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PERSONAGENS EM CENA NA FICÇÃO MACHADIANA

CHARACTERS ON THE SCENE IN NARRATIVES BY MACHADO DE ASSIS

Resumo

O artigo retoma duas cartas trocadas entre Machado de Assis e Quintino Bocaiuva e desenvolve a ideia de que as observações deste, relativas às primeiras peças teatrais do escritor, e a atuação do próprio Machado como avaliador de textos dramáticos estimularam sua reflexão crítica sobre o processo de produção de romances. Nesse sentido, identifica procedimentos discursivos próprios da dramaturgia em Memórias póstumas de Brás Cubas e em Dom Casmurro e salienta apelos de ordem sensorial que se projetam nas obras, atuando sobre a percepção do leitor e transformando-o em espectador de dramas ou de comédias, em que as personagens se comportam como atores.

Palavras-chave:
Machado de Assis; personagem; recurso dramático

Abstract

The article resumes two letters Machado de Assis and Quintino Bocaiuva have exchanged and develops the idea that the observations of the latter, related to the author's first plays, and his work as a dramatic text critic have encouraged his critical reflection on his fiction production process. The paper identifies discursive proceedings that are typical of dramaturgy in Posthumous Memoirs of Brás Cubas and Dom Casmurro and emphasizes sensory aspects that are projected in the works, act on readers' perception and turn them into a spectator of dramas or comedies, in which characters behave like actors.

Keywords:
Machado de Assis; character; dramatic feature

Dramaturgia como iniciação artística

Machado de Assis publicou, em 1863, "O caminho da porta" e "O protocolo", comédias de um ato, que haviam sido encenadas no Ateneu Dramático no ano anterior, respectivamente em setembro e dezembro. Antes de proceder a sua publicação, o escritor recorreu a Quintino Bocaiuva, a quem se dirigiu como colega e amigo, solicitando-lhe que avaliasse a conveniência de imprimir as peças, já que reconhecia a diferença entre a recepção resultante da encenação e a da leitura. Ao responder à carta de Machado, Bocaiuva recomendou a publicação das comédias, porque, ao divulgá-las, o jovem escritor se submeteria ao público que dele poderia exigir uma produção de qualidade por ser talentoso e ainda jovem. O amigo de Machado prossegue afirmando que avalia as comédias mencionadas "como um ensaio, como uma experiência" e "como uma ginástica de estilo" (BOCAIUVA, 1863BOCAIUVA, Quintino. Carta ao autor. In: ASSIS, Machado de. Teatro de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Tipografia do Diário do Rio de Janeiro, 1863. p. 7-8., p. 7), para concluir que são apenas artefatos literários, a que falta uma ideia nuclear, "a base", sendo, por essa razão, "frias e insensíveis" e incapazes de sensibilizar a quem quer que seja (BOCAIUVA, 1863BOCAIUVA, Quintino. Carta ao autor. In: ASSIS, Machado de. Teatro de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Tipografia do Diário do Rio de Janeiro, 1863. p. 7-8., p. 8). Ele declara, ainda, que as peças não apresentam as características necessárias à encenação dramática, mas que são próprias à leitura, e manifesta o desejo de que o escritor produza, "nesse mesmo gênero, algum trabalho mais sério, mais novo, mais original e mais completo" e conclui: "Já fizeste esboços, atira-te à grande pintura" (BOCAIUVA, 1863BOCAIUVA, Quintino. Carta ao autor. In: ASSIS, Machado de. Teatro de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Tipografia do Diário do Rio de Janeiro, 1863. p. 7-8., p. 8).

Diante da avaliação negativa de Quintino, pergunta-se: por que teria Machado incluído as cartas, tanto a por ele dirigida ao amigo e crítico quanto a resposta deste, no livro que tornava públicas suas peças teatrais? Pretenderia ele provar que, ao contrário do que registrara em seu comentário sobre Mãe, drama de José de Alencar, em seu caso, a falta de elogios não levaria à inimizade "de envolta com as calúnias" (ASSIS, 1957______. Revista dramática (Diário do Rio de Janeiro, 29 de março de 1860). In: Crítica teatral. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W. M. Jackson, 1957, v. 30, p. 144 -153., p. 144)? Ou confiaria o novel escritor que, ao expor uma crítica desfavorável, iria atrair sobre si a atenção e a simpatia do público, o qual, igualmente, apostaria em seu talento e em sua perseverança?

