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Descentralização, saúde e cidadania

Decentralization, health and citizenship

Resumos

Examinam-se as relações entre descentralização, racionalidade e democracia com referência ao sistema de saúde brasileiro. A autora sustenta que os bloqueios e limites impostos ao processo de descentralização na Constituição de 1988 restringem seus efeitos democratizantes. Procura mostrar como, no caso da saúde, esse processo assume a forma de uma re-centralização que dá prioridade à racionalidade estritamente econômica.


The relationships between decentralization, rationality and democracy are examined with reference to the Brazilian health system. The author argues that the limitations imposed on the decentralizing process by the 1988 Constitution impair its democratizing effects. She shows for the case of health how this process takes the form of a recentralization which gives priority to a strictly economic rationality


DESENVOLVIMENTO SOCIAL

Descentralização, saúde e cidadania

Decentralization, health and citizenship

Amélia Cohn

Professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e presidente do CEDEC. Lua Nova publicou, de sua autoria "Caminhos da reforma sanitária" (n.o 19, 1989)

RESUMO

Examinam-se as relações entre descentralização, racionalidade e democracia com referência ao sistema de saúde brasileiro. A autora sustenta que os bloqueios e limites impostos ao processo de descentralização na Constituição de 1988 restringem seus efeitos democratizantes. Procura mostrar como, no caso da saúde, esse processo assume a forma de uma re-centralização que dá prioridade à racionalidade estritamente econômica.

ABSTRACT

The relationships between decentralization, rationality and democracy are examined with reference to the Brazilian health system. The author argues that the limitations imposed on the decentralizing process by the 1988 Constitution impair its democratizing effects. She shows for the case of health how this process takes the form of a recentralization which gives priority to a strictly economic rationality.

Como já apontaram vários autores1 1 Ver, entre outros, Tobar, F. "O Conceito de Descentralização: Usos e Abusos". Planejamento e Politicas Públicas, nº 5, junho de 91, IPEA - Brasília, pp 31-51. , o tema da descentralização tende a emergir nas conjunturas de transição e consolidação dos regimes democráticos, hibernando nos períodos autoritários e ditatoriais. Acompanha essa emergência, no geral liderada pelos setores progressistas, a valorização da criação de novos espaços institucionais de participação com poder deliberativo, como estratégia política de ampliar, no espectro social, as oportunidades de acesso ao poder. Não obstante, a defesa da descentralização não é privilégio dos setores progressistas. Os principais órgãos internacionais de financiamento também a indicam como um dos mecanismos centrais do saneamento fiscal — e de certa forma também social — das sociedades periféricas. Partindo-se dessas duas perspectivas — das quais esta última tem na busca da racionalidade econômica (entendida como eficiência) das politicas sociais uma das razões centrais da sua proposta, enquanto a primeira valoriza a dimensão propriamente política da descentralização — o problema passa a ser o de articular as dimensões política e econômica desse processo.

A Constituição de 1988 considera os municípios partes integrantes da Federação, e reza no seu artigo 18 que "a organização politico-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municipios, todos autônomos...". Como aponta Sato, esse fato novo leva a associar a descentralização à municipalização, vinculando a primeira ao processo de autonomização das distintas unidades subnacionais entre si.2 2 Sato, A.K., Descentralização: Um tema Complexo. Texto para discussão nº 314, IPEA, Brasília, out. de 1993.

É esse mesmo autor quem aponta, no entanto, que o texto constitucional discrimina, em outro artigo, a competência comum dessas várias esferas de poder, abrangendo vários setores: da saúde à cultura, educação, ciência, meio-ambiente, saneamento básico, dentre outros. Após alertar para a heterogeneidade setorial, conclui que "as contradições e heterogeneidades detectadas não são de ordem formal ou lógica, mas sim de natureza substantiva, sintoma de que a Constituição expressa a indefinição de perdas e ganhos de grupos específicos"3 3 Sato, A.K., op.cit, p. 10. . Essa tendência descentralizadora da nova Constituição é, então, associada aos signos do Estado moderno, na medida em que contempla a democratização, a autonomização e a participação popular.

