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A difícil legitimidade: as constituintes em nossa história

PENSANDO O BRASIL

A difícil legitimidade — as constituintes em nossa história

Marília Garcia

Socióloga e secretária de LUA NOVA

"Aos amigos tudo, aos inimigos a lei"

Benedito Valadares

O desejo de uma nova Constituição, que existe hoje no Brasil, não caiu do céu. Ele foi se formando dentro do sufoco dos anos de arbítrio, a partir do revigoramento dos movimentos populares, a partir das greves do ABC e da renovação do movimento sindical, durante a luta pela anistia, durante a formação dos novos partidos políticos e a partir da imensa necessidade de informação e participação que as massas vêm demonstrando claramente nos últimos anos.

Nas democracias modernas, quase sempre as constituições foram elaboradas por uma Assembléia Constituinte. Assim: um dos poderes do Estado, o Legislativo ou o Executivo, convoca eleições (diretas) para que o povo escolha seus representantes em um novo Congresso (Senado e Câmara dos Deputados), ou outro tipo de Assembléia.

Em outras experiências históricas, como as de alguns países do bloco socialista, as Constituintes foram convocadas pelo próprio poder revolucionário, quando ocorreu uma revolução. O importante, no entanto, é saber qual é a base de legitimidade da própria convocação das Constituintes.

Quando a Constituinte é convocada por eleições, as diversas forças da sociedade civil apresentam seus candidatos, os eleitores votam e os representantes eleitos vão compor a Assembléia para, em nome dó povo que os elegeu, debater as diferentes propostas e redigir a nova Constituição.

O grande ponto polêmico no debate a respeito da luta por uma Constituinte hoje, no Brasil, é exatamente a questão de legitimidade. Nem todos concordam que uma Constituinte, convocada agora, seria capaz de conquistar uma Constituição legítima.

O argumento principal refere-se sobretudo aos limites à liberdade de organização e expressão impostos a setores significativos da política nacional. Não só os partidos de esquerda têm a sua existência legal negada e são perseguidos. Os trabalhadores, uma das principais forças que devem estar presentes na formulação de qualquer pacto estável, ainda não podem se organizar de forma totalmente livre, força da legislação arbitrária e antidemocrática. Podem constituir-se em atores políticos capazes de expressar com clareza seus anseios apenas em parte. Mesmo se considerarmos as suas lutas pela conquista e formação de centrais sindicais.

Constituição

"Lei fundamental e suprema dum Estado, que contém normas respeitantes à formação dos poderes públicos, forma de governo, distribuição de competências, direitos e deveres dos cidadãos. Carta Constitucional." (Novo Dicionário Aurélio)

A Constituição indica como, supostamente, o país vai funcionar, como é que vão ser feitas e cumpridas as outras leis. Ela fixa os direitos dos cidadãos e os limites até onde o Estado pode interferir nas liberdades individuais dos cidadãos. Indica, também, quais são as responsabilidades de cada um, governo e cidadãos, para que seja assegurado o funcionamento do Estado.

Isso quer dizer que, ao mesmo tempo que ela serve para estabelecer regras de conduta para os cidadãos, que devem obedecer e das quais devem, sobretudo, se valer, ela também estabelece regras que o Estado deve cumprir, assegurando ao conjunto dos cidadãos formas de controle sobre a ação do Estado.

Assim, um governo que funciona de acordo com uma Constituição não pode fazer o que bem entender. Tem de governar de acordo com a vontade do povo, já que a Constituição representa essa vontade. Se pensarmos apenas na experiência brasileira com governos e constituições, fica meio difícil de acreditar. Mas é assim mesmo.

Na verdade, a idéia de Constituição é irmã gêmea da idéia de democracia. Nas sociedades democráticas, uma Constituição é (ou, pelo menos, deve ser) fruto de um amplo debate entre as forças vivas da nação, da sociedade civil, que é composta por cada um de nós e pelos grupos aos quais pertencemos: sindicatos, associações profissionais, escolas, igrejas, partidos políticos, clubes e outros agrupamentos. O produto desse debate deverá ser um acordo consentido por todos sobre como deve funcionar a sociedade.

Aí está, em parte, a explicação que responde por que nunca tivemos uma constituição duradoura no Brasil. Nunca se consolidou uma convivência democrática entre os diversos setores sociais. Antes, nosso sistema político tem oscilado entre situações de relativa democracia e outras de autoritarismo, nenhum deles capaz de absorver os conflitos sociais e, por isso mesmo, sucumbido quando os conflitos ficam mais agudos.

As primeiras constituições da República

A primeira Constituição da República foi elaborada por uma Constituinte não eleita, convocada pelo governo provisório, e foi promulgada em 1891. Ela estabeleceu as leis, não muito democráticas, que orientaram a chamada República Velha.

Depois da revolução de 1930, que acabou com a República Velha e passou por cima de sua constituição, nasceu em São Paulo o "Movimento Constitucionalista". Era liderado pelas elites paulistas, que queriam a volta de seus antigos privilégios que eram assegurados pela constituição. Em 1932, desencadearam a Revolução Constitucionalista, que foi derrotada. Mesmo assim, Getúlio, então no poder, cedeu e convocou uma Assembléia Constituinte composta, na sua maior parte, por representantes eleitos por voto direto mas contendo também representantes indicados por entidades de classe, corporativamente. Essa Constituinte fez a Constituição de 1934. Essa não durou quase nada...

