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CIBERESPAÇO E DESCENTRAMENTO: A CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA COMO QUESTÃO DE ESPAÇO E TEMPO

CYBERSPACE AND DECENTERING: SUBJECTIVITY AS A MATTER OF SPACE AND TIME

Resumo

O presente artigo analisa, sob a abordagem pós-estruturalista e no quadro de uma sociologia do inconsciente, a constituição da subjetividade política mediada pelas tecnologias digitais. Trata-se de uma investigação eminentemente teórica, sem intuito de revisão bibliográfica sobre mídias, que recupera pressupostos fundantes das ciências sociais e da psicanálise para questionar a noção corrente, segundo a qual as mídias digitais, por si mesmas, produziriam novas subjetividades. Para tanto, a pesquisa desvia levemente o olhar dos aplicativos, plataformas e algoritmos, para privilegiar seus contornos, as relações sociais que são o objeto primordial da análise sociológica. Expressões de contextos históricos, econômicos, sociais e culturais mais abrangentes, porém dotadas de alguma margem de liberdade, as relações sociais, em última instância, seriam capazes de determinar as referências tempo-espaciais dos indivíduos e possibilitar o descentramento, condição da constituição subjetiva. É por meio de seus usos, e das relações que as constituem, que as mídias digitais condensam as características de seu tempo (primazia da categoria espaço, instantaneidade, simultaneidade, imanência, fragmentação, ausência de profundidade), assim como guardam a potencialidade de transcendê-lo.

Palavras-chave:
Sociologia do Inconsciente; Descentramento; Fragmentação; Subjetividade; Mídias Digitais

Abstract

Based on a post-structuralist approach and under the framework of a sociology of the unconscious, this paper analyzes the constitution of political subjectivity mediated by digital technologies. This largely theoretical study, with no bibliographic review on media, resumes key assumptions of social sciences and psychoanalysis to question the current notion that digital media, by itself, would produce new subjectivities. Hence, the research slightly diverts its gaze from the applications, platforms and algorithms, to privilege their environs-the social relations that are the primary object of sociological analysis. Expression of more comprehensive historical, economic, social and cultural contexts, but gifted with some margin of freedom, social relations would ultimately be able to determine the time-spatial references of individuals and enable the decentering, condition of the subjective constitution. It is through their uses, and by the relations that constitute them, that digital media condense the characteristics of their time (primacy of the space, instantaneity, simultaneity, immanence, fragmentation, lack of depth), as well as hold the potentiality to transcend it.

Keywords:
Sociology of the Unconscious; Decentering; Fragmentation; Subjectivity; Digital Media

Introdução

Embora o conceito de “ciberespaço”, como esfera fantasiosa e apartada da realidade empírica, tenha sido rejeitado pelas correntes majoritárias do campo da sociologia digital, proponho outro conceito para o mesmo termo que designe o contexto mais amplo em que os indivíduos contemporâneos se inserem (Marzochi, 2016MARZOCHI, Samira Feldman. 2016. Subjetividade, política e ciberespaço: uma recategorização da relação espaço-tempo para a definição típica-ideal do sujeito político contemporâneo. Paper apresentado no 40º Encontro Anual da Anpocs, Caxambu , 24 a 28 de outubro.; 2017aMARZOCHI, Samira Feldman. 2017a. Espaço, tempo e subjetividade na era digital: dilemas da política contemporânea. Paper apresentado no 18º Congresso Brasileiro de Sociologia da SBS. Brasília, DF, 26 a 29 de julho.; 2017bMARZOCHI, Samira Feldman. 2017b. Espaço, tempo, subjetividade e mídias digitais: notas para a composição típica-ideal do sujeito político contemporâneo. Paper apresentado no XXXI Congreso ALAS, Montevideo, 3 a 8 de dezembro.; 2019MARZOCHI, Samira Feldman. 2019. Mídias digitais, descentramento e constituição subjetiva. Paper apresentado no 19º Congresso Brasileiro de Sociologia da SBS, Florianópolis, 9 a 12 de julho.). Sobretudo com a passagem do fordismo à “acumulação flexível” (Harvey, 1992HARVEY, David. 1992. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola.), que acentua os traços subjetivos da modernidade industrial já apontados pelos observadores da vida urbana, como Baudelaire, Simmel, Benjamin - e mesmo antes, com o advento da cibernética e da reestruturação econômica e política internacionais, no pós-Segunda Guerra -, os indivíduos experimentam novas relações entre espaço e tempo. Ao considerar o ciberespaço um contexto sociológico relativamente original, referido a combinações espaço-temporais particulares, o centro da análise se desloca dos meios tecnológicos para as relações sociais que os configuram, num esforço de articular o que há de histórico e universal.

O olhar sociológico não recairia, portanto, sobre o acesso às mídias ou sobre o tipo de aparato técnico que se utiliza ou se porta, mas envolveria o quadro social em consonância com as tecnologias de sua época. Acessados ou não, os meios de comunicação hegemônicos não estão fora dos indivíduos, mas incorporados e naturalizados, integrando o que a teoria social pós-estruturalista entende como o “imaginário” (Lacan, 2005LACAN, Jacques. 2005. O simbólico, o imaginário e o real. In: LACAN, Jacques. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Zahar.) não problematizado na vida cotidiana ou o que a fenomenologia de Schütz (2012SCHÜTZ, Alfred. 2012. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes .) reconheceria sob o conceito de “mundo da vida”. Conforme Lacan, “um dos modos mais acessíveis pelos quais, ao menos na fenomenologia da intenção, o imaginário é abordado, é tudo o que é reprodução artificial” (Lacan, 2005LACAN, Jacques. 2005. O simbólico, o imaginário e o real. In: LACAN, Jacques. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Zahar., p. 53).

O ciberespaço seria o entrecruzamento de técnicas, imagens, sistemas, redes e linguagem, no qual estaríamos todos mergulhados. Porém, diferente dos mapas ilustrados do mercantilismo ao período colonial, povoados de figuras narrativas (caravelas, animais, nativos, personagens bélicos, anjos, monstros marinhos e outros seres) - um espaço simbolizado, exteriorizado e palpável -, o ciberespaço nos atravessa e se torna o ambiente “real”. Somos de tal modo afetados pela categoria “espaço” que não distinguimos o interior do exterior, o imaginário do simbólico. Exemplos são os aplicativos ou programas digitais de geolocalização que, ao contrário de representar o espaço, subsumem o usuário à sua realidade. São eles que comandam, calculam, imperam. Não são exatamente cartografias, mas percursos: um sobreterritório atualizado a partir da posição geográfica em que se encontra o indivíduo. De acordo com Certeau (2004CERTEAU, Michel de. 2004. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes., pp. 201-202), enquanto o mapa é um “lugar” estabilizado de posições, distribuição de elementos em um quadro delimitado, o percurso se remete ao “espaço”:

Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência […]. Um lugar é, portanto, uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade. Existe espaço sempre que se levam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É, de certo modo, animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram […]. Em suma, o espaço é um lugar praticado (Certeau, 2004CERTEAU, Michel de. 2004. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes., pp. 201-202).

Embora existam tantos espaços quanto experiências sociais distintas e toda perspectiva configure um espaço, é ele quem interpela o indivíduo como sujeito de seu percurso: “siga”, “vire à direita”, “você chegou ao seu destino”. O espaço perde a objetividade e a independência do observador para interiorizar-se. Ele compreende diferentes regiões resultantes dos encontros entre variados programas de ação. Atualizado periodicamente, esse território, em contraste com a antiga carta, não possui materialidade ou guarda as marcas do tempo. O ciberespaço é capaz de compreender as práticas e a mudança sem a história, ao modo de uma terceira dimensão entre a diacronia e a sincronia, o tempo irreversível e o reversível, o linear e o cíclico (Marzochi, 2016MARZOCHI, Samira Feldman. 2016. Subjetividade, política e ciberespaço: uma recategorização da relação espaço-tempo para a definição típica-ideal do sujeito político contemporâneo. Paper apresentado no 40º Encontro Anual da Anpocs, Caxambu , 24 a 28 de outubro.). Pode ser considerado uma estrutura sem passado, presente ou futuro que tende a aderir ao “tempo real” do território. Teríamos um aqui-agora contínuo, eterno presente sem lugar, combinando as propriedades da langue e da parole, como a narrativa mítica de Lévi-Strauss (1996LÉVI-STRAUSS, Claude. 1996. A Eficácia Simbólica. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro .).

A localização se converte em “posicionamento global” de acordo com os programas de informática. Os softwares de localização por satélite vêm apenas confirmar o que os pesquisadores da pós-modernidade perceberam há algumas décadas, “que agora habitamos a sincronia e não a diacronia […]. Nossa vida cotidiana, nossas experiências psíquicas, nossas linguagens culturais são, hoje, dominadas pela categoria espaço e não pela de tempo, como o eram no período anterior do alto modernismo” (Jameson, 2002JAMESON, Frederic. 2002. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática ., p. 43). Esse espaço que tende a aderir ao tempo real do território é também, paradoxalmente, “fora do chão” e de “onipresença” (Chesneaux, 1995CHESNEAUX, Jean. 1995. Modernidade-mundo. Petrópolis: Vozes ., p. 20), mas não no sentido de uma esfera descolada da realidade, e sim de um “não lugar” digitalmente materializado: “se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico, definirá um não-lugar” (Augé, 2008AUGÉ, Marc. 2008. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus Editora., p. 73). Embora não se caracterize como lugar histórico, o ciberespaço compreende posições, relações e identidades que persistem sob rearranjos e atualizações constantes. O que o define, precisamente, é a ausência de simbolização.