Embora a motivação permaneça uma incógnita, a convicção expressa por Machado em sua carta, segundo a qual "as qualidades necessárias ao autor dramático desenvolvem-se e apuram-se com o tempo e o trabalho" (ASSIS, 1863ASSIS, Machado de. Carta a Quintino Bocaiuva. In: ______. Teatro de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Tipografia do Diário do Rio de Janeiro, 1863. p. 5-6., p. 5), revelar-se-ia em obras posteriores. Nessas, a estruturação orgânica de uma ideia ou tema, a composição dos caracteres, acurada e conscienciosa, viria somar-se à observação da sociedade (ASSIS, 1863ASSIS, Machado de. Carta a Quintino Bocaiuva. In: ______. Teatro de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Tipografia do Diário do Rio de Janeiro, 1863. p. 5-6.) e à exploração das potencialidades expressivas do gênero romanesco, que, sem ser encenado, tornaria perceptíveis ângulos próprios da dramaturgia. Acolhe-se e contesta-se, assim, o posicionamento de João Roberto Faria, para quem as "pequenas comédias de Machado, pelo modo como abordam a vida social da burguesia emergente do Rio de Janeiro e pelos enredos que envolvem relacionamentos amorosos, são ensaios para a alta comédia de maior fôlego que o autor não chegou a escrever" (FARIA, 2012______. O teatro realista. In: ______; GUINSBURG, Jacó (Org.). História do teatro brasileiro. São Paulo: Perspectiva; Edições SESC-SP, 2012. v. I: Das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX, p. 159-218., p. 183). Considerada a perspectiva axiológica e o viés frequentemente satírico ou tragicômico que permeia a representação da sociedade fluminense na ficção machadiana, é legítimo afirmar que as peças teatrais constituem um esboço para a composição da comédia humana que o escritor viria a conceber em seus romances, particularmente, os que são posteriores à década de 1880. Neles, os recursos da arte dramática fazem parte da técnica narrativa e consolidam objetivos do texto, evidenciando sua relação com pressupostos manifestados por Machado em seus ensaios críticos sobre o teatro.

Em sua crítica teatral, Machado expõe opiniões sobre os espetáculos cênicos sem condescendência, pautando sua avaliação em convicções estéticas. Ele se fundamenta no pressuposto de que a arte dramática deve traduzir o âmbito social em que se inscreve; apresentar ações sequencialmente articuladas; compor caracteres consistentes e verossímeis; explorar a potencialidade da linguagem verbal, que deve ser eloquente, mas nunca desmedida; atender a uma finalidade moralizadora; promover a adesão do espectador por meio da exposição de minúcias da vida. Em seus julgamentos, Machado demonstra, pois, um "conhecimento profundo da matéria", procede a uma "análise refletida dos aspectos formais" e expõe uma "interpretação arguta das ideias" (FARIA, 2004FARIA, João Roberto. Machado de Assis, leitor e crítico de teatro. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 51, p. 299-333, ago. 2004. Disponível em: <Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40142004000200020 >. Acesso em: 8 jun. 2021.
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, p. 326), organizando uma espécie de programa, cujos princípios contribuem para sua formação como escritor e se mostram no processo de criação de seus textos ficcionais.

Nesse sentido, os comentários de Machado sobre a arte teatral sublinham a importância da recomendação de Quintino Bocaiuva, segundo a qual a obra do escritor fluminense deveria vir a ser uma "grande pintura".

Diante desse posicionamento, define-se a finalidade do presente artigo, que identifica procedimentos discursivos próprios da dramaturgia em Memórias póstumas de Brás Cubas e em Dom Casmurro, obras em que a ideia de vida humana como encenação é fundamento do processo criativo.

Corporeidade e sensorialidade inscritas em palavras

Ao iniciar a leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas, o leitor defronta-se com a ambiguidade discursiva, que, por um lado, mobiliza sua atenção para a biografia da personagem histórica - Brás Cubas - e, por outro, o coloca diante de um relato fantasioso. A imprecisão da natureza discursiva da narração desfaz-se, porém, pela articulação entre a dedicatória, dirigida a um verme, e o prólogo, orientado para o leitor, em que Brás Cubas esclarece o processo da composição de suas memórias, "trabalhadas cá no outro mundo" (ASSIS, 1986b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986b. v. 1, p. 511-639., p. 513).

