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RESENHA DE MACHADO DE ASSIS CONTISTA: DOS SALÕES ÀS PÁGINAS DE JORNAL, DE VALDINEY VALENTE LOBATO DE CASTRO

REVIEW OF MACHADO DE ASSIS CONTISTA: DOS SALÕES ÀS PÁGINAS DE JORNAL, BY VALDINEY VALENTE LOBATO DE CASTRO

CASTRO, Valdiney Valente Lobato de. . Machado de Assis contista: dos salões às páginas de jornal. São Paulo: Alameda, 2021. 472 p.

Seria temerário afirmar que já se formou certo consenso sobre ser o conto o "gênero forte" de Machado de Assis? Por "gênero forte", entenda-se tanto seu valor aferido pela crítica quanto o acervo de estudos proporcionado por ele - qualidade e quantidade. Críticos como Lúcia Miguel Pereira e Augusto Meyer dizem ter sido Machado melhor contista que romancista; é muito vasta a fortuna crítica devida aos contos do escritor carioca: a todo momento teses e dissertações, livros e mais livros, antologias e mais antologias, a todo momento - qualidade e quantidade.

Há ainda a considerar a natureza intrínseca dos gêneros. O romance, por abarcar uma visão de mundo mais ampla que o conto, ocuparia uma posição mais elevada. Além disso, os grandes personagens moram no romance: D. Quixote, Emma Bovary, Brás Cubas…

Percebo que alonguei a introdução com uma alternativa sem importância. A primazia de um gênero sobre o outro não lhe cabe. Ele foi grande e primou em ambos. Talvez caiba o que está figurado no prefácio a Várias histórias (1896): "[...] há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres: é serem curtos" (ASSIS, 2004ASSIS, Machado de. Várias histórias. São Paulo: Martins Fontes, 2004. , p. 3).

Machado de Assis contista: dos salões às páginas de jornal. Valdiney Valente Lobato de Castro. Este é o autor, aquele é o livro. E eis a resenha enfim que começa já dizendo ser o livro produto de uma tese. Aliás, tem sido comum que obras como essa, que fazem uma ampla abordagem dos contos machadianos, tenham origem em dissertações e teses. Talvez porque essa ampla abordagem deve necessariamente investigar e traçar o percurso editorial que vai do jornal ao livro. Envolve, portanto, um trabalho de pesquisa, prática típica das instituições acadêmicas.

A divisão do trabalho acadêmico, ao menos na área de Letras, comporta duas categorias de igual importância: o pesquisador e o pensador. Elas podem ou não se apresentar numa mesma pessoa. Porém, ao pesquisador se requerem qualidades menos triviais: curiosidade, meticulosidade, paciência na recolha dos documentos. Afinal, sem fatos não há ideia. É a partir dos dados coligidos que se estabelece a doutrina.

O livro parece dizer que o figurino de pesquisador se ajusta melhor ao perfil de Valdiney de Castro, tal a riqueza, a variedade e a importância das informações contidas nele. Embora também seja capaz de tecer comentários agudos sobre os contos, como estes, acerca de "O caso da vara" e "Conto de escola": "são exemplos dessa investigação [análise psicológica feita por Machado] em que, ao mesmo tempo em que se desnudam as culpas dos personagens, revelam os conflitos interiores, vencendo sempre os interesses pessoais" (CASTRO, 2021CASTRO, Valdiney Valente Lobato de. Machado de Assis contista: dos salões às páginas de jornal. São Paulo: Alameda, 2021, 472 p., p. 123).

A obra se divide em sete capítulos e dois anexos. Daqueles, três constituem o que chamaria de núcleo básico. São os capítulos III ("Percurso dos contos machadianos nos jornais oitocentistas"), IV ("A organização da coletânea a partir das fontes primárias") e V ("Os contos machadianos sob o juízo da crítica especializada"). São eles que respondem pelo "objetivo principal" do "estudo": "relacionar os comentários habituais nas folhas oitocentistas, concomitante às publicações, com a fortuna crítica consolidada" (CASTRO, 2021CASTRO, Valdiney Valente Lobato de. Machado de Assis contista: dos salões às páginas de jornal. São Paulo: Alameda, 2021, 472 p., p. 11).