Claro está que o destaque dado a esses aspectos coloca ênfase na dimensão politica da descentralização, que ao mesmo tempo apresenta a sua outra face: o esvaziamento parcial do poder efetivo do Executivo, aumentando o peso do Legislativo, do Judiciário, assim como dos estados e dos municípios. Disso emerge um regime político ambíguo, e por isso instável. Isso porque os trabalhos da Constituinte redundaram, de um lado, num presidencialismo com um parlamento forte mas sem responsabilidades de governo4 4 Sallum Jr., B. e Kugelmas, E., - "O Leviatã acorrentado: a crise brasileira dos anos 80". In Sola, L.(org.). Estado, Mercado e Democracia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993, pp. 280-99. e, de outro (que nos interessa mais de perto), na distribuição de parte dos meios materiais de gestão da União pelas esferas subnacionais sem a transferência dos correspondentes encargos.

Ao analisar a crise do Estado desenvolvimentista, que vinha sendo superado desde a década de 70 "pela complexidade cada vez maior da sociedade de classes", Sallum demonstra que foi através da Constituição de 88 " que vários segmentos e categorias sociais tentaram eliminar a incerteza da situação de transição transformando posições herdadas do passado autoritário em garantia institucional ou invertendo discriminações em privilégios"5 5 Sallum Jr.. "Transição Política e Crise do Estado. Nesta edição de Lua Nova. . Analisa ainda como nesse processo, os estados e municípios aproveitaram-se do enfraquecimento do poder central durante a transição democrática para inverter o desequilíbrio existente no período autoritário, apropriando-se de boa parte das receitas da União sem assumir seus encargos. Também defende a tese de que só com muitas restrições pode-se aceitar a qualificação de "cidadã" para a atual Constituição. Isto porque, como no caso anterior, ao mesmo tempo que ela garantiu e ampliou os direitos de quem não os tinha ou os tinha precariamente, como é o caso dos trabalhadores, ela reforçou e/ou criou privilégios que acabaram por se transformar em obstáculos à superação da crise do Estado e à construção de uma democracia estável.

Tem-se portanto nesse processo de descentralização duas grandes orientações. A primeira se dá quando a descentralização favorece a democratização politica e social. Isto na medida em que possibilita, em tese, a ampliação da participação de distintos atores sociais na formulação e implementação das políticas, ao aproximar, no nível local, a gestão e os seus destinatários. A segunda se dá quando o processo de descentralização é regido quer pela crise fiscal do Estado no seu âmbito central, quer pela ampliação dos direitos sociais num contexto marcado pela presença atuante de interesses particulares e corporativos.

Preteceille já apontava, no final da década de 80, que no caso francês a descentralização ocorreu no bojo de uma crise do Welfare State. Nessas condições ofereceu uma proteção política ao Estado central, na medida em que este deixava de aparecer como responsável imediato pela política de contenção dos gastos públicos, que vinha afetando a qualidade de vida dos franceses.6 6 Preteceille, E.. La Descentralization, pour qui, pour quoi? Paris, IRESCO, 1987, mimeo. Já no caso brasileiro, como vimos, esse processo é marcado por ambigüidades. Nele estão presentes tanto a lógica progressista quanto a particularista, no interior de uma crise fiscal do Estado. Foi também marcado pela transição para um governo civil na qual, "após duas décadas de regime militar, mesmo as forças conservadoras não se atreveriam, publicamente, a confirmar o centralismo, identificado com o autoritarismo, na nova Constituição"7 7 Sato, A., op.cit, p.9. .

Isso não impediu, no entanto, que no texto constitucional estivessem contemplados, sob a capa de direitos, determinados privilégios para alguns setores. Tampouco impediu que na sua formulação se exprimissem as ambigüidades que marcam o tema: de um lado, a afirmação da descentralização e da extensão dos direitos mas sem a correspondente previsão das fontes de financiamento; de outro, o repasse dos recursos para os níveis estadual e municipal mas sem os respectivos encargos. De fato, nem na própria regulamentação constitucional, nem nas leis orgânicas estaduais e municipais, são claramente definidas as competências de cada esfera do poder.

Nesse sentido pode-se sustentar que os bloqueios e limites impostos ao processo de descentralização restringem sua efetivação como processo democratizante. Pois neste estariam presentes não só os conflitos de interesses como também a própria possibilidade de sua negociação, estimulando assim a dinâmica participativa.

Há, ainda, a dimensão econômica desse processo. Ela diz respeito à lógica que vem prevalecendo nas incipientes medidas descentralizadoras. Sua marca é a da crise fiscal do Estado e das suas tentativas de enfrentar a instabilidade da moeda, o déficit público e a dívida externa, mediante o ajuste econômico. Não é portanto de surpreender-se que a lógica econômica ganhe predominância sobre a lógica política no processo de descentralização. De fato, este vem ocorrendo ditado pelos parâmetros contábeis de repasse de recursos (relação entre receita e despesa) num contexto de urgência para superar-se a crise econômica.

