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SERÁ QUE ELA REFLETIU OU NÃO? ANÁLISE DA PRIMEIRA TRADUÇÃO FRANCESA DE "MARIANA" (1896)

I WONDER IF SHE PONDERED IT OR NOT: AN ANALYSIS OF THE FIRST FRENCH TRANSLATION OF "MARIANA" (1896)

Resumo:

Este artigo mostra, utilizando-se do exemplo do conto "Mariana", publicado na coletânea Várias histórias , de 1896, as chamadas tendências deformadoras de Antoine Berman ( 2007 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou O albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras; PGET, 2007. ) nas primeiras traduções da obra de Machado de Assis para a língua francesa. Através de um apanhado histórico, mostra-se por que os textos machadianos só alcançam novos sistemas linguísticos e culturais após sua morte. Ainda, apresenta-se como a história do conto e as características sintáticas, estilísticas e expressivas do autor são perdidas na tradução, chegando-se a tirar um dos pontos centrais da história narrada.

Palavras-chave:
Literatura brasileira; Machado de Assis; estudos da tradução; Antoine Berman; tendências deformadoras

Abstract:

This paper shows, using as an example the short story "Mariana", published in the collection Várias histórias, 1896, the so-called deforming tendencies of Antoine Berman ( 2007 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou O albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras; PGET, 2007. ) in the first translations of Machado de Assis' work into French. Through a historical overview, it is shown why Machado's texts only reach new linguistic and cultural systems after his death. Still, it is presented how the story and the syntactic, stylistic and expressive characteristics of the author are lost in translation, taking away one of the central points of the narrated story.

Keywords:
Brazilian literature ; Machado de Assis ; translation Studies ; Antoine Berman ; deforming tendencies

1. Introdução: Entendendo "Mariana", de 1896

O presente artigo pretende apresentar uma breve análise crítica da primeira tradução para a língua francesa do conto "Mariana", de Machado de Assis, publicado pela primeira vez na Gazeta de Notícias , de 18 de outubro de 1891 (NEIVA, 2015 NEIVA, Saulo. "Não creias tu nisso, leitor amado": sobre a datação dos contos de Várias histórias. Matraga, Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), v. 22, n. 37, p. 133-147, jul./dez. 2015. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/matraga/article/view/19935/14538 .
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
, p. 145), e retomado na coletânea Várias histórias , cuja primeira edição foi publicada pela Laemmert e Companhia, em 1896.

A tradução francesa faz parte da coletânea Quelques contes , publicada em 1910 pelos Irmãos Garnier, já detentores dos direitos em língua portuguesa de toda a obra do autor desde 1899, tornando-se a terceira obra machadiana traduzida – anteriormente, havia somente as traduções uruguaia e portenha, feitas em vida, de Memórias póstumas de Brás Cubas , por Julio Piquet, em 1902, e de Esaú e Jacó , sem tradutor conhecido, em 1905 (TORRES, 2020 TORRES, Marie-Hélène C. Tradução como (i)migração: Adrien Delpech, um dos primeiros tradutores de Machado de Assis. Revista da Anpoll, v. 51, n. 3, p. 107–118, dez. 2020. Disponível em: https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/1414 .
https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/...
, p. 109; GRANJA, 2018 GRANJA, Lúcia. Três é demais! (ou por que Garnier não traduziu Machado de Assis?). Machado de Assis em Linha – Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, v. 11, n. 25, p. 18-32, dez. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mael/a/JLgs3sHTQjMR8SySTYC36Xk/?lang=pt .
https://www.scielo.br/j/mael/a/JLgs3sHTQ...
, p. 29). Essa tradução francesa foi realizada pelo professor e escritor de origem belga Adrien Delpech – naturalizado brasileiro logo após sua chegada ao Rio de Janeiro –, que seria também o tradutor das Mémoires posthumes de Braz Cubas , no ano seguinte (TORRES, 2020 TORRES, Marie-Hélène C. Tradução como (i)migração: Adrien Delpech, um dos primeiros tradutores de Machado de Assis. Revista da Anpoll, v. 51, n. 3, p. 107–118, dez. 2020. Disponível em: https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/1414 .
https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/...
, p. 110 e p. 114).

