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Nordeste: o reverso da medalha

Nordeste: o reverso da medalha

Marília Fontana Garcia

Socióloga e pesquisadora do CEDEC

A miséria do Nordeste não brotou do chão, nem caiu das nuvens. Da terra seca, onde raras plantas conseguem vingar, nascem com facilidade o arbítrio, a opressão e o engano. Como no resto do Brasil. Depois de tantos anos de discussão, o assunto ainda não se esgotou. Aonde leva essa conversa sem fim?

Rezar, inscrever-se numa frente de trabalho, mendigar, juntar-se a um grupo que cerca a prefeitura, conformar-se, saquear, apelar para o fatalismo, migrar: estas são as alternativas colocadas por uma criteriosa arte de sobreviver que ao longo do tempo foi se incorporando à tradição e ao cotidiano do povo do Nordeste.

Nos períodos de seca, essa arte de driblar a fome e a miséria tem que ser exercida com maestria. A morte por inanição não é mais um fantasma que ronda, mas uma realidade que se instala. Segundo previsão da CNBB, até o final de 1984 três milhões de flagelados da seca morrerão de fome.

Esta seca, que já dura cinco anos e atinge uma população de 24 milhões de pessoas, não é diferente daquela relatada por Fernão Cardim — o primeiro "repórter" da seca — em 1587, quando "cinco mil índios se socorreram com os brancos"; nem das outras 72 estiagens que vieram depois. Nesses quatro séculos pouca coisa mudou. Embora essas estiagens sejam cíclicas — já há vários estudos provando isso — os governos são invariavelmente "apanhados de surpresa" pela seca.

Em 1979, o Centro Tecnológico Aeroespacial de São José dos Campos (SP) enviou ao Ministério do Interior, à SUDENE e aos governadores dos estados do Nordeste, dois estudos que previam um longo período de secas para os anos seguintes. Ninguém se preocupou em tomar providências adequadas. Nem mesmo o fato de o Nordeste ser, atualmente, a única região do Brasil em que a força do PDS é incontestável chegou a pesar nas ações do governo.

A seca veio e ficou. E, na hora em que a ocorrência de alguns saques mais violentos mostrou a possibilidade próxima de uma convulsão social de maiores proporções, mais uma vez criaram-se às pressas frentes de trabalho e alguns políticos discursaram prometendo grandes e definitivas obras.

Sempre foi assim

Quanto a essa atitude, nenhuma novidade. Tão cíclicas quanto as secas foram as "ondas" de preocupação com o Nordeste por parte dos governos. Toda vez que a calamidade da seca torna a tensão social insustentável, alguém "descobre" que o Nordeste faz parte do Brasil e que as forças nacionais devem ser mobilizadas.

Essa mobilização nacional, pregada no calor dos discursos e esquecida logo depois pela grande maioria, quase sempre se limitou a três tipos de medidas: eventuais campanhas de assistência (precária) aos flagelados, criação de frentes de emergência para a construção de açudes (que acabam secando) e abertura de estradas nem sempre necessárias.

Mesmo quando foram tentadas medidas de maior porte como a criação da SUDENE, que através da industrialização ia levar o desenvolvimento ao Nordeste, ou a construção da Transamazônica, que pretendia facilitar a mobilidade dos migrantes nordestinos para a ocupação da Amazônia, poucos resultados se fizeram sentir. Sabemos porque.

A "novela" do Nordeste

Não é por falta de discussão que não se conseguem concretizar medidas que facilitem o desenvolvimento integrado do Nordeste. São incontáveis os encontros que já se promoveram tendo o Nordeste como tema central. Os produtos dessas discussões foram materializados em toneladas de papel entre relatórios e publicações. A discussão dos problemas do Nordeste mais parece uma novela onde, ao fim de cada capítulo, fica adiado o destino dos personagens principais.

Mas, afinal, o Nordeste existe como uma entidade autônoma? Fala-se de "região", "questão regional", "Polígono das Secas", como se o simples fato de traçar no mapa a área que costuma ser mais atingida pela seca já fosse um encaminhamento para a solução dos problemas da terra e dos homens que vivem nela. Não é bem assim.

Uma ideologia do regionalismo

Falar em "região" ou qualquer outra dessas expressões não chega nem mesmo a explicar os problemas do Nordeste, que dirá resolvê-los. Por que então insistir nessa linguagem?

É que dizer que o caso dos nordestinos é um problema regional — relacionado com o clima — é uma maneira fácil de esconder as verdadeiras origens da marginalização do Nordeste no Brasil: as divisões sociais, as contradições econômicas e políticas.

Na verdade, o Nordeste não existe concretamente como um território e uma cultura à parte do Brasil, mas foi marginalizado a partir do momento histórico em que os interesses econômicos se voltaram para outras áreas do país. Nesse momento, a solução dos problemas dos homens do Nordeste deixou de interessar essencialmente àqueles que podem lucrar, porque o valor desses homens como força de trabalho já não contava tanto. Foi quando o Nordeste começou a ser tratado como região problemática, tema de discursos, congressos e livros.

Algumas pessoas que vivem no Nordeste e se dedicam a estudá-lo com critério e sentimento, começam a perceber as verdadeiras razões de tanto falatório e papelada. Um deles é o sociólogo Roberto Martins, que é professor na Universidade Federal de Pernambuco, no Recife, e para quem o que existe efetivamente é uma ideologia do regionalismo nordestino. Ideologia é uma representação da realidade a partir do ponto de vista particular do sujeito que a formula mas que pretende passar por um ponto de vista universal.

E é esse tipo de ponto de vista que vemos nos discursos dos políticos e nas falas dos estudiosos. Eles consideram que o Nordeste é uma região, uma coisa acabada, limitada, com certas características e problemas já previamente listados. E os itens dessa lista, que são aspectos particulares do Nordeste — sua situação geográfica, suas relações sociais, sua cultura —, são apresentados como categorias universalizantes. É essa a ilusão reconstruída pela ideologia a partir de uma realidade.

A ideologia engana porque, quando toma essa realidade como uma coisa acabada, universal, dificulta a discussão de aspectos particulares e de mudanças que poderiam conduzir a soluções.

A ideologia regionalista é manipulada politicamente, é usada para esconder a verdadeira face da miséria tomando o resultado de um processo como se fosse seu começo. Analisa a calamidade que o Nordeste atravessa nos períodos de seca como se fosse um produto exclusivo do clima e das reações dos homens naquele momento e não um produto das relações dos homens através da história.

As estiagens no Nordeste brasileiro são cíclicas. Então, por que os governos são sempre apanhados de surpresa pela seca?

Hoje, como sempre a seca continua sendo combatida com campanhas de assistência e abertura de frentes de trabalho inútil.

Afinal de contas, o que é essa tão falada questão regional?

Os discursos dos políticos e dos estudiosos constroem uma ilusão que é usada para dissimular a realidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1984
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