O CASO DA SAÚDE

No caso específico da saúde isso imprime às medidas descentralizadoras o caráter de um movimento que é mais propriamente de recentralização. Não só a descentralização vem sendo implantada com um volume crescente de recursos dos municípios como também a baixa definição das competências de cada nível de poder impõe limites estreitos à autonomia dos municípios na definição de suas políticas de saúde. Acresce que a descentralização, nos moldes em que se dá, carece de um padrão de articulação entre os níveis federal, estadual e municipal. Há casos em que município e nível federal se relacionam diretamente, e outros em que o nível estadual figura como intermediário.

Dados levantados e analisados por Medici8 8 Medici, A.C.. Gastos com Saúde nas Três Esferas de Governo: 1980-1990. São Paulo, IESP/FUNDAP, agosto de 1993, mimeo. mostram que, em termos de percentual do PIB, os gastos com saúde apresentam a seguinte distribuição entre a União , os estados e os municípios. Em 1980 a União gastou 1, 75% com saúde, os estados 0, 42 e os municípios 0, 17. Em 1983, 1, 55% para a Uniãao, 0, 41% para os estados e 0, 18% para os municípios. Em 1987, 2, 33% para a União, 0, 25% para os estados e 0, 23% para os municípios. Em 1988, 2, 31% para a União, 0, 00% para os estados e 0, 38% para os municípios. E em 1990, 2, 32% para a União, 0, 49% para os estados e 0, 38% para os municípios.

Essas três últimas datas tem referências específicas. Em 1983 foram assinados os primeiros convênios das Ações Integradas de Saúde, iniciando o processo da descentralização, quando os repasses dos recursos da previdência social eram feitos para estados e municípios como pagamento da assistência médica prestada aos previdenciários. O ano de 1987 diz respeito aos primeiros convênios SUDS (Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde) quando essas verbas vinham associadas ao repasse dos equipamentos próprios da previdência social e dos estados. Isso constituiu a segunda etapa do processo brasileiro de descentralização da saúde. O ano de 1988 refere-se à promulgação da Constituição, em que os estados estiveram inteiramente ausentes do financiamento do setor, havendo um aporte substancial dos municípios. E o ano de 1990 (últimos dados disponíveis) assinala dois anos de vigência da nova Constituição, na qual se verifica um ligeiro decréscimo da participação da União, um aumento substantivo da participação dos estados e o mesmo patamar elevado da participação dos municípios.

Segundo esses mesmos dados, a distribuição percentual do gasto total em saúde por nível de governo evolui, no caso dos municípios, de 7, 3% em 1980 para 11, 9% em 1990. Nos anos de 1983 e 1987 registram-se, respectivamente, 8, 4% e 8, 5%. Ao mesmo tempo, durante a década, pode-se verificar que no caso do nível federal (agora como percentual da receita total) seus gastos com saúde até 1987 variam de 11, 9% a 14, 8%. Em 1989, primeiro ano de vigência da nova carta constitucional, esses dispêndios atingem 16, 8% e depois apresentam acentuada queda, chegando em 1992 a 10, 8%.9 9 Esses dados incluem a receita tributária própria e da previdência social. Já no nível estadual a tendência é de uma curva declinante, variando de 7, 2% em 1980 a 5, 2% em 1990.10 10 Esses dados incluem a receita tributária própria e as transferências para estados e municípios, segundo reza a Constituição. Finalmente, no caso do nível municipal, calculado o percentual sobre os gastos totais, os gastos com saúde variam de 6, 3% em 1980 a 8, 6% em 1990, sendo que dados preliminares para os anos de 91 e 92 indicam uma continuidade ascendente.

Para além de esses dados indicarem, de modo global, uma tendência discretamente ascendente dos gastos com saúde no nível federal, um declínio da participação estadual e um persistente aumento do gasto municipal, chama a atenção a existência de uma correlação estreita entre a queda dos gastos estaduais e o aumento dos gastos municipais. Igualmente chama a atenção a inexistência de correlação dessa ordem entre os níveis federal e municipal.

