidade de ações na paisagem o significado dos movimentos de outros seres. Aqui, me concentro sobretudo nas “experiências” relativas ao roçado. Era este o local que eu mais frequentava em campo, e também onde mais ouvi o emprego desta expressão, embora acredite que investigações com ênfase em outros aspectos da vida social no semiárido encontrariam também o termo em seus respectivos contextos de enunciação.

No que se refere ao léxico agrícola local, há algumas acepções possíveis para a expressão. Nesta paisagem, o sentido existencial (experiência) e prático (experimento) se confundem. “Experiência” é tanto o nome pelo qual os agricultores se referem aos seus respectivos jardins cultivados, local onde está materializado seu conhecimento e suas experiências agrícolas - é bastante comum, quando um agricultor disserta sobre ou apresenta seu roçado que ele se refira como “minha experiência” -, quanto propriamente às experimentações que eles inventam e testam em seus roçados.6 6 Como um interlocutor afirmou para Ellen e Klas Woortmann (1997:79): “Aquele pedaço dali eu estou experimentando [grifo nosso]. Meu filho voltou de São Paulo disse que lá eles usam serragem de adubo. Estou vendo como é”. Expressão semelhante eu ouvi de Chico de Adolfo enquanto observava seus plantios e o indaguei acerca de um canteiro onde o agricultor semeou alface junto com tomate: “Espia, Gabriel, isso daqui é apenas uma experiência”. A proliferação destas técnicas, que vão desde gambiarras sutis a projetos de geobricolagem, é tamanha que qualquer redução a uma espécie de tipo ideal capaz de englobar toda a diversidade de práticas que este conhecimento contém em uma totalidade uniforme, estaria fadada ao fracasso. Nesse universo, dizer que um agricultor é “experiente” ou que ele possui “experiência” significa afirmar que ele detém certos saberes, isto é, que ele é uma referência em matéria de conhecimento.

O conhecimento local gerado pelos povos habitantes da caatinga não se configura como um saber já completo e acabado, ou um repositório de memória de uma certa tradição estática no tempo. Como todo modo de conhecimento, ele é dinâmico, “envolve, por um lado, pesquisa, experimentação e observação; por outro, envolve raciocínio, especulação, intuição. Supõe uma prática constante e, enfim, muita troca de informações” (Carneiro da Cunha & Almeida 2002CARNEIRO DA CUNHA, Manuela & ALMEIDA, Mauro Barbosa de. 2002. Enciclopédia da floresta. São Paulo: Companhia das Letras.:14). Porém, neste caso há uma singularidade intrínseca no que concerne às “experiências”, que diz respeito à inventividade dos sujeitos que as praticam.

Sobre a rotina na vida rural, certa vez me disse o agricultor José Marcelino: “a vida do agricultor é experimentar”. Com efeito, as “experiências” se constituem sob um saber-fazer (Woortmann, K & Woortmann, E 1997WOORTMANN, Klaas & WOORTMANN, Ellen. 1997. O trabalho da terra, A lógica simbólica da lavoura camponesa. Brasília, Editora da UnB.; Virgílio 2018VIRGÍLIO, Nathan. 2018. Pensa que é só dar o de-comer? Criando e Pelejando com parente e bicho bruto na comunidade de Góis-CE. Dissertação de Mestrado, UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, Rio de Janeiro.), em que a prática, associada à observação minuciosa dos movimentos da vida, fornece os subsídios que fundamentam este modo de conhecimento. Como lembra Teixeira: “Experiência é algo que se tem, é algo que se faz, é algo que se dá, é algo que se pega. Ela é tanto o produto do engajamento perceptivo com o mundo e seus diversos seres e forças, como informa decisivamente esse engajamento” (2019:242).

Heleno Bento, “agricultor experiente”, associando sua prática àquela produzida nos laboratórios entre os cientistas, me descreveu como funcionam as experiências:

A ciência e a crença são dois fatores bem parecidos, muito embora um não concorde com o outro. A ciência também é uma experiência, porque para desenvolver qualquer coisa precisa fazer a pesquisa que é uma experiência para a gente. A gente planta de uma maneira, se não a gente tenta de outra forma. O agricultor trabalha através do experimento. A gente vive experimentando, por exemplo, sempre se plantava o feijão com aquele espaço, chovia pouco e dava certo, dessa vez choveu muito e trancou, na próxima, vou plantar mais separado. Experiência não é certeza, é experimentação [...] pode dar certo ou pode dar errado.

Pode-se afirmar, no que tange às “experiências” como gênero de conhecimento, a existência de um certo caráter ambivalente. Elas tanto remetem a um conhecimento difundido, compartilhado e, portanto, com valor heurístico, como também são sempre particulares, localizadas, e quando reproduzidas, dotadas de certo grau de variação e adaptação ao novo contexto no qual se inserem. Uma vez que são produzidas em diferentes locais, as “experiências” não são necessariamente compatíveis, nem têm a aspiração de possuir um valor universal (Taddei 2019TADDEI, Renzo. 2019. Meteorologistas e profetas da chuva: conhecimentos, práticas e políticas da atmosfera. São Paulo: Editora Terceiro Nome.:108), elas parecem constituídas, sobretudo pelo seu atributo transformacional, segundo Teixeira, “em perpétua alteração” (2019TEIXEIRA, Jorge Luan. 2019. Caçando na mata branca: Conhecimento, movimento e ética no Sertão Cearense Tese de Doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.:246), em que a estabilização é apenas provisória e de natureza precária.7 7 No que tange às “experiências” voltadas para prognósticos relativos ao clima, por exemplo, sua diversidade é tão elástica que Pennesi e Souza (2012:182) registraram em sua base de dados mais de mil bioindicadores climáticos diferentes.

Se em grande medida isso se deve a certa criatividade das pessoas, prontas para se reapropriarem de um conhecimento transmitido, gerando em sua reprodução uma diferenciação em algum grau mínimo que seja, há também o fato de que no semiárido as potências do solo variam constantemente segundo a geografia, podendo em um perímetro de menos de quinhentos metros haver porções arenosas, rochosas e argilosas. Esta complexa composição pedológica exige às “experiências” que se adaptem a cada contexto e às suas respectivas singularidades biogeomorfológicas. Variáveis como o tamanho de cada terreno, as qualidades nutricionais do solo, o relevo, o clima e a quantidade de água que é possível armazenar em cada território, além das declividades e diferenças que tornam distintos os cultivos nas serras e nos tabuleiros, e exigem, portanto, que as práticas agrícolas se adéquem a cada situação microecológica.8 8 Como lembra Irenaldo Araújo, a caatinga não é de modo algum homogênea, sendo encontrados pelo menos oito tipos de vegetações diferentes no bioma. Este fato implica “variações, tanto na composição botânica quanto na densidade da vegetação, que podem estar relacionadas com as condições edafoclimáticas locais ou com a fase da sucessão secundária da caatinga” (Araujo Filho citado em Araújo 2016:105). Com efeito, cada composição particular convida a um novo “enlinhado” (Teixeira 2019TEIXEIRA, Jorge Luan. 2019. Caçando na mata branca: Conhecimento, movimento e ética no Sertão Cearense Tese de Doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.) de forças que corresponda àquela especificidade, de modo que cabe a cada agricultor, em sua própria “experiência”, encontrar uma composição em sintonia com as forças telúricas, capaz de tornar aquele contexto ecológico um espaço propício para a emergência da vida.

Milho e feijão: diversidade, variedade e padronagem

Como afirmei anteriormente, durante o trabalho de campo, percebi como no semiárido paraibano os cultivos e as técnicas de plantio variam quase de residência a residência. E assim como as potências da terra que se alteram constantemente no espaço, é possível afirmar o mesmo no que se refere ao fenômeno da chuva e aos índices de precipitação pluviométrica, de modo que a articulação com estes fluxos vindos do céu é de igual importância na composição que os agricultores estabelecem na criação de seus jardins. A intensidade das chuvas durante o período do “inverno”,9 9 No semiárido, segundo seus habitantes, existem apenas duas estações, “inverno” e “verão”. Por “inverno”, compreende-se o período em que se intensificam as chuvas, que tendem a durar por cerca de três meses, podendo se estender em até cinco meses em um ano de inverno bom. Sempre incerto e flutuante, sua ocorrência na região do Seridó se dá sobretudo entre janeiro e maio. acrescida da capacidade de armazenamento desta através das diferentes técnicas de conservação dos recursos hídricos constituem também variáveis que contribuem na definição do tamanho do plantio e na escolha das espécies cultivadas.