No primeiro desses capítulos, relacionam-se os periódicos nos quais Machado de Assis publica inicialmente os contos, desde A Marmota, onde apareceu o primeiro - "Três tesouros perdidos" (1858) -, até o Almanaque Garnier, em que saiu o último - "O escrivão Coimbra" (1907). São descritas as características de cada um deles e o público a que visava atingir. Entre eles, destacaria A Marmota, Jornal das Famílias, A Estação e Gazeta de Notícias. A menção ao primeiro deve-se mais a seu editor, Paula Brito, figura importante do meio cultural do tempo, espécie de padrinho do jovem Machado. Já os outros foram o grande repositório dos contos machadianos. No Jornal das Famílias foram publicados 86; n'A Estação, 41; na Gazeta de Notícias, 54. Ou seja, a grandíssima maioria de suas histórias curtas. Em relação aos três últimos, o autor aponta uma relevante diferença. Enquanto o Jornal das Famílias e A Estação "eram direcionados para as jovens e casamenteiras leitoras, com interesses nas notícias parisienses sobre modas e nos conselhos sobre a gerência das tarefas do lar", a Gazeta "era um jornal com um público mais amplo, abrangendo todos os leitores: as moças e os rapazes" (CASTRO, 2021CASTRO, Valdiney Valente Lobato de. Machado de Assis contista: dos salões às páginas de jornal. São Paulo: Alameda, 2021, 472 p., p. 113).

Essa diferença, juntamente com o amadurecimento de Machado, é que determina a escolha dos contos para compor as coletâneas, matéria do capítulo IV. "Cerca de apenas 13% das histórias do Jornal das Famílias fazem parte das antologias. De A Estação 14% e da Gazeta de Notícias, aproximadamente 83%" (CASTRO, 2021CASTRO, Valdiney Valente Lobato de. Machado de Assis contista: dos salões às páginas de jornal. São Paulo: Alameda, 2021, 472 p., p. 139).

Valdiney de Castro vai nos fornecendo notícias sobre a confecção de cada uma delas, como as tratativas de Machado com os editores e os contratos de cessão dos direitos, entremeando aqui e ali algumas pitadas do "pensador": "a estrutura na narrativa prioriza os dilemas psicológicos, que assumem um papel preponderante, condicionando muitas vezes todos os valores sociais às necessidades pessoais dos personagens" (CASTRO, 2021CASTRO, Valdiney Valente Lobato de. Machado de Assis contista: dos salões às páginas de jornal. São Paulo: Alameda, 2021, 472 p., p. 178, sobre Várias histórias).

Outra notícia, e a mais relevante, é a que trata da transposição dos contos para os livros. O leitor machadiano certamente sabe que o escritor modificava os contos na passagem deles para os livros. Talvez tenha conhecimento de que os contos extraídos da Gazeta de Notícias eram os que sofriam menos alterações. Mas o que possivelmente não sabe é que o rigor de Machado se estendia à própria forma do livro. Reclama que a segunda edição de Várias histórias (1903), a sair pela Garnier, não mantém o mesmo formato da primeira edição, da Laemmert: "A edição Laemmert é de 310 páginas. A edição de V. S. não contará mais de 230, ou seja, a obra terá o aspecto e o valor de um pequeno livro, o que prejudicará a venda" (2012 apud CASTRO, 2021CASTRO, Valdiney Valente Lobato de. Machado de Assis contista: dos salões às páginas de jornal. São Paulo: Alameda, 2021, 472 p., p. 186).

A nota tocante do capítulo é a menção à carta de Machado a Oliveira Lima, informando-lhe o lançamento de Relíquias de casa velha (1906): "Reuni alguns retalhos inéditos e impressos que o Garnier faz sair em volume, e é tudo. Tinha um livro em projeto e início, mas não vou adiante. Sinto-me cansado, estou enfermo, e falta-me o gosto"(2015 apud CASTRO, 2021CASTRO, Valdiney Valente Lobato de. Machado de Assis contista: dos salões às páginas de jornal. São Paulo: Alameda, 2021, 472 p., p. 198). Abatido, desolado, doente - viúvo. Mas, mesmo sem Carolina, foi adiante. Memorial de Aires é de 1908.

