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HITA, Maria Gabriela. 2014. A casa das mu lheres n'outro terreiro: famílias matriarcais em Salvador-Ba. Salvador: Edufba. 513pp.

HITA, Maria Gabriela. A casa das mu lheres n'outro terreiro: famílias matriarcais em Salvador-Ba. 2014. Edufba, Salvador

Maria Gabriela Hita é graduada em sociologia pela Universidade Federal da Bahia, possui doutorado em Ciências Sociais pela Unicamp e é pós-doutora pela Universidade de Manchester - Grã-Bretanha (2008). Hita tem uma vasta produção acadêmica sobre mulheres, gênero e feminismo, assim como sobre pobreza urbana, família, saúde e raça. É em torno destes temas que seu livro A casa das mulheres n'outro terreiro: famílias matriarcais em Salvador-Ba gira.

O livro versa sobre a existência de duas famílias matriarcais extensas que se enquadram no conceito que a autora desenvolveu de matriarcalidade. A matriarcalidade para Hita não se resume à matrifocalidade e nem coincide com ela ou com o conceito comumente usado de matriarcado. A matriarcalidade engloba tanto a ideia de matrifocalidade - quando a descendência permanece na linhagem materna - quanto a de matriarcado, na medida em que a autoridade, a herança e a descendência têm como centro a figura da mãe-avó.

Assim, Maria Gabriela Hita recupera o conceito de matriarcado, não buscando uma realidade trans-histórica ou a-histórica como fizeram muitas feministas, mas fundamentando tal conceito na experiência vivida de mulheres no contexto de pobreza, em um bairro popular de Salvador denominado Nordeste de Amaralina.

Através de um olhar minucioso e detalhista, o livro vai desvelando a realidade de duas famílias extensas e negras que habitam o Nordeste de Amaralina: a de D. Cida e a de Mãe Dialunda. Ambas as famílias se enquadram no conceito que Hita desenvolveu de matriarcalidade. As duas mulheres, tanto Cida quanto Dialunda, ocupam a posição de matriarcas, chefes de família e, com raras exceções, os novos núcleos familiares que se formaram no decorrer dos anos e suas descendências permaneceram sob a tutela da linhagem materna.

Essas mulheres são as principais provedoras da família e elas possuem o bem mais precioso nesse contexto, o que lhes permite concentrar um enorme poder e autoridade. Esse bem é a casa, sendo ela também uma categoria central no pensamento de Hita. A casa, além de permitir uma perspectiva mais ampla e completa do que a ideia de família nuclear, pois possibilita uma maior maleabilidade na incorporação de relações de afinidade, consanguinidade e consideração, também torna possível visualizar a materialização do poder da matriarca.

É através da casa que a matriarca encarna o Mana e inicia uma intricada rede de trocas - dar, receber e retribuir - na qual todo indivíduo que desfruta de um pedaço de chão embaixo desse teto se vê enredado nessa obrigação de dar, receber e posteriormente/obrigatoriamente retribuir. Essa rede de trocas implica não só bens materiais, mas também bens espirituais, afetivos e simbólicos; isto caracteriza o que Hita chama de FSC, ou seja, força simbólica circulante - uma força que provém do fato de D. Cida e Mãe Dialunda serem as donas da casa.

Esse ethos de troca e circularidade se dá não só através de coisas, mas igualmente de pessoas. Estas circulam pelas casas, principalmente as crianças, que são vistas como verdadeiras dádivas e, por isso, a autora prefere usar o termo configuração de casas ao invés de casas. Se, por um lado, a ideia de casa possibilita um manejo melhor das relações que estão em jogo em um grupo familiar, por outro, a ideia de configuração de casas permite dar conta da circularidade e da movimentação de pessoas por sua rede de parentesco.

É muito comum a circulação de crianças e a existência de filhos de consideração. A consideração coloca em evidência o eixo social das relações de parentesco, é capaz de aproximar o distante e distanciar o próximo, flexibiliza as relações determinísticas colocadas pelo critério da consanguinidade. Um filho de consideração quebra a ideia de determinismo biológico e mostra como as relações humanas são movidas por outras variáveis que não só a biologia.

Esse caráter social da consideração é coerente com a própria noção de circulação de crianças, na medida em que essa circulação evidencia o caráter social da maternidade. Mãe não é só aquela que gera, mas sim aquela que é capaz de prover, de vestir, de alimentar. Hita mostrou que é muito comum em Nordeste de Amaralina as mães darem seus filhos para outra pessoa da parentela criar. Essa criança, no decorrer da sua vida, pode circular pela casa de várias pessoas sem necessariamente perder o contato com a mãe. Tal atitude não é vista com maus olhos ou ressentimento pelos filhos ou pela parentela, isto porque mais importante do que o laço de sangue da mãe com o filho é a possibilidade de sobrevivência desse filho.