Mas, apesar de todas as diferenças que distinguem a singularidade das “experiências” que cada agricultor elabora em seu respectivo sítio, o cultivo sazonal de milho (Zea Mays) e feijão macassar (Vigna unguiculata), quase sempre consorciados com melancia (Citrullus lanatus), jerimum (Cucurbita, Cucurbitaceae) e maxixe (Cucumis anguria), permanece como um traço difundido por todas as residências durante o período de chuvas.10 10 Em virtude da extensão das roças, bem como a própria disponibilidade hídrica, estas culturas são regadas apenas pelas águas provindas do céu. Semeadas justamente no período em que se intensificam os índices pluviométricos, para o sucesso de uma boa safra, é correlativa a necessidade da existência de um bom “inverno”. Neste caso, não basta a chuva cair em quantidade abundante, mas é preciso que ela venha com determinada frequência, de preferência, com potência fraca, para “aguar” regularmente as plantas e não levar embora as sementes nem agredir o solo provocando erosões. Pode-se afirmar em consonância com Beatriz Heredia que estes “são cultivos que definem com a sua presença a existência do roçado” (1970:50). Prática esta que inclusive coloca em questão a oposição que estabelece um abismo entre o rural e o urbano. Com efeito, durante o tempo das chuvas, nas pequenas cidades do interior, é muito comum no início da noite se avistarem famílias nas calçadas de suas residências debulhando feijão. Nesse tempo, o trânsito entre o perímetro urbano e o sítio se intensifica, pois é significativo o número de habitantes da “rua” que não deixa de “botar sua roça” todo ano.

Tal movimento não obedece a necessidades econômicas, mas poderia ser descrito como uma espécie de manifestação plena da existência, além de exprimir certa preocupação com a segurança alimentar, dado que, quando comprados, não se sabe como foi plantado, se foi utilizado veneno e com qual intensidade o fizeram. O agricultor Neto relatou-me em 2018 uma curiosa discussão em um bar na cidade que exemplifica este ponto. O rápido diálogo aconteceu mais ou menos deste modo: um primeiro cidadão afirmou: “Esse ano eu não vou plantar, o feijão está muito barato, já está custando três reais no mercado”. Seu interlocutor respondeu imediatamente, expressando certa falta de paciência, sem sequer oferecer direito à réplica: “Eu quero que o feijão chegue a cinquenta centavos este ano! Ano passado eu comi tanta porqueira que esse ano estou plantando para não precisar comprar”.11 11 Ocorre com o feijão, assim como com outros alimentos, como ovos, galinhas e carne, uma flutuação em relação ao valor econômico de acordo com as variações climáticas do ciclo sazonal. Se o “inverno” for bom, a tendência é que nesse período o preço do feijão (assim como o valor dos ovos e das galinhas) caia significativamente, enquanto nos últimos meses do verão, é de praxe que o preço do mesmo alimento alcance seu ápice. O gado entretanto acompanha o movimento inverso. No período de chuvas, com pasto abundante, o valor das reses aumenta, e na medida em que o “verão” avança, diminuindo os campos de pastagem, o preço do animal regride.

Nesses cultivares observamos uma diversidade significativa. Apenas durante meu campo de 2018 junto a um pequeno grupo de agricultores, registrei o número de 21 variedades de feijão macassar12 12 “Curujinha”, “galanjão”, “manteiga”, “chifre de carneiro”, “costela de vaca”, “pingo dágua”, “sempre verde”, “das moça”, “pitiúba”, “branco”, “cancão”, “rabo de rato”, “rabo de tatu”, “ovo de guiné”, “xoxa bunda”, “canapú”, “jureminha”, “riograndense”, “quebra cadeira”, “caicó” e “bala”. e 15 de milho,13 13 “Jabatão”, “roxo”, “trigo”, “pontinha”, “alho”, “aracaju”, “catingueira”, “branco”, “pingoró”, “híbrido”, “vermelho”, “maçã”, “peba”, “anão” e “cunha”. sendo provável que existam mais variedades do que consegui catalogar, dado o reduzido tamanho de minha amostragem.14 14 No que tange à nomenclatura de tais variedades, é mister considerar o fato de que, não raras vezes, para mencionar determinado milho ou feijão, utiliza-se um binômio composto pelo nome popular do vegetal (em muitos casos, uma alusão às próprias características morfológicas da semente), acrescido do nome do agricultor que o cultiva. Este fato sugere que o feijão “sempre-verde” cultivado por determinado agricultor é diferente da mesma variedade cultivada por outro agricultor, de modo que, havendo uma variedade x, há modulações internas à própria variedade na medida em ao longo do tempo há uma espécie de coevolução entre a variedade e o agricultor que a cultiva. Ademais, considerando o grau de violência que a plantation imprimia por meio de seu poder, é possível supor que no passado tenham existido ainda mais variedades que no presente.

Em outra pesquisa realizada pela AS-PTA (Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa), cujo objetivo era mapear estratégias de conservação de sementes tradicionais em seis comunidades do agreste, foram identificadas: “67 variedades de feijão de três espécies, sendo 28 variedades de feijão de arranque (Phaseolus unguiculata), 22 de feijão macassar (Vigna unguiculata) e 17 de fava (Phaselous lunatus)” (Almeida & Cordeiro 2002ALMEIDA, Paula & CORDEIRO, Angela. 2002. Sementes da paixão: estratégia comunitária de conservação de variedades locais do semi-árido. Rio de Janeiro: AS-PTA.: 46-47). Durante meu trabalho de campo, eu pouco ou nenhum contato tive com estas outras duas espécies de feijão, exceto através de relatos em que elas apareciam como memória de tempos antigos, o que, por sua vez, se configura como forte indício de erosão genética. Acerca da redução de diversidade dos cultivares, é oportuno introduzir a reflexão de Heleno Bento, em que o agricultor elenca as principais razões que tiveram como consequência a perda de algumas variedades:

A respeito da diversidade de feijão que nós tínhamos no passado, existiram dois fatores que contribuíram muito para que nós perdêssemos essas variedades. Foram os períodos de estiagens muito prolongados e também o comércio e o poder econômico. Este último fez com que as pessoas façam essa seleção de feijão para que fique um feijão padronizado, para que fique de somente um tipo. Muito embora enquanto tivesse mais variedade de feijão, ele era saboroso para o consumo.

Heleno menciona ainda uma variedade de feijão macassar em especial mais afetada pelas imposições do mercado nos sistemas agrícolas locais: “Este [‘roxo’] foi o mais extinto por causa do comércio, porque não deixava uma cor muito bonita no feijão nem dava tanto, porém ele é mais resistente ao manhoso15 15 O agricultor se refere a um pequeno inseto que costuma atacar os feijões no período de safra provocando o adoecimento das vagens. (Chalcodermus bimaculatus)”.

Essas variedades de milho e feijão mencionadas podem pertencer ainda a duas “qualidades” diferentes relativas ao tempo e à intensidade da safra, a saber: “ligeiro” ou “tardão”. A primeira, com floração prevista para sessenta dias e com ciclo vegetativo curto, na maior parte das vezes, é semeada logo após a primeira “invernada” para garantir a colheita imediata. Já as sementes de “qualidade tardão” costumam começar a “safrejar” apenas com cerca de noventa dias, mas, como dizem os agricultores, “dão com mais força”, oferecendo a colheita por um período mais extenso. Este feijão permanece “botando” enquanto há umidade no solo, e inclusive ouvi que no passado, quando o “inverno era melhor do que é hoje”, por vezes, ele podia até mesmo atravessar um ciclo anual inteiro gerando vagens.

Faz-se necessário também mencionar a diversidade de modos através dos quais estes plantios podem ser realizados, sendo possível tanto seu cultivo “solto”, com roças distintas, uma para o milho e outra para o feijão, quanto “consorciado”. Este último permite que as ramas de feijão trepem e se enlacem junto aos pés de milho, e pode ser realizado por meio de diferentes combinações, seja alternando as espécies em “carreiras” lado a lado, ou misturando-as nas próprias covas. Nesses jardins, coexistem ainda outros cultivares igualmente importantes na alimentação local, como maxixe, melancia e jerimum, este último também com duas “qualidades” distintas, a saber: “caboclo” e “de leite”.16 16 Dentre as “qualidades” de jerimum, os agricultores identificam diversas “padronagens”, isto é, diferenças que dizem respeito ao tamanho, à aparência e ao sabor dos frutos. De modo que, o “jerimum de leite” pode ser “comprido”, “redondo”, “de pescoço”, “esverdeado” ou “angico”, enquanto o “jerimum caboclo” pode ser “jandaia” ou “marimba”. Aqui, mais uma vez, assim como no milho e no feijão, “por meio da nomeação, percebemos a diversidade da vida” (Tsing 2019:45).