Em 1937, Getúlio Vargas deu um golpe de Estado. Para ter uma "fachada" legal, Vargas encarregou o jurista Francisco Campos de fazer uma "Constituição" que garantisse os seus poderes de ditador. Ela foi baseada na Constituição da Polônia, de inspirações fascistas, e ficou conhecida popularmente como "A Polaca".

Tentativa democrática: a Constituinte de 1946

Acabada a Segunda Guerra Mundial, os ideais democráticos foram aclamados no mundo todo, que, através da luta dos aliados, derrotava o fascismo. No Brasil, o namoro de Getúlio com essa ideologia totalitária não ficou impune. Tendo de deixar o poder, por força da própria Constituição de 1937, em janeiro de 1945 Vargas convocou eleições gerais para dezembro do mesmo ano. Essas eleições deveriam escolher o presidente da República e uma Assembléia Constituinte. Mas, nem essa atitude oportunista conseguiu manter o ditador no poder até o fim.

Com Vargas deposto, as eleições se realizaram em 2 de dezembro e escolheram um Congresso (com poderes constituintes) com a seguinte composição: o Partido Social Democrático — PSD (ligado ao "getulismo" e representante dos grandes proprietários rurais e de seus votos "de cabresto") ficou com 42% das cadeiras; a União Democrática Nacional — UDN (representante das elites liberais) ficou com 26% das cadeiras; o Partido Trabalhista Brasileiro — PTB (ligado ao sistema sindical corporativista criado por Getúlio) obteve 10% das cadeiras; e o Partido Comunista Brasileiro (recém-legalizado) ficou com 9%.

Como se vê, Vargas estava fora do poder, mas a "máquina política" que ele montou funcionava a todo vapor e conseguiu, praticamente, dominar a assembléia que elaborou a Constituição de 1946.

Não é simples questionar a legitimidade da Constituinte de 46, uma vez que ela foi escolhida por eleição direta. Mas sempre é bom lembrar que essa eleição não foi precedida de um longo e livre debate, nem houve tempo para que a sociedade civil, que havia sido excluída pela ditadura, e as novas forças surgidas nesse período se organizassem. Por isso, a Constituição de 46 não chegou exatamente a representar todos os anseios dos brasileiros, menos ainda os mais populares.

Mas, depois dos anos difíceis da ditadura de Vargas, é preciso admitir que ela significou um certo avanço democrático, na medida em que garantia os direitos dos cidadãos com o direito de greve e a realização de eleições livres, ainda que proibindo o voto dos analfabetos e militares. Com relação à distribuição de poderes, a Constituição de 46 ainda era relativamente centralizadora, já que limitava a autonomia dos Estados e dos municípios. Essa carta vigorou até 1967.

A Constituição do governo militar

Logo depois do golpe militar, em abril de 1964, o autodenominado Supremo Comando da Revolução (formado pelo general Costa e Silva, pelo tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia e pelo almirante Rademaker Grunewald) decretou o Ato Institucional nº 1. Esse ato nada mais era que uma emenda, modificando a Constituição e permitindo ao poder Executivo cassar mandatos e direitos políticos. Ficavam suspensas as garantias individuais.

Seguiram-se outros atos. O Ato nº 2, decretado no governo Castelo Branco, extinguiu os partidos políticos, estabeleceu eleições indiretas para presidente da República e transferiu para os Tribunais Militares o julgamento de civis acusados de subversão. O Ato n.º 3 estabeleceu eleições indiretas para governador.

Em 1966, o general Castelo Branco pediu ao seu ministro da Justiça, Carlos Medeiros Silva, que redigisse uma nova Constituição. A nova Carta simplesmente confirmou todas as disposições dos atos institucionais anteriores, de caráter ditatorial, e reforçou fortemente a centralização do poder nas mãos do governo da União (este, nas mãos dos militares), reduzindo a quase zero a autonomia de Estados e municípios.

Para que essa centralização se efetivasse, a nova Carta ampliou os poderes do Conselho de Segurança Nacional, que passou prepotentemente a ser responsável por todas as decisões políticas, econômicas e sociais na direção do país.

Com algumas emendas, é essa Constituição, feita sem debate, sem consulta, imposta ao povo, que vigora até os dias de hoje.

A luta por uma Constituinte hoje

O Brasil nunca teve uma Constituição legítima, nascida do debate popular, do consenso nacional. Talvez por isso tenham durado tão pouco. Essa conclusão amplia o significado da luta por uma Constituinte nos dias de hoje. Lutar por uma ordem democrática legítima significa efetivamente colocar em pauta a luta por uma nova Constituição.

Para que esse sonho se realize é preciso garantir o debate livre e a participação de todos na discussão. De todos mesmo! O que só se dará com ampla liberdade de organização e expressão, de forma legal, de todos quantos estão amordaçados pela arbitrariedade desse regime espúrio. É preciso garantir a realização de eleições livres, sem casuísmos de última hora, para a escolha da Assembléia Constituinte. É preciso garantir que a Assembléia Constituinte seja realmente representativa e soberana. Que ela tenha condições de elaborar, pela primeira vez no Brasil, uma Constituição em nome do povo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1984
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