Longe de reproduzir o lugar antropológico em escala ampliada, a modernidade dissocia tempo e lugar fomentando relações entre ausentes e tornando o lugar cada vez mais fantasmagórico, uma vez que é atravessado e moldado por influências sociais distantes (Giddens, 1991GIDDENS, Anthony. 1991. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp.). Em vez de uma hierarquia temporal entre as regiões do globo, como se a diversidade de culturas correspondesse a diferentes tempos históricos, tem-se a coexistência entre variadas cosmologias. A noção iluminista de sentido da história apreendido pela razão é substituída pela metáfora online que indica uma temporalidade na linha do tempo e nos põe, exatamente, no interior de seu fluxo. Sabemos que nessa linha o tempo avança, mas entre as suas margens não percebemos o movimento, apenas as exigências de um presente absoluto: adaptação, flexibilidade e sociabilidade.

A categoria espaço adquire, então, primazia na constituição da subjetividade. Os indivíduos vivem um presente contínuo que impede a imaginação de rupturas e do próprio futuro, e experimentam um fazer político que prescinde da noção de projeto, totalidade e universalidade. Enquanto, no passado, a política se desenrolava no horizonte de um futuro imaginado, sob a orquestração de grandes narrativas, a política contemporânea é movida por uma subjetividade imediatista.1 1 Se, antes, palavras de ordem como a “até a vitória, sempre”, de Che Guevara, mobilizavam multidões, no início do século XXI surge um lema como “um outro mundo é possível” (Fórum Social Mundial). Em vez da perspectiva de futuro (utopia), os movimentos sociais prometem um novo lugar que pode ser aqui e agora. O conceito de “digital”, em oposição ao de “analógico”2 2 Analógico: que mensura uma grandeza ou demonstra valores de maneira contínua e linear ao exemplo do relógio de ponteiros que circulam no espaço sempre no mesmo sentido e velocidade. Digital: forma de representar informações ou grandezas físicas por meio de caracteres, números ou sinais imediatamente apreensíveis ao olhar. , carrega um conjunto de características que contribuem para a compreensão da subjetividade política contemporânea, sobretudo aquelas relacionadas a novas percepções do tempo e do espaço, e à instantaneidade na apreensão e interpretação dos significados. A apreensão digital da realidade, tal como o “pensamento selvagem” de Lévi-Strauss, corresponde ao pensamento “em estado selvagem, não cultivado” que se orienta por imagens e “não distingue o momento da observação e o da interpretação” (Lévi-Strauss, 2010LÉVI-STRAUSS, Claude. 2010. O tempo reencontrado. In: LÉVI-STRAUSS, Claude O pensamento selvagem. Campinas: Papirus., p. 261).

Ao contrário da individuação possibilitada pela temporalidade, tem-se a identificação pré-moderna, a adesão identitária que, na forma contemporânea, corresponde à lógica do consumo. Ortiz (2013) observa que a tradição se oferece, agora, como referência fundamental para luta pela cidadania, invalidando as antigas oposições entre “progressismo” e “tradicionalismo” como balizas ideológicas da orientação política. A obsessão pela afirmação da identidade que, embora seja uma construção cultural, é percebida pelos indivíduos, mesmo que circunstancialmente, como autêntica e eterna, revela-se um sintoma das novas relações tempo-espaciais. Passamos do emblema do “universal” para o da “diversidade” (Ortiz, 2013); em outros termos, do ideal iluminista de razão para o pertencimento ao grupo, à comunidade étnica ou de gênero, sem encontrar o ponto de equilíbrio entre os dois extremos. No campo progressista, tudo se passa como se devêssemos abandonar o objetivo “impossível” da transformação social global para concentrar nossa atenção sobre as diversas formas de afirmação identitária (Zizek, 2016ZIZEK, Slavoj. 2016. O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. São Paulo: Boitempo Editorial .); no campo conservador, é como se mudanças econômicas profundas não fossem viáveis, nem corretas, porque “o capitalismo” e “o mercado” seriam manifestações legítimas de uma suposta natureza humana.

O ciberespaço pode ser compreendido como o tempo-espaço contemporâneo das classificações substancializadas onde predomina o que chamo, aqui, de “centramento”: o indivíduo vive um universo imaginário que faz do mundo social e da alteridade realidades estabilizadas, anteriores à experiência e à simbolização que demandam o transcurso do tempo. Textos, falas, imagens, são tomados como verdades essenciais quando o sujeito da linguagem está em outro lugar além do eu que fala ou escreve (Giddens, 1990GIDDENS, Anthony. 1990. El estructuralismo, el post-estructuralismo y la producción de la cultura. In: GIDDENS, Anthony.; TURNER, Jonathan. (orgs.). La teoría social, hoy. Madrid: Alianza Editorial.). Especialmente nos diálogos espontâneos e informais, mas também nos debates e discursos políticos, o texto se organiza em função do jogo interno dos significantes que escapa às consciências individuais. O sujeito não está no indivíduo, no eu ou no ego, mas no “coletivo” que o pós-estruturalismo sociológico situa no campo do inconsciente: “o coletivo não é nada senão o sujeito do individual” (Lacan, 1992LACAN, Jacques. 1992a. Escritos. São Paulo: Perspectiva ., p. 86).

O sujeito se define, em última instância, pelo que escapa à definição consciente da identidade pessoal: ele não é o que o indivíduo afirma ser, mas o que sobra desse corte realizado pelos signos. Por isso é que na conversação, prática relacional, o sujeito emerge como algo impreciso que se delineia, progressivamente, com o tempo e pelo reconhecimento do outro. É na dimensão simbólica e temporal da linguagem (langue e parole) que se dão as relações sociais e a emergência do sujeito, ainda que a linguística saussuriana não exclua um entendimento ainda mais profundo da linguagem como estrutura anterior às línguas humanas da qual são apenas a superfície apreensível. É dessa maneira que as mídias digitais, por si mesmas, não impedem nem determinam a constituição de uma subjetividade política. Podem, entretanto, possibilitar as situações de conversação que exigem o exercício do descentramento próprio do diálogo, que, todavia, fragiliza-se nos contextos em que o espaço incide sobre a experiência subjetiva. É somente por meio do descentramento que o indivíduo se descola de sua conformação identitária para a comunicação com o outro mediada por estruturas simbólicas que estão além deles, num plano que ultrapassa as consciências. Para tanto, é preciso recuperar, pelo reconhecimento e identificação positiva com a diferença, um terceiro plano além do eu e do outro, a dimensão transcendente da linguagem.

Contudo, em uma atmosfera de medo, desconfiança e ódios difusos, o inconsciente do indivíduo é fixado, negativamente, fora dele, como um estranho projetado no outro. Um entrave à comunicação, e ao reconhecimento de si e do outro como sujeitos, é o fato de que o indivíduo “projeta para fora de si tudo o que experimenta como perigoso e assustador” (Matos, 2006MATOS, Olgária. 2006. A identidade: o estrangeiro em nós. In: Discretas esperanças: reflexões filosóficas sobre o mundo contemporâneo. São Paulo: Nova Alexandria., p. 62). No primeiro instante do contato interpessoal, domina o imaginário que não é simbolizado a menos que a relação se estenda no tempo. Ao desdobrar-se na temporalidade, porém, a conversação é capaz de alterar a percepção tempo-espacial, pois cada sujeito constituído nesse processo é um ponto de vista descentrado. A condição da constituição subjetiva seria a progressiva e dialética circularidade entre o estranhamento e o retorno a si a partir do outro, que pode ser compreendido tanto como o Outro de si mesmo quanto como outro indivíduo, uma vez que ambos são pontos transcendentes que se oferecem à reflexão e auto-observação, e que um outro indivíduo é sempre o Outro de si mesmo.

Se a fragmentação é um dos efeitos da primazia pós-moderna do espaço sobre o tempo (Harvey, 1992HARVEY, David. 1992. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola.; Jameson, 2002JAMESON, Frederic. 2002. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática .), o descentramento subjetivo inverteria os termos, subordinando o espaço à temporalidade. Na fórmula da velocidade, S/T, tem-se o deslocamento espacial em cada unidade de tempo; no descentramento, ao contrário, tem-se uma dimensão temporal diferenciada em cada unidade de espaço (T/S). Cada espaço conteria uma temporalidade específica que é própria dos encontros e do diálogo. Portanto, o tempo a que o descentramento se refere não é o puramente cronológico, mas o dos eventos, da interpretação e das relações - o “tempo lógico” (Lacan, 1992LACAN, Jacques. 1992a. Escritos. São Paulo: Perspectiva ., pp. 69-87). Embora o ponto de partida do diálogo seja as representações sensíveis, as imagens, sensações e impressões efêmeras, o entendimento exige que os indivíduos se situem, virtualmente, num plano conceitual que está além deles, abandonando o terreno da imanência e das contingências do instante. Mas se a ordem simbólica é a própria razão humana, quando a temporalidade é suspensa sobrevêm a fragmentação e os estados instantâneos da consciência não superados pela comunicação.