De início, deve-se lembrar que "Mariana" é também o título de outro conto machadiano, publicado em janeiro de 1871, no Jornal das Famílias , em que Machado assina como J. J. (SILVEIRA, 2005 SILVEIRA, Daniela M. da. Contos de Machado de Assis: leituras e leitores do Jornal das Famílias. 2005. 211 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/Busca/Download?codigoArquivo=496844 .
https://repositorio.unicamp.br/Busca/Dow...
, p. 74). Desfeita essa possível confusão, deve-se apresentar o conto, que é dividido em três partes.

"'Que será feito de Mariana?', perguntou Evaristo a si mesmo, no largo da Carioca, ao despedir-se de um velho amigo, que lhe fez lembrar aquela velha amiga" (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 213). Assim inicia-se o conto, com a volta do protagonista ao Rio de Janeiro em 1890, após 18 anos de ausência na Europa, para onde partira com a intenção de ficar dois ou três anos. Mas "o viajante põe e Paris dispõe" (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 213) e o tempo passa, Evaristo não se interessa mais pelas coisas do Brasil, deixando até mesmo de ler os jornais brasileiros, ao ponto que "era um estudante pobre da Bahia, que os ia buscar emprestados, e lhe referia depois uma ou outra notícia de vulto" (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 214). "Senão quando, em novembro de 1889, entra-lhe em casa um reporter parisiense que lhe fala de revolução no Rio de Janeiro [acontecimento que é chamado hoje, nos livros de História do Brasil, de Proclamação da República], pede informações políticas, sociais, biográficas. Evaristo refletiu" (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 214). Decide, então, vir buscá-las in loco , aproveitando para encaixar a viagem com a estreia da comédia de um amigo.

"'Que será feito de Mariana?', repetia agora, descendo a rua da Assembleia. 'Talvez morta... Se ainda viver, deve estar outra [...]. Quarenta e oito... Bela mulher! Grande mulher! Belos e grandes amores!'" (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 215). À pergunta repetida num diálogo com um conhecido, não referido pelo narrador, a personagem descobre que ela ainda mora na mesma casa, que seu marido está à beira da morte e que ela parece mais jovem do que é: "Crescera-lhe o desejo de ver Mariana. Que olhos teriam um para o outro? Que visões antigas viriam transformar a realidade presente?" (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 216).

A segunda parte do conto – clímax do enredo e essencial a esta análise – inicia-se com a ida de Evaristo à casa de Mariana. Recebido pelo criado, ele é levado para a sala, onde começa a observar que nada mudara nas quase duas décadas: os móveis, os mesmos; sua disposição, a mesma. "Tinham o aspecto vetusto. [...] Tudo ossos dispersos, que a imaginação podia enfeixar para restaurar uma figura, a que só faltasse a alma" (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 217).

"Mas não faltava a alma" (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 217). Atenta-se um retrato de Mariana com 25 anos: "Era o único alento vivo da sala; mas só ele bastava a dar à decrepitude ambiente a fugidia mocidade. Grande foi a comoção de Evaristo" (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 217). Ele, então, resolve sentar-se numa cadeira em frente ao quadro.

Em devaneio, "Mariana desceu da tela e da moldura, e veio sentar-se defronte de Evaristo, inclinou-se, estendeu os braços sobre os joelhos e abriu as mãos. Evaristo entregou-lhes as suas, e as quatro apertaram-se cordialmente" (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 218). Segue-se um diálogo quimérico: Mariana reclama da demora de Evaristo e ele mostra-se enciumado de Xavier, marido dela, chegando-lhe a afirmar que um dos motivos do atraso fora uma conversa com este nas proximidades da residência. O diálogo continua entre a cobrança de Evaristo pela exclusividade do amor de Mariana e as respostas dela, insuficientes para ele, entre explicações e juras de amor. Por fim, "Evaristo inclinou-se, cravando nela os seus [olhos], e assim ficaram, rosto a rosto, uma, duas, três horas, até que alguém veio acordá-los" (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 224).