Excluída a veracidade empírica, institui-se a autobiografia ficcional, contada por um narrador cuja gênese decorre da morte: "expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara do Catumbi" (ASSIS, 1986a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986a. v. 1, p. 807-944., p. 512) e que apresenta a si mesmo, informando que "tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos" (ASSIS, 1986b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986b. v. 1, p. 511-639., p. 512). O número limitado de amigos que participam do cortejo fúnebre coaduna-se com "nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras", que assistem à "cláusula final" dos dias do narrador, que se retira do espetáculo da vida, "cansado e trôpego" (ASSIS, 1986b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986b. v. 1, p. 511-639., p. 512).

O incipit da narrativa, concentrado na autoapresentação de Brás a seus leitores intratextuais, no esclarecimento da condição em que o ato narrativo se processa e nas circunstâncias do óbito daquele que narra, institui a subjetividade narradora, que, por sua natureza autodiegética, é o núcleo das memórias. Nessa condição, as palavras de Brás Cubas ganham a densidade de uma elocução teatral, visto que ele se expõe como um "eu", agente do discurso, e não se restringe ao contar, pois dialoga com interlocutores, define os procedimentos narrativos e o nível das informações a serem apresentadas, expressa suas percepções, avalia e julga o que relata, enquanto revela minúcias da existência humana no momento da morte. Com efeito, a introdução demonstra que o aspecto mais relevante das Memórias é a vocalização1 1 Hélio de Seixas Guimarães (2004, p. 37) registra que o “inexplicável da obra de Machado de Assis frequentemente vem associado a metáforas que comparam sua escrita a processos vocais". de Brás Cubas, que estabelece com o narratário um contato próprio da dimensão oral, reduzindo a distância espaciotemporal entre ambos. Entretanto, a voz - "elo entre corpo e narrativa" (BOROWSKI, 2020BOROWSKI, Gabriel. Auditividade machadiana: o oral e o auditivo nos romances de Machado de Assis. Cracóvia: Jagiellonian University Press, 2020., p. 17) - não define apenas a proximidade entre os interlocutores ficcionais, mas também contribui para articular as avaliações e percepções sensoriais do narrador com as do narratário, embora não elimine as diferenças axiológicas entre um e outro.

A elocução de Brás Cubas, ator em cena, altera-se de acordo com suas emoções, expressas de modo preciso e eloquente: ela manifesta sarcasmo, quando o protagonista relembra o discurso "coruscante de figuras" (ASSIS, 1957______. Revista dramática (Diário do Rio de Janeiro, 29 de março de 1860). In: Crítica teatral. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W. M. Jackson, 1957, v. 30, p. 144 -153., p. 72) que um amigo proferiu junto à sepultura, atribuindo, à dor da natureza por sua morte, a "chuvinha miúda, triste e constante" (ASSIS, 1986b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986b. v. 1, p. 511-639., p. 513), que caía durante a cerimônia fúnebre; a elocução torna-se melancólica e quase terna, quando ele refere, em um hipotético tempo presente, seus momentos finais, declarando "quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro" (ASSIS, 1986b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986b. v. 1, p. 511-639., p. 514).

Estimulado pela natureza mimética da narração, centrada na palavra de Brás Cubas, o leitor empírico reconstitui a audibilidade da "orquestra da morte" (ASSIS, 1986b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986b. v. 1, p. 511-639., p. 514), captura, por meio da percepção visual e tátil, as sensações provocadas pela chuva fina e constante e apreende as avaliações do narrador. Consequentemente, a voz como metáfora complementa-se com o olhar, com o ouvido e, igualmente, com o gesto, e a ativação desses recursos contribui para dar maior expressividade ao ato narrativo. Dessa forma, o dizer transforma o ver em contar e, como fonte de luz, a ocularização ilumina os objetos e os transforma em fonte de revelação para o leitor, que neles também reencontra o sujeito observador; por sua vez, a audição, ativada pelo traço "eco-acústico" (ROCHA, 2014ROCHA, Marília Librandi. Escrita de ouvido na literatura brasileira. Literatura e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 19, p. 131-148, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2237-1184.v0i19p131-148 >. Acesso em: 8 jun. 2021.
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, p. 133) do texto, acolhe os timbres e as nuances das palavras do narrador e das personagens, bem como os efeitos sonoros do entorno, compondo uma espécie de sonoplastia, inscrita em signos verbais.

Portanto, conforme exemplificado por meio dos dois capítulos introdutórios de Memórias póstumas, entre os recursos empregados para trazer ações e personagens à cena, salientam-se a visualização e a audição, faculdades humanas, que, ativadas pelas estratégias narrativas, possibilitam ao leitor "fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens" (CALVINO, 1990CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 107) e de ouvir o inaudível.

