Acessibilidade / Reportar erro

RESENHA DE CÓDIGO DE MACHADO DE ASSIS: MIGALHAS JURÍDICAS, DE MIGUEL MATOS

REVIEW OF CÓDIGO DE MACHADO DE ASSIS: MIGALHAS JURÍDICAS, BY MIGUEL MATOS

MATOS, Miguel. . Código de Machado de Assis: migalhas jurídicas. São Paulo: Migalhas, 2021. 592 p.

O estudo das inter-relações entre literatura e direito começa a ganhar impulso no Brasil com sua inclusão como disciplina nos currículos universitários. Esse crescimento tem proporcionado boa quantidade de massa crítica produzida dentro das universidades e em publicações da comunidade jurídica. Em nível internacional, os autores mais estudados por esse enfoque são Shakespeare, Dostoiévski e Kafka. Na esfera nacional, ainda incipiente, Machado de Assis está longe na dianteira da preferência dos autores.

Desde os tempos das tragédias gregas, a literatura tem se valido de temas jurídicos como elementos estruturadores da narrativa por intermédio do uso de vários procedimentos. Os mais comuns podem ser agrupados em três categorias: 1) cenas de julgamento de personagens; 2) uso de advogados (ou de outros profissionais da área jurídica); e 3) a questão dialética entre o legal e o justo.

Inúmeros exemplos podem ser colhidos ao longo da história da literatura universal a respeito de cada uma dessas categorias. A peça O mercador de Veneza, de Shakespeare, é um exemplo excelente de como a literatura pode se servir do Direito como fonte de inspiração. No ato IV, ocorre um longo e tumultuado julgamento para solução de um conflito jurídico. Antônio, o mercador, pede dinheiro emprestado ao judeu agiota Shylock para repassá-lo, por sua vez, ao jovem Bassânio, que pretende se casar com a rica Pórcia e não tem dinheiro para o dote. Shylock, mesmo odiando Antônio, concorda em emprestar a quantia se o mercador, caso não pagasse a dívida, desse a ele uma libra de carne, tirada do seu próprio corpo de local de escolha pessoal do credor. O contrato é elaborado e, sobrevindo o naufrágio de seus barcos, Antônio fica impossibilitado de honrar o compromisso assumido.

A demanda vai a julgamento pelo tribunal. Shylock apela para o cumprimento literal do contrato. Pórcia, então, disfarçada de advogada, profere a famosa peroração, clamando por misericórdia: "duas vezes abençoada, por aquele que a concede e por aquele que a recebe". O agiota não aceita o discurso humanitário da defesa e exige a execução da cláusula penal. A vitória da causa é conseguida por um ardiloso raciocínio da advogada: como o contrato mencionava apenas "uma libra de carne", sem se referir também ao sangue, o judeu cometeria crime grave se fizesse jorrar uma gota de sangue de um cristão, segundo as leis de Veneza. Ele fica isolado na impiedosa pretensão e mal pode acreditar no veredicto. "A lei é essa?", esbraveja com incredulidade (SHAKESPEARE, 1989SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. In: ______. Obra completa. Tradução de Oscar Mendes e outros. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. v. 2, p. 441-497., p. 486).

Mais amplo ainda é o uso de cenas de tribunal em Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski (2012DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov. Tradução, notas e posfácio de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2012., p. 591-668, p. 849-999). Quase um terço desse longo romance é dedicado ao julgamento de Dmitri, acusado de matar seu lascivo pai, sexualmente interessado em sua namorada Grúchenka. Mesmo inocente, é condenado a vinte anos de prisão pelo tribunal do júri.

Franz Kafka, advogado e doutor em Direito, escreveu várias obras nas quais faz pleno uso da interlocução entre literatura e direito. Seu romance O processo é o mais conhecido e admirado pela comunidade jurídica. A alienante burocracia e a miséria do judiciário se inter-relacionam no universo kafkiano desde o início da narrativa, que levanta uma questão fundamental dos direitos humanos: "Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois numa manhã ele foi detido sem ter feito mal algum" (KAFKA, 2005KAFKA, Franz. O processo. Tradução e posfácio de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., p. 7).

O infeliz Josef K. foi detido na manhã do seu aniversário de trinta anos e é executado por dois desconhecidos exatamente um ano depois, no dia do seu 31o aniversário de nascimento. Sem conseguir saber o motivo pelo qual estava sendo processado, ele morre "como um cão". O narrador ao final formula questões de perplexidade: "Onde estava o juiz que ele nunca havia visto? Onde estava o alto tribunal ao qual ele nunca havia chegado?" (KAFKA, 2005KAFKA, Franz. O processo. Tradução e posfácio de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., p. 228).