A quantidade e a extensão das roças dependem sobretudo da ecologia do terreno que o agricultor tem à disposição. O mais comum é o plantio de ao menos dois roçados distintos, o primeiro com sementes de qualidade “ligeira”, e um segundo realizado com qualidades “tardão”. Esta diversidade de locais de plantio favorece a criação de “experiências”, é útil no que se refere à defesa de organismos patógenos, além de favorecer na manutenção da agrobiodiversidade. Dada a característica reprodutiva do milho, uma vez que sua fecundação ocorre apenas através da polinização cruzada, são raros os casos em que há mais de uma variedade na roça, pois a mistura de maneira inevitável acarretaria uma hibridização das variedades. Caso a safra de feijão seja bem sucedida, esta garante a alimentação familiar17 17 Aqui, pode-se incluir além dos pertencentes à unidade agrícola, sua rede de consanguinidade próxima, isto é, filhos e irmãos (sobretudo aqueles que habitam no perímetro urbano), além de vizinhos geograficamente próximos com os quais é de praxe estabelecer relações de trocas. Dentre as regras de etiqueta social, um modo de manifestar e atualizar relações entre as pessoas é a doação do excedente na época de safra. As visitas residenciais não são institucionalizadas, mas, quando ocorrem, são momentos privilegiados para a efetivação do ato de reciprocidade. É esperado que o anfitrião de algum modo apresente sua safra, dando ao visitante a oportunidade de degustar e provar de suas colheitas, em especial as frutas, e quando possível, que o anfitrião também ofereça algo como uma melancia ou um saco de feijão para o visitante levar para a própria residência. por todo o ano, enquanto o milho possui sobretudo finalidade ritual18 18 No semiárido, a principal festa do ano é o São João, que tradicionalmente é um rito de comemoração da colheita, ocasião em que a maioria dos alimentos é preparada justamente a partir deste cereal como matéria-prima. , quando se reúne a parentela para a promoção da chamada “festa do milho”. É pouco comum na atualidade a transformação deste cereal em farinha, sendo esta última quase sempre adquirida já manufaturada, embora ele também possa ser armazenado para dar de comer às galinhas durante o ciclo anual.19 19 Assim como o que ocorre com as ramas de feijão, o milho é também compartilhado com os animais de criação após a colheita, quando seu talo e suas folhas triturados na máquina forrageira são servidos às vacas. Poder-se-ia afirmar que, no semiárido, parte significativa da agricultura é voltada para alimentação dos animais, sobretudo bovinos. Cana-de-açúcar e capim-elefante são espécies com ocorrências constantes nas unidades agrícolas locais. Este tópico merece ser aprofundado em outro momento, por ora, vale ressaltar, no que tange à alimentação dos animais, há uma série de técnicas que visam ao armazenamento de nutrientes para consumo no período da seca, tais como silagem, feno, ou mesmo o plantio de palmas.

É mister lembrar o fato de que estas relações de cultivo não devem ser compreendidas através de uma estrutura diádica resumida a interações entre humanos e vegetais, fato que ficará mais evidente adiante, quando o foco se dirigir ao cultivo de arroz-vermelho. Nesses ambientes o que existe é uma interação contínua entre diversos actantes orgânicos e abióticos emaranhados. No que tange ao papel das chuvas, por exemplo, sua ausência, quase de maneira inevitável, ao desacelerar o crescimento dos vegetais, acarreta o “atraso” da colheita, podendo, a depender da extensão da estiagem, fazer com que a safra se perca por completo. Por oposto, sobre uma sequência constante de chuvas, os agricultores afirmam se tratar de um “inverno criador”. Afirmação que coloca os fluxos provindos do céu no centro do ato de gerar vidas. Os animais são ainda outra variável importante para o sucesso das roças, fato expresso na justificativa de Inácio Garcia em semear cinco sementes por cova no momento do plantio.

Você bota cinco sementes [de milho ou feijão] em cada cova, por quê? Porque essas cinco sementes, às vezes vem um inseto, corta um pezinho quando ele nasce, a “broca” (Elasmopalpus lignosellus) vem, corta a raiz do outro. Mas ainda ficaram três para favorecer o agricultor. Quando a broca é muito grande, ela vem matar até quatro pés, mas ainda ficou um para favorecer o agricultor.

Arroz-vermelho: história, repressão e emaranhamentos multiespecíficos

O cultivo do “arroz-vermelho” ou “arroz-da-terra” (Oryza sativa L.) é também outra atividade que merece atenção, embora na Paraíba ela hoje se mantenha como um elemento importante na agricultura apenas no Vale do Piancó, onde o cultivo deste grão permanece como um traço cultural, uma vez que nesta região quase todas as unidades agrícolas partilham dentre suas atividades agrícolas, além da criação de gado e do cultivo sazonal de milho e de feijão, o cultivo do arroz-vermelho;20 20 Atualmente, além do Vale do Piancó na Paraíba, apenas o Vale do Apodí no Seridó potiguar mantém expressividade nesta cultura agrícola, podendo o cultivo do arroz-vermelho ser encontrado também como parte do sistema agrícola de alguns coletivos quilombolas dispersos em outras regiões do Brasil. Ao mesmo tempo em que se identifica uma carência de estudos aprofundados sobre este arroz (Pereira & Morais 2014PEREIRA, José Almeida & MORAIS, Orlando Peixoto. 2014. As variedades de arroz vermelho brasileiras. Teresina: Embrapa Meio-Norte.:12), sua vulnerabilidade e seu risco de extinção são destacados em razão do atual movimento de êxodo rural e o decrescimento de regiões produtoras e áreas de cultivo deste grão (Fonseca et al. 2006FONSECA, Jaime Roberto; PEREIRA, Jose Almeida; SILVA, Silvando Carlos da; RANGEL, Paulo Hideo Nakano; BRONDANI, Claudio. 2006. “Resgate de arroz vermelho (Oryza sativa L.) nos Estados da Paraíba e Ceará”. In: Embrapa Arroz e Feijão-Artigo em anais de congresso (ALICE). Brasília, DF. Santo Antônio de Goiás: Embrapa Arroz e Feijão.:1).

Este foi o primeiro arroz cultivado em terras brasileiras. Introduzido no início do século XVI inicialmente na Bahia e logo em seguida no Maranhão, seu cultivo prosperou no Nordeste, de modo que esta região se tornou a principal produtora do grão durante o Império português, e até 1755 ele era o único arroz consumido no país. Nessa data ocorreu a introdução do arroz-branco no Maranhão através de seu administrador, capitão José Vieira da Silva. Conhecido no primeiro momento como “arroz-da-carolina”, seu cultivo já vinha sendo realizado na Carolina do Norte com fins de exportação para o continente europeu. Ambos, o arroz-vermelho e o arroz-branco, pertencem à mesma espécie (Oryza sativa, L), porém o segundo se origina de uma pequena mutação no gene Rc, responsável pela coloração vermelha no arroz, característica que confere tanto uma espécie de mecanismo de defesa ao próprio vegetal na medida em que repele organismos patógenos quanto oferece aos humanos em sua alimentação propriedades antioxidantes (ausentes, por sua vez, no arroz-branco).

Os primeiros experimentos com o arroz-branco demonstraram uma excelente adaptação à ecologia do Maranhão que pôde ser constatada por uma produtividade superior à do arroz-vermelho. Naquela época, a Carolina do Norte exportava arroz para a Europa, de modo que era do interesse da Coroa portuguesa priorizar sua produção voltada para o mercado externo, aproveitando-se das flutuações do mercado em virtude de seu valor social. Ao mesmo tempo em que se atribuía ao arroz-vermelho um estigma “primitivo”, argumentava-se que sua coloração poderia ocultar eventuais impurezas, enquanto o arroz-branco se apresentava como um alimento refinado e, portanto, mais adequado em termos sanitários (Pereira & Morais, 2014PEREIRA, José Almeida & MORAIS, Orlando Peixoto. 2014. As variedades de arroz vermelho brasileiras. Teresina: Embrapa Meio-Norte.:22).

Contudo, estes incentivos não foram suficientes para que os agricultores convertessem de maneira voluntária o arroz cultivado em suas terras. Com certa resistência, seria necessária uma medida autoritária que viesse impedir a continuidade do plantio do arroz-vermelho, uma vez que ele continuava a crescer nos campos por razões outras que o interesse econômico e de produtividade. Assim, em 1772, seu fim foi oficialmente decretado pela Coroa portuguesa através da publicação de um decreto que visava proibir cultivo de qualquer outro tipo de arroz que não fosse o branco. O documento instituía ainda penas severas para quem insistisse em descumprir a ordem, e eu cito: “um ano de cadeia e cem mil-réis de multa para os homens livres e, para os escravos, “dois anos de calceta com surras interpoladas nesse espaço de tempo” (Pereira & Morais 2014PEREIRA, José Almeida & MORAIS, Orlando Peixoto. 2014. As variedades de arroz vermelho brasileiras. Teresina: Embrapa Meio-Norte.:22).