Entretanto, as imagens mentais acolhem também a gestualidade para dar visibilidade ao que está ausente, e o leitor é impelido a ver cenas ou "pelo menos fragmentos e detalhes que emergem do indistinto" (CALVINO, 1990CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 99), graças à eficácia do texto.

Na passagem em que Virgília relata a Brás Cubas que o marido iria aceitar uma presidência na província, fato que impediria a continuidade do relacionamento amoroso entre eles, "o gesto ocupa uma posição de destaque, tanto que a leitura equivale à assistência a uma performance de cenas teatrais" (JACKSON, 2020JACKSON, Kenneth David. O gesto na ficção machadiana. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Org.). Machado de Assis: intérprete da sociedade brasileira. Porto Alegre: Zouk, 2020. p. 11-23., p. 15), conforme se pode verificar:

Levantei-me, atirei o chapéu a uma cadeira, e entrei a passear de um lado para outro, sem saber o que faria. Cogitei largamente, e não achei nada. Enfim, cheguei-me a Virgília, que estava sentada, e travei-lhe da mão; D. Plácida foi à janela.

- Nesta pequenina mão está toda a minha existência, disse eu; você é responsável por ela; faça o que lhe parecer.

Virgília teve um gesto aflitivo; eu fui encostar-me ao consolo fronteiro. Decorreram alguns instantes de silêncio; ouvíamos somente o latir de um cão, e não sei se o rumor da água, que morria na praia. Vendo que não falava, olhei para ela. Virgília tinha os olhos no chão, parados, sem luz, as mãos deixadas sobre os joelhos, com os dedos cruzados, na atitude da suprema desesperança. Noutra ocasião, […] é certo que eu me lançaria aos pés dela […]; agora, porém, era preciso […] desampará-la, deixá-la, e sair; foi o que fiz.

- Repito, a minha felicidade está nas tuas mãos, disse eu.

Virgília quis agarrar-me, mas eu já estava fora da porta. Cheguei a ouvir um prorromper de lágrimas, e digo-lhes que estive a ponto de voltar, para as enxugar com um beijo; mas subjuguei-me e saí (ASSIS, 1986b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986b. v. 1, p. 511-639., p 588-589).

Excluído o enunciado melodramático, que Brás diz duas vezes, e a reflexão que justifica a atitude dele, a passagem é uma descrição minuciosa de gestos, descrição que também acolhe ruídos e menciona o silêncio, sendo feita a partir da observação daquele que sente a iminência de uma ruptura, e esse envolvimento subjetivo confere à diegese a força da mimese. Nesse sentido, pode-se reconhecer no trecho o ensinamento de Aristóteles quando afirma que, no processo de estruturação da narrativa e da elocução, o poeta deve olhar a cena como espectador e, na encenação, deve "reproduzir […] os gestos das personagens" (ARISTÓTELES, 1986ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1986., p. 127). Além disso, para tornar a narração vívida, isto é, para "fazer os ouvintes verem", o registro linguístico "deve representar as coisas como se estivessem em atividade" (ARISTÓTELES, 2011______. Retórica. Tradução e notas de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2011., p. 240), transformando o inanimado em ação. A passividade e os gestos de Virgília, que traduzem a "suprema desesperança", contrastam com a impetuosidade de Brás e sua recusa em render-se a uma situação patética, e essa diferença entre os protagonistas acentua o conflito ou o problema, aspecto central da arte dramática.

A disputa de Virgília com Lobo Neves, o enfrentamento da moral da sociedade bem como o desejo de alcançar uma bem-sucedida carreira política e de tornar-se célebre são embates enfrentados pelo protagonista, os quais se integram ao conflito central das Memórias: a infrutífera tentativa de decifrar, por meio da escrita, o sentido da existência humana, representada com "a pena da galhofa e a tinta da melancolia " (ASSIS, 1986b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986b. v. 1, p. 511-639., p. 514).