Seria o caso, então, de concluir a partir disso que no processo de descentralização da saúde, dada a experiência recente, os municípios estariam candidatando-se a ganhar autonomia, também financeiramente, relativamente aos níveis estadual e federal? Deve-se no entanto ter em vista o fato de que, dadas as diferenças de magnitude das receitas dos distintos níveis, caso os municípios aumentassem para 10, 0% da sua receita os gastos com saúde, isso representaria não mais de 20% de aumento nos gastos no setor.11 11 Medici, A.C., op.cit., p. 18. O volume de recursos resultante ainda insuficiente para financiar a universalização equitativa no acesso à saúde. E não se pode esquecer que do total de gastos públicos com saúde (3, 19% do PIB) para o ano de 1990, 73, 3% dos recursos provêm do nível federal.

Dadas as restrições impostas pelas condições econômicas e políticas e diante dos dados acima apresentados, a relação entre descentralização, democracia e racionalidade passa a ser ditada pela busca da racionalidade estritamente econômica, em prejuízo dos demais termos. Essa racionalidade, no entanto, envolve dois movimentos contraditórios. Da perspectiva do governo central tem-se a compressão dos recursos destinados à saúde, provenientes do orçamento fiscal ou então da seguridade social. E, da perspectiva do poder local, tem-se o aumento da pressão da demanda, dada a proximidade da administração local com a população. A isto associa-se a estreita margem para o aumento dos gastos com saúde pelos municípios, dependentes de suas receitas tributárias mas obrigados a responder à garantia da universalização do acesso a esses serviços. Especialmente quando esses limites se estreitaram ainda mais diante da tendência à diminuição dos aportes estaduais.

Como resultado, é freqüente equiparar-se a racionalidade e a eficiência, entendidas ambas como aumento da produtividade dos serviços públicos de saúde. De fato, os critérios de repasse dos recursos dos níveis federal e estadual para os governos locais vêm sendo crescentemente definidos pela produção de atos médicos (mais restritos que as ações de saúde) perdendo-se de vista a questão fundamental da qualidade e acesso aos serviços. E por essa via vem-se reproduzindo a idéia da descentralização como diretamente equivalente à democratização da saúde, sem a mediação da conjuntura econômica e política.

Resta, no entanto, analisar a relação entre descentralização e democracia. O'Donnell, em estudo recente12 12 O'Donnell, G.. "Sobre o Estado, a democratização e alguns problemas conceituais - uma visão latino-americana com um rápida olhada em alguns países pós-comunistas". Novos Estudos, nº 36, julho de 1993, pp.123-45. , analisando fundamentalmente os casos da Argentina, Brasil e Peru, registra que esses países não somente estão atravessando uma crise social mas também a crise de seus estados. Argumenta que um Estado incapaz de impor sua legalidade sustenta uma cidadania de "baixa intensidade", com o que o governo projeta "uma curiosa imagem, que mistura onipotência com a mais pura impotência"13 13 O'Donnell, G., op.cit., p. 140. .

A crise política, também uma crise do próprio Estado, vem acompanhada, assim, por uma "exasperada atomização da sociedade (...) outro lado da moeda da crise do Estado, não só enquanto conjunto de burocracias mas também — e até mesmo mais — enquanto fonte legal de previsibilidade social"14 14 O'Donnell, G., op.cit., p. 140. . Acentua esse fenômeno o processo verificado nas últimas décadas, de "complexificação da sociedade brasileira", na terminologia de Wanderley Guilherme dos Santos. Como resultado tem-se, na atual conjuntura, a atomização da sociedade espelhando e acentuando a própria desintegração do Estado. Não podem ser esquecidos neste ponto os efeitos de longo prazo da crise e da ideologia anti-estatista, especialmente sobre políticas de corte social e de ciência e tecnologia, como registra O'Donnell.

Ao aumento da complexidade social e da atomização social, e ao longo período de crise econômica e política, também se agrega um processo de "dessolidarização generalizada" (o termo é de O'Donnell) instituindo-se um mundo de "salve-se quem puder", sendo que "jogar esse jogo reforça as próprias condições em que ele é jogado"15 15 O'Donnell, G., op.cit., p. 138. . Em decorrência, tem-se uma acentuada fragmentação do aparelho de Estado, com uma perda de sua autonomia em relação aos inúmeros segmentos em que as classes capitalistas (mas não só elas, também as subalternas) se constituem, acompanhando o ritmo da crise.