O conceito de descentramento tem sido tomado, de maneira equivocada, como sinônimo de fragmentação pelos teóricos da pós-modernidade. O descentramento, a rigor, seria a condição universal da constituição subjetiva, enquanto a fragmentação, essa sim, um fenômeno pós-moderno. Como pares antitéticos e inversamente proporcionais, o descentramento se enfraquece quando a fragmentação predomina. São sintomas da ausência de descentramento a predominância do imaginário sobre o simbólico, do indivíduo sobre o sujeito, assim como dos significantes (que adquirem estatuto de realidade) sobre a pluralidade de significados. Na vida cotidiana mediada pelas tecnologias digitais, a manifestação mais evidente da ausência de descentramento é a obsessão classificatória e a incapacidade de dissociar o conceito da imagem acústica. Quando o significante se cola ao significado, impõe-se o narcisismo do imaginário que não se refere à vaidade exclusivamente, mas à dificuldade de perceber o interlocutor e seu conteúdo linguístico como alteridades e não meros reflexos ou extensões de si.3 3 A obra que pode demonstrar, empiricamente, essas proposições, é o recém-lançado livro de Richard Miskolci (2021).

Comunicação, Espaço e Tempo

É já um senso comum que a introdução de tecnologias de comunicação impulsionou, desde o século XIX, a aceleração do tempo e a ampliação do espaço. Diversos autores das ciências humanas trataram desse tema longamente, em especial aqueles que se dedicaram à condição pós-moderna (Harvey), ao pós-modernismo (Jameson), às consequências da modernidade (Giddens), à modernidade-mundo (Chesneaux), à mundialização (Ortiz), entre outros. O artigo de Foucault (2013FOUCAULT, Michel. 2013. De espaços outros. Estudos avançados. v. 27, n. 79, pp. 113-122. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-40142013000300008.
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), “De espaços outros”, impresso em Architecture, Mouvement, Continuité, nº.5, em outubro 1984, originário de sua conferência proferida no Cercle d’Études Architecturales, a 14 de março de 1967, é seminal para o debate sobre as transformações nas relações entre espaço, tempo e subjetividade na passagem do século XIX ao XX. Nesse pequeno texto, Foucault salienta a mudança do tempo histórico para a experiência da simultaneidade entre espaços-tempos diversos; da metáfora do organismo que evolui e se diferencia, para a metáfora dos circuitos e das redes. Conforme o autor, se no século XIX a obsessão era a história, o desenvolvimento, a estagnação, as crises, os ciclos e a acumulação, o século XX seria a época do espaço, da simultaneidade, justaposição, do próximo e do distante, do disperso. “O mundo é experimentado, menos como uma grande vida que se desenvolveria através do tempo”, tal como recorria-se à imagem do organismo biológico no século XIX, “do que como uma rede que liga pontos e entrecruza seu emaranhado” (Foucault, 2013FOUCAULT, Michel. 2013. De espaços outros. Estudos avançados. v. 27, n. 79, pp. 113-122. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-40142013000300008.
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, p. 113).

A figura da rede, advinda do aprimoramento dos sistemas de comunicação no século XX, teria substituído a do organismo, própria do pensamento biológico que impregnou o século XIX. A categoria tempo perde o seu posto na regência da história e a categoria espaço ganha primazia como eixo interpretativo das mudanças sociais e subjetivas. O espaço predomina sobre o tempo na mesma medida em que o tempo se comprime, de maneira inversamente proporcional. A subjetividade, então, passa a estruturar-se sobre novas relações tempo-espaciais. A história fica no passado, ao passo que o presente e o futuro se tornam a-históricos. Transformações econômicas, históricas e culturais, relacionadas ao processo de globalização, explicariam a “compressão do tempo”, a “predominância da figura do espaço” e a incidência do espaço na experiência subjetiva. “Ao se desvincular o espaço do tempo, as unidades espaciais podem fragmentar-se, dividir-se e se conectar segundo a pertinência de outros parâmetros” (Ortiz, 2015ORTIZ, Renato. 2015. Universalismo e Diversidade: contradições da modernidade-mundo. São Paulo: Boitempo Editorial., pp. 78-79).

O termo ciberespaço que aparece, pela primeira vez, em 1984, na obra Neuromancer de William Gibson, pode adquirir outro significado para abarcar as novas relações entre espaço e tempo que alteram a percepção do lugar e da temporalidade, ainda que os corpos permaneçam, fisicamente, localizados. Embora a palavra ciberespaço tenha sido associada a uma dimensão fantasiosa que dispensa a materialidade, aqui ela salienta a primazia do espaço, mediado pela cibernética, na vida cotidiana. Em oposição à ideia de uma “noosfera”, proposta pelo teólogo Teilhard de Chardin, ou de “realidade virtual”, no sentido corrente, o ciberespaço se caracterizaria por novas relações entre tempo e espaço e seria, historicamente, anterior ao contato cotidiano dos indivíduos com as interfaces das mídias digitais. Heterocrônico e heterotópico (Foucault, 2013FOUCAULT, Michel. 2013. De espaços outros. Estudos avançados. v. 27, n. 79, pp. 113-122. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-40142013000300008.
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), ele atravessaria a todos de modo independente da utilização individual, mais ou menos frequente ou intensa, das diversas mídias.

O ciberespaço traduziria o próprio mapa quando se cola ao território e coincide, pontualmente, com ele (Borges, 1999BORGES, Jorge Luís. 1999. Do Rigor na Ciência. In: BORGES, Jorge Luís. Obras Completas. Volume II (1952-1972). São Paulo: Editora Globo.). O espaço contemporâneo que se impõe sobre o tempo, nos termos de Baudrillard, é o das telas, substância fluida da imagem digital: “entramos na tela, na imagem virtual sem obstáculos, entramos na vida como numa tela. Vertemos a própria vida como um conjunto digital. […] Uma espécie de imersão, de relação umbilical, de interação tátil, como já disse McLuhan a respeito da televisão” (Baudrillard, 1997BAUDRILLARD, Jean. 1997. Tela Total: mito-ironias da era do virtual e da imagem. Porto Alegre: Sulina., pp. 146). Esse ambiente fluido de onipresença seria, para Chesneaux, uma das características mais gerais da modernidade-mundo: a dissolução do território que se configura numa nova espacialidade. O espaço perde seus traços topológicos e valorativos de contiguidade, centralidade, periferia, escala, axialidade e se expande dissolvendo e erigindo novas fronteiras, enquanto o tempo desse novo espaço é o “tempo real” da informática (Chesneaux, 1995CHESNEAUX, Jean. 1995. Modernidade-mundo. Petrópolis: Vozes ., p. 28).

No âmbito do ciberespaço, o uso compulsivo das mídias digitais é o comportamento cotidiano dos indivíduos. Esse não seria determinado pelas características das novas interfaces ou pela qualidade das relações que permitem estabelecer, mas, sim, pela combinação das propriedades tecnológicas com o contexto cultural mais amplo em que estão inseridas. Em outras palavras, embora se observe, com frequência, ansiedade e dependência tecnológica em muitos usuários (Barbosa et al., 2013BARBOSA, Ana Maria; FURTADO, Ana Maria; FRANCO, Anna Lúcia; BERINO, Claudia; PEREIRA, Claudia; ARREGUY, Marília; BARROS, Marlene. 2013. As novas tecnologias de comunicação: questões para a clínica psicanalítica. Cadernos de Psicanálise. v. 35, n. 29, pp. 59-75. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3hga8CP . Acesso em: 25 fev. 2022.
https://bit.ly/3hga8CP...
), o fenômeno das compulsões contemporâneas tem suas raízes na própria sociedade, quando o espaço adquire proeminência e a temporalidade perde seu papel na redução da ansiedade. A compulsão diz respeito às práticas que insistem sem nada construir, ao que não tem finalidade ou gera mudanças. “Daí a sua repetição incansável, sem variações e modulações, que assume o caráter de imperativo, isto é, impõe-se ao psiquismo sem que o eu possa deliberar sobre o impulso” (Birman, 2012BIRMAN, Joel. 2012. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira ., p. 84).

