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Festa na política

Festa na política

Maria Lúcia MontesI; Marlyse MeyerII

IProfessora do Departamento de Ciências Sociais da USP

IIProfessora do Departamento de Letras da USP

Nem só de pão vive o homem e nem só de agruras, a política. Na rotina de um cotidiano em que a notícia é desemprego, violência, FMI, Maluf, de repente algo se rompe, quando a cidade explode em um evento que, esquadrinhado no comentário de todos os seus aspectos, ainda assim, pela intensidade inesquecível com que foi vivido por todos, resiste, a exigir reflexão: São Paulo, 16 de abril de 1984. Da passeata-monstro que então se realizou na cidade se disse, depois, para mostrar sua importância, beleza e significação, que "foi um espetáculo". E, para espanto de todos, um espetáculo que reunia o povo para reclamar... a democracia!

O que teria acontecido para que esta palavra, praticamente em desuso, saísse de empoeirados livros e do jargão dos políticos para ganhar a rua como reivindicação popular? É sabido que as situações de crise têm o estranho poder de despertar na sociedade uma nova criatividade, não como luxo cultural de alguns, mas como necessidade, de todos e de cada um, para se sair deles. Talvez tenha sido preciso então chegar a este fundo de poço da crise econômica, social e política do país, para que se pudesse assistir, nestes últimos meses, a um ressurgimento de tal vitalidade da sociedade brasileira.

Contudo, o extraordinário é que esta crise apontasse, como perspectiva de saída, diretamente para o terreno da política, trazendo para a cena, pela primeira vez com tal importância na nossa história, um novo ator, com o qual a partir de agora é preciso contar: um povo que reivindica sua cidadania. Mais extraordinário ainda é que essa reivindicação ganhasse corpo e substância visível, nas manifestações populares em todo o país, durante a campanha das diretas, sob a forma de espetáculo e festa, de que a passeata do 16 de abril, por suas dimensões, é apenas uma ilustração exemplar.

De fato, nesse dia — após ter recusado os itinerários previstos, rompido uma frágil organização incapaz de contê-lo, improvisando pontos de encontro, criando suas próprias palavras de ordem, seu próprio cenário, sua própria encenação, chegando de todos os lados, por ruas, escadas e viadutos, para ocupar um espaço em que cada um se sentia artista principal e não mero figurante — o povo acabou por criar uma formidável festa cívica, que encantaria Jean-Jacques Rousseau, esse precursor da Revolução Francesa que, no século XVIII, foi o primeiro a imaginá-la.

Apesar de o termo nos lembrar a chatice dos currículos de "moral e cívica", hasteamento de bandeira, parada militar de 7 de setembro, é preciso lembrar que tudo isso, em nosso tempo de escola, tinha uma função que, embora perdida, nem por isso é menos essencial. Tratava-se de despertar em nós o sentimento de pertencer a um grupo, reafirmar os valores que nos identificam como parte dele: no caso, ensinar-nos que somos brasileiros, membros de uma comunidade nacional. E se nos convenceram mal, não terá sido porque isto pouco nos importa, mas antes porque fizeram mal as festas em que deveríamos aprender o que tal coisa significa.

Redescobrindo o Brasil

Por isso, é quase inevitável, pensando na passeata de São Paulo, evocar a festa cívica, como momento de alta emoção em que, literalmente, redescobrimos o Brasil. Não o Brasil da patriotice grandiloqüente e vazia do "ama com fé e orgulho a terra em que nasceste", mas o Brasil de seu povo, o país cujo poder construímos e de que outros se apropriam, a nação que somos nós e à qual temos direito. Este o verdadeiro sentido da festa cívica com a qual sonhava Rousseau: criação e redescoberta da cidadania, momento de elaboração de uma consciência de pertencermos a uma nação e sua história, reinvenção de nossa identidade como parte de seu povo. Contudo, nada disso aprenderíamos se não nos fosse ensinado pela festa, experiência direta, que passa pelos poros e entra por todos os sentidos, de nossa comunhão, enquanto público-ator, no espetáculo em que se fundem festa e política, cuja força pedagógica é preciso entender.