Devido ao amálgama em que se reúnem o jocoso e o triste e à exploração de procedimentos discursivos próprios da narrativa e da dramaturgia, Memórias póstumas pode ser considerado uma reescrita do épico, do cômico e do trágico (REGO, 1989REGO, Enylton José de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.), constituindo um gênero híbrido que se caracteriza pela ambivalência, não só em termos de produção, mas também de "recepção, provocando no leitor/ouvinte sentimentos dúbios de riso e compaixão" (SOUSA NETO, 2012SOUSA NETO, Dário Ferreira. A cartomante: uma tragicomédia machadiana. Machado de Assis em Linha, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 171-185, jun. 2012. Disponível em: <Disponível em: https://www.scielo.br/j/mael/a/DRS9G5h4ZXhrfhnB8tyjtKK/?lang=pt&format=pdf >. Acesso em: 8 jun. 2021.
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, p. 172). Essa natureza paradoxal mostra-se também nas ações do protagonista e nos pontos de vista que ele expressa: ator entre outros atores, Brás Cubas registra sua vida - da qual afirma afastar-se "pausado e trôpego como quem se retira tarde do espetáculo" (ASSIS, 1986b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986b. v. 1, p. 511-639., p. 514) -valendo-se de recursos da arte teatral, para denunciar a teatralidade dos comportamentos sociais.

Enunciação semelhante à de Memórias póstumas sustenta Dom Casmurro, narrativa em que o leitor também se situa diante de um narrador autobiográfico, que encontra, no teatro lírico, a metáfora capaz de representar a existência humana. "A vida é uma ópera e uma grande ópera" (ASSIS, 1986a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986a. v. 1, p. 807-944., p. 817), afirma Dom Casmurro, ressaltando a encenação da vida para a qual concorrem atores, elementos musicais e cênicos. A semelhança do ponto de vista ideológico entre Brás Cubas e Dom Casmurro não anula, porém, a diferença na forma como se expõem e dialogam com o leitor: enquanto o primeiro revela engodos que cometeu na vida e seu amor adúltero, afrontando a moral do leitor com o sarcasmo da ironia, Dom Casmurro narra sinuosamente a suposta traição da mulher amada, Capitu, dando à narrativa a forma de uma confidência, de uma "conversação íntima com o leitor […]. O leitor é […] o ouvinte concretamente visualizado", que o Casmurro atrai emocionalmente, instalando uma "intimidade afetuosa mesmo quando levemente zombeteira" (CÂMARA JÚNIOR, 1962CÂMARA JÚNIOR, Joaquim Mattoso. Ensaios machadianos: língua e estilo. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1962., p. 71), com o intuito de alcançar sua cumplicidade e de induzi-lo a adotar o ângulo avaliativo a partir do qual narra.

Consequentemente, a narração se "formaliza como um diálogo que emerge da complementaridade entre narrar e ouvir" (SARAIVA, 2005______. Artifícios de sedução em Dom Casmurro. In: ______ (Org.). Nos labirintos de Dom Casmurro: ensaios críticos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. p. 109-136., p. 120) e, nesse procedimento, o leitor é voz e gesto, cuja presença a enunciação registra, como se pode verificar no capítulo XLV, em que o narrador defende a veracidade de suas palavras ao afirmar:

Abane a cabeça, leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já o não obrigou a isso antes; tudo é possível. […] Todavia, não há nada mais exato. Foi assim mesmo que Capitu falou, com tais palavras e maneiras. Falou do primeiro filho, como se fosse a primeira boneca. (ASSIS, 1986a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986a. v. 1, p. 807-944., p. 858).

Essa e outras passagens comprovam a importância do diálogo no processo de comunicação da narrativa, em que se ressalta, também, a opção pela representação mimética, própria do texto dramático, centrada na enunciação do narrador-protagonista. Nessa, o olhar, "fonte de percepção do sensível" (SARAIVA, 2000SARAIVA, Juracy Assmann. Olhar e significação em Dom Casmurro. Scripta, Belo Horizonte, v. 3, n. 6, p. 111-122, 22 mar. 2000. Disponível em: <Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/10352/8454 >. Acesso em: 8 jun. 2021.
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, p. 112), é o meio que integra o relato de Dom Casmurro à experiência de Bento Santiago: este se constitui enquanto sujeito e se situa em seu contexto por meio da visualização do entorno e da interpretação de olhares; aquele, ao recompor a experiência passada pela ação de rever, serve-se do registro da visualidade para emprestar à narrativa os traços de uma representação pictórica, a que são acrescidos gestos e sensações.

