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Os militares e a soberania popular

PENSANDO O BRASIL

Os militares e a soberania popular

Rene Armand Dreyfuss

Cientista político e professor da Universidade Federal de Minas Gerais

O governo que acaba de se instalar revela tanto uma continuidade de papéis, métodos e funções, quanto um deslavado continuismo de pessoas, idéias e percepções. Entre estas, a noção e a prática da soberania, como tema político,' apresenta-se, nessa Nova República, vestida das mesmas velhas intenções e defendida pelos mesmos conhecidos de sempre.

Nos últimos dois decênios, ninguém falou mais em soberania do que as chefias militares. Mas o que essas chefias entendem por soberania? A noção de soberania em voga nas Forças Armadas, sob a cobertura ideológica do binômio "Segurança e Desenvolvimento", tem seu embasamento teórico nos textos produzidos na Escola Superior de Guerra. Para entender o que a ESG compreende por soberania, fomos consultar o seu Manual Básico, por se tratar de uma publicação extremamente representativa do seu ideário.

O estudo do ideário da ESG é de grande importância, porque constitui a base de formação política da oficialidade brasileira, e, na medida que foi absorvido sem maiores questionamentos filosóficos, tem a força de dogma, no interior dessas corporações.

Consultando o Manual, à procura de uma definição da noção de soberania e de uma explicação clara e objetiva dos fatores que intervêm na sua formulação, o leitor esperançoso ou desavisado depara-se com uma surpresa, no mínimo intrigante. Não há um tratamento sistemático do tema. A noção de soberania é situada simplesmente como mais um dos aspectos que a ESG caracteriza como "Objetivos Nacionais Permanentes". Estes "objetivos" são formulados no Manual em termos tão genéricos que pouco ou nada acrescentam ao raciocínio, esgotando-se a caracterização num arrazoado de boas intenções, no mesmo plano de outras abstrações tais como o "bem-estar comum" ou a "felicidade da nação". é ao nível do desejo, portanto, que o Manual explicita a soberania como sendo o imperativo de "manter inatingível a nação, assegurando a sua faculdade de autodeterminação e a sua convivência com as demais nações em termos de igualdade de direitos e oportunidades". Esta definição se afigura quase com um prolongamento da noção — também estreita — que a ESG tem do que seja um regime democrático de justiça social: o reino da igualdade de oportunidades, como se a cidadania pudesse ser reduzida a um aglomerado de postulantes e caçadores de emprego.

No entanto, reunindo trechos esparsos do Manual, onde se trata de questões conexas, é possível chegar a relacionar uma série de afirmações e assertivas que permitem discernir um corpo doutrinário que diz respeito à questão da soberania e das atitudes "recomendáveis" de "bom senso", que a ESG acha devem ser assumidas a seu respeito.

Tentemos, pois, efetivar um exercício de raciocínio que nos leve a entender o aparente encadeamento lógico desses conceitos e o que eles pretendem excluir ou encobrir. Vejamos por partes.

Poder de quem? Vontade de quem?

Segundo a ESG, a soberania, um dos quatro elementos essenciais do Estado (os três restantes são população, território e governo) é o "poder de autodeterminação, sem a interferência de nenhum outro. é o poder originário que governa e disciplina juridicamente a população que se encontra no território do Estado". Isto nos remete imediatamente à conceituação e ao exercício do poder na visão e na prática esguiana. Para a Escola, poder seria, sinteticamente, a "capacidade de impor a vontade". Com certa apreensão, nota-se que nestas definições o sujeito está ausente, subentendido só pelos iniciados. Portanto, é lícito perguntar: capacidade de quem? vontade de quem? E mais, imposição a quem e de qual vontade? Por conseguinte, poder de autodeterminação de quem? E como ele é ou deve ser exercido?

As respostas, aparentemente, são dadas num outro trecho do Manual, onde, num verdadeiro pulo do gato, soberania é entendida como "poder estatal de autodeterminação", sendo um "atributo da entidade política nacional". Ou seja, enquanto elemento formal, a soberania é designada como sendo o "poder supremo de que se acha revestida a autoridade do Estado". Na visão totalizante da ESG, que "estatiza" a sociedade civil e "privatiza" os recursos nacionais, a soberania é, sem mais nem menos, poder estatal, não havendo espaço para a diferença sutil (diferença substancial no que tange ao raciocínio e conteúdo) de que a capacidade pode ser do Estado, mas não a vontade, que deve ser societária. Na colocação esguiana, a sociedade passa, assim, a ser falsamente considerada como o próprio Estado, absorvida e resumida por esse conceito.

No entanto, esse poder supremo do qual a ESG fala não deveria cessar ante a presença soberana do povo, ante seu direito fundamental, já que constitucionalmente "todo poder emana dele e em seu nome será exercido"? Não seria esse poder um atributo específico da sociedade, que, embora constituindo-se em representação e institucionalização política (governo e Estado), deve preservar o seu direito fundamental e ter a seu dispor os mecanismos de poder, para orientar, controlar, reformular ou até dissolver as instâncias constituídas para gerenciar a vida societária? Invertendo o raciocínio, não se estaria esvaziando as premissas da própria condição de cidadão, na medida que se "estatiza" a soberania?

No entanto, em outras ocasiões, a soberania é definida pela ESG, também, como poder de autodeterminar-se. Isto nos leva a indagar o que é, afinal de contas, autodeterminação na conceituação e prática esguianas. Esta questão torna-se particularmente candente, se lembrarmos que, de acordo com a ESG, a soberania se "manifesta através da organização e direção da sociedade nacional, segundo critério próprio". Esse seria, por assim dizer, o âmbito interno da soberania, o seu fundamento ou elemento constituinte. Mas a soberania seria também a "manifestação independente do Estado perante outros Estados". Teríamos aqui o âmbito externo, os seus efeitos e a sua implementação enquanto expressão nacional, isto é, a projeção no plano internacional da prática soberana da cidadania.