Giddens entende a própria modernidade contemporânea como “compulsiva”, uma vez que a tradição teria perdido sua dimensão temporal e simbólica. A compulsão, socialmente generalizada, seria algo como “tradição sem tradicionalismo” (Giddens, 1995, p. 89), repetição sem simbolização. As dependências de todos os tipos, entre elas a digital, põe-se como obstáculo no caminho da autonomia individual e do processo de individuação. Dominado e impedido de se desenvolver, o indivíduo permanece centrado no imediatismo do presente. A repetição paralisa o tempo visando cessar a ansiedade produzida pela tensão entre as altas exigências do superego e as pulsões do Id. Para Giddens, entretanto, “não há nenhuma conexão necessária entre repetição e coesão social” (Giddens, 1997GIDDENS, Anthony. 1997. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott; RIZEK, Cibele Saliba. Modernização Reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp ., p. 80). O indivíduo enredado no aqui-agora não mais se projeta no futuro, sob a narrativa do passado, em função dos desafios do presente. A tradição deixa de ser um meio capaz de organizar a memória coletiva para tornar-se outra forma de obsessão. Impossibilitado de emancipar-se dos traumas por meio das práticas simbolizadas, “o indivíduo que se crê autônomo vive, assim, um destino sub-reptício” (Giddens, 1997GIDDENS, Anthony. 1997. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott; RIZEK, Cibele Saliba. Modernização Reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp ., pp. 85-86). De acordo com o autor, nas “sociedades pré-modernas, a tradição e a rotinização da conduta cotidiana estão intimamente relacionadas uma à outra, na sociedade pós-tradicional, ao contrário, a rotinização se torna vazia, a menos que seja ajustada aos processos de reflexividade institucional” (Giddens, 1997GIDDENS, Anthony. 1997. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott; RIZEK, Cibele Saliba. Modernização Reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp ., p. 90-91).4 4 Talvez seja possível afirmar que a neurose se torna tema de investigação da psicanálise freudiana no mesmo momento em que a tradição começa a transformar-se em compulsão. Assim, a compulsão digital pode ser compreendida como um efeito do centramento: a suspensão da temporalidade, em forma de rotinização desprovida de fundamento simbólico, que avança com o processo de racionalização das sociedades.

Trabalho, centramento e fragmentação

As novas formas de exploração do trabalho estariam estreitamente vinculadas ao fenômeno do centramento subjetivo. A passagem do taylorismo/fordismo ao modelo toyotista de produção se desdobrou em um conjunto de transformações sociais, culturais e subjetivas que Gorz (2009GORZ, André. 2009. O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume.) denominou “O Imaterial”. Impulsionado pelas tecnologias digitais, o trabalho imaterial apresenta novos desafios à constituição da subjetividade política. Quando se torna mais difícil separar o tempo de trabalho do tempo livre, a categoria clássica de trabalho se mostra insuficiente. “Encontramo-nos em um tempo de vida global em que é quase impossível distinguir o tempo produtivo do tempo de lazer” (Lazzarato e Negri, 2013LAZZARATO, Maurízio; NEGRI, Antonio. 2013. Trabalho Imaterial: formas de vida e produção da subjetividade. Rio de Janeiro: Lamparina ., pp. 53-54). O imaterial não se reproduz por meio das formas clássicas e evidentes de exploração, mas da reprodução da subjetividade. No pós-fordismo, altera-se “a forma de implicação do elemento subjetivo na produção do capital” (Antunes e Alves, 2004ANTUNES, R.; ALVES, G. 2004. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação e Sociedade, v. 25, n. 87, pp. 335-351. DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-73302004000200003.
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, p. 344). Se no modo de produção taylorista/fordista havia ainda certa distância entre a subjetividade e o trabalho, no toyotismo o capital busca capturar a subjetividade do trabalhador de modo integral.

A introdução das tecnologias digitais na produção econômica, em sua totalidade, exigiria um outro tipo de envolvimento do trabalho vivo na produção capitalista. As novas tecnologias microeletrônicas demandam uma maior interação entre elas e a subjetividade do trabalhador (Antunes e Alves, 2004ANTUNES, R.; ALVES, G. 2004. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação e Sociedade, v. 25, n. 87, pp. 335-351. DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-73302004000200003.
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, p. 347). Esse envolvimento intelectual e emocional cada vez mais intenso com a produção, a ponto de não se reconhecer o tempo efetivamente livre do trabalho, exige que se recoloque o problema da alienação. Em Marx, o trabalhador se desefetiva quanto mais mercadorias produz; o processo de trabalho, bem como os seus produtos, lhe são estranhos. Na produção imaterial, em contrapartida, embora o trabalho seja igualmente explorado, o processo produtivo não é propriamente estranho ao trabalhador que é tão estimulado a engajar-se na produção quanto realmente o deseja. Não seria mais a alienação ou o estranhamento, mas o envolvimento integral subsumido pela produção, o óbice à constituição de uma subjetividade política.

Quando os sonhos e desejos são apropriados e rentabilizados, a lógica do capital invade todo o tempo de vida e todas as experiências do trabalhador, que não mais se evade a esferas separadas do trabalho enquanto executa suas tarefas. Seu empenho intelectual e sua energia psíquica se voltam à produção, qualificação e competição. A produção industrial informatizada envolve funções analíticas e criativas, além dos afetos e contato social. O conceito de capitalismo cognitivo,5 5 Em um seminário organizado pelo Laboratório Território e Comunicação (LABTeC/PPGCI-ECO/UFRJ), em 1998, Yann Moulier-Boutang e Antonella Corsani introduziram o conceito de “capitalismo cognitivo” em diálogo com os trabalhos do economista da inovação Enzo Rullani (Cocco, 2013, pp. 10-11). em que o conhecimento e o saber ocupam a principal força produtiva, adviria da identificação de um modo de produção imaterial que põe em suspenso a validade da teoria marxiana do valor-trabalho. O tempo de trabalho teria perdido seu papel central em uma economia que torna produtivo o tempo livre da experiência subjetiva. “Não haveria mais como mensurar a produtividade do trabalho. O conhecimento e o saber, enquanto algo imaterial e imensurável, passam ao papel de protagonistas da nova produtividade” (Camargo, 2011CAMARGO, Sílvio. 2011. Considerações sobre o conceito de trabalho imaterial. Pensamento Plural, n. 9, pp. 37-56. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3IpI3Vx . Acesso em: 25 fev. 2022.
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, p. 42).

O saber e o conhecimento são tanto fator de produção quanto recurso econômico, força de trabalho e insumo. Por exigir “individualização, criatividade e motivação do trabalhador” (Lima e Oliveira, 2017LIMA, Jacob Carlos.; OLIVEIRA, Daniela Ribeiro de. 2017. Trabalhadores digitais: as novas ocupações no trabalho informacional. Revista Sociedade e Estado, v. 32, n. 1, pp. 115-143. DOI: https://doi.org/10.1590/s0102-69922017.3201006.
https://doi.org/10.1590/s0102-69922017.3...
, p. 116), o capitalismo cognitivo coloniza a esfera das emoções, desejos, afetos e capacidade intelectual. Mesmo os jovens que nunca trabalharam possuem todas as características da subjetividade produtiva pós-industrial, como a rejeição à fixidez (Lazzarato e Negri, 2013LAZZARATO, Maurízio; NEGRI, Antonio. 2013. Trabalho Imaterial: formas de vida e produção da subjetividade. Rio de Janeiro: Lamparina ., pp. 49-50). Eles nascem e se formam no tempo-espaço contemporâneo composto de um “verdadeiro tecido social conjuntivo” - confluência entre a lógica do digital e os movimentos culturais de cooperação produtiva (Weissberg, 2003WEISSBERG, Jean-Louis. 2003. Entre produção e recepção: hipermediação, uma mutação dos saberes simbólicos. In: GALVÃO, Alexander Patez; SILVA, Gerardo; COCCO, Giuseppe. Capitalismo cognitivo: trabalho, redes e inovação. Rio de Janeiro: DP&A., p. 109). As novas formas de exploração “passam por dentro dos processos de subjetivação” (Cocco, 2013COCCO, Giuseppe. 2013. Introdução à 2ª edição de Giusepe Cocco, 21 de março de 2013. In: LAZZARATO, Maurízio; NEGRI, Antonio. Trabalho Imaterial: Formas de Vida e Produção de Subjetividade. Rio de Janeiro: Ed. Lamparina., p. 9). Diferente do sistema taylorista/fordista, o capitalismo cognitivo não separa mente e corpo. “Redes de cérebros e redes de computadores integram-se num híbrido de capital fixo e variável” (Cocco, 2013COCCO, Giuseppe. 2013. Introdução à 2ª edição de Giusepe Cocco, 21 de março de 2013. In: LAZZARATO, Maurízio; NEGRI, Antonio. Trabalho Imaterial: Formas de Vida e Produção de Subjetividade. Rio de Janeiro: Ed. Lamparina., p. 13).6 6 Lima e Oliveira (2017) lembram que os softwares, diferente da maquinaria do capitalismo clássico que impõe uma forma de uso, são programáveis pelo profissional, o que reduz a distância entre o saber contido na máquina e a mente do operador.

O centramento contemporâneo estaria relacionado, portanto, à necessidade de envolvimento e realização pessoal no trabalho, o que induz o indivíduo a produzir cada vez mais. Diferente do fenômeno da alienação como “estranhamento”, o trabalho imaterial se associa à noção de presença, no sentido de atualidade e disposição, que caracterizaria o trabalhador do capitalismo cognitivo. Assim, novos desafios se põem à subjetivação num quadro em que o trabalho não é mais percebido como alienado e em que o trabalhador se identifica, de tal modo, com sua atividade, que não consegue estabelecer qualquer distância dos imperativos econômicos. O Imaterial se apresenta, então, como um aprimoramento das formas de exploração do trabalho que converte a alienação em envolvimento no intuito de capitalizar todo o tempo de vida do trabalhador e fazer de todo lugar um espaço produtivo.