A passagem a seguir, que exemplifica a afirmação, dá continuidade ao episódio em que, escondido atrás da porta da sala de visitas, Bentinho ouve a recomendação de José Dias a D. Glória, para que coloque o filho no seminário antes que ocorra um possível namoro entre ele e Capitu. Atordoado, o protagonista dirige-se para o quintal da casa de sua vizinha, e o encontro com ela é relatado segundo a percepção do jovem, ainda estupefato com sua descoberta:

Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. […] Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos. (ASSIS, 1986a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986a. v. 1, p. 807-944., p. 822-823).

Os olhos de Bentinho, aprisionados à imagem da figura feminina, desenham Capitu, inicialmente a partir de um plano de conjunto, que se desdobra em detalhes: dos aspectos da compleição física, eles transitam do registro do vestido e de sua cor à espessura dos cabelos, ao tom da pele, à descrição minuciosa da face e aos sapatos cerzidos. Na sequência, por meio da "conjunção dos olhares e das mãos, elos a fundirem uma e mesma emoção e, por isso, termos equivalentes para expressar a ternura" (SARAIVA, 2000SARAIVA, Juracy Assmann. Olhar e significação em Dom Casmurro. Scripta, Belo Horizonte, v. 3, n. 6, p. 111-122, 22 mar. 2000. Disponível em: <Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/10352/8454 >. Acesso em: 8 jun. 2021.
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, p. 117), o narrador mostra o enlevo amoroso do casal: "Voltei-me para ela: Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro…" (ASSIS, 1986a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986a. v. 1, p. 807-944., p. 823).

O procedimento técnico-discursivo evidencia o papel do olhar como vetor de sentimentos e o jogo de sedução, a que os protagonistas se rendem, instala-se também no leitor que visualiza a cena, acompanhando a mobilidade gestual dos olhos e das mãos, apresentados como metonímia do corpo dos adolescentes. Dessa forma, o discurso afeta as emoções do leitor, que, movido pela aisthesis, experimenta uma disposição favorável ao idílio dos apaixonados.

Entretanto, a reflexão sobre os efeitos da visualidade inclui, também, a avaliação do narrador sobre a descoberta amorosa de Bentinho, avaliação efetivada a partir do domínio pleno dos acontecimentos e de sua passagem pelo filtro do tempo. Segundo o narrador, aquela tarde "verdadeiramente foi o princípio da minha vida; tudo o que sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia… Agora é que eu ia começar a minha ópera" (ASSIS, 1986a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986a. v. 1, p. 807-944., p. 817).

A menção ao espetáculo cênico e a ideologia adotada pelo narrador, segundo a qual a vida é uma encenação, revertem-se sobre a narração e compelem o leitor a decifrar sentidos implícitos às descrições visuais. Assim, o vestido de chita de Capitu e seus velhos sapatos cerzidos, entrevistos sob o ângulo axiológico de Dom Casmurro, denotam pobreza e, juntamente com a sedução da troca de olhares, sugerem ser o romance da jovem com Bentinho o meio para alcançar fortuna e ascensão social.

A importância atribuída ao ver e ao olhar conduz à personificação dos olhos que revelam sentimentos e ações reprimidas, como no trecho em que Bento Santiago se rende aos olhos "quentes e intimativos" de Sancha: "Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-os em caminho. Pararam os quatro e ficaram diante uns dos outros, uns esperando que os outros passassem, mas nenhuns passavam" (ASSIS, 1986a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986a. v. 1, p. 807-944., p. 924). Ao atribuir seu comportamento e o de Sancha aos olhos, o narrador exime a ambos de culpa, contudo a figura de linguagem denuncia não só a sutileza do discurso, mas também a ambiguidade comportamental do protagonista.

A percepção óptica possibilita, ainda, ao leitor reconstituir, visualmente, a situação de Bentinho, vítima do olhar inquisidor de prima Justina, enquanto ela lhe falava em Capitu. O narrador interpreta esse olhar, atribuindo à visualidade a função de expressar as demais sensações corpóreas: "Só então senti que os olhos da prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me, fazer o ofício de todos os sentidos" (ASSIS, 1986a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986a. v. 1, p. 807-944., p. 833, grifo meu). O emprego habilidoso da linguagem possibilita ao leitor reconstituir mentalmente a cena e situar-se em face das personagens como se estivessem diante de seus olhos e integrar os componentes do circuito interno da produção-interpretação ao circuito externo, cujos componentes são o autor e o leitor empírico.