Não só o conjunto desses fenômenos, na sua dinâmica perversa, coloca severos obstáculos à superação da crise atual (na medida em que esta pressupõe solidariedades amplas e a definição de políticas que restituam à sociedade sua capacidade de previsão para estabelecer diretrizes de ação) como também impõe a redefinição do padrão de relações entre Estado e sociedade, necessário para romper o circulo vicioso de políticas sociais fragmentadas dirigidas para um público-alvo fracionado.

Essa perspectiva de análise oferece um novo ângulo para redimensionar-se a relação entre descentralização e democracia. Do ponto de vista da cidadania e do interesse público como norteadores de uma descentralização associada à democratização, a segmentação das políticas públicas, em particular as de corte social, reforça o processo de fragmentação da rede de sociabilidades. Tende, portanto, a reforçar no nível local a já existente "baixa intensidade" da cidadania. E, do ponto de vista da lógica da descentralização, tendo-se agora por referência o nível federal, ela tende a se transformar num processo de reconcentração do poder, ditado sobretudo pela crise econômica.

Dessa perspectiva pode-se entender o carater precoce, quando comparado aos demais setores, do processo de descentralização da saúde, sem que isso, contudo, represente um real avanço na conquista da saúde como um direito universal e igualitário. Trata-se de um processo regido pela lógica da recentralização e da racionalidade econômica, em detrimento da lógica política. Esta, quando democrática, compreenderia a busca da racionalidade e da eficiência como parte de um processo mais amplo, no qual o direito à saúde seria concebido como diretamente vinculado à cidadania.

Isso, por sua vez, remete às variadas dinâmicas locais do processo de descentralização, em termos de duas possibilidades: como um processo de modernização arcaica ou como um processo de modernização orientado para a melhoria da qualidade de vida, favorecendo a democratização política e da própria sociedade.

No primeiro caso — modernização arcaica — estar-se-ia frente a um processo de recentralização no âmbito federal e de predominância de critérios econômico-financeiros na definição de "quanto" e "como" descentralizar, sem que (dado o padrão centralizador) isso representasse uma salvaguarda contra um estilo clientelístico e particularista na gestão da coisa pública.

No segundo caso — modernização voltada para a democratização e melhoria da qualidade de vida — estar-se-ia frente a um processo de transferência de poder do nível federal para estados e municípios, com uma orientação específica: a de imprimir-lhes mais autonomia não só gerencial mas com vistas a um processo de maior permeabilidade da gestão local às demandas dos diferentes sujeitos sociais e políticos. Apesar dessa maior permeabilidade política (na realidade, por causa dela mesma) esse modelo é tendencialmente mais racional e eficiente na gestão da coisa pública, no sentido de estar norteado pela efetiva constituição do direito universal e equitativo à saúde.

Em ambos os casos, as análises de experiências de gestão local (nível municipal) da saúde no período recente revelam o aumento da participação de atores políticos e sujeitos sociais. O que diferência entre si os dois modelos é, atualmente, a qualidade dessa participação na relação Estado/sociedade e sociedade/Estado.

UMA EXPERIÊNCIA

Nesse ponto cabem algumas observações sobre uma experiência específica de gestão local da saúde. Trata-se da experiência de gestão municipal em São Paulo no período 1989-1992. Justifica-se a atenção sobre esse caso específico porque ele se refere a um esforço explícito de investimento na área, com lastro em uma orientação política fortemente valorizadora da participação popular, conforme às concepções do partido então no poder, o PT. No que diz respeito ao investimento econômico no setor nesse período, os dados confirmam sua posição de relevo quanto aos gastos em infra-estrutura e salários, com ênfase nas áreas periféricas da cidade (isso num quadro de déficit de unidades públicas de atendimento e com 70% do total dos leitos hospitalares controlados pelo setor privado). Na área pública municipal o aumento de unidades hospitalares foi da ordem de 59%. Quanto aos leitos hospitalares ativados o aumento foi da ordem de 46%, e de 12% quanto às unidades básicas de saúde.16 16 Esses dados foram retirados de pesquisas que vêm sendo desenvolvidas pelo CEDEC, sob minha coordenação, e financiadas pela Interamerican Foundation e pela Ford Foundation. Participam da equipe os pesquisadores Paulo Eduardo M. Elias e Pedro Jacobi. Para maiores detalhes consultar Cohn, Amelia "Descentralização, Cidadania e Saúde". São Paulo em Perspectiva 6 (4) 1992 e Elias, Paulo M. "A municipalização da saúde em São Paulo: dimensões políticas e econômicas". São Paulo em Perspectiva 6 (4), 1992.