A proibição durou cento e vinte anos, e o resultado esperado com o longo tempo de repressão era que o arroz-vermelho fosse extinto por completo. De fato, isto ocorreu em vários locais, como no próprio Maranhão, que se tornara um importante produtor de arroz-branco. Mas o arroz-vermelho já havia migrado para o semiárido nordestino, e nessas terras insuladas, longe do controle exercido pelo poder centralizador, ele ganhou contornos de cultura de subsistência - poderíamos dizer, também, de resistência -, adaptou-se, desenvolveu uma relação simbiótica com este ambiente, seus habitantes, e se mantém vivo até o presente, a despeito das pressões políticas e econômicas que continuamente visaram eliminá-lo.

Durante minha viagem a campo em 2018, tive a oportunidade de acompanhar a colheita do grão na cidade de Santana dos Garrotes junto à família de Dóia. Os agricultores cultivam em suas roças duas variedades de arroz-vermelho, a saber: “cáqui” e “maranhão” (o último, uma referência explícita à origem deste arroz). Cultivado e preservado ao longo de séculos por gerações de agricultores, este arroz é conhecido por sua característica de “arroz sequeiro” que, em consonância com sua relação histórica de coevolução com este ambiente ao longo do tempo, o torna adaptado às condições climáticas de baixa pluviosidade do semiárido brasileiro. Se no caso do milho e do feijão enfatizei a diversidade de variedades destas espécies, agora com o arroz pretendo realçar como externalidade positiva a quantidade de vida que esta planta atrai para o seu seio.

O plantio do arroz ocorre sempre sob condições edafo-hidrológicas muito peculiares, em que é arquitetada uma espécie de geobricolagem para recebê-lo. Os campos costumam se localizar em uma várzea para onde correm as águas da chuva, e o tamanho varia conforme as condições geográficas que o território permite: há roças com menos de 2000 m², enquanto outras podem chegar a medir quase um hectare. No perímetro onde será realizado seu plantio são erguidas paredes de terra com altura de aproximadamente um metro, cujo objetivo é reter a água durante o período de crescimento do arroz; e dependendo de sua extensão, paredes podem ser elevadas no meio do roçado para dividi-lo.

De caráter sazonal, assim como o milho e o feijão, sua semeadura é feita logo que caem as primeiras chuvas, sendo necessário realizar, posteriormente, duas limpas no roçado para eliminar as espécies ordinárias que brotam espontaneamente. Não é comum a ocorrência de pragas nesta cultura, de modo que sua homeostase se mantém graças a um sistema autorregulado pelos organismos que ali habitam. O uso de defensivos químicos é bastante raro, só sendo realizado por poucos agricultores geralmente mais abastados reconhecidos por seus pares como “preguiçosos”, pois sua única finalidade é coibir a emergência de ervas daninhas.

O ideal é que o arroz permaneça durante seu crescimento em terreno alagado, mas que, ao longo do tempo, o volume de água baixe até que no momento da colheita a terra já esteja completamente seca. Quanto mais água neste momento, pior; pois dificulta significativamente as condições de trabalho dos agricultores. O fato de os campos de plantio se localizarem em baixios se dá em razão da captura das águas que, guiadas pela força da gravidade, ao cair das chuvas, naturalmente correm em direção a estes locais. Com efeito, o que determina o local e o momento da semeadura é o movimento das águas, tanto no céu quanto na terra. Quanto à colheita, esta obedece à maturação do grão, que depende de vários fatores, entre eles, a qualidade nutricional do solo, o volume de precipitação naquela localidade (uma vez que em poucos quilômetros o índice de chuvas pode variar significativamente) e, claro, o cuidado que o agricultor tem com seu roçado. Aqui o meio por excelência é o mutirão e, na maior parte das ocasiões, cerca de uma dezena de pessoas estão envolvidas em uma “bata de arroz”.

Infelizmente não me estenderei sobre este fenômeno sociotécnico que mereceria uma reflexão própria. Meu interesse reside sobretudo em trazer à superfície a diversidade de vida que o arroz atrai para si. O roçado de arroz é um emaranhado interespecífico dotado de uma microecologia própria. Aves, peixes, répteis, pequenos mamíferos e insetos compartilham uma paisagem feita e desfeita segundo os regimes de sazonalidade da chuva, que leva as águas a se acumularem nos campos de plantio durante o “inverno”. Sapos, baratas dágua, sanguessugas e até peixes como a traíra vivem no alagado; no céu se avistam muitos insetos, predominantemente libélulas, enquanto garças sobrevoam e caminham à procura de algum alimento. Já os pardais, além de roubarem alguns grãos dos humanos, consideram os pés de arroz um local propício para tecerem seus ninhos e colocarem ovos. Quando seco, é ainda possível observar lagartos e pequenos ratos, além de diversas espécies de cobras. Houve uma roça em particular onde, em um só dia de colheita, foram encontradas três espécies diferentes, uma corre-campo, uma cobra-coral falsa e uma jararaca, não sendo raros os relatos de encontros com jiboias.

O arroz contém ainda múltiplos usos para além de sua finalidade principal, de garantir alimento e ser fonte de renda para estas famílias. Como eu ouvi dizer, “ele serve para tudo”. Quando descascado, suas partes que não alimentam os humanos dão de comer aos animais de criação. Porcos e pintos comem o xerém e a casca, enquanto a palha remanescente que permanece no campo após a colheita é oferecida ao gado. Estes, ao pastarem na roça durante o “verão”, depositam estrume no solo, terminando por adubá-lo para o próximo plantio.

Uma vez semeado, o arroz atrai para seu seio uma “assembleia” de organismos que agem em “coordenação”.21 21 Os conceitos são de Anna Tsing (o segundo formulado pela autora na companhia de Elaine Gan - ver: Gan & Tsing 2018). Eu os evoco porque pretendo chamar a atenção para o fato de que estamos diante de um evento que envolve múltiplas ações e trajetórias que agem de maneira independente, em temporalidades distintas, e ainda que não haja necessariamente comunicação direta entre as partes, elas se articulam em uma sintonização particular, gerando em companhia aquilo que denominamos como paisagem. Tais coordenações não necessariamente são duradouras, mas podem ser, pois na multiplicidade de movimentos a estrutura está permanentemente aberta a transformações. Esse movimento obedece a dinâmicas centrípetas e centrífugas localizadas no tempo. Se a chuva do inverno que se acumula nos roçados convida à vida como um todo a se aproximar, durante o verão ela se esconde, hiberna, seja se embrenhando mata adentro ou abrigando-se debaixo da lama, no aguardo do retorno das forças provindas dos céus para de novo pulsar com todo o vigor.

Toda essa diversidade animal acima mencionada poderia fazer supor que existe algum aspecto de repulsa ou constante temor entre os trabalhadores no campo em relação a certos encontros indesejáveis, uma vez que consideramos a maior parte desses bichos como “animais peçonhentos”. É certo que esses seres não são bem quistos no espaço doméstico, mas, como dizem meus amigos, “a bata de arroz é uma luta”, de modo que o princípio de precaução de prestar atenção à vida se coloca como procedimento imprescindível. É preciso conviver e aprender a coabitar o espaço da roça com essa diversidade de seres, pois se, por um lado, esses encontros nem sempre são desejáveis e podem em alguns casos oferecer perigo, sua ocorrência indica que a vida ainda pulsa. Mesmo que não se tenha um conhecimento preciso dos efeitos de sua presença na paisagem, sua falta é temida em virtude do desequilíbrio que a ausência desses animais pode gerar, pois um importante entendimento compartilhado que vigora entre meus amigos é de que “tudo que é da natureza serve para alguma coisa”.

Sementes da paixão: conhecimento tradicional, família e alianças interespecíficas

Apesar de toda a violência sofrida no encontro colonial, a ancestralidade das práticas agrícolas no cultivo desses vegetais sazonais mencionados sugere a existência daquilo que Willian Balée denominou de “indigeneidade das paisagens”. Segundo o autor:

Indigeneidade é o estado ou qualidade de ser indígena. No meu uso do termo, se refere às maneiras tradicionais de conhecimento do mundo próprias de tradições culturais de pequena escala cujos sujeitos têm sido historicamente os alvos do colonialismo europeu e neoeuropeu e, mais recentemente. da globalização econômica (2008BALÉE, William. 2008. “Sobre a indigeneidade das paisagens”. Revista de Arqueologia, [S.l.], v. 21, n. 2.:10).