No início do desfecho, na terceira parte do conto, Evaristo percebe que o mesmo criado, a quem entregara o cartão de visita ao chegar, chamava-o para adentrar um gabinete próximo de onde Xavier estava "estirado em um canapé, com a mulher ao lado e algumas visitas" (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 225). Passaram-se cinco ou seis minutos no tempo real; no entanto, as lembranças das impressões e dos fatos de quando foram amantes, entre 1869 e 1872, se presentificaram em outra duração temporal:

Toda a história ressurgira com os ciúmes que ele tinha de Xavier, os seus perdões e as ternuras recíprocas. Só faltou a crise final, quando a mãe de Mariana, sabendo de tudo, corajosamente se interpôs e os separou. Mariana resolveu morrer, chegou a ingerir veneno, e foi preciso o desespero da mãe para restituí-la à vida. Xavier, que então estava na província do Rio, nada soube daquela tragédia, senão que a mulher escapara da morte, por causa de uma troca de medicamentos. Evaristo quis ainda vê-la antes de embarcar, mas foi impossível

(ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 225-6).

O encontro com Mariana é destoante: "Evaristo penetrou ali cheio de comoção. [...] Mariana tinha presa uma das mãos do enfermo [...]. Mal pôde levantar os olhos para Evaristo e estender-lhe a mão; voltou a fitar o marido [...] (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 226). Poucas palavras trocadas e Evaristo despede-se dela: "sentira ele um aperto, uma cousa, que lhe fez a palavra trôpega, que lhe tirou as ideias e até as simples fórmulas banais de pesar e de esperança. Ela, entretanto, não recebeu dele a menor comoção" (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 228) . Essa cena confronta-se com os devaneios frente ao retrato da sala: "Evaristo concluiu que a arte era superior à natureza; a tela guardara o corpo e a alma..." (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 228-9).

Após uma semana, em uma segunda visita, Evaristo vê Xavier morrer, ao que se segue: "um grito agudíssimo de Mariana chamou a atenção de todos; depois o desmaio e a queda da viúva" (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 229). O estado da viúva é tão grave que ela não comparece nem ao cemitério nem à missa de sétimo dia. Evaristo vai aos dois, e um parente de Xavier confirma o amor de ambos. Após alguns dias, Evaristo tenta uma última visita de pêsames a Mariana, mas o criado diz que ela não recebe ninguém. Na rua, Evaristo acaba vendo-a sair de uma igreja: ela olha para ele, ele cumprimenta-a e ela ignora-o. Em menos de um mês, Evaristo voltaria a Paris, sem esquecer-se da comédia do amigo: "Correu a saber dela; tinha caído redondamente. – Cousas de teatro – disse Evaristo ao autor, para consolá-lo –. Há peças que caem. Há outras que ficam no repertório" (ASSIS, 1896 ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/53...
, p. 232).

Feito esse resumo, talvez desnecessário para os conhecedores da obra machadiana mas relevante para o estudo que aqui se faz, passo à análise pretendida pelo artigo.

A seguir, sintetizarei o histórico da publicação dos textos de Machado, essencial ao entendimento da demora da tradução de sua obra (realizada, em sua quase totalidade, post-mortem ). Em seguida, tratarei do aspecto tradutório, segundo a ideia da analítica da tradução e a sistemática da tradução propostas por Antoine Berman ( 2007 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou O albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras; PGET, 2007. ). Para isso, trabalharei, inicialmente, com o cotejamento de fragmentos dos textos das primeiras edições, em língua portuguesa e em língua francesa, a partir de exemplares fac-símile, com a escrita e a pontuação conformes à época, definidas pela reforma de 1878).

2. Garnier Frères e Machado de Assis, um pouco de história

A importância dos Garnier Frères para a história do livro na França, Espanha e Brasil, assim como para a difusão de suas literaturas e para a história da tradução em línguas francesa, espanhola e portuguesa, é incontestável.

Segundo Mollier ( 2019 MOLLIER, Jean-Yves. La circulation transatlantique des livres et des journaux au XIXᵉ siècle: l'exemple des librairies Garnier de Paris, Rio de Janeiro et Mexico. Revista Letras Raras, v. 8, n. especial, Dossiê: Trânsitos, trocas e transferências culturais, p. 9-24, nov. 2019. Disponível em: http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/RLR/article/view/1618/995 .
http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php...
) e Granja ( 2021 ______. Os editores Garnier: da França ao espaço transatlântico. Transatlantic Cultures (on-line), nov. 2021. Disponível em: https://transatlantic-cultures.org/pt/catalog/os-editores-garnier-da-franca-ao-espaco-transatlantico . doi:10.35008/tracs-0080.
https://transatlantic-cultures.org/pt/ca...
), os irmãos Auguste e Hippolyte Garnier fundaram a Garnier Frères em Paris, em 1833. Adquirindo outras livrarias e editoras, aumentaram seu catálogo e suas lojas na França, chegando inclusive à Espanha em 1849 e a ex-colônias espanholas, como o México. O caçula dos irmãos, Baptiste-Louis, trabalhou com os livreiros até 1844, quando resolve partir para o Rio de Janeiro, instalando, de início, apenas uma filial da livraria dos irmãos na rua do Ouvidor. Com o sucesso da livraria e editora, em 1878, mudaria, na mesma rua, para a frente de seu maior concorrente, a "Livraria e Tipografia Universal", dos irmãos editores alemães "Eduardo" e "Henrique" – como preferiam ser chamados – Laemmert, editores da primeira edição de Várias histórias , coletânea à qual pertence o conto "Mariana".