Aqui, portanto, nesta segunda definição, no âmbito interno teríamos a constituição da soberania, como expressão do desejo societário, já que o sujeito da ação passa a ser definido como sendo a sociedade (e não mais o Estado). Nessa linha de raciocínio, poderíamos esperar que a cidadania estipulasse e determinasse as instâncias do Estado e do governo, e definisse suas normas de conduta, sistema de valores e referências, assim como seus objetivos, cursos de ação e ainda os meios e recursos a serem utilizados na sua consecução, nas formas convenientes à sociedade e legitimadas por esta.

Essas questões, que estão na base da autodeterminação, são a pedra angular de qualquer raciocínio sobre a noção e a prática de soberania. No entanto, apenas enunciadas, perdem-se para sempre na ideologia esguiana. O seu esquecimento aponta para uma flagrante contradição: por um lado, soberania é atributo do Estado; por outro, atributo da sociedade. Como é que a ESG resolve ou escamoteia a tensão existente na sua definição, que reside no que poderíamos chamar de poder estatal em contraposição a poder societário, como fonte e expressão da soberania? A solução encontrada é a criação de um artifício explicativo e de intermediação, entre Estado e povo — as elites — e de um mecanismo ou instrumento de realização — o governo —, habitat e marco "natural" da realização vocacional diretiva e gerencial das elites, que é considerado como o "verdadeiro vínculo político do Estado".

O povo, sensibilizado, agradece

Dessa forma, no discurso esguia-no, sem nenhum constrangimento, as elites são elevadas à posição de esteio político do povo, mediante um processo de "interação com a massa". "Auscultando o povo" — explica paternalmente a ESG — "as elites nacionais identificam seus anseios e aspirações. Possuindo um maior conhecimento da realidade histórico-cultural e dos dados conjunturais, elas teriam, segundo a ESG, "uma visão mais elaborada dos autênticos interesses nacionais". Caberia às elites, assim, "interpretar os anseios e aspirações nacionais, difusos no meio ambiente, harmonizando-os com os verdadeiros interesses da nação e com o bem comum, apresentando-os de volta ao povo, que, desse modo sensibilizado, poderia entender e adotar os novos padrões que lhe são propostos". Pelo que temos visto nos últimos tempos, o povo, sensibilizado, agradece, mas pede passagem.

Mas, como a soberania para realizar-se, segundo a ESG, necessita de um governo, a questão de legalidade desse governo coloca-se imediatamente em pauta. Ou seja, para consolidar, defender ou maximizar a soberania, torna-se necessário, primeiro, definir o que a ESG entende por "direção e organização segundo critério próprio", e é interessante se perguntar como pode conciliar qualquer interpretação da fase acima com a realidade política brasileira da tutela das elites autonomeadas e suas práticas políticas de conchavos, arranjos de bastidores, e, não raramente, do puro uso da força bruta.

Embora a forma adotada e o processo utilizado para a investidura dos representantes do povo possa variar, este é quem deveria definir o sentido do processo e a escolha da forma. Por outro lado, se o instrumento da soberania é o governo, isto é, se este deve ser o instrumento societário do poder de autodeterminação (segundo critério próprio), pode um governo imposto ou escolhido em âmbito restrito, sem participação popular, ser realmente mecanismo de soberania? Na medida que a sociedade não participa da determinação e estipulação, tanto do governo quanto da política do Estado nacional, não estariam sendo menosprezados os próprios fundamentos da soberania? Torna-se crucial, portanto, a escolha livre, sem coação ou manipulação, do governo, que só assim terá a sanção da autoridade societária para ser o administrador da coisa pública. Esse seria o começo do decantado exercício do "critério próprio" de organização e direção da sociedade, assim como da institucionalização de um controle efetivo do Estado pela sociedade civil.

Afinal, que país é este?...

No entanto, num sistema de elites, sejam estas civis ou militares, são elas que se tornam os capatazes legais da soberania. Resta saber se são legítimas, do ponto de vista das legítimas aspirações populares. Paradoxalmente, mais uma vez, é a ESG que proporciona um argumento interessante para o nosso raciocínio. Encontramos no Manual a argumentação de que o governo "não é pois outra coisa que a autoridade de um grupo nacional politicamente instituído. Por esta razão, torna-se imperioso que os governantes sejam legítimos, pois só assim terão autoridade sobre os grupos que dirigem. A ordem legal, por mais bem estruturada e perfeita que seja, depende desta premissa política — isto é, a legalidade procede da legitimidade. A legitimidade fornece ao Poder seu lugar verdadeiro como princípio vital da nação". Onde será que a ESG esteve nestes últimos vinte anos?

A legitimidade do governo é fundamental para o sustento e exercício da soberania, já que, na medida que todo poder emana do povo, só será democrático o sistema político em que isto se efetive e só será legítimo o poder quando resultar de expressa delegação popular. O que está em pauta, na realidade, quando falamos de soberania, é a questão da participação e da determinação social (democrática) do governo, enquanto elo político, e por conseguinte, a reflexão a respeito da sociedade para si, do que poderíamos chamar de auto-suficiência nacional organizada. Assim, o primeiro passo ou ato de efetivação da soberania seria a escolha direta dos governantes e administradores da sociedade e da coisa pública, o que equivale a delimitar as dimensões de atuação destes, enquanto funcionários públicos graduados da cidadania e da soberania popular.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1985
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