No capítulo seguinte, Valdiney de Castro recolhe a fortuna crítica relativa aos contos com seus principais nomes, citando trechos das análises que lhe parecem mais pertinentes. Vai do trio Veríssimo, Romero e Araripe até Luís Augusto Fischer, passando por Ronald de Carvalho, Nelson Werneck Sodré, Lúcia Miguel Pereira, Afrânio Coutinho, João Pacheco, Alfredo Bosi, José Aderaldo Castello, Carlos Nejar, Alfredo Pujol, Eloy Pontes, Mário Matos, Eugênio Gomes, Brito Broca, Jean-Michel Massa, Paul Dixon, John Gledson, Patrícia Flores da Cunha, Valentim Facioli, Roberto Schwarz, Antonio Candido, Sonia Brayner. Citei os nomes na ordem em que aparecem nos trechos destacados pelo autor.

É uma contribuição valiosa que ele presta aos leitores, tanto para os que se iniciam quanto para os iniciados nos estudos machadianos. Se a isso juntarmos os dois anexos nos quais o autor coleta os comentários sobre o escritor (anexo I) e sobre as coletâneas (anexo II) que saíram nos periódicos no calor do lançamento delas, a contribuição ganha mais dois adjetivos e fica valiosa, essencial, inestimável, para imitar um traço estilístico típico de Machado, glosado por Graciliano Ramos, que consiste em anexar três adjetivos ao substantivo.

Por fim, nota-se que Valdiney de Castro lamenta que os contos não sejam avaliados pelos críticos em sua totalidade, mas apenas aqueles que se publicaram nas antologias: "[a crítica] inúmeras vezes analisou a composição ficcional, a partir de uma perspectiva diacrônica, de maneira celetista [sic] e extremista e, por isso, limitada, sem considerar a leitura integral dessas narrativas" (CASTRO, 2021CASTRO, Valdiney Valente Lobato de. Machado de Assis contista: dos salões às páginas de jornal. São Paulo: Alameda, 2021, 472 p., p. 329).

Aí está o livro apresentado em seus aspectos mais gerais, os que se permitem numa resenha. Ele está quase pronto para se tornar indispensável para os que estudam ou não Machado de Assis. Daqueles classificados como de referência, os que não podem sair da biblioteca, pois devem estar sempre disponíveis para consulta.

Por que quase pronto? Porque se impõe, é obrigatória uma segunda edição. Para que se incluam índices remissivo e onomástico. Para que se revejam certos equívocos de redação, para que se corrijam certos enganos de informação. Sem dar menos importância aos primeiros, menciono aqui apenas alguns enganos de informação por se tratar de matéria precípua da resenha:

  • ¬ p. 9: "e seu penúltimo [romance], Esaú e Jacó (1902), foi publicado nessas folhas" - Esaú e Jacó é de 1904 e não foi publicado em periódicos.

  • ¬ p. 188: "a obra [Páginas recolhidas] contém ainda três crônicas: 'Henriqueta Renan', 'O velho Senado' e 'Entre 1892 e 1894'" - "Entre 1892 e 1894" não é um texto único. São crônicas compreendidas entre esses anos que Machado selecionou para figurar no livro.

  • ¬ p. 208, nota de rodapé: "Em 1897, apenas as duas antologias de contos haviam sido impressas" - Em 1897 já haviam saído Contos fluminenses (1870), Histórias da meia-noite (1873), Papéis avulsos (1882), Histórias sem data (1884) e Várias histórias (1896).

  • ¬ p. 315: "Também destaca o conto 'Um velho Senado'" - "O velho Senado" não é conto.

Evidente a necessidade de corrigi-los, mas não diminuem o imenso valor da obra, fruto do meritório e certamente incansável trabalho de pesquisa de Valdiney de Castro. Obra, repito, preciosa para os estudos machadianos.

Referências

  • ASSIS, Machado de. Várias histórias. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • CASTRO, Valdiney Valente Lobato de. Machado de Assis contista: dos salões às páginas de jornal. São Paulo: Alameda, 2021, 472 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2022
  • Aceito
    05 Set 2022
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