O sucesso de Garnier no Brasil vinha da visão "mais moderna" de Baptiste-Louis, que "faz pesquisa de manuscritos, relaciona-se com autores, baseia sua atividade comercial em fundos próprios (e não no comércio de livros variados), rumando para a especialização do catálogo e de coleções que passaram a dar imagem e clientela à sua casa editorial" (GRANJA, 2018 GRANJA, Lúcia. Três é demais! (ou por que Garnier não traduziu Machado de Assis?). Machado de Assis em Linha – Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, v. 11, n. 25, p. 18-32, dez. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mael/a/JLgs3sHTQjMR8SySTYC36Xk/?lang=pt .
https://www.scielo.br/j/mael/a/JLgs3sHTQ...
, p. 20). As ideias diferenciadas no campo da editoria fazem-no deixar de ser representante dos irmãos no Brasil e tornar-se editor autônomo por volta de 1864-1865. Foi nessa época que Machado de Assis e o editor se conhecem, este contrata aquele como contista colaborador de seu Jornal das Famílias , e passa a publicar algumas de suas obras até a década seguinte: Crisálidas (1864), Falenas (1870), Contos fluminenses (1870), Ressurreição (1872), Histórias da meia-noite (1873), Americanas (1875) e Helena (1876), com contratos diferenciados e sempre revistos pelo autor (GRANJA, 2018 GRANJA, Lúcia. Três é demais! (ou por que Garnier não traduziu Machado de Assis?). Machado de Assis em Linha – Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, v. 11, n. 25, p. 18-32, dez. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mael/a/JLgs3sHTQjMR8SySTYC36Xk/?lang=pt .
https://www.scielo.br/j/mael/a/JLgs3sHTQ...
, p. 21; CASTRO, 2019 CASTRO, Valdiney V. L. de. Os contratos firmados entre Machado de Assis e os irmãos Garnier. Revista Letras Raras, v. 8, n. especial, Dossiê: Trânsitos, trocas e transferências culturais, p. 25-36, nov. 2019. Disponível em: http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/RLR/article/view/1578/997 .
http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php...
, p. 26-7). No entanto, o rompimento dos irmãos Garnier impossibilitou a internacionalização da obra machadiana à época, ficando restrita a edições brasileiras.

Segundo Granja ( 2018 GRANJA, Lúcia. Três é demais! (ou por que Garnier não traduziu Machado de Assis?). Machado de Assis em Linha – Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, v. 11, n. 25, p. 18-32, dez. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mael/a/JLgs3sHTQjMR8SySTYC36Xk/?lang=pt .
https://www.scielo.br/j/mael/a/JLgs3sHTQ...
, p. 23), "indícios sugerem que as relações entre editor e escritor não fluíam tranquilamente no início dos anos 1880. [...] Machado de Assis interrompera a publicação por meio desse editor, desde Iaiá Garcia (1878)" até Papéis avulsos (1882). Somente em 1882 volta a assinar com Garnier, para a venda de novas edições de Memórias póstumas de Brás Cubas e de Papéis avulsos (CASTRO, 2019 CASTRO, Valdiney V. L. de. Os contratos firmados entre Machado de Assis e os irmãos Garnier. Revista Letras Raras, v. 8, n. especial, Dossiê: Trânsitos, trocas e transferências culturais, p. 25-36, nov. 2019. Disponível em: http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/RLR/article/view/1578/997 .
http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php...
, p. 30). Nessa década, de certa forma, Machado de Assis torna-se editor de si mesmo e tenta, "por si só", publicar suas obras, em especial em tradução para o alemão, o que se inviabilizou pelos contratos com Garnier e, em seguida, pelo falecimento deste em 1893 – vale ressaltar que, na França, Auguste Garnier morrera em 1887, restando vivo apenas Hippolyte (GRANJA, 2018 GRANJA, Lúcia. Três é demais! (ou por que Garnier não traduziu Machado de Assis?). Machado de Assis em Linha – Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, v. 11, n. 25, p. 18-32, dez. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mael/a/JLgs3sHTQjMR8SySTYC36Xk/?lang=pt .
https://www.scielo.br/j/mael/a/JLgs3sHTQ...
, p. 25-6).