Não mais alienada, como no capitalismo clássico, a subjetividade do trabalhador seria, simultaneamente, centrada e fragmentada. Nas palavras de Jameson, “a alienação do sujeito é deslocada pela sua fragmentação” (Jameson, 2002JAMESON, Frederic. 2002. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática ., p. 42). A flexibilidade, a diversificação de especializações e a adaptação às flutuações do mercado que o trabalho imaterial exige, induzem ao que Sennet denominou “corrosão do caráter” (Sennett, 1999SENNETT, Richard. 1999. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record., p. 127). Longe de julgar moralmente o caráter do trabalhador, a análise aponta para a impossibilidade de construção de uma personalidade coerente face ao emaranhado de obrigações, por vezes contraditórias, de cujo cumprimento depende a sua sobrevivência. Os indivíduos perdem “a espinha dorsal” que deveria lhes fornecer orientação para ser e agir na vida social (Birman, 2012BIRMAN, Joel. 2012. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira ., p. 123). Esgotamento, depressão, despossessão de si e dessubjetivação, seriam as expressões psíquicas da fragmentação contemporânea. O individualismo do trabalhador centrado e fragmentado, que se desenvolve no pós-fordismo, nada teria em comum com o “individualismo de responsabilidade”, com a recusa aos conformismos de grupo e com o desejo de emancipação que foram, desde o século XVIII, valores fundamentais da democracia moderna (Chesneaux, 1995CHESNEAUX, Jean. 1995. Modernidade-mundo. Petrópolis: Vozes ., p. 51; Sennet, 1999, p. 146).

Descentramento versus Fragmentação

Centrado no trabalho e fragmentado no caráter, ao indivíduo contemporâneo falta o que a teoria social pós-estruturalista denomina descentramento, processo de subjetivação que exige a incidência da temporalidade (não cronológica) para que o indivíduo decante os signos, desate-se da teia de significantes e elabore, com clareza e autonomia, seus próprios significados. A narrativa fragmentada já analisada por Jameson (1992JAMESON, Frederic. 1992. O inconsciente político. São Paulo: Ática.; 2002JAMESON, Frederic. 2002. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática .), observada, agora, nas mídias sociais - em que afirmações contundentes e contraditórias podem ser escritas pelo mesmo usuário a depender do momento, do espírito coletivo ou do interlocutor -, reflete não somente a forma de interação social oferecida pelas interfaces digitais, como também a experiência do tempo e do espaço na economia contemporânea. Cada vez mais dominado pelo imperativo da velocidade, o indivíduo abandona o cultivo da expressão original e coerente do próprio pensamento. Em especial quanto aos temas de interesse público, limita-se a reproduzir e compartilhar opiniões de terceiros, sejam indivíduos, partidos, empresas, organizações, movimentos.

Descentramento e fragmentação, portanto, devem ser compreendidos como termos de sentidos antitéticos. Enquanto o descentramento encontra lugar na modernidade que compreende desdobramentos e metamorfoses progressivas no transcurso do tempo, a fragmentação é o sintoma da relação tempo-espacial dita pós-moderna. “A fragmentação enfoca experiências ou imagens desconectadas que propiciam um senso de intensa imersão e imediatismo, a ponto de excluir todas as preocupações teleológicas mais amplas” (Featherstone, 1997FEATHERSTONE, Mike. 1997. O Desmanche da Cultura: globalização, pós-modernismo e identidade. São Paulo: Studio Nobel., p. 69). E o descentramento, por sua vez, seria a condição necessária à constituição subjetiva que exige o desprendimento dos laços pessoais e sociais, e o questionamento dos códigos culturais. O sujeito seria instituído por um gesto de recusa e resistência, pela capacidade de distanciamento dos papéis sociais, de não pertencer, de contestar (Touraine, 1995TOURAINE, Alain. 1995. Crítica da modernidade. São Paulo: Vozes., p. 290). “A presença do sujeito no indivíduo deve ser percebida, ao mesmo tempo, como distanciamento do indivíduo com relação à ordem social e como vivência imediata” (Touraine, 1995TOURAINE, Alain. 1995. Crítica da modernidade. São Paulo: Vozes., p. 308).

A subjetivação, desse modo, iria no sentido oposto à socialização e adaptação que emergiriam sob a forma de solidariedade coletiva, laços afetivos em comunidades de vivências e sensibilidades particulares (Maffesoli, 2007MAFFESOLI, Michel. 2007. Tribalismo pós-moderno: da identidade às identificações. Ciências Sociais Unisinos, v. 43, n. 1, pp. 97-102. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3BTumMn . Acesso em: 25 fev. 2022.
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). As experiências em associações por vínculos de afinidade e identidade, que Maffesoli (2007MAFFESOLI, Michel. 2007. Tribalismo pós-moderno: da identidade às identificações. Ciências Sociais Unisinos, v. 43, n. 1, pp. 97-102. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3BTumMn . Acesso em: 25 fev. 2022.
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) denomina neotribalismo, reforçariam a dimensão imaginária e narcísica do indivíduo recalcando as pulsões dissidentes e genuinamente criativas. A fragmentação se manifesta como perda de individualidade para o grupo que confere identidade ao indivíduo, ainda que ele transite por várias comunidades e reconheça, em todas elas, a sua “essência”, a sua verdade efemeramente eterna. Centramento e fragmentação, portanto, são fenômenos correlatos.

Por sua vez, a subjetivação exige, de acordo com Touraine, a conquista do Id pelo eu, “o controle exercido sobre o vivido para que tenha um sentido pessoal, para que o indivíduo se transforme em ator que se insere nas relações sociais, transformando-as, sem jamais identificar-se completamente com nenhum grupo, com nenhuma coletividade” (Touraine, 1995TOURAINE, Alain. 1995. Crítica da modernidade. São Paulo: Vozes., p. 220). É sujeito aquele que transforma “o ambiente material e social no qual está colocado, modificando a divisão do trabalho, as formas de decisão, as relações de dominação ou as orientações culturais” (Touraine, 1995TOURAINE, Alain. 1995. Crítica da modernidade. São Paulo: Vozes., p. 220). Desse modo, o sujeito não se confunde com a comunidade, a nação, a etnia, a empresa, a sexualidade, a religião, o consumo, o partido etc. Ele é sempre um “mau sujeito” pela liberdade e resistência ao poder (Touraine, 1995TOURAINE, Alain. 1995. Crítica da modernidade. São Paulo: Vozes., p. 233); um sujeito é sempre descentrado.

Contudo, os termos descentramento e fragmentação são entendidos, por vezes, como de sentidos equivalentes, quando não sinônimos. Em algumas obras de referência, ambos designam a “perda de um sentido de si estável” e a “crise de identidade” características da pós-modernidade. Hall, por exemplo, em um momento de sua produção, considerou que as identidades modernas têm sido “descentradas, isto é, deslocadas, fragmentadas” (Hall, 2011HALL, Stuart. 2011. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina., p. 12). Porém, se a fragmentação é um sintoma da pós-modernidade, o descentramento seria próprio da modernidade e, ao mesmo tempo, universal, condição da constituição subjetiva. Quando as sociedades deixam de ser percebidas como dotadas de um princípio articulador e como algo que se desdobra progressivamente no transcurso do tempo, o indivíduo também deixa de ser concebido como em processo de individuação.

A fragmentação indica a submissão individual a uma multiplicidade de unidades culturais, comunidades étnicas, nacionais e intercontinentais (Smart, 1993SMART, Barry. 1993. A Pós-modernidade . Lisboa: Publicações Europa, América, LDA, Mira Sontra.) em um mundo tomado como conjunto de espaços e temporalidades heterogêneos. O descentramento, por seu turno, refere-se ao movimento próprio do indivíduo no sentido da subjetivação, potencialidade que se manifesta mais ou menos de acordo com as circunstâncias históricas. O conceito de descentramento foi introduzido pelo pós-estruturalismo com pretensões universalizantes: não para diagnosticar a contemporaneidade, mas para explicar a constituição subjetiva. É um conceito filosófico, que se contrapõe ao subjetivismo fenomenológico e às filosofias centradas na consciência, e rejeita a crença de que o mundo social seja habitado por indivíduos autoconscientes (Lemert, 1994LEMERT, Charles. 1994. Post-Structuralism and Sociology. In: SEIDMAN, Steven. (ed.). The postmodern turn: new perspectives on social theory. Cambridge: University Press. DOI: https://doi.org/10.1017/CBO9780511570940.
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). Nessa esteira, o inconsciente se revela o objeto por excelência das ciências humanas7 7 “No horizonte de toda ciência humana, há o projeto de reconduzir a consciência do homem às suas condições reais, de restituí-la aos conteúdos e às formas que a fizeram nascer e que nela se esquivam; é por isso que o problema do inconsciente - sua possibilidade, seu estatuto, seu modo de existência, os meios de conhecê-lo e de o trazer à luz - não é simplesmente um problema interior às ciências humanas e que elas encontrassem ao acaso de seus procedimentos; é um problema que é, afinal, coextensivo à sua própria existência. Uma sobrelevação transcendental revertida num desvelamento do não consciente é constitutiva de todas as ciências do homem. Aí talvez se encontrasse o meio de demarcá-las no que elas têm de essencial. O que manifesta, em todo caso, o específico das ciências humanas, vê-se bem que não é esse objeto privilegiado e singularmente nebuloso que é o homem. Pela simples razão de que não é o homem que as constitui e lhes oferece um domínio específico; mas, sim, é a disposição geral da epistemê que lhes dá lugar, as quer e as instaura - permitindo-lhes, assim, constituir o homem como seu objeto” (Foucault, 2016, p. 504). (Foucault, 2016FOUCAULT, Michel. 2016. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes ., pp. 504-505), em continuidade à sociologia durkheimiana, que privilegia a porção coletiva e não consciente do indivíduo.