No tocante à política de incentivo à participação, o Executivo municipal implantou, atendendo ao preceito constitucional, o Conselho Municipal de Saúde no âmbito central; e em todos os demais âmbitos, fossem intermediários (Administrações Regionais de Saúde e Distritos Sanitários), ou periféricos (unidades hospitalares e unidades básicas de saúde), as Comissões de Gestão. Em ambos os casos essas instâncias tinham poder deliberativo, visando assegurar canais institucionais de participação dos setores organizados da população. No decorrer da gestão, os Conselhos de Gestão passaram de tripartites (usuários dos serviços, trabalhadores da saúde e administração) para bipartites, com 50% de representação dos usuários e 50% de representação dos trabalhadores de saúde e da administração.

Do ponto de vista dos movimentos de saúde, a avaliação da participação popular na administração municipal de saúde foi bastante positiva.17 17 Boletim Participação e Saúde, CEDEC, vários números. Não obstante, apontou-se a falta de clareza da proposta da administração no tocante ao papel efetivo dessas comissões de gestão. Por outro lado, do ponto de vista dos movimentos populares de saúde, participar da gestão traz pelo menos dois riscos: a cooptação e o clientelismo, que comprometem sua autonomia e, em conseqüência, sua força. Isso implica uma tensão entre a tendência à participação na gestão e a tendência à ação direta e espontânea, marcada pela reivindicação de atendimento de suas demandas mais imediatas junto ao Executivo. Outro problema diz respeito à baixa capacidade resolutiva da própria administração, dadas por um lado as restrições representadas pela própria dinâmica dos processos de descentralização no setor da saúde e, pelo outro, pela subordinação da própria Secretaria Municipal de Saúde à ação centralizadora do aparato administrativo municipal. E, "nesse ponto, surge uma grande distância entre a discussão das propostas das grandes linhas políticas para administrar a saúde e a expectativa de respostas concretas às necessidades de saúde que a população sente. Por exemplo, é difícil para a população em geral discutir a questão da municipalização nas suas grandes linhas, e não a partir de resultados concretos na qualidade do atendimento dos serviços de saúde"18 18 Boletim Participação e Saúde, CEDEC, nº 2, maio de 1991. .

Assim, a experiência da participação na gestão da saúde provoca uma reavaliação por parte dos próprios movimentos de saúde a partir do seu aprendizado mediante o contato mais próximo com a máquina administrativa: aprendizado dos limites que ela impõe, mas também o aprendizado de ser co-responsável pela gestão da coisa pública.

Nesse processo fica evidente a importância da vontade política do governo local no incentivo à própria participação dos setores organizados de sociedade, sem o que ela não ocorre. Mas fica também evidente que, se essa experiência mostrou a viabilidade da co-existência entre democracia direta e democracia representativa, mostrou ainda a dificuldade de os movimentos sociais "mergulharem" no Estado. Durante esse período de gestão, mesmo no seu final, quando havia 120 comissões de gestão instaladas e em funcionamento, a relação dos movimentos populares de saúde com o poder público continuava sendo uma relação de externalidade. Isso significa que os problemas continuam a ser do Estado, e portanto é sua a responsabilidade pelos desacertos e distorções do setor.

Em conseqüência, no equilíbrio altamente delicado entre autonomia e dependência dos setores organizados da sociedade com relação ao Estado, não há dúvida de que experiências como essa ampliam o leque de possibilidades de criação de novos espaços de construção de identidades de novos sujeitos sociais. Mas também não resta dúvida de que essa trajetória é tortuosa, "com idas e vindas na mobilização dos setores populares para um participação autônoma e efetiva na gestão"19 19 Boletim Participação e Saúde, CEDEC, nº 6, São Paulo, dezembro de 1992. , havendo longos passos a dar entre a concepção desses sujeitos como portadores de carências (necessidades) para a de sujeitos que se descobrem "destinados ao exercício das práticas, da reflexão, do debate e das incertezas sobre a condução dos assuntos públicos"20 20 Paoli, M.C. "Movimentos sociais, cidadania, espaço público: perspectivas brasileiras para os anos 90". Revista Crítica de Ciências Sociais, 32, 1991. , que os configuraria como cidadãos portadores de direitos.