De início, o herdeiro nomeia Julien Emmanuel Bernard Lansac como procurador, com o objetivo de vender todos os negócios de Baptiste-Louis no Brasil, mas, desaconselhado por este, em virtude dos lucros da Garnier brasileira, mantém-se os negócios, designando o procurador gerente. As publicações continuam como H. Garnier, Livreiro e Editor (como consta nas obras de Machado de Assis, desde Memórias póstumas de Brás Cubas , 3ª edição, de 1896), e a reinauguração da livraria ocorre em 1899 (GRANJA, 2018 GRANJA, Lúcia. Três é demais! (ou por que Garnier não traduziu Machado de Assis?). Machado de Assis em Linha – Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, v. 11, n. 25, p. 18-32, dez. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mael/a/JLgs3sHTQjMR8SySTYC36Xk/?lang=pt .
https://www.scielo.br/j/mael/a/JLgs3sHTQ...
). É nesse ínterim que Machado de Assis publicou Várias histórias (1896) pela Laemmert.

A partir de 1899, Machado de Assis tenta negociar com Hippolyte – a quem vendera a propriedade plena e definitiva de suas obras – a negociação dos direitos de tradução destas para o alemão (tradução que seria feita por Alexandrina Highland), de forma gratuita, o que é rechaçado com veemência em carta datada de 8 de julho de 1899, que traduzi do francês para o português:

O senhor sabe que um autor, por mais bem traduzido que seja, perde sempre sua originalidade num idioma diferente do seu; os admiradores de um escritor preferem lê-lo em sua língua materna. Você não tem nada a ganhar ao ser traduzido para o alemão.

Também, lamento não poder conceder o direito de tradução solicitada gratuitamente – os alemães sabem como devem ser pagos; a Sra. Highland terá, portanto, que me pagar cem francos por cada volume seu que ela se propõe a traduzir

(GARNIER apud GRANJA, 2018 GRANJA, Lúcia. Três é demais! (ou por que Garnier não traduziu Machado de Assis?). Machado de Assis em Linha – Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, v. 11, n. 25, p. 18-32, dez. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mael/a/JLgs3sHTQjMR8SySTYC36Xk/?lang=pt .
https://www.scielo.br/j/mael/a/JLgs3sHTQ...
, p. 27, tradução nossa).

Depois disso, Machado de Assis ainda teria publicados em vida, pela Garnier: Poesias completas (1901), Esaú e Jacó (1904), Relíquias de casa velha (1906) e Memorial de Aires (1908).

A tradução da obra de Machado de Assis seria incentivada, finalmente, por dois fatores: o falecimento do autor, em 29 de setembro de 1908; e o estreitamento das relações franco-brasileiras que culmina com a realização da Fête de l'intellectualité brésilienne , pelas Société des Études Portugaises de Paris e Mission Brésilienne de Propagande , em 3 de abril de 1909, sob a presidência de Anatole France, momento em que este definiu Machado como "le génie latin" (o gênio latino). Em 1910, sairia então Quelques contes , primeira tradução oficialmente permitida pela Garnier, realizada por Adrien Delpech; e, em seguida, em 1911, pelo mesmo tradutor, Mémoires posthumes de Braz Cubas (ASSIS, 1911 ______. Mémoires posthumes de Braz Cubas [fac-símile]. Tradução de Adrien Delpech. Paris: Garnier Frères, Libraires-Éditeurs, 1911. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k855564b.texteImage .
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k8...
).

Outro fator – que também influenciaria a tradução não só de Machado de Assis, mas também de outros autores – seria o falecimento de Hippolyte, em 1911, já que a direção da empresa pelo sobrinho-neto Auguste-Pierre Garnier muda os rumos editorais do grupo de livrarias e editoras.