O descentramento pressupõe uma cisão entre o social e o particular no indivíduo, algo que apenas pôde ser “descoberto”, na modernidade, a partir da linguística de Saussure, da noção de inconsciente de Freud e de representações sensíveis e coletivas de Durkheim. O descentramento é, simultaneamente, moderno e antimoderno. Enquanto a modernidade iluminista identifica o sujeito à consciência, a virada linguística na modernidade de fins do século XIX decompõe a razão em dimensões que ultrapassam a noção de consciência individual para descobrir a lógica impessoal das classificações, dos sistemas de troca, dos mitos, da linguagem e do inconsciente (Touraine, 1995TOURAINE, Alain. 1995. Crítica da modernidade. São Paulo: Vozes.). Conforme Foucault, “dir-se-á, pois, que há ‘ciência humana’ não onde quer que o homem esteja em questão, mas onde quer que se analisem, na dimensão própria do inconsciente, normas, regras, conjuntos significantes que desvelam à consciência as condições de suas formas e de seus conteúdos” (Foucault, 2016FOUCAULT, Michel. 2016. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes ., pp. 504-505).

Tudo se passa como se houvesse três momentos do Sujeito (e de suas respectivas modernidades): o iluminista, o descentrado e o fragmentado. De modo sumário, o Sujeito do Iluminismo seria consciente, fixo e estável; o Sujeito descentrado, embora não seja consciente, fixo e estável como pressupunha o Iluminismo, guarda os ideais de liberdade, autonomia de julgamento e universalidade. O indivíduo fragmentado, por seu turno, não seria, propriamente, um Sujeito, mas aquele que habita o tempo-espaço em que não se distingue público e privado, representação e realidade, significado e significante, e de onde o mundo é percebido como uma “pluralidade de espaços e temporalidades heterogêneos” (Heller e Fehér, 1998HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenic. 1998. A condição política pós-moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira ., p. 11). Os três tipos demarcariam, respectivamente, as três modernidades - iluminista (modernidade clássica), descentrada (da virada linguística) e fragmentada (ou pós-modernidade).

A crise das grandes narrativas modernas é um convite à coabitação entre diversas pequenas narrativas (étnicas, regionais, religiosas, ideológicas) que falam, em geral, do passado e do presente, mas pouco se dedicam ao futuro. Em tais narrativas, não haveria uma teleologia secreta, um narrador transcendente e onisciente ou a promessa de emancipação universal. A crítica às grandes narrativas emancipatórias da modernidade se combina ao antiuniversalismo político e ao anti-humanismo filosófico que correspondem a uma outra perspectiva temporal avessa à noção de teleologia e de finalismo histórico. O futuro não é mais um ponto fixo ao fim da linha temporal, mas um horizonte que se atualiza, desfaz e refaz, a cada momento e lugar.

Descentramento e Modernidade

O descentramento, como potencialidade humana, não estaria em desacordo com uma visão teleológica da história. Na teoria marxista, por exemplo, é possível identificar, como fez Althusser, o deslocamento da agência individual. Na obra de Marx, sobretudo o 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852), o descentramento seria a condição constitutiva do sujeito histórico. Para que os indivíduos transformem a história, é preciso que eles se desviem de seu plano imanente e encarnem uma espécie de duplo, sua identidade de sujeito revolucionário. Essa dupla existência - em uma linha temporal (diacrônica), de um lado, e nas batalhas ideológicas (sincrônicas), de outro - caracterizaria a subjetivação política. O sujeito se situa entre a localização histórica e a estrutura ideológica que o transcende. Em última instância, todo sujeito é descentrado.8 8 “Penso onde não existo e existo onde não penso” (Lacan, 1992, p. 248). Seria um equívoco teórico, desse ponto de vista, entender que uma concepção pós-estruturalista da história seja, necessariamente, “sem sujeito”, quando, pelo contrário, revelaria uma outra noção de subjetividade (descentrada).

Ao investigar o inconsciente, explicitar seus mecanismos e decompor suas partes, Freud é quem especialmente contribui para a compreensão do humano como descentrado, colocando à prova o conceito de indivíduo consciente, racional, substantivo, “provido de uma identidade fixa e unificada” (Hall, 2011HALL, Stuart. 2011. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina., p. 23). Para Giddens, Freud teria sido o primeiro a instituir o “descentramento do sujeito”. A psicanálise freudiana mostrara que o eu não é dono de si mesmo e que ele se revela por seus contornos, por meio do inconsciente e da linguagem que é um sistema sem autor (Giddens, 1990GIDDENS, Anthony. 1990. El estructuralismo, el post-estructuralismo y la producción de la cultura. In: GIDDENS, Anthony.; TURNER, Jonathan. (orgs.). La teoría social, hoy. Madrid: Alianza Editorial., p. 267). Quando atribui à pulsão e ao inconsciente um lugar fundamental no psiquismo, Freud coloca o pensamento e a vontade submetidos a esses outros registros e “promove, assim, o descentramento do sujeito, do eu e da consciência” (Birman, 2012BIRMAN, Joel. 2012. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira ., p. 129). Com a frase de Freud, “onde havia o Id, deve entrar o eu”, pode-se entender que o progressivo descentramento do eu em direção ao inconsciente é condição da constituição subjetiva.9 9 A psicanálise pode ser entendida como um instrumento destinado a tornar possível a conquista progressiva do Id por parte do eu, reforçar o eu tornando-o mais independente do superego, ampliar o seu campo perceptivo e aperfeiçoar a sua organização de modo a poder anexar novas zonas do Id: “uma obra de civilização como, por exemplo, o enxugamento do Zuiderzee” (Freud apudGalemberti, 2006, p. 181-182).

A elaboração do conceito de “fato social”, por Durkheim, como “coisas” exteriores aos indivíduos dotadas de objetividade e poder coercitivo sobre as consciências individuais, revela que o descentramento na sociologia é seu pressuposto fundante e perfeitamente complementar ao descentramento psicanalítico. Como um desdobramento do conceito de fato social, tem-se as noções de consciência coletiva e representações coletivas que resultam da interação social, além da ideia de que o indivíduo é duplo, de que haveria nele uma dimensão coletiva e outra puramente individual. Talvez seja possível afirmar que nas obras As Regras do Método Sociológico (1895), O Suicídio (1897) e As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912) se encontram os fundamentos teóricos do descentramento sociológico que subsidiará o estruturalismo e o pós-estruturalismo de meados do século XX, na França. De acordo com Auzias, “o que Durkheim descobriu foi o papel inconsciente das representações sociais. Preparava ele o caminho para um confronto entre a sociologia e a psicanálise que, um pouco mais tarde, Freud, em Totem e Tabu (2013FREUD, Sigmund. 2013. Psicologia das Massas e análise do eu. Porto Alegre: L&PM.), e Mauss, em sua comunicação sobre a Psicologia e a Sociologia (1924),10 10 Conferência proferida por Marcel Mauss na ocasião de sua posse como presidente da Sociedade Francesa de Psicologia, em 1924. efetuarão” (Auzias, 1972AUZIAS, Jean-Marie. 1972. Chaves do estruturalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 49). Embora tenha travado diálogo crítico com a psicologia de sua época, Durkheim não incorporou a nascente psicanálise freudiana em seus estudos, o que, provavelmente, alteraria os termos de seu desenvolvimento teórico, sem modificar as hipóteses principais.11 11 Sobre os encontros e desencontros teóricos entre Freud e Durkheim, consultar o capítulo “Freudismo e Durkheimismo”, de Roger Bastide, em Sociologia e Psicanálise (São Paulo: Melhoramentos/Edusp, 1974).