Como me afirmou Zé Nildo, irmão de Dóia, evocando a procedência de suas práticas agrícolas de cultivo e conservação de coleções botânicas: “Isso aí já tem uma faixa de uns trezentos anos que cultivamos. Vem dos meus antecedentes, bisavô, tataravô, avô, meu pai, vem de geração em geração”. Afirmação semelhante foi proferida também por Heleno Bento: “Essas espécies que a gente trabalha aqui são de milho crioulo. São famílias que vêm conservando essas sementes desde os antepassados. Do pai, dos avós, esse milho é muito adaptado à nossa região, à nossa terra, ao clima”.

Conhecidas popularmente como “sementes da paixão”, essas variedades de sementes constituem um valioso recurso agrobiológico. Conservadas tradicionalmente e continuamente replantadas no tempo do inverno, são adaptadas à ecologia local porque mantêm um vínculo histórico com o ambiente.22 22 Acerca desta prática de armazenamento de sementes para plantios futuros, afirma Heredia: “Em geral, os pequenos produtores preferem utilizar as sementes provenientes da própria colheita, não apenas pela economia que isso implica, mas porque desta forma têm certeza de haver realizado uma seleção cuidadosa das melhores. A semente comprada sempre oferece dúvidas sobre a sua qualidade e sobre a forma como foi selecionada e, por consequência, sobre o rendimento a ser obtido” (1979:58). Tal diversidade parece se configurar como uma estratégia local de segurança alimentar (Emperaire 2011:136). Ao contrário da monocultura, a diversidade favorece a resistência às pragas e diminui os riscos de colapso agrícola, dado que determinadas variedades são mais resilientes, enquanto outras se caracterizam por uma produtividade superior. Caso algum infortúnio venha a assolar as plantações, a diversidade genética garante que a safra não se perca por completo.

Essa dedicação à coleção se estende a todo gênero botânico, inclusive algumas das espécies cultivadas não possuem nenhuma outra finalidade além de gerar “boniteza”. Cada agricultor conserva em sua residência um banco de sementes próprio, no qual armazena as espécies por ele cultivadas. Talvez o caso mais exemplar deste tipo de cuidado seja Judivan, agricultor que em seu pequeno sítio de menos de um hectare guarda 85 garrafas com diferentes sementes, anualmente renovadas para que não percam seu teor germinativo. Como ele me contou de maneira objetiva:

Isso é para quando eu precisar das sementes, eu ter, e não perder as sementes nativas, medicinais. Por exemplo, se está em extinção o mastruz (Dysphania ambrosioides) na horta, semeio e não perco a semente. Esse ano faltou a crista de galo (Celosia cristata), aí, eu semeei.

Um encontro com outro agricultor é também sempre uma oportunidade para levar para casa algumas plantas. Quando acompanhava meus amigos visitando outros agricultores, sempre os observava atentos a algum vegetal que pudesse lhes interessar. Quando os indagava acerca das plantas por eles cultivadas, terminava escutando propriamente a história delas. Uma planta está sempre em continuidade com outra coisa estabelecida por uma relação. Como ela veio parar ali? Quem lhe presenteou? Ou onde foi coletada? Acerca das agricultoras wajãpi, nos diz Joana Cabral de Oliveira (2016OLIVEIRA, Joana Cabral de. 2016. “Mundos de roças e florestas.” Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. v. 11, p. 115-131. :119): “toda mulher lembra com precisão quem lhe deu a variedade e qual sua procedência”, afirmação que igualmente se aplica para as pessoas com as quais convivi. Além disso, o compartilhamento de plantas estabelece como efeito prático uma rede de segurança genética, pois, caso uma semente cultivada se perca, uma vez que ela tenha sido repassada no passado, é possível recuperá-la junto à pessoa que recebeu.23 23 Como lembra Manuela Carneiro da Cunha (2017:264), não seria justo reduzir esses traços às necessidades objetivas de conservação de um reservatório de variedade genética ou para produção de mecanismos de resistência a pragas, embora as experimentações e as atividades de troca de sementes levem a esses efeitos práticos.

Os vegetais não apenas são bons para comer, mas também para pensar. Com efeito, nos termos êmicos, pode-se afirmar que o parentesco se pensa através das plantas.24 24 A afirmação pode no primeiro momento parecer redundante, pois nosso próprio senso comum também mobiliza analogias vegetais para pensar o parentesco, como na corrente expressão “árvore genealógica”. Contudo, como pretendo demonstrar, neste caso, a conexão estabelecida com os vegetais é de outra natureza. A primeira vez em que me deparei com este fato foi quando, junto a Heleno Bento, esboçava diagramas de parentesco de sua família. Logo que começamos a desenhar os primeiros traços, uma dificuldade surgiu: registrar no papel toda a extensão de filhos que se seguiam como um padrão entre os diferentes núcleos familiares.

Não demorou para que Heleno compreendesse minha dificuldade e justificasse a razão daquele estado: “Sabe o que é meu filho? É que aqui o povo tem filho igual rama”. Enquanto Heleno comparava sua árvore genealógica com a geração de feijões, paralelamente eu percebia que meu problema em transformar o parentesco em uma espécie de mapa era, guardadas as devidas proporções, análogo àquele que muitos agricultores enfrentam no roçado quando plantam as carreiras de feijão muito próximas. Assim como as ramas de feijões, as relações de parentesco se entrelaçavam “trancando tudo”. Para seu genro Manoel, que participou também desse processo, enumerar os irmãos de sua mãe “era igual contar milho”, se referindo aos incalculáveis caroços presentes em uma espiga. Se nesse contexto eu produzi uma ecologia propícia para que a expressão viesse à superfície, formulações desse tipo surgiram em outras ocasiões, do tipo que Fravet-Saada definiu como “involuntária e desprovida de intencionalidade” (2005FRAVET-SAADA, Jeane. 2005. “Ser afetado”. Tradução de Paula Siqueira. Cadernos de Campo, v. 13, n. 13:155-161.:159), quando, por exemplo, em meio a um diálogo despretensioso sobre o cultivo de arroz de Dóia junto à sua extensa família, ouvi de outro agricultor: “Dóia tem irmão como rama”.

Eu gostaria de mencionar ainda outro ponto que vem corroborar meu argumento, volto-me às chamadas “sementes da paixão”. A razão da escolha desta nomeação para as sementes preservadas através de gerações pelos agricultores parece sugerir que, assim como o parentesco se pensa através das plantas, as plantas também se pensam através do parentesco. Tive a oportunidade, em um evento organizado pela Universidade Estadual da Paraíba, na cidade de Patos, de conhecer Seu Dodô, o agricultor que deu este nome às variedades crioulas locais. A respeito dessa onomástica ele me explicou:

Fomos a um encontro em Campina Grande, de um projeto de Bancos de Sementes, onde foram dados vários nomes, cada um tinha uma proposta. Eu falei assim: A Semente da Paixão! Aí me perguntaram: Por quê? Eu disse: Semente da Paixão, porque é uma paixão que a gente tem por uma semente que veio de nosso pai, dos nossos avós. A gente sabe o que está colhendo! […] Quando você tem paixão por uma coisa, você não guarda? Quando você casa com uma moça não é porque tem paixão? É uma coisa que você tem para toda a vida!

Como já foi sublinhado por Ana Claudia Marques acerca do problema da família no semiárido, “relações que em princípio (ou segundo nossa classificação) se situariam fora do escopo do parentesco são por assim dizer ‘familiarizadas’ (Comerford 2003), enquanto a abrangência de família se redefine incessantemente em função de outros campos de relações que a excedem (Villela 2009)” (Marques 2014MARQUES, Ana Claudia. 2014. “Considerações familiares ou sobre os frutos do pomar e da caatinga”. Revista de Antropologia da UFSCar, v. 6, n. 2:119-129. :120). Se constantemente os agricultores remetem a origem de seus cultivares às relações de descendência, pode-se afirmar que este é um “universo não restrito à consanguinidade” (Marques 2014MARQUES, Ana Claudia. 2014. “Considerações familiares ou sobre os frutos do pomar e da caatinga”. Revista de Antropologia da UFSCar, v. 6, n. 2:119-129. :124), de modo que, como já mencionado acima, as coleções são constantemente atualizadas por meio de amplas redes de troca que envolvem afins, relações de vizinhança, intercomunitárias, até apoios institucionais. Ressalto mais uma vez a importância da noção de “experiência”, na medida em que esta informa e confere sentido à prática de constantes experimentações técnicas e vegetais nas roças.

Aqui, não pretendo sugerir que os laços de consaguinidade humanos sejam coestensíveis aos vegetais, como se estes pertencessem à família tal como humanos, também não creio que meus amigos possam atribuir qualidade de “pessoa” a uma semente ou vegetal. Este me parece um caso mais próximo do que Donna Haraway chamou de “Making Kin”, o que significa não apenas fazer parente, mas relações gentis, de companhia, cuidado e alianças interespecíficas. Como a própria autora afirma: “Aqui, é um parentesco-diferente-não-natal e sem-categoria! […] [um trabalho de] criar vidas generosas e que floresçam” (2016:145).