Seguiriam, ainda em 1911, as traduções em língua espanhola, publicadas pela Garnier Hermanos: Varias historias , Memorias póstumas de Blas Cubas e Don Casmurro , feitas por Rafael Mesa Lopes; e, em 1913, Quincas Borba , traduzido por J. Amber.

3. "Mariana" e as tendências deformadoras de Berman

As publicações de Quelques contes e, em seguida, de Mémoires posthumes de Braz Cubas decorreram, como se viu acima, de uma necessidade de maior exposição do autor na França, louvado por talvez o mais aclamado escritor e crítico francês de então, Anatole France – que seria laureado, posteriormente, em 1921, com o Prêmio Nobel de Literatura.

O tradutor escolhido foi o professor – e pouco conhecido escritor – Adrien Delpech, autor à época de Roman brésilien, moeurs exotiques (1904) e Petrópolis, pages exotiques (1909), seguindo a tendência do "romance exótico" que surge entre alguns autores franceses que retratam as colônias. Entre eles estão Pierre Loti, Gustave Aimard, Alfred Assolant, entre outros. "O Brasil é o país do sol, sol exotizado", conforme Torres ( 2020 TORRES, Marie-Hélène C. Tradução como (i)migração: Adrien Delpech, um dos primeiros tradutores de Machado de Assis. Revista da Anpoll, v. 51, n. 3, p. 107–118, dez. 2020. Disponível em: https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/1414 .
https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/...
, p. 113).

Parto agora para a análise da tradução do conto "Mariana", para a qual me detive no cotejamento dos textos em suas primeiras edições em línguas portuguesa e francesa, conforme os sistemas linguísticos à época, de maneira a evitar ao máximo perdas pela mudança linguística em diacronia.

Segundo Berman ( 2007 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou O albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras; PGET, 2007. , p. 45), a analítica da tradução, no domínio da prosa literária, deve "examinar brevemente o sistema de deformação de textos – da letra – que opera em toda tradução, e impede-lhe de atingir seu verdadeiro objetivo", sendo ao mesmo tempo cartesiana ("parte por parte, desse sistema de deformação") e psicanalítica ("esse sistema é grandemente inconsciente e se apresenta como um leque de tendências, de forças que desviam a tradução"). O teórico expõe, então, treze tendências deformadoras, das quais explicitarei algumas na análise da tradução de "Mariana" para a língua francesa.

Em primeiro lugar, observa-se facilmente a racionalização, isto é, a recomposição sintática do texto (BERMAN, 2007 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou O albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras; PGET, 2007. , p. 48-9), e a clarificação (BERMAN, 2007 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou O albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras; PGET, 2007. , p. 50-1). Delpech, em vários períodos, em especial nos mais complexos, vê a necessidade de utilizar formas de sintaxe e pontuação próprias da língua francesa, bem como explicitar o que Machado de Assis escreve, como no exemplo abaixo (marcado com destaque em negrito), como mostra o Quadro 1 .

Quadro 1
- RACIONALIZAÇÃO, CLARIFICAÇÃO E HOMOGENEIZAÇÃO NA TRADUÇÃO FRANCESA DE "MARIANA"

Fonte: Elaboração própria.

No fragmento do Quadro 1 , fica clara a homogeneização – "unificar em todos os planos o tecido do original, embora este seja originalmente heterogêneo" (BERMAN, 2007 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou O albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras; PGET, 2007. , p. 55) – e a destruição dos ritmos (BERMAN, 2007 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou O albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras; PGET, 2007. ), através da eliminação de uma das características marcantes do texto machadiano, a intensificação pelo uso da interjeição, bem como pela eliminação da sequência de vírgulas e eliminação do polissíndeto, como se pode ver no Quadro 2 .

Quadro 2
- DESTRUIÇÃO DOS RITMOS NA TRADUÇÃO FRANCESA DE "MARIANA"

Fonte: Elaboração própria.