Machado de Assis, sem provincianismo acadêmico, está no mesmo nível de excelência de autores como Shakespeare, Dostoiévski e Kafka. A partir de 2008, com a passagem do primeiro centenário de sua morte, começa o reconhecimento internacional, tão desejado por ele, como escritor universal, capaz de ombrear com os grandes romancistas dos séculos XIX e XX. A partir de então, sua obra passou a ser objeto de estudos nas grandes universidades americanas e europeias. Hoje, quase toda a sua produção literária encontra-se traduzida, sobretudo para o inglês, por renomados tradutores em edições esmeradas e de grande alcance público.

A universalidade conquistada no exterior repercutiu poderosamente na imagem lentamente construída no Brasil ao longo desse século de celebrações. Assim, ele conquistou a unanimidade crítica, sendo considerado o melhor e o mais importante escritor brasileiro de todos os tempos. Sua variada e extensa obra tem gerado centenas de estudos críticos dentro e fora das universidades brasileiras. As reedições de seus escritos são contínuas e abundantes.

Atingindo uma ampla e variada plateia de leitores, Machado deixou de ser objeto exclusivo da preferência da crítica universitária. São incontáveis os autores "leigos" que se lançam a produzir trabalhos em homenagem ao criador da célebre Capitu, a personagem mais conhecida da literatura brasileira. Entre os mais recentes trabalhos, chegou recentemente às livrarias o alentado Código de Machado de Assis: migalhas jurídicas, de autoria do advogado e jornalista Miguel Matos.

Expressando um excessivo temor reverencial pela previsível crítica dos "literatos", Miguel Matos revela, em várias passagens, grande humildade por ter realizado esse gigantesco trabalho de pesquisa jurídica e literária. Os pedidos de desculpas começam logo na "Exposição de Motivos" e se manifestam ao longo da obra:

[...] apesar da importância do autor, que deveria suscitar apenas estudos intelectuais, este é um trabalho despretensioso, feito muito mais de suor do que de neurônios. Ou seja, é mais uma vontade espartana do que uma reflexão ateniense. (MATOS, 2021MATOS, Miguel. Código de Machado de Assis: migalhas jurídicas. São Paulo: Migalhas, 2021., p. 29)

[...]

Ainda sobre os romances, cabe-nos fazer uma advertência, antecipando eventual desapontamento do leitor. É que não nos atrevemos a discutir os romances sob um enfoque crítico. O que se apresenta é um resumo de cada obra, com foco apenas nas imagens, falas e personagens jurídicos. (MATOS, 2021MATOS, Miguel. Código de Machado de Assis: migalhas jurídicas. São Paulo: Migalhas, 2021., p. 66)

A modéstia do autor se transforma em desabrido destemor quando trata da célebre questão: Capitu traiu ou não o marido? Milhares de páginas já foram escritas sobre essa discutível polêmica. Argumentos convincentes têm sido usados ora para inocentar ora para condenar a personagem machadiana. Também é frequente encontrar leitores indecisos que expressaram juízos opostos ao longo da vida, oscilando entre a absolvição e a condenação.

Nesse aspecto, Miguel Matos toma enfática posição crítica e profere o implacável veredicto contra a indefesa Capitu: Culpada! Em suas palavras, “[...] se você, leitor benevolente, quer conceder a ela o perdão, é com você. Nós não vamos nos imiscuir no julgamento alheio. Mas que ela traiu, traiu" (MATOS, 2021MATOS, Miguel. Código de Machado de Assis: migalhas jurídicas. São Paulo: Migalhas, 2021., p. 117).

A justificativa para essa drástica conclusão, segundo o autor, está no fato de Machado de Assis ter dado o título "Embargos de terceiro" ao capítulo 113 de Dom Casmurro. Essa expressão jurídica tão do agrado de Machado, que às vezes a emprega na forma reduzida "embargos", foi utilizada em outros momentos da sua obra, desde o início até o apogeu da maturidade.

Como poeta, utilizou-a no poema "A um legista", que se encontra em Falenas (1863):

[...] Rosa… que se enamora Do amante colibri, E desde a luz da aurora Os seios lhe abre e ri. Mas Zéfiro brejeiro Opõe ao beija-flor Embargos de terceiro Senhor e possuidor… (ASSIS, 1992b______. Falenas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992b. v. 3, p. 207-223., p. 217) [...]

No teatro, ela aparece na quase desconhecida comédia de um ato O caminho da porta, representada no Ateneu Dramático em setembro de 1862 e publicada um ano depois, na cena VI:

VALENTIM

É natural. Pois como havia ela de amar a um homem que quer levar tudo pela razão fria dos seus libelos e embargos de terceiro?