Nesse sentido, parece difícil sustentar um argumento cujo controle ou motor da agência resida nas ações humanas, tal como se observa nas narrativas hegemônicas sobre domesticação. Aqui a espécie do vínculo é outro, as sementes são efetivamente parte constitutiva das famílias, trata-se de biografias entrecruzadas (Tsing 2019TSING, Anna Lowenhaupt. 2019. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no antropoceno. Edição Thiago Mota Cardoso, Rafael Victorino Devos. Brasília, DF: IEB Mil Folhas.:82), em que se estabelecem historicamente relações de cuidado entre seres que se cultivam em mutualidade. Nos termos de Haraway, trata-se da criação de refúgios em “uma parcial e robusta recuperação e recomposição biológica-cultural-política-tecnológica” (Haraway 2016HARAWAY, Donna. 2016. “Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes”. ClimaCom [Trad. “Anthropocene, Capitalocene, Plantationocene, Chthulucene: Making Kin”. In Environmental Humanities, Volume 6. 2015, Duke University Press.] Cultura Científica-pesquisa, jornalismo e arte Ι.:141). Se a existência dessas espécies e variedades vegetais dependem do contínuo plantio sazonal ao longo do tempo, são elas mesmas a base, a estrutura da vida25 25 “A batata e a vaca são objetos de uma exigente e diligente rotina que visa ao seu bem-estar e segurança” (Scott 2017:88). Com efeito, a rotina do agricultor e sua liberdade são sempre condicionadas pelas vontades e as exigências que os outros seres demandam aos humanos, fato que se aplica tanto aos vegetais cultivados como aos animais de criação. e o alimento fundamental que enche o estômago dessas pessoas. Uma relação de amor, companhia, uma “coisa para toda a vida”, transmitida através de gerações de humanos e sementes.

Considerações finais

Certa feita, Marcio Goldman (2006GOLDMAN, Marcio. 2006. “Alteridade e experiência: antropologia e teoria etnográfica”. Etnográfica, v. 10, n. 1:161-173.) lembrou como as experiências vivenciadas pelo antropólogo em campo diante da alteridade infletem de maneira inevitável em sua prática disciplinar. A ideia de “experiência” é algo que me acompanha desde que conheci os “agricultores experimentadores” e, de certo modo, este texto é ele próprio uma “experiência” no sentido que meus amigos da caatinga, do roçado, conferem ao termo. Neste artigo, tentei demonstrar como essas pessoas estabelecem com determinadas plantas, através de gerações, relações simbióticas de cocriação. Essa socialidade, paralela ao fato que termina por gerar diversidade de culturas (no sentido social e biológico), não pode ser reduzida a uma relação diádica entre humanos e plantas. Nesses ambientes, o que existe é uma interação contínua entre diversos actantes orgânicos e abióticos em um complexo “enlinhado multiespecífico”. Deste modo, não é possível determinar um agente privilegiado, ninguém está no comando (Tsing 2019TSING, Anna Lowenhaupt. 2019. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no antropoceno. Edição Thiago Mota Cardoso, Rafael Victorino Devos. Brasília, DF: IEB Mil Folhas.:128), os atores agem em coordenação e interdependência.

A existência deste caráter compósito que procurei evidenciar, no qual se conectam paisagem, técnica e agrobiodiversidade, só se mantém graças a uma estreita sintonia que alguns humanos estabelecem com os fluxos da vida nesse pedaço do mundo. “A natureza nos dá o caminho que devemos seguir”, como gosta de afirmar Heleno Bento, ou como ouvi de Inácio Garcia: “A gente trabalha de acordo com a natureza”. Ao contrário do modelo hilemórfico no qual o agente impõe forma a uma matéria supostamente inerte, para prosperar, é necessário que se articule com as forças presentes, estabelecendo alianças com as potências da Terra. Se as “experiências” se constituem pelo atributo transformacional no espaço, este fato inflete a própria característica da caatinga, que, para além de sua diferenciação ecológica interna, é constituída ela própria por uma experiência de transformação ao longo do tempo através de sua sazonalidade climática.

Em paralelo, pretendi realçar com esta espécie de antropologia vegetal a articulação social das plantas em três níveis distintos, isto é: 1. o seu registro biográfico - no que tange à experiência individual de cada pessoa; 2. a sua importância histórica - não apenas no que concerne às dinâmicas da morfologia das paisagens locais, mas em suas articulações em nível global, o que incluí suas relações com projetos transnacionais do capitalismo; 3. e por último, as plantas como efetivamente parte constitutiva das famílias.

Ao tratar do parentesco, apresentei as plantas segundo dois pontos de vista. Se em alguns momentos elas são mobilizadas como analogias, isto é, metáforas para pensar as relações sociais parentais entre humanos, em outros, elas são efetivamente contíguas, metonímicas às pessoas e às famílias. Assim, ao mesmo tempo em que poderíamos esboçar um diagrama com duas sérias distintas, em que humanos e plantas se conectam em linhas horizontais no plano sincrônico, em outras circunstâncias, há apenas uma única série diacrônica, na qual estão humanos e plantas em uma relação de constituição mútua. As plantas tanto servem para pensar o parentesco, como também são elas parte constitutiva das famílias. Neste sentido, não há uma contradição, o que observamos é uma única estrutura, composta por uma vinculação dupla.

Sugiro que este tipo de relação interespecífica tecida por vegetais e humanos estabelecido ao longo do tempo possa ser pensado como uma espécie de conexão apaixonada (Tsing 2019TSING, Anna Lowenhaupt. 2019. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no antropoceno. Edição Thiago Mota Cardoso, Rafael Victorino Devos. Brasília, DF: IEB Mil Folhas.:60). A afirmação de Michael Soulé de que “pessoas cuidam do que amam” (2011:2), força motriz do trabalho de Deborah Bird Rose junto a aborígenes australianos e seus parentes dingos, nos permite uma conexão parcial com as “sementes da paixão”. Com efeito, meu argumento buscou evidenciar um movimento de “captura recíprocra”, isto é, “um processo de encontro e transformação, não de absorção, em que diferentes maneiras de ser e de fazer encontram coisas interessantes para fazerem juntos”26 26 Creio que esta ideia se aproxima do que Joana Cabral de Oliveira chamou de “sedução das mandiocas”, no sentido de que nesta relação há uma espécie de agência presente nos vegetais que induz e suscita determinadas ações e atitudes humanas. “O fazer desejar-se [e ser amado] promove uma inversão das posições sujeito-objeto e já não se tem mais certeza de quem age sobre quem” (Oliveira 2019:83). (Rose 2017ROSE, Deborah Bird. 2017. “Shimmer: When all you love is being trashed”. In: Tsing, A. L., Bubandt, N., Gan, E., & Swanson, H. A. (Eds.), Arts of living on a damaged planet. Minneapolis, Minnesota: University of Minnesota Press. pp. G51=61 :G51). Aqui, ao contrário de buscar definir ou caracterizar este afeto singular por vegetais, busquei efetivamente descrever e explorar os efeitos práticos/materiais desta etologia. Esse amor cultivado e nutrido, inverno após inverno, ao longo de sucessivas gerações de plantas e humanos, desafia a oposição entre rural e urbano, a lógica econômica do mercado, o imperativo da produtividade e, por vezes, inclusive, torna a prática da agricultura um ato subversivo.

Para esta ocasião, na maior parte de meu argumento, optei por eleger determinadas plantas no intuito de evidenciar distintas modalidades de relação com os vegetais. Um possível equívoco residiria em interpretá-lo nos termos de certo determinismo no que concerne às espécies. Saliento que este não é o caso, pois tanto é possível estabelecer outros tipos de vínculos com o algodão como os próprios povos autóctones o mantinham antes do encontro colonial, bem como o atual movimento de retomada desta cultura por parte de pequenos agricultores no semiárido, agora por meio de uma perspectiva agroecológica. Assim também o milho, o feijão e o arroz, do mesmo modo, podem ser apropriados pela máquina destruidora de mundos que é a ontologia mercantil.

Se em minha primeira narrativa emerge o parasitismo como modo de relação, demonstrando as consequências não intencionais das tentativas de domínio humano da paisagem, as outras histórias, ao enfatizarem uma articulação multiespecífica dotada de um caráter simbiótico positivo na produção de mundos, pretendem alargar nossas percepções com “alegria, esperança e possíveis versões de humanidade além daquela destruidora de mundos” (Puig de la Bellacasa 2019PUIG DE LA BELLACASA, Maria. 2019. Re-animating soils: Transforming human-soil affections through science, culture and community. The Sociological Review, v. 67, n. 2:391-407.:404). Em suma, o que procurei aqui evidenciar é a necessidade de uma contínua relação amistosa com outros viventes, uma vez que o inesperado sempre espreita o futuro das plantações. Em paralelo, pretendi explicitar o confronto entre dois modos de produção, isto é, duas maneiras distintas de se relacionar com o outro mais que humano - e aqui eu me permito evocar as ideias de Antonio Bispo dos Santos (2015) -, o pensamento tradicional plurista com sua poesia compósita da vida, e a agricultura científica monista cujo meio é a dominação da paisagem, e o fim, a extração de recursos monetariamente quantificáveis da terra.