Antes de mais nada, ele constitui um momento de descoberta e reinvenção da nossa identidade cultural popular. Bastaria, para comprová-lo, inventariar seus símbolos, a começar pelo da cor, esse amarelo como insígnia de resistência democrática originalmente importado das Filipinas, e que é também o amarelo de Oxum, que rege o ano, a prometer abundância e fertilidade. Promessa cumprida nessa explosão de criatividade que ressuscita, transfigurando-os de modo quase alucinatório, o teatro do bumba-meu-boi, os cortejos de reis do Congo ancestrais dos desfiles de carnaval, os caracóis das danças, as procissões, o clamor de ovação do estádio, e os rojões e fogos de artifício de São João e de todas as festas populares. São heranças tradicionais da cultura do povo em todo o país, que, em sua criação, a festa política soube reapropriar.

Nesta cidade de São Paulo, em que os repentistas recriam o Nordeste a cada feira, em cada boteco do Brás, durante a passeata inventam-se refrões, improvisam-se desafios para reclamar diretas-já. Como no jongo, ou qualquer samba-de-lenço, de umbigada, graças à música, o verso que alguém inventa é imediatamente aprendido por todos e, no coro que o repete, a criação individual, apropriada pela multidão, se transforma em criação de todos, patrimônio comum. O mesmo sistema de comunicação popular — que, nas favelas, faz correr a notícia da chegada da polícia ou, por toda uma cidade, torna conhecido em menos de meia hora o resultado do jogo do bicho — inspira a retransmissão telefônica graças à qual se consegue unir, apesar da censura, o Congresso à Praça da Sé, na noite de votação.

No fraterno acotovelar-se da multidão espremida no Anhangabaú se redescobre a velha sabedoria de ocupação do espaço de um povo que abriga em minúsculos quintais um altar e toda uma pequena multidão para uma dança de devoção e, no final da festa, com alegria hospitaleira, dá pousada a quantos ficarem. Do mesmo modo nos enganamos, ao procurar por multidões ao longo do trajeto da passeata: o povo chegaria em pequenos grupos, partindo de um mesmo núcleo comum, organização de bairro, sindicato, local de trabalho, tal como, nas quadras de escola de samba, apenas as alas são ensaiadas, para só serem vistas depois, em conjunto, no desfile da avenida.

Quando o corpo também fala

É ainda a capacidade popular de invenção do belo e do novo a partir do efêmero — e para um efêmero que é também eternidade: guirlanda de pipoca para a festa de Omulu, lantejoulas arranjadas com infinita paciência para compor o "adé" que enfeita a cabeça do santo — que se reencontra nos cartazes, faixas, caricaturas, bonecos, fantasias que tornam o próprio corpo cartaz e propaganda, corpos desses jovens que, em Brasília, impedidos de falar, transformaram-se a si mesmos em palavras, esculpindo na esplanada do Congresso o proibido "diretas-já!"

A festa garante a identidade do indivíduo

Entenda-se que, por tudo isso, não queremos significar a "carnavalização" da política, degradação do que é "sério" em "oba-oba" e retorno do "festivo", mas antes uma real redescoberta e reinvenção da festa popular. Na verdade, ao assistirmos ao espetáculo da passeata paulista, encontramos a resposta para uma questão que, por anos, nos havia inquietado: para onde vai toda essa capacidade que o povo exibe em sua cultura?

Qualquer que seja ela, nas festas populares sempre se pode discernir um movimento pelo qual aqueles que não têm voz ou vez na sociedade, indivíduos isolados e sem valor, readquirem — ao participarem de uma celebração que os identifica como membros de um grupo mais restrito, compartilhando com eles os mesmos valores e crenças — uma nova dignidade que os transforma em "pessoas", gente com identidade própria, conhecida de todos e tendo por todos reconhecidos seu papel e sua importância.

Alternativamente, a festa pode constituir um momento em que, fora das regras comuns de todo dia, que limitam nossos atos pelo temor da censura de nossos conhecidos, sentimo-nos livres, na lei comum da folia, que a todos impersonaliza, confundidos num mesmo todo de indivíduos sem compromissos, cada um por si, não devendo satisfação a ninguém.

E nessa medida que, num e noutro caso, a festa pode funcionar como um "ritual de inversão" das relações sociais, nesse momento de ruptura com o dia-a-dia e suas leis. Assim, "suspensa" fora do tempo e do espaço, ela é um momento de liberdade, espontaneidade, criatividade, tendo por limite apenas a regra comum de todos conhecida, que surge do sentimento de serem parte de uma mesma comunidade, para a qual todos são igualmente importantes, e em função da qual cada uma pauta suas ações. Por isso a festa pode criar em nós essa exaltação que faz com que, independente do motivo da celebração, ela tenha sempre uma dimensão religiosa, ao mesmo tempo mística e erótica, reencontro da unidade perdida, comunhão, eucaristia: alegria, ação de graças, união com a totalidade.