É Lacan quem, depois de Freud, Durkheim e Mauss, e em diálogo com Lévi-Strauss, produz uma síntese original entre a psicanálise, a filosofia, a sociologia, a antropologia e outras disciplinas do conhecimento, como a matemática. No XVI Congresso Internacional de Psicanálise, em Zurique, a 17 de julho de 1949, Lacan apresenta “O estádio do espelho como formador da função do eu”.12 12 “O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica” é uma comunicação feita ao XVI Congresso Internacional de Psicanálise, em Zurique, a 17 de julho de 1949, em que cita o texto de Lévi-Strauss, “A eficácia simbólica”, publicado no mesmo ano. Grosso modo, a formação do eu seria um processo relacional13 13 Tal abordagem, embora se assemelhe, distancia-se da concepção de espelho de Charles Cooley para quem o eu é também interativo, porém a socialização é uma aprendizagem consciente, pressuposto que distingue o interacionismo simbólico da psicanálise. Enquanto para Freud e Lacan, a subjetividade é o produto de processos psíquicos inconscientes, descentrados, no interacionismo simbólico e na psicologia social norte-americana, não haveria esse descentramento. em que o bebê consegue reconhecer a si mesmo, no espelho, a partir dos seis meses, pelo olhar do outro - da pessoa que o acompanha e dos sistemas simbólicos que os atravessam. Essa experiência prossegue no exercício da psicanálise. O “estádio do espelho” marcaria a inscrição do indivíduo nos vários sistemas de representação simbólica, incluindo a língua, a cultura e a diferença sexual (Hall, 2011HALL, Stuart. 2011. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina.). O eu (moi), entretanto, ainda é um ponto de vista parcial; é o sujeito do inconsciente e da linguagem que aparece, para Lacan, como o sujeito por excelência, distinto do eu, função imaginária, mesmo que consciente. Embora a consciência possa apreender a si mesma de modo transparente numa reflexão imediata, ela seria sempre muito limitada. É no inconsciente, excluído do sistema do eu, que o sujeito pensa e fala. O inconsciente se estrutura como linguagem e “é toda a estrutura da linguagem que a experiência analítica descobre no inconsciente” (Lacan, 1992aLACAN, Jacques. 1992a. Escritos. São Paulo: Perspectiva ., p. 223; 1992bLACAN, Jacques. 1992b. O seminário: livro 2 - o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., p. 80).

Essas elaborações teóricas resultam da apropriação da linguística saussureana pela antropologia de Lévi-Strauss. A antropologia estrutural e a psicanálise lacaniana desenvolvem-se quase simultaneamente e de maneira entrelaçada. A linguagem é um sistema de signos preexistente aos indivíduos e acessado por eles de modo inconsciente. Falar uma língua não somente ativa uma imensa gama de sentidos embutidos nas estruturas culturais, como permite que os significados sejam descobertos a posteriori, após a análise do encadeamento significante. As frases nem sempre traduzem, precisamente, o que o eu quis dizer, mas revelam o que o sujeito pensa. Deixam escapar ecos de outros significados impedindo que o falante os fixe de modo definitivo. O descentramento da estrutura linguística é a origem dos entendimentos e desentendimentos involuntários, dos atos falhos, mas, também, da intersubjetividade e dos processos de subjetivação. Se “é no inconsciente que o sujeito fala”, é no inconsciente que os sujeitos se encontram (entre si e consigo). O descentramento se dá por meio do inconsciente e da linguagem que marcam, como descobertas da teoria social, a “virada linguística” da modernidade. A partir de então, a metodologia de análise discursiva, nas ciências humana, é progressivamente orientada pela arqueologia dos textos (privados ou públicos, falados, escritos ou figurados), tomados como obras sem autor.

Uma análise dos conteúdos publicados nas diversas mídias, sobretudo das conversas espontâneas nas redes digitais, não poderia prescindir desses pressupostos teórico-metodológicos. A interpretação literal dos textos não contribui para a apreensão dos interlocutores e de seus contextos culturais e políticos, pois sobrevaloriza a dimensão egoica e imaginária contida nos argumentos e nas emoções que eles suscitam. Cabe, nesse sentido, a recuperação dos conceitos lacanianos de simbólico e imaginário no âmbito da investigação sociológica.14 14 Assim, uma sociologia do inconsciente poderia evitar a colonização da crítica social pelas técnicas de pesquisa que tendem a reproduzir valores e visões de mundo próprios das empresas que as produziram e cujos interesses são incompatíveis com o propósito de pesquisa independente.

Simbólico, imaginário e mídias sociais

As mídias digitais têm sido, desde o início, associadas ao “virtual” como se o termo fosse autoexplicativo. Mas as definições de real, imaginário e simbólico, propostas por Lacan, têm maior relevância que o conceito de virtual do senso comum. O real seria a porção inapreensível que escapa à simbolização; o imaginário seria a miragem, a imagem, a impressão imediata, narcísica; e o simbólico diria respeito ao que é apreendido e elaborado pela linguagem no decorrer do tempo (Lacan, 2005LACAN, Jacques. 2005. O simbólico, o imaginário e o real. In: LACAN, Jacques. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Zahar.). O virtual estaria, portanto, mais próximo do conceito de imaginário, pois se refere ao que é reproduzido artificialmente.

Associado ao imaginário, o virtual das mídias digitais estaria em oposição ao simbólico (Zizek, 2016ZIZEK, Slavoj. 2016. O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. São Paulo: Boitempo Editorial .) e, por isso, muito mais próximo da fragmentação que do descentramento. As mídias digitais, como manifestações do imaginário, seriam apenas uma das expressões da fragmentação, entre outras tantas. Por si mesmas, no entanto, as mídias digitais não poderiam ser responsabilizadas por inibir a simbolização e o descentramento, visto que esses processos decorrem de transformações sociais muito mais amplas e profundas. Quando não há temporalidade e simbolização, não há sujeito, mas o eu, a persona no sentido original de “máscara através da qual ressoa a voz do ator” que tem como atributo a “propriedade dos simulacros e das imagens” (Mauss, 2003MAUSS, Marcel. 2003. Uma categoria do espírito-humano: a noção de pessoa, a de eu. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify., p. 389). É o eu ou a persona, e não o sujeito, quem atua, a princípio, no ciberespaço entendido como o tempo-espaço contemporâneo. Se os indivíduos são tão mais sujeitos quanto mais se libertam dos sentidos e são capazes de pensar e agir por conceitos, como afirmava Durkheim, quando o espaço incide sobre a temporalidade, o simbólico dá lugar ao imaginário e o sujeito ao eu. A capacidade de apropriação e elaboração simbólicas cede a vez às paixões, aos sentidos e sensações individuais. No lugar das representações coletivas (símbolos, conceitos, valores), predominam as representações sensíveis (as sensações e as imagens). As emoções, impressões e certezas imediatas dos indivíduos estariam no plano imaginário que se caracteriza por sua efemeridade e particularidade, afastando-se da objetividade simbólica construída ao longo do tempo e a que chamamos realidade (Durkheim, 1989DURKHEIM, Émile. 1989. As Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Paulinas., p. 511).

O sujeito, diferente do indivíduo, é impessoal. É pela consciência coletiva que o indivíduo eleva seu ponto de vista para se comunicar e fazer-se reconhecer por outros. O sujeito resulta de um processo de subjetivação que leva em conta suas idiossincrasias, não sendo, portanto, a pura encarnação da sociedade, mas outra coisa além do eu e do outro. Ele se equilibra em um ponto de individualidade entre o individualismo narcísico, pessoal e imaginário, e o lugar comum das representações coletivas. O imaginário, contudo, não designa o mesmo que imaginação. A imaginação estaria a favor do sujeito em sua batalha contra os limites e armadilhas do imaginário, pois seu trabalho sobre a realidade é o de simbolizá-la por meio da linguagem. A imaginação pode ser, por isso, compreendida como o resultado da subjetivação, da conquista do inconsciente pelo eu.

Assim como as relações face-a-face cotidianas, a conversação mediada digitalmente é sempre introduzida pelas manifestações do imaginário. Os primeiros contatos são orientados por pré-julgamentos, fragmentos e sensações ainda não confirmados. Nos textos de conversação, estão registradas manifestações de narcisismo que apenas podem desfazer-se no decorrer do diálogo, pela apreensão da subjetividade do outro para superar as resistências, identificações negativas e transferências inconscientes que se atualizam sobre determinadas imagens e palavras, deslocando afetos de uma representação a outra. A intersubjetividade não decorre de meras trocas de informações, mas do encontro entre os sujeitos em um plano comum que os transcende. Esse plano de “negociação de paz”, conforme Lacan, está num “terceiro lugar que não é nem minha fala, nem meu interlocutor” (Lacan, 1992LACAN, Jacques. 1992a. Escritos. São Paulo: Perspectiva ., p. 276). Dimensão social e simbólica que, segundo Durkheim, é o pensamento lógico fruto da síntese histórica das consciências individuais e das sociedades (Durkheim, 1989DURKHEIM, Émile. 1989. As Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Paulinas.). Por meio dele, “o indivíduo se dá conta […] de que acima de suas representações privadas existe um mundo de noções-tipos pelas quais é obrigado a regular as suas próprias ideias; entrevê todo um reino intelectual do qual participa, mas que o supera” (Durkheim, 1989DURKHEIM, Émile. 1989. As Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Paulinas., pp. 515-516).