Se Dom Casmurro se filia à concepção da teatralidade do mundo, as estratégias narrativas, particularmente as do dispositivo do olhar, evidenciam a correspondência entre os procedimentos discursivos e o fundamento axiológico do texto. Isso se evidencia, particularmente, no capítulo CXXXVIII, a que Machado dá o título de "Capitu que entra". O autor repete a fórmula de uma didascália, e o narrador, como se assumisse a função de contrarregra, coloca os protagonistas frente a frente, efetivando-se o confronto que leva ao desenlace.

O capítulo sucede àquele em que Bento oferece ao filho o café envenenado com que pretendia suicidar-se, gesto de que recua abraçando o menino e dizendo-lhe não ser seu pai. Na sequência, ele se defronta com Capitu e o narrador informa: "Eis aí outro lance, que parecerá de teatro" (ASSIS, 1986a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986a. v. 1, p. 807-944., p. 937). A semelhança com o drama teatral resulta tanto do conflito, provocado pela acusação de adultério que Bento atribui a Capitu, quanto pela predominância do diálogo, embora o narrador intercale, ao discurso direto, o discurso narrativizado para registrar reações de Capitu, interpretadas por ele como fingimento. A estupefação, a indignação, a linguagem, a dor não convencem o juiz que Capitu tem a sua frente, que contrapõe à inocência de sua atitude uma testemunha cuja fidedignidade é garantida pela "própria natureza" (ASSIS, 1986a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986a. v. 1, p. 807-944., p. 937): a entrada intempestiva de Ezequiel indicia a transgressão, e a fotografia de Escobar confere ao acusador a prova necessária para a condenação de Capitu:

Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou do filho e saíram para a missa. (ASSIS, 1986a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986a. v. 1, p. 807-944., p. 938, grifo meu).

A consolidação da prova se dá pela ratificação da semelhança entre as feições do menino e as do defunto Escobar, impressas no registro fotográfico, acessório importante para a definição da sentença, que é referido no capítulo CXXXIX, denominado "A fotografia". Entretanto, segundo o narrador, a identificação da similitude já se processara antes, e "os olhos, […] a cara, o corpo, a pessoa inteira" de Ezequiel tinham assumido os traços de Escobar, como se fossem "um debuxo primitivo que o artista vai enchendo e colorindo aos poucos" (ASSIS, 1986a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986a. v. 1, p. 807-944., p. 932). Assim, a mudança não se fizera "à maneira de teatro"; ela se fizera lentamente, como se fosse a luz tênue da manhã que permitia a leitura de uma carta. Posteriormente, mesmo na ausência da luz, a carta revelava a notícia, e Bento via Ezequiel como se fosse Escobar, que "vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à noite a bênção do costume" (ASSIS, 1986a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986a. v. 1, p. 807-944., p. 932).

Com efeito, a narração dos capítulos denominados "O debuxo e o colorido" e "A fotografia" apoia-se no código pictórico e no fotográfico, e "a sensação visual, desdobrada e multiplicada" (BUESCU, 1990BUESCU, Helena Carvalhão. Incidências do olhar: percepção e representação. Lisboa: Caminho, 1990., p. 89) enfatiza a obsessão do olhar de Dom Casmurro, que sobrepõe à analogia, sugerida pelo quadro, o valor icônico da fotografia, que lhe garante o estatuto de documento comprobatório. Contudo, esses dois capítulos mantêm uma relação simétrica com o intitulado "O retrato" (LXXXIII), a qual incide sobre a avaliação de Dom Casmurro, contestando seu julgamento. Portanto, ainda que a "confusão" de Capitu diante da comparação entre Ezequiel e a fotografia de Escobar possa ser avaliada como uma "confissão", persiste como argumento favorável à sua defesa o episódio em que Gurgel enfatiza a semelhança dela com o retrato de sua mulher. O paralelismo dos episódios desarticula a certeza do protagonista e instala a dúvida no leitor, levando-o a perceber que Dom Casmurro pratica a simulação e o engano, ao mesmo tempo que os denuncia.