No entanto, exatamente por consistir nesse ritual, toda festa supõe, ao mesmo tempo, o retorno à regra, sem a qual a ruptura que ela representa se tornaria impossível. No caso da festa popular, o retorno à ordem social dentro da qual mesmo o Mateus de um Boi-de-Reis mais irreverente em sua crítica voltará a ser, no dia seguinte, apenas um trabalhador cabisbaixo, que aceita como inevitável sua condição.

Na verdade, quem diz cultura do povo diz cultura de classes subalternas, que, por isso mesmo, parece condenada a fechar-se sobre si mesma, impossibilitada de desdobrar, para além do momento ritual em que se rompe a rotina, na festa, a extraordinária criatividade de que a própria festa é expressão. Assim, é o fenômeno político da dominação o que explica que, entre a festa e o dia-a-dia do povo, se produza essa ruptura inevitável, que cria em nós uma dolorosa sensação de desperdício diante das manifestações de sua cultura.

A igualdade é recuperada

No entanto, ao ser transposta para o espaço da política, o que a festa põe em questão é precisamente esse dia-a-dia de subordinação que escapa ao alcance da festa popular. É certo que, através dela, o indivíduo anônimo pode ser transformado em pessoa, diante da comunidade de seus pares. Mas é só como indivíduo, através da impessoalidade da lei, que sua igualdade será reconhecida por toda a sociedade e pelo Estado. Assim, ao reinventar-se como espetáculo cívico, a festa reconcilia em cada um de seus participantes ao mesmo tempo o indivíduo e a pessoa, torna real e palpável uma igualdade abstrata de que sequer tinham consciência, criando em cada um a figura do cidadão que, ao reivindicar seus direitos, se redescobre como membro da comunidade da nação.

É certo que não basta a mera reivindicação da cidadania política, que não são suficientes eleições para se resolver a crise atual da sociedade brasileira. Mas já é um primeiro passo. E essa descoberta, como experiência coletiva, só foi possível através da recriação da festa, graças ao substrato da cultura popular — através dela reinventado. Esta é uma primeira lição, se quisermos pensar o lugar da festa na política.

A segunda é que essa aprendizagem de redescoberta não seria possível sem a forma da festa, sem a emoção que solda (e somente através da qual se solda) em um mesmo todo os valores em nome dos quais se reúnem os seus participantes, soldando-os, ao mesmo tempo, em uma só comunidade. Isto importa, porque não apenas as idéias que levam os homens a agir, mas sua crença nelas, sua e sua vontade, que se mobilizam não pela abstração dos conceitos mas pela força moral que deles emana, como ideais pelos quais os homens se dispõem a viver e a morrer.

A importância da memória no aprendizado político

Mais ainda, toda festa, como celebração, é também comemoração, ato de lembrar em conjunto, não apenas aquilo que se celebra, mas a própria emoção da celebração, passada a festa: por isso ela poderá ser depois também rememorada, para que, refletindo sobre o sucedido nesse momento exemplar, se venha a compreender mais um elemento desse aprendizado que, aos poucos, o povo vai fazendo da política e da importância de sua própria participação. No caso, o fato de ter podido, através de sua participação no espetáculo da passeata, experimentar o que seria um cotidiano em que a festa, não mais encerrada em si mesma, prolongasse seu espírito, para reinventar uma forma de cultura, já não só de um povo dominado mas de toda uma nação e, juntamente com ela, também uma nova sociedade. Esta é uma terceira lição.

Da festa popular para a festa cívica

A quarta seria lembrar aos estudiosos da política a importância de se considerar o processo pelo qual a festa popular se transfigura em festa cívica, o modo como o novo vai-se criando a partir do velho, para que, ao pensar a questão da organização política das classes subalternas, se pensasse também no papel que aí desempenha a cultura, como condição que é para se construir, nessa transformação, uma nova hegemonia, que é também recriação de uma cultura nacional-popular.

Enfim, a última lição é a de esperança que nos trouxe essa extraordinária festa cívica, a nos lembrar — nesses tempos difíceis de "negociação" na ordem do dia e iminência de crise maior no horizonte — por onde passa a vontade popular, por ela tão claramente manifestada. Para que não se perca o que foi até agora tão duramente conquistado e que, não só nos momentos mágicos de exaltação, mas também no dia-a-dia, a festa continue a fazer parte da política, para alegria de todos nós.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1984
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