É perceptível em vários momentos o empobrecimento qualitativo – "substituição dos termos, expressões, modos de dizer etc. do original" (BERMAN, 2007 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou O albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras; PGET, 2007. , p. 53-4) – ou quantitativo – "desperdício lexical" (BERMAN, 2007 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou O albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras; PGET, 2007. , p. 54-5) –, com o consequente alongamento – "desdobramento do que está, no original, 'dobrado'" (BERMAN, 2007 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou O albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras; PGET, 2007. , p. 51-2) – e o enobrecimento – "busca de traduções 'mais belas' (formalmente) do que o original" (BERMAN, 2007 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou O albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras; PGET, 2007. , p. 52-3) –, como no fragmento do Quadro 3 .

Quadro 3
- EMPOBRECIMENTO QUALITATIVO E QUANTITATIVO, ALONGAMENTO E ENOBRECIMENTO NA TRADUÇÃO FRANCESA DE "MARIANA"

Fonte: Elaboração própria.

Lendo-se o prefácio à tradução francesa de Quelques contes , escrito pelo próprio Delpech, que traduzo a seguir, pode-se entender algumas das deformações em sua tradução a partir daquilo que seu ponto de vista expressa sobre Machado de Assis:

Longos períodos redundantes, frases de contexto algo suave, cujo ritmo e harmonia são muitas vezes a qualidade dominante, uma visão grandiosa mas às vezes difusa da Natureza e dos eventos, uma propensão para o entusiasmo e a ênfase – estas são certamente tendências peninsulares que os povos recém-formados mantiveram no Novo Continente. [...]

Machado de Assis possuía naturalmente o dom de condensar muitas ideias em poucas frases, e de descobrir as características salientes de rostos e personagens. Estas qualidades foram reconhecidas por muitos que continuaram a comprar do bazar de retórica com menos ornamentos. A sobriedade de Machado de Assis, as cores suaves e a ironia benevolente não ofendiam ninguém. As pessoas delicadas cumpriram; o truculento não viu isto como uma ameaça à sua glória. No início, ele foi perdoado, depois seu talento foi aclamado.

Machado de Assis não tem nada a ver com o que apela para o público em geral. Se há frequentemente situações fortes em suas histórias, ele desdenhava de aproveitá-las, e sempre relutou em usar os sentimentos e truques banais. [...]

Traduzi Machado de Assis, ou seja, sobrepus à sua mentalidade outra mentalidade que era benevolente e o mais harmoniosa possível com a dele. E este é o papel fatal de qualquer tradutor, mesmo que ele tente fazer uma tradução justapositiva, mesmo criando neologismos a cada volta, como Chateaubriand em sua tradução de Paraíso perdido . Através de Milton, encontramos novamente Chateaubriand

(ASSIS, 1910 ______. Marianna. In: ______. Quelques contes [fac-símile]. Tradução de Adrien Delpech. Paris: Garnier Frères, Libraires-Éditeurs, 1910. p. 217-238. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k853799b?rk=42918;4 .
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k8...
, p. v-viii e p. xviii; tradução nossa).

Ou seja, Delpech tenta manter o texto machadiano, mas deixa também nele imprimir sua própria escrita.

No entanto, um detalhe sem pistas marca a tradução francesa, empobrecendo demais o texto, como examinarei mais a fundo na análise literária do texto resultante da tradução. Uma importante oração, fundamental no diálogo que Evaristo faz com Mariana em seu devaneio, simplesmente desaparece, como se vê no Quadro 4 .

Quadro 4
- OMISSÃO NA TRADUÇÃO FRANCESA DE "MARIANA"

Fonte: Elaboração própria.

Que se pode deduzir desses cortes? Com certeza, não seria um erro tipográfico, pois a supressão do esclarecimento "disse ela" só faria sentido se o diálogo se mantivesse sem interrupções. O resto seria especular.

4. Afinal, Mariana refletiu ou não?

"Mariana" é um conto machadiano com características marcantes, como aponta Carvalho ( 2018 CARVALHO, Castelar de. Dicionário de Machado de Assis: língua, estilo, temas [recurso eletrônico]. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lexikon, 2018. ). O narrador está em 3ª pessoa, externo à história e onisciente. Verifica-se, igualmente, o uso do tempo psicológico, característico do realismo interior machadiano, com a narrativa circular (presente-passado-presente) em que o flashback aparece mediante um devaneio – algo peculiar ao memorialismo machadiano presente em vários contos e romances. Com isso, o tempo objetivo, isto é, o tempo cronológico, segue pela história, mas perde-se no tempo subjetivo, quando as horas sentidas no devaneio de Evaristo se traduzem, como ele percebe depois, em cinco ou seis minutos.