DOUTOR

Foi isso que me salvou; os amores como os desta mulher precisam um tanto ou quanto de chicana. Passo pelo advogado mais chicaneiro do foro; imagina se a tua viúva podia haver-se comigo! Veio o meu dever com embargos de terceiro e eu ganhei a demanda. Se, em vez de comer tranquilamente a fortuna de teu pai, tivesses cursado a academia de S. Paulo ou Olinda, estavas, como eu, armado de broquel e cota de malhas.

VALENTIM

É o que te parece. Podem acaso as ordenações e o código penal contra os impulsos do coração? É querer reduzir a obra de Deus à condição da obra dos homens. Mas bem vejo que és o advogado mais chicaneiro do foro. (ASSIS, 2003______. O caminho da porta. In: ______. Teatro de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 21)

Em A mão e a luva (1874), segundo romance de Machado, a expressão "embargos de declaração" apenas nomeia o capítulo 15.

Machado de Assis era profundo conhecedor das lides forenses, e fez uso notável do emaranhado das questões jurídicas, que ele acompanhava atentamente pelo noticiário dos jornais. O impressionante levantamento de dados realizado por Miguel Matos é prova suficiente de que Machado se valeu do mundo jurídico para compor sua notável obra. Dessa intensa busca por personagens jurídicas na obra machadiana, Matos encontrou nada menos que 224 personagens, que ele agrupa nas seguintes categorias: advogados (80), bacharéis (38), desembargadores (23), juízes (18), escrivães (11), escreventes (10), acadêmicos de direito (8), tabeliães (8), magistrados (4), promotores (4), agentes (4), procuradores (3), estagiários (2), ex-promotores (2), ministros (2), solicitadores (2), fiel de feitos (1), diplomata (1), doutor em direito (1), funcionário do foro (1) e rábula (1). Todas elas nomeadas e localizadas nos mais diversos escritos de Machado.

Somente esse exaustivo elenco amealhado por ele já demonstra que o adultério ou não de Capitu se torna uma questão menor na estrutura do romance. A grandeza de Machado se torna mais evidente se Capitu for comparada a outras célebres personagens adúlteras da literatura universal, como Desdêmona (Otelo), de Shakespeare; Emma Bovary, de Flaubert; Ana Kariênina, de Tolstói; e Luísa (O primo Basílio), de Eça de Queirós. Na análise dessas quatro, o leitor não fica em dúvida se são “culpadas” ou não. Delas, apenas a heroína de Shakespeare é seguramente “inocente”; as outras três são certamente culpadas.

Capitu é a mais complexa e enigmática das cinco. Essa ambiguidade de caráter é uma das grandes contribuições de Machado de Assis, que enreda o leitor no ponto mais alto da sua criatividade: o romance Dom Casmurro, o mais jurídico de toda a sua ficção, no qual ele usa fartamente o Direito como pano de fundo para expressar as contradições humanas. A pletora de vocábulos jurídicos aparece até na nomeação dos capítulos, como "A denúncia", "As leis são belas", "A audiência secreta", "Embargos de terceiro", "Os autos", "O discurso" etc. Reforçando a carga jurídica do romance, os dois primeiros capítulos têm títulos semelhantes aos de um código de leis: "Do título", "Do livro", respectivamente. Muitos tradutores ignoraram essa particularidade da linguagem jurídica e optaram simplesmente por "título" e "livro".

O leitor desse romance precisa entender que Bento de Albuquerque Santiago, com dois apelidos, Bentinho, junto aos amigos e familiares, e Dom Casmurro, para o leitor, é um narrador não confiável. Além disso, centraliza o comando das ações da trama. No indigitado capítulo "Embargos de terceiro", e desde o começo até o fim, ele se mostra uma figura ciumenta e possessiva, tentando encontrar problemas onde eles não existem. Seu ciúme é doentio, o que serve de excludente da culpabilidade de Capitu: "Cheguei a ter ciúmes de tudo e todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança" (ASSIS, 1992aASSIS, Machado de. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992a. v. 1, p. 807-944., p. 918).

A dúvida arquitetada magistralmente por Machado de Assis fixa a figura de Capitu como o maior mistério da literatura brasileira. E ele permanecerá assim até a consumação dos séculos.

Referências

  • ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992a. v. 1, p. 807-944.
  • ______. Falenas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992b. v. 3, p. 207-223.
  • ______. O caminho da porta. In: ______. Teatro de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov. Tradução, notas e posfácio de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2012.
  • KAFKA, Franz. O processo. Tradução e posfácio de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
  • MATOS, Miguel. Código de Machado de Assis: migalhas jurídicas. São Paulo: Migalhas, 2021.
  • SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. In: ______. Obra completa. Tradução de Oscar Mendes e outros. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. v. 2, p. 441-497.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2021
  • Aceito
    27 Out 2021
Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 sl 38, 05508-900 São Paulo, SP Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: machadodeassis.emlinha@usp.br