Contar essas histórias nos permite cultivar artes de atenção no sentido propriamente educacional que a antropologia pode fornecer neste mundo desmantelado (Ingold 2019INGOLD, Tim. 2019 [2018]. Antropologia: Para que serve?. Petrópolis: Editora Vozes.), ensinando-nos, a partir do conhecimento gerado por outros povos, a perceber movimentos nos quais a vida pode emergir ou se desfazer, bem como o fato de que o comportamento humano não é determinante. Sobretudo no momento em que vivemos uma época geológica caraterizada pelo prefixo antropos, ele atua como variável importante na coordenação e na composição das paisagens que tornam possíveis a nossa existência e as das demais espécies habitantes do globo terrestre. Para concluir, espero que, através da descrição de como a vida acontece e faz proliferar a diversidade em um território “desmantelado”, os “agricultores experimentadores” possam servir como um exemplo (Viveiros de Castro 2019VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2019. “On Models and Examples: Engineers and Bricoleurs in the Anthropocene.” Current Anthropology. v. 60, S. 20, S296-S308. ) para despertar entre nós uma ética ecológica de relacionamentos interespecíficos e conectividade com o mundo mais que humano (Rose 2011ROSE, Deborah Bird. 2011. Wild dog dreaming: love and extinction. Charlottesville: University of Virginia Press.:40).