Boaventura de Sousa Santos21 21 Santos, Boaventura de S. "Subjetividade, Cidadania e Emancipação", Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 32, junho de 1991. , ao discutir a cidadania da ótica da emancipação, aponta como a cidadania social e o respectivo Welfare State transformaram a solidariedade social numa prestação abstrata de serviços sociais burocratizados, conformados para responder à crescente atomização da vida social, mas de fato "alimentando-se dela e reproduzindo-a de modo ampliado". No caso brasileiro, sem que o sistema de proteção social jamais se configurasse sequer como uma caricatura de Welfare State, a construção de identidades de sujeitos portadores de direitos num processo de consolidação democrática implica exatamente o "alargamento da política para alem do marco liberal da distinção entre Estado e sociedade civil". Isso implica a necessidade de contemplar as diferenças na busca da equidade de um lado e, de outro, a diversificação de campos de exercício da cidadania, sem postergar a cidadania social.

Remete-se, assim, à necessidade de reorientar a análise da cidadania social (como direito universal e equitativo à saúde, no caso) do foco na relação Estado/sociedade, vista como uma relação de sentido único, para o foco na ampliação e diversificação dos espaços de participação e de práticas sociais; práticas essas que permitam escapar da dependência burocrática a padrões abstratos dos direitos sociais. Trata-se também de contemplar as novas formas de exclusão social (de gênero, de raça, de acesso à qualidade de vida) "que ora ocultam ou legitimam ora complementam e aprofundam a exclusão baseada na classe social"22 22 Santos, Boaventura de S., op.cit., p. 171. .

Com essa perspectiva abre-se a possibilidade de se compreender o esgotamento do movimento da Reforma Sanitária brasileira, que agora colhe os frutos do seu êxito. êxito este no interior dos próprios limites por ela definidos na relação Estado/sociedade, marcados pelo seu ideário autoritário e circunscrito (por paradoxal que possa ser) ao marco liberal, de se pensar a cidadania a partir de padrões abstratos e vincados pela contraposição Estado/sociedade. Por esse ângulo fica inacessível a concepção da cidadania como relação dos sujeitos sociais concretos, sujeitos sociais enquanto portadores de necessidades e de demandas concretas na construção de sua identidade de portadores de direitos que buscam universalizar.

Essa perspectiva permite, ainda, pensar uma nova articulação entre descentralização, racionalidade e democracia, que não se limite à mudança do comportamento das elites políticas brasileiras (até porque elas enfrentam os novos problemas "com os olhos do passado", como afirma Sallum) mas que remeta à construção de um novo projeto mais amplo, que contemple as diversidades que crivam a sociedade brasileira. E, como alerta Boaventura de Sousa Santos, se a diversidade desses sujeitos sociais coletivos impede que se fale de um padrão único de relações entre democracia representativa e democracia participativa, "o fato de essas relações, quaisquer que sejam, serem sempre caracterizadas pela tensão e pela convivência difícil entre duas formas de democracia não me parece em si mesmo negativo, uma vez que é dessa tensão que se tem libertado muitas vezes as energias emancipatórias necessárias à ampliação e redefinição do campo político"23 23 Santos, Boaventura de S., op.cit., p. 172. .

Mas se isso aumenta drasticamente a complexidade da articulação entre descentralização, saúde e cidadania, certamente aponta para insuspeitadas possibilidades de construção de um novo projeto para o setor (como parte de um projeto para a sociedade) que ocupe o vazio deixado pelo esgotamento do movimento da Reforma Sanitária no Brasil.