Retomando a posição de Aristóteles quanto à composição dos caracteres, a qual deve resultar de ações, pode-se afirmar que Capitu, Bento Santiago e Dom Casmurro são personagens que nascem por meio de sua voz, olhar e gesto. Ainda que a afirmação seja um truísmo, porque aplicável a toda e qualquer narrativa ou drama, em Dom Casmurro, a vocalização, a visualização e a gestualidade são enfatizadas, motivando o leitor a compartilhar de sensações e sentimentos e a interpretá-los a partir da experiência da catarse. Nesse sentido, ressalta-se o caráter dramático da narrativa, cujas ações se interligam para representar o antagonismo, frequentemente simulado, de forças opostas; o uso de diálogos em episódios nucleares; a introdução de mensagens proféticas que prenunciam a catástrofe; o paralelismo de situações e circunstâncias, cuja simetria corrói as certezas do narrador; o estabelecimento da tensão que conduz à transposição de um estado de ignorância para o do saber, isto é, a mudança de um estado de felicidade ilusória para o estado de infortúnio. Entretanto, a exploração de marcas discursivas do modo dramático não insere o relato de Dom Casmurro no gênero trágico: desprovidas do caráter predominantemente monológico do trágico, as personagens agem como atores e sua configuração depende das palavras que enunciam ou que sobre elas são ditas; da incidência do olhar que projetam umas sobre as outras; dos gestos que, convertidos em signos, traduzem significações e a outras resguardam, ocupando uma posição de destaque (JACKSON, 2020JACKSON, Kenneth David. O gesto na ficção machadiana. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Org.). Machado de Assis: intérprete da sociedade brasileira. Porto Alegre: Zouk, 2020. p. 11-23., p. 15). Com efeito, em Dom Casmurro, a reflexão sobre os traços da dramaturgia, seja como concepção de mundo ou como técnica narrativa, denuncia o jogo de máscaras, por meio das quais os homens encenam variados papéis, e o aspecto fraudulento das relações humanas. Nesse sentido, a cosmovisão da narrativa associa-se aos procedimentos técnicos que reafirmam a presença de elementos próprios da dramaturgia.

Dramaturgia inscrita na ficção

A análise de Dom Casmurro e de Memórias póstumas de Brás Cubas expõe sua organização estrutural, em que a sequencialidade das ações, situadas em um tempo e espaço ficcionalmente concebidos, se orienta para a exposição dos conflitos das personagens, os quais são reveladores de aspectos da vida humana, marcada, sobretudo, pelo exercício da simulação. O processo de narração, por sua vez, articula-se à composição de narradores cujos traços lhes conferem uma identidade peculiar; articula-se à inclusão do receptor no texto e à opção por um registro verbal próprio da conversação, o que torna a narração dinâmica e viva; à configuração de personagens consistentes e verossímeis, instituídos por meio de procedimentos que instalam a visualização, a ocularização e a gestualidade. A narração instala, igualmente, o ponto de vista do leitor como assistente de um espetáculo cujas estratégias discursivas sublinham a proximidade entre desenhar ou pintar, narrar ou encenar ações e sentimentos.

Consequentemente, Memórias póstumas e Dom Casmurro expõem aspectos formais que Machado concebe como necessários à qualidade artística de textos dramáticos, estabelecendo-se uma convergência entre seu posicionamento como crítico e a feição que ele dá às obras. Paralelamente, Machado de Assis conjuga a concepção do mundo como um teatro e dos indivíduos como atores a procedimentos discursivos, estabelecendo uma relação icônica entre a significação dos textos e sua representação e compelindo o leitor a transitar da teatralidade da ficção para a da vida.

Todavia, diante do exposto, concerne ainda responder à questão: teria Machado de Assis dado forma, por meio de suas obras ficcionais, à grande pintura ou à comédia humana que Quintino Bocaiuva dele esperava?

Adotando o símile, Machado cria, em sua ficção, procedimentos discursivos que conferem à narração a evidência de imagens pictóricas. Presentifica, assim, o ensinamento de Horácio (2005HORÁCIO. Arte poética. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. Tradução de Jaime Bruna. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 55-68.) sobre a inter-relação entre poesia e pintura, em que esse preconiza que a representação do texto verbal deve ser tão viva e palpável quanto a do pintor em sua tela. Entretanto, por sua atenção aos aspectos da sensorialidade, Machado parece responder, por meio da concepção das narrativas, às perguntas de Alfredo Bosi: "Como falar de expressão artística sem atentar para a fenomenologia do corpo? Para a visada do olhar? E para a intencionalidade do gesto?" (BOSI, 1986BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1986., p. 50, grifo do autor). Dessa forma, o escritor confere aos relatos ficcionais aspectos próprios da encenação dramática, colocando personagens em cena, e introduz apelos sensoriais que dão concretude à representação de ações e à composição de cenários. Esses artifícios das narrativas geram efeitos de veridicção e de presentificação e, atuando sobre a percepção do leitor, transformam-no em espectador de dramas ou de comédias humanas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2022
  • Aceito
    05 Set 2022
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