Assim, instaura-se uma espécie de maternidade social. Nesse ponto, os dados levantados no livro também nos levam a questionar uma das relações que por muito tempo foi considerada como a mais natural na humanidade, qual seja, a relação ou díade mãe-filho. Esses dados, conseguidos através da etnografia, mostram o quanto a maternidade nesses contextos é movida e orientada pelo vetor social. É nesse sentido que Mãe Dialunda e D. Cida são consideradas mães de todos, já que são elas as responsáveis pelo provimento da maior parte das suas redes de parentescos.

Além de as pessoas se moverem, o espaço também se move e se modifica concomitantemente com a transformação da configuração familiar. Quando as posições, as relações de poder e as hierarquias se modificam dentro de um grupo doméstico, a configuração do espaço também se transforma. Do mesmo modo, a alteração do espaço também altera as relações. Assim, espaço e relações humanas se retroalimentam. Se, por um lado, o espaço materializa as relações de poder, por outro, as relações de poder também são vivenciadas através do espaço.

A etnografia mostra que a casa de Mãe Dialunda sofreu poucas mudanças e manteve de certa forma o seu modelo inicial - a rede de parentesco construiu novas casas e novos espaços em outros terrenos doados por Mãe Dialunda. Já a casa de D. Cida sofreu transformações espaciais bem evidentes, que se devem, principalmente, aos projetos e às ambições de sua filha mais nova - Dina. Ela ganha a cena na narrativa da trajetória da rede de parentesco de D. Cida.

Filha mais nova e que inicialmente não contava com a preferência de D. Cida, Dina quebra todos os estereótipos da "mulher" enquanto vítima e passiva diante da força física do homem. Apresentando uma força e uma persistência incríveis, Dina, aos poucos e com a ajuda de amigos e vizinhos, constrói sua própria casa na laje de D. Cida. Carrega bloco, bate laje, sobe parede, carrega peso, enfim, ela questiona a assertiva que talvez mais identifique a diferença entre um homem e uma mulher: a de que a força física é um atributo do homem e não da mulher.

A força física também se manifesta na "violência" sob a qual se dão as relações naquele contexto. A violência ali não é vista como uma patologia, como um ato de incivilidade, ou como um recurso a ser acessado em caso de extrema necessidade, mas, ao contrário, permeia a vida das pessoas, faz parte do ethos daquele contexto, marca as práticas, os comportamentos e as relações cotidianas. Essa violência, que muitas vezes se expressa através da força física, não segue um único vetor - do homem para a mulher - mas permeia a totalidade das relações, seja da mulher para o homem, seja do homem para a mulher, da mãe para o filho, do filho para a mãe e para o pai, entre irmãos, vizinhos e amigos. A violência constitui as relações ali existentes. E a mulher, assim como a criança, são sujeitos que fazem uso da força e da violência.

A mulher-mãe-avó concentra um imenso poder. Dentre outros motivos, isso se deve às próprias trajetórias dessas mulheres que começaram a trabalhar muito cedo e, por esta razão, são dotadas de uma força e de uma perseverança características. Aqui cabe perguntar: qual é mesmo o papel do homem nesse contexto? Para Hita, o homem não é um jogado fora, como outras etnografias feitas no contexto do Recôncavo baiano afirmaram, também não é um galo que não canta no terreiro; ele também é dotado de certo poder, que se expressa principalmente na figura do protetor da casa, daquele que faz o elo entre a casa e a sociedade mais ampla.

Esse poder, no entanto, está subordinado àquele da matriarca, que é quem concentra maior poder na casa. Além disso, a posição de poder do homem está muito mais ligada ao vínculo consanguíneo, ou seja, à sua posição como filho da matriarca, resultado mais de um poder que vem da mulher do que do vínculo de afinidade que afirmaria a autoridade do homem, autonomamente, como um provedor. Nesse contexto, o homem não é o provedor, a provedora é a matriarca e, por isso, seu poder emana dela e não de uma condição autônoma.

O livro A casa das mulheres n'outro terreiro: famílias matriarcais em Salvador-Ba traz muitas contribuições para o feminismo e para se pensar em temas de gênero, família e raça. Hita questiona o modelo clássico de família nuclear e patriarcal ao apresentar de forma minuciosa a realidade vivida de duas famílias extensas no Nordeste de Amaralina. Ela recupera a ideia de matriarcado, através do conceito de matriarcalidade, sem precisar recorrer a realidades trans-históricas. Hita questiona a consanguinidade como o principal pilar da relação familiar e de parentesco e atenta para a força da consideração na trajetória parental dessas duas famílias. Por fim, a autora ressignifica o papel do homem e da mulher nesses contextos ao refletir, primeiro, sobre a maternidade como um vínculo social, descentrando o caráter biológico dessa relação e, depois, ao perceber a posição de agência daquelas mulheres.

Além disso, apesar de Hita tratar do papel do homem apenas na conclusão do livro, diferentemente de outras etnografias realizadas em contextos semelhantes, ela reconhece o seu poder nesses arranjos familiares, mas atrela-o ao poder central da matriarca. Assim, torna-se evidente o vasto leque de contribuições que o livro A casa das mulheres n'outro terreiro: famílias matriarcais em Salvador-Ba traz para os estudos de gênero, família, parentesco e raça e, de um modo mais amplo, para o próprio feminismo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014
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