  • 1 Ver, entre outros, Tobar, F. "O Conceito de Descentralização: Usos e Abusos". Planejamento e Politicas Públicas, nÂş 5, junho de 91, IPEA - Brasília, pp 31-51.
  • 2 Sato, A.K., Descentralização: Um tema Complexo. Texto para discussão nÂş 314, IPEA, Brasília, out. de 1993.
  • 4 Sallum Jr., B. e Kugelmas, E., - "O Leviatã acorrentado: a crise brasileira dos anos 80". In Sola, L.(org.). Estado, Mercado e Democracia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993, pp. 280-99.
  • 5 Sallum Jr.. "Transição Política e Crise do Estado. Nesta edição de Lua Nova.
  • 6 Preteceille, E.. La Descentralization, pour qui, pour quoi? Paris, IRESCO, 1987, mimeo.
  • 8 Medici, A.C.. Gastos com Saúde nas Três Esferas de Governo: 1980-1990. São Paulo, IESP/FUNDAP, agosto de 1993, mimeo.
  • 12 O'Donnell, G.. "Sobre o Estado, a democratização e alguns problemas conceituais - uma visão latino-americana com um rápida olhada em alguns países pós-comunistas". Novos Estudos, nÂş 36, julho de 1993, pp.123-45.
  • 16 Esses dados foram retirados de pesquisas que vêm sendo desenvolvidas pelo CEDEC, sob minha coordenação, e financiadas pela Interamerican Foundation e pela Ford Foundation. Participam da equipe os pesquisadores Paulo Eduardo M. Elias e Pedro Jacobi. Para maiores detalhes consultar Cohn, Amelia "Descentralização, Cidadania e Saúde". São Paulo em Perspectiva 6 (4) 1992 e Elias,
  • Paulo M. "A municipalização da saúde em São Paulo: dimensões políticas e econômicas". São Paulo em Perspectiva 6 (4), 1992.
  • 20 Paoli, M.C. "Movimentos sociais, cidadania, espaço público: perspectivas brasileiras para os anos 90". Revista Crítica de Ciências Sociais, 32, 1991.
  • 21 Santos, Boaventura de S. "Subjetividade, Cidadania e Emancipação", Revista Crítica de Ciências Sociais, nÂş 32, junho de 1991.
  • 1
    Ver, entre outros, Tobar, F. "O Conceito de Descentralização: Usos e Abusos".
    Planejamento e Politicas Públicas, nº 5, junho de 91, IPEA - Brasília, pp 31-51.
  • 2
    Sato, A.K.,
    Descentralização: Um tema Complexo. Texto para discussão nº 314, IPEA, Brasília, out. de 1993.
  • 3
    Sato, A.K.,
    op.cit, p. 10.
  • 4
    Sallum Jr., B. e Kugelmas, E., - "O Leviatã acorrentado: a crise brasileira dos anos 80".
    In Sola, L.(org.).
    Estado, Mercado e Democracia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993, pp. 280-99.
  • 5
    Sallum Jr.. "Transição Política e Crise do Estado. Nesta edição de
    Lua Nova.
  • 6
    Preteceille, E..
    La Descentralization, pour qui, pour quoi? Paris, IRESCO, 1987, mimeo.
  • 7
    Sato, A.,
    op.cit, p.9.
  • 8
    Medici, A.C..
    Gastos com Saúde nas Três Esferas de Governo: 1980-1990. São Paulo, IESP/FUNDAP, agosto de 1993, mimeo.
  • 9
    Esses dados incluem a receita tributária própria e da previdência social.
  • 10
    Esses dados incluem a receita tributária própria e as transferências para estados e municípios, segundo reza a Constituição.
  • 11
    Medici, A.C.,
    op.cit., p. 18.
  • 12
    O'Donnell, G.. "Sobre o Estado, a democratização e alguns problemas conceituais - uma visão latino-americana com um rápida olhada em alguns países pós-comunistas".
    Novos Estudos, nº 36, julho de 1993, pp.123-45.
  • 13
    O'Donnell, G.,
    op.cit., p. 140.
  • 14
    O'Donnell, G.,
    op.cit., p. 140.
  • 15
    O'Donnell, G.,
    op.cit., p. 138.
  • 16
    Esses dados foram retirados de pesquisas que vêm sendo desenvolvidas pelo CEDEC, sob minha coordenação, e financiadas pela Interamerican Foundation e pela Ford Foundation. Participam da equipe os pesquisadores Paulo Eduardo M. Elias e Pedro Jacobi. Para maiores detalhes consultar Cohn, Amelia "Descentralização, Cidadania e Saúde".
    São Paulo em Perspectiva 6 (4) 1992 e Elias, Paulo M. "A municipalização da saúde em São Paulo: dimensões políticas e econômicas".
    São Paulo em Perspectiva 6 (4), 1992.
  • 17
    Boletim
    Participação e Saúde, CEDEC, vários números.
  • 18
    Boletim
    Participação e Saúde, CEDEC, nº 2, maio de 1991.
  • 19
    Boletim
    Participação e Saúde, CEDEC, nº 6, São Paulo, dezembro de 1992.
  • 20
    Paoli, M.C. "Movimentos sociais, cidadania, espaço público: perspectivas brasileiras para os anos 90".
    Revista Crítica de Ciências Sociais, 32, 1991.
  • 21
    Santos, Boaventura de S. "Subjetividade, Cidadania e Emancipação",
    Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 32, junho de 1991.
  • 22
    Santos, Boaventura de S.,
    op.cit., p. 171.
  • 23
    Santos, Boaventura de S.,
    op.cit., p. 172.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 1994
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