Já no plano estilístico, o uso de processos de intensificação é bem marcante no conto, mas cujo efeito fica perdido, em geral, nas primeiras traduções francesas. Assim, encontra-se, por exemplo, o excesso dos adjetivos, em geral com entonação exclamativa; o uso de pronome indefinido "que de" como sinônimo de "quantos, quantas" (CARVALHO, 2018 CARVALHO, Castelar de. Dicionário de Machado de Assis: língua, estilo, temas [recurso eletrônico]. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lexikon, 2018. ). Há, também, a expressividade pelo uso do aumentativo ou do superlativo absoluto, como em "A última vez que a vi, achei-a frescalhona ", que o francês não consegue exprimir: "La dernière fois que je l'ai vue, je l'ai trouvée bien disposée "; ou em "Quando Xavier, depois de longa agonia, expirou, mal se ouviu o choro de alguns parentes e amigos ; um grito agudíssimo de Mariana chamou a atenção de todos ; depois o desmaio e a queda da viúva ", que se torna: "Lorsque Xavier expira, c'est à peine si l'on entendit, après cette lente agonie, les pleurs de quelques parents et de quelques amis. Un cri aigu de Marianna, l'évanouissement et la chute de la veuve occupèrent l'attention de tous".

A tradução francesa – apesar do "propósito" enunciado por Delpech em seu prefácio de manter as características machadianas, deixando marcas de sua escrita – distingue-se, no geral, pela perda de muitas das características sintáticas, estilísticas e, em particular, expressivas do original. O maior exemplo dessa perda pode ser visto quando, no fragmento do Quadro 4 , um particular momento decisivo do conto transforma-o. A supressão de uma simples oração modifica semanticamente o trecho e, pode-se afirmar, o conto, tirando da história um dos momentos mais significativos, um momento de retorno da paixão – mesmo que imaginário.

Se o leitor brasileiro observa que, após Evaristo tanto repisar – em seu devaneio – que ela, Mariana, ainda ama Xavier, o marido, ela é incapaz de ser direta e esquiva-se por uma resposta nada direta, como queria o amante, ao leitor francês, sem a reflexão da amada, não transparece como era complexo para ela ter de dividir o amor entre o marido e o amante, sendo-lhe impossível dar-lhe uma resposta mais precisa, havendo tão somente uma resposta direta a Evaristo, questionando-o por que revolvia sua alma e seu passado. O leitor francês da primeira tradução nada percebe das "entrelinhas machadianas". A maestria da narrativa de Machado se perde num diálogo insosso, indigno do autor. E, ao final do conto, o leitor francês termina por não saber que Mariana chegou a refletir sobre o amor dividido, da mesma forma que Evaristo refletira, antes no conto, quando decidiu buscar as informações pedidas pelo repórter sobre a "revolução no Rio de Janeiro", voltando à terra natal.

Mas esse talvez seja um problema pequeno nas traduções de Delpech: o leitor francês das primeiras traduções nunca soube que as Memórias póstumas são dedicadas por Brás Cubas, "como saudosa lembrança", "ao verme que primeiro roeu as frias carnes [de seu] cadáver" (ASSIS, 1881 ASSIS, Machado de. Memorias posthumas de Braz Cubas [fac-símile]. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1881. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4826 .
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/48...
, p. 7). Omissão mais que significativa. Mas essa é outra história!

Referências

  • ASSIS, Machado de. Memorias posthumas de Braz Cubas [fac-símile]. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1881. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4826 .
    » https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4826
  • ______. Marianna. In: ______. Varias historias [fac-símile]. Rio de Janeiro; São Paulo: Laemmert & C., Editores, 1896. p. 213-32. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5307 .
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  • ______. Marianna. In: ______. Quelques contes [fac-símile]. Tradução de Adrien Delpech. Paris: Garnier Frères, Libraires-Éditeurs, 1910. p. 217-238. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k853799b?rk=42918;4 .
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  • ______. Mémoires posthumes de Braz Cubas [fac-símile]. Tradução de Adrien Delpech. Paris: Garnier Frères, Libraires-Éditeurs, 1911. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k855564b.texteImage .
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  • BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou O albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras; PGET, 2007.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2023
  • Aceito
    28 Ago 2023
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