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Notas

  • 1
    “O que estou tentando apontar é que há uma razão prática óbvia para tamanha diversidade de variedades de mandioca. Um gosto, uma paixão pela diversidade parece ser uma boa razão suficiente. [...] Argumento que as sociedades indígenas e locais parecem valorizar enormemente a própria diversidade como um bem em si. Isto inclui variedades de espécies vivas e de paisagens. Assim, eles prestam atenção às mínimas características e tendem a deter extensos sistemas de classificação.” (2017SCOTT, James C. 2017. Against the grain: a deep history of the earliest states. New Haven: Yale University Press.:264-265).
  • 2
    Tal oposição entre estes dois modos de se relacionar com o bioma tem sido operacionalizada conceitualmente através do contraste entre “combate à seca” e “convivência com o semiárido”. Essa disputa ontológica, por sua vez, tem como efeito implicações pragmáticas na textura da paisagem a partir da implementação de diferentes projetos e políticas públicas direcionadas para a região. Uma revisão minuciosa acerca do conflito pode ser encontrada em Silva (2003SILVA, Roberto Marinho Alves da. 2003. “Entre dois paradigmas: combate à seca e convivência com o semi-árido”. Sociedade e Estado, [S.l.], v. 18, n. 1-2:361-385.) e Malvezzi (2007MALVEZZI, Roberto. 2007. Semi-árido: uma visão holística. Brasília: Confea, ).
  • 3
    O referido termo foi explorado por vários autores na história da antropologia, e nem sempre empregado com o mesmo sentido (ver, por exemplo, Lienhardt 1961LIENHARDT, Godfrey. 1961. Divinity and Experience: The Religion of the Dinka. Oxford: Oxford University Press, UK.; Goldman 2006GOLDMAN, Marcio. 2006. “Alteridade e experiência: antropologia e teoria etnográfica”. Etnográfica, v. 10, n. 1:161-173.; Needham 1972NEEDHAM, Rodney. 1972. Belief, language, and experience. Chicago: University of Chicago Press. ; Carvalho 1993CARVALHO, José Jorge de. 1993. “Antropologia: saber acadêmico e experiência iniciática” . Anuário Antropológico 90:91-107. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. ). Examinar estas variações e estes contrastes exigiria outro trabalho, de modo que aqui me concentro sobretudo no emprego nativo da expressão.
  • 4
    Na literatura acerca dos povos agricultores do semiárido, diversos autores notaram este conhecimento em diferentes momentos históricos e contextos etnográficos (ver, por exemplo, Cunha 1905CUNHA, Euclides da. 1905. Os Sertões: Campanha de Canudos. 3. ed. corrigida. Rio de Janeiro: Laemmert & C.; Queiroz 1930QUEIROZ, Rachel de. 1981 [1930]. O Quinze. 27. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora S.A.; Willems 1961WILLEMS, Emílio. 1961. Uma vila brasileira. Tradição e transição. São Paulo: Difusão Europeia do Livro.; Woortmann & Woortmann 1997WOORTMANN, Klaas & WOORTMANN, Ellen. 1997. O trabalho da terra, A lógica simbólica da lavoura camponesa. Brasília, Editora da UnB.; Pennesi & Souza, 2012PENNESI, Karen & SOUZA, Carla Renata Braga de. 2012. “O encontro anual dos profetas da chuva em Quixadá, Ceará: a circulação de discursos na invenção de uma tradição”. Horizontes Antropológicos, v. 18, n. 38:159-186.; Taddei, 2017TADDEI, Renzo. 2019. Meteorologistas e profetas da chuva: conhecimentos, práticas e políticas da atmosfera. São Paulo: Editora Terceiro Nome.).
  • 5
    Ao abordar este gênero de conhecimento, Jorge Luan Teixeira chama a atenção para a indissociabilidade entre mobilidade, observação e criação narrativa através do que denomina de “enlinhado ecológico” (2019:239). O termo emprestado do vocabulário nativo aponta para uma espécie de emaranhamento, “bagunça, onde coisas estão misturadas, enroladas” (Virgilio 2014VIRGÍLIO, Nathan. 2018. Pensa que é só dar o de-comer? Criando e Pelejando com parente e bicho bruto na comunidade de Góis-CE. Dissertação de Mestrado, UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, Rio de Janeiro.:49 citado em Teixeira 2019TEIXEIRA, Jorge Luan. 2019. Caçando na mata branca: Conhecimento, movimento e ética no Sertão Cearense Tese de Doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.:256). Assim, as “experiências” se constituem através de um saber acumulado em etologia que consiste sobretudo em decodificar em meio a uma multiplicidade de ações na paisagem o significado dos movimentos de outros seres.
  • 6
    Como um interlocutor afirmou para Ellen e Klas Woortmann (1997WOORTMANN, Klaas & WOORTMANN, Ellen. 1997. O trabalho da terra, A lógica simbólica da lavoura camponesa. Brasília, Editora da UnB.:79): “Aquele pedaço dali eu estou experimentando [grifo nosso]. Meu filho voltou de São Paulo disse que lá eles usam serragem de adubo. Estou vendo como é”. Expressão semelhante eu ouvi de Chico de Adolfo enquanto observava seus plantios e o indaguei acerca de um canteiro onde o agricultor semeou alface junto com tomate: “Espia, Gabriel, isso daqui é apenas uma experiência”.
  • 7
    No que tange às “experiências” voltadas para prognósticos relativos ao clima, por exemplo, sua diversidade é tão elástica que Pennesi e Souza (2012PENNESI, Karen & SOUZA, Carla Renata Braga de. 2012. “O encontro anual dos profetas da chuva em Quixadá, Ceará: a circulação de discursos na invenção de uma tradição”. Horizontes Antropológicos, v. 18, n. 38:159-186.:182) registraram em sua base de dados mais de mil bioindicadores climáticos diferentes.
  • 8
    Como lembra Irenaldo Araújo, a caatinga não é de modo algum homogênea, sendo encontrados pelo menos oito tipos de vegetações diferentes no bioma. Este fato implica “variações, tanto na composição botânica quanto na densidade da vegetação, que podem estar relacionadas com as condições edafoclimáticas locais ou com a fase da sucessão secundária da caatinga” (Araujo Filho citado em Araújo 2016ARAÚJO, Irenaldo Pereira de. 2016. Tecnologias sociais e práticas educativas contextualizadas para a convivência com o semiárido: partilhando saberes e construindo novos olhares em territórios camponeses. Tese de Doutorado, UFPB.:105).
  • 9
    No semiárido, segundo seus habitantes, existem apenas duas estações, “inverno” e “verão”. Por “inverno”, compreende-se o período em que se intensificam as chuvas, que tendem a durar por cerca de três meses, podendo se estender em até cinco meses em um ano de inverno bom. Sempre incerto e flutuante, sua ocorrência na região do Seridó se dá sobretudo entre janeiro e maio.
  • 10
    Em virtude da extensão das roças, bem como a própria disponibilidade hídrica, estas culturas são regadas apenas pelas águas provindas do céu. Semeadas justamente no período em que se intensificam os índices pluviométricos, para o sucesso de uma boa safra, é correlativa a necessidade da existência de um bom “inverno”. Neste caso, não basta a chuva cair em quantidade abundante, mas é preciso que ela venha com determinada frequência, de preferência, com potência fraca, para “aguar” regularmente as plantas e não levar embora as sementes nem agredir o solo provocando erosões.
  • 11
    Ocorre com o feijão, assim como com outros alimentos, como ovos, galinhas e carne, uma flutuação em relação ao valor econômico de acordo com as variações climáticas do ciclo sazonal. Se o “inverno” for bom, a tendência é que nesse período o preço do feijão (assim como o valor dos ovos e das galinhas) caia significativamente, enquanto nos últimos meses do verão, é de praxe que o preço do mesmo alimento alcance seu ápice. O gado entretanto acompanha o movimento inverso. No período de chuvas, com pasto abundante, o valor das reses aumenta, e na medida em que o “verão” avança, diminuindo os campos de pastagem, o preço do animal regride.
  • 12
    “Curujinha”, “galanjão”, “manteiga”, “chifre de carneiro”, “costela de vaca”, “pingo dágua”, “sempre verde”, “das moça”, “pitiúba”, “branco”, “cancão”, “rabo de rato”, “rabo de tatu”, “ovo de guiné”, “xoxa bunda”, “canapú”, “jureminha”, “riograndense”, “quebra cadeira”, “caicó” e “bala”.
  • 13
    “Jabatão”, “roxo”, “trigo”, “pontinha”, “alho”, “aracaju”, “catingueira”, “branco”, “pingoró”, “híbrido”, “vermelho”, “maçã”, “peba”, “anão” e “cunha”.
  • 14
    No que tange à nomenclatura de tais variedades, é mister considerar o fato de que, não raras vezes, para mencionar determinado milho ou feijão, utiliza-se um binômio composto pelo nome popular do vegetal (em muitos casos, uma alusão às próprias características morfológicas da semente), acrescido do nome do agricultor que o cultiva. Este fato sugere que o feijão “sempre-verde” cultivado por determinado agricultor é diferente da mesma variedade cultivada por outro agricultor, de modo que, havendo uma variedade x, há modulações internas à própria variedade na medida em ao longo do tempo há uma espécie de coevolução entre a variedade e o agricultor que a cultiva.
  • 15
    O agricultor se refere a um pequeno inseto que costuma atacar os feijões no período de safra provocando o adoecimento das vagens.
  • 16
    Dentre as “qualidades” de jerimum, os agricultores identificam diversas “padronagens”, isto é, diferenças que dizem respeito ao tamanho, à aparência e ao sabor dos frutos. De modo que, o “jerimum de leite” pode ser “comprido”, “redondo”, “de pescoço”, “esverdeado” ou “angico”, enquanto o “jerimum caboclo” pode ser “jandaia” ou “marimba”. Aqui, mais uma vez, assim como no milho e no feijão, “por meio da nomeação, percebemos a diversidade da vida” (Tsing 2019TSING, Anna Lowenhaupt. 2019. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no antropoceno. Edição Thiago Mota Cardoso, Rafael Victorino Devos. Brasília, DF: IEB Mil Folhas.:45).
  • 17
    Aqui, pode-se incluir além dos pertencentes à unidade agrícola, sua rede de consanguinidade próxima, isto é, filhos e irmãos (sobretudo aqueles que habitam no perímetro urbano), além de vizinhos geograficamente próximos com os quais é de praxe estabelecer relações de trocas. Dentre as regras de etiqueta social, um modo de manifestar e atualizar relações entre as pessoas é a doação do excedente na época de safra. As visitas residenciais não são institucionalizadas, mas, quando ocorrem, são momentos privilegiados para a efetivação do ato de reciprocidade. É esperado que o anfitrião de algum modo apresente sua safra, dando ao visitante a oportunidade de degustar e provar de suas colheitas, em especial as frutas, e quando possível, que o anfitrião também ofereça algo como uma melancia ou um saco de feijão para o visitante levar para a própria residência.
  • 18
    No semiárido, a principal festa do ano é o São João, que tradicionalmente é um rito de comemoração da colheita, ocasião em que a maioria dos alimentos é preparada justamente a partir deste cereal como matéria-prima.
  • 19
    Assim como o que ocorre com as ramas de feijão, o milho é também compartilhado com os animais de criação após a colheita, quando seu talo e suas folhas triturados na máquina forrageira são servidos às vacas. Poder-se-ia afirmar que, no semiárido, parte significativa da agricultura é voltada para alimentação dos animais, sobretudo bovinos. Cana-de-açúcar e capim-elefante são espécies com ocorrências constantes nas unidades agrícolas locais. Este tópico merece ser aprofundado em outro momento, por ora, vale ressaltar, no que tange à alimentação dos animais, há uma série de técnicas que visam ao armazenamento de nutrientes para consumo no período da seca, tais como silagem, feno, ou mesmo o plantio de palmas.
  • 20
    Atualmente, além do Vale do Piancó na Paraíba, apenas o Vale do Apodí no Seridó potiguar mantém expressividade nesta cultura agrícola, podendo o cultivo do arroz-vermelho ser encontrado também como parte do sistema agrícola de alguns coletivos quilombolas dispersos em outras regiões do Brasil.
  • 21
    Os conceitos são de Anna Tsing (o segundo formulado pela autora na companhia de Elaine Gan - ver: Gan & Tsing 2018GAN, Elane & TSING, Anna. 2018. “How things hold: a diagram of coordination in a Satoyama forest”. Social Analysis, v. 62 (4):102-145, Winter.GARCIA JR, ). Eu os evoco porque pretendo chamar a atenção para o fato de que estamos diante de um evento que envolve múltiplas ações e trajetórias que agem de maneira independente, em temporalidades distintas, e ainda que não haja necessariamente comunicação direta entre as partes, elas se articulam em uma sintonização particular, gerando em companhia aquilo que denominamos como paisagem. Tais coordenações não necessariamente são duradouras, mas podem ser, pois na multiplicidade de movimentos a estrutura está permanentemente aberta a transformações.
  • 22
    Acerca desta prática de armazenamento de sementes para plantios futuros, afirma Heredia: “Em geral, os pequenos produtores preferem utilizar as sementes provenientes da própria colheita, não apenas pela economia que isso implica, mas porque desta forma têm certeza de haver realizado uma seleção cuidadosa das melhores. A semente comprada sempre oferece dúvidas sobre a sua qualidade e sobre a forma como foi selecionada e, por consequência, sobre o rendimento a ser obtido” (1979:58).
  • 23
    Como lembra Manuela Carneiro da Cunha (2017CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2017 “Traditional people, collectors of diversity. In: Mark Brightman & Jerome Lewis (ed.s), The anthropology of sustainability: beyond development and progress. Basingstoke: Palgrave Macmillan. p. 257-272.:264), não seria justo reduzir esses traços às necessidades objetivas de conservação de um reservatório de variedade genética ou para produção de mecanismos de resistência a pragas, embora as experimentações e as atividades de troca de sementes levem a esses efeitos práticos.
  • 24
    A afirmação pode no primeiro momento parecer redundante, pois nosso próprio senso comum também mobiliza analogias vegetais para pensar o parentesco, como na corrente expressão “árvore genealógica”. Contudo, como pretendo demonstrar, neste caso, a conexão estabelecida com os vegetais é de outra natureza.
  • 25
    “A batata e a vaca são objetos de uma exigente e diligente rotina que visa ao seu bem-estar e segurança” (Scott 2017:88). Com efeito, a rotina do agricultor e sua liberdade são sempre condicionadas pelas vontades e as exigências que os outros seres demandam aos humanos, fato que se aplica tanto aos vegetais cultivados como aos animais de criação.
  • 26
    Creio que esta ideia se aproxima do que Joana Cabral de Oliveira chamou de “sedução das mandiocas”, no sentido de que nesta relação há uma espécie de agência presente nos vegetais que induz e suscita determinadas ações e atitudes humanas. “O fazer desejar-se [e ser amado] promove uma inversão das posições sujeito-objeto e já não se tem mais certeza de quem age sobre quem” (Oliveira 2019OLIVEIRA, Joana Cabral de. 2019. “A sedução das mandiocas”. In: Beatriz Caiuby Labate & Sandra Lucia Goulart (orgs.), O uso de plantas psicoativas nas Américas. Rio de Janeiro: Gramma/NEIP,:83).

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Cunha Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Fev 2021
  • Aceito
    12 Maio 2023
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