O diálogo exige que os interlocutores se coloquem num terceiro plano acima do “eu que fala” e do “ele que escuta”, a dimensão transcendente da linguagem. Essa porção social transcendente, o coletivo, é o sujeito do indivíduo, a razão que “tem o poder de ultrapassar o alcance dos conhecimentos empíricos” (Lacan, 1992LACAN, Jacques. 1992a. Escritos. São Paulo: Perspectiva ., p. 86). Para Durkheim, “ela não o deve a uma virtude misteriosa qualquer, mas, simplesmente, ao fato de que, segundo uma fórmula conhecida, o homem é duplo” (Durkheim, 1989DURKHEIM, Émile. 1989. As Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Paulinas., pp. 45-46). Há uma porção individual, cujo círculo de ação é muito limitado, e uma porção social que é a realidade mais alta na ordem intelectual e moral, a sociedade. As palavras ultrapassam os limites da experiência pessoal e exprimem significados que fogem ao controle dos falantes (Durkheim, 1989DURKHEIM, Émile. 1989. As Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Paulinas., p. 514). É pelo encontro dos significados que escapam às palavras que o indivíduo reconhece o outro e a si mesmo.15 15 Na conversação escrita no hipertexto, capaz de registrar e fixar o diálogo no tempo, o interlocutor pode ler e reler, editar e reeditar o que escreveu de modo a retificar o sentido de uma sentença eliminando as ambiguidades e os atos falhos, aquilo que não pretendia dizer e, no entanto, disse de maneira inconsciente. O que as mídias digitais acrescentariam de novo é, paradoxalmente, a possibilidade do descentramento.

O diálogo é capaz de romper o plano imaginário das classificações fixadas no ciberespaço que faz da alteridade algo substancializado e anterior à experiência que demanda o transcurso do tempo. Se as mídias digitais, ao se oferecerem como meios de reprodução artificial e, portanto, de produção e disseminação do imaginário, ameaçam a simbolização, a conversação possibilitada por elas pode restituir a dimensão simbólica que é a base da comunicação. O lugar do entendimento está sempre além dos lugares onde o eu se manifesta. Para dizer ao outro e para si, é preciso descentrar-se, reconhecer e deixar os lugares socialmente determinados. Se os indivíduos se entendem, é porque se descobrem ausentes de onde estão e presentes onde não se encontram.16 16 O pensamento independente, aquele que vai além da obediência aos comandos, decorre de uma ausência, inversão possível da fórmula cartesiana - penso, logo não estou. As relações sociais são sempre heterotópicas e heterocrônicas, nos termos de Foucault (2013FOUCAULT, Michel. 2013. De espaços outros. Estudos avançados. v. 27, n. 79, pp. 113-122. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-40142013000300008.
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), pois inauguram novas espacialidades e temporalidades que se atravessam e sobrepõem à cronologia e aos territórios geográficos.

O sujeito está, necessariamente, além do eu, inscrito no discurso do outro, mas não seria sujeito se aí permanecesse estável. Ele avança sobre a linguagem por meio da fala ou da escrita, retorna ao eu e novamente se espraia. O descentramento se faz de movimentos espirais, de idas e vindas entre o coletivo, o particular e o indeterminável; o simbólico, o imaginário e o real; o outro, o eu e o inconsciente; a linguagem, a fala e o indizível. A motivação do sujeito é algo que nunca está na superfície do texto, mas no seu próprio movimento, e apenas se revela por uma hermenêutica que leve em conta os significantes, o contexto em que se encontram os falantes e o encadeamento lógico-temporal dos argumentos.

Ainda que um “bom conversador” seja “um sedutor no sentido mágico da palavra” (Tarde, 1992TARDE, Gabriel. 1992. A Opinião e as Massas. São Paulo: Martins Fontes ., pp. 95-96), é preciso que os seus interlocutores partilhem de uma mesma estrutura inconsciente. Por isso a conversação, ao colocar os indivíduos em contato, “faz com que se comuniquem por uma ação tão irresistível quanto inconsciente”, não apenas pela linguagem como “pelo tom de voz, olhar, fisionomia, os passes magnéticos dos gestos” (Tarde, 1992TARDE, Gabriel. 1992. A Opinião e as Massas. São Paulo: Martins Fontes ., pp. 95-96). A comunicação se dá através de um sistema de códigos que ultrapassa os dialetos, as línguas, a própria linguagem humana e os domínios da espécie humana.17 17 Há diversas formas de comunicação também onde o senso comum não admite a existência de cultura, como entre as outras espécies animais e mesmo vegetais. Para haver diálogo, não é preciso que os indivíduos abandonem suas culturas e identidades, porque significaria negar a diversidade, mas que façam da diferença o ponto de partida para o encontro com o universal, com o que há de comum. Uma compreensão substancialista das identidades não é a única possível. Nas palavras de Cunha, “temos de eximir de culpa a identidade étnica enquanto tal, quanto aos crimes que se cometem em seu nome. Algo mais deve entrar em cena para explicar os usos e abusos a que levou” (Cunha, 2016CUNHA, Manuela Carneiro. 2016. Identidade Étnica In: SALLUM Jr., Brasílio.; SCHWARCZ, Lilia; VIDAL, Diana; CATANI, Afrânio. (org.). Identidades . São Paulo: Edusp ., pp. 43-44).

Para Cohn, tudo depende de como as identidades são construídas: se de modo centrado ou descentrado. Inspirado em Piaget, o autor preconiza a construção de identidades descentradas, voltadas ao ambiente e abertas às outras identidades. As identidades descentradas poderiam estar associadas, também, à reinvindicação de direitos, porém não mais estariam ligadas “a pleitos particulares, e sim a um objetivo mais abrangente e exigente: o da constituição universal de formas de convivência civilizada, zelosas não somente por si, mas igualmente por todos os demais. Formas de vida, enfim, respeitosas da integridade de cada qual sem encapsulá-la” (Cohn, 2016COHN, Gabriel. 2016. “Identidades problemáticas”. In: SALLUM Jr., Brasílio; SCHWARCZ, Lilia; VIDAL, Diana; CATANI, Afrânio. (org.). Identidades. São Paulo: Edusp., p. 38).

A identidade pode ser compreendida como perspectiva, um conjunto de referências a partir das quais a realidade é interpretada, construção simbólico-imaginária atualizada ao longo do tempo. O inconsciente, entendido como linguagem, seria a estrutura comum a todas as perspectivas. Porém, cada uma delas significaria diferentes elementos em seu interior de acordo com o seu habitus - no sentido de maneiras de ser, perceber e agir (Castro, 2002, p. 380). No âmbito das mídias sociais digitais, o habitus aparece como forma de argumentar, escrever, falar, utilizar símbolos e imagens, inscrito num quadro hierárquico e relacional de perspectivas (Bourdieu, 1983BOURDIEU, Pierre. 1983. Algumas Propriedades dos Campos. In: BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero.). É nesse quadro de perspectivas cruzadas que o sujeito se constitui a partir do descentramento. O sujeito, portanto, escapa à identidade e é necessariamente descentrado; ele se configura nas relações estabelecidas ao acaso que reformulam antigas referências. Em contraste à identidade fechada e igual a si mesma, o que define o sujeito é o efeito que ele produz. E, para situar-se na ordem do efeito e não da substância, ele só poderia ser relacional e capaz de reconhecer o outro como sujeito.

Conclusão

O descentramento é aqui considerado uma capacidade humana universal, condição da constituição subjetiva, que se realiza, mais ou menos, a depender do contexto social, político e cultural. Em momentos de crises sociais - quando se diluem as demarcações entre o público e o privado, as religiosidades se fortalecem, a cultura autoritária predomina sobre os valores democráticos, a identidade do grupo se torna mais viva que a noção de cidadania, os direitos e deveres se esvaem em favor dos afetos -, a polarização política se acirra e o descentramento dá lugar à fragmentação.

A possibilidade de múltiplas perspectivas, simultâneas e relacionais, numa estrutura linguística comum, seria a máxima realização do descentramento que pressupõe a reciprocidade do olhar e entende a alteridade como algo além do mero reflexo ou extensão do eu. Sujeito, como vimos, é aquele capaz de perceber o outro como sujeito. No descentramento, o outro não se faz da projeção imaginária de si, mas consiste em um ponto de vista particular. A intersubjetividade, então, pode ser compreendida como um entrecruzamento de perspectivas e o inconsciente como o fundo comum da humanidade.

Junto aos instrumentos analíticos que o perspectivismo oferece à teoria social está a noção de sujeito: “é sujeito […] quem é capaz de um ponto de vista” (Castro, 2002, pp. 372-373). A subjetividade está na diferença, mas se inscreve numa estrutura de relações. Dito de outro modo, o eu ultrapassa o particularismo individual e se subjetiva pela universalização e pela linguagem. O desprendimento em relação a si permitiria a autoprodução do indivíduo como singularidade e, ao mesmo tempo, o reconhecimento da humanidade do outro. Pois esse ponto de vista não é fixo, mas relacional, transferível e convertível. Não é uma linha reta, mas um círculo perspectivo que engloba pontos de vista e se intersecciona com outros círculos. Apreendê-lo pressupõe deixar-se capturar por ele, personificá-lo.

É a inscrição do indivíduo como singularidade na estrutura social e simbólica, no “grande Outro”, que torna possível o estabelecimento de laços de compromisso e a participação em associações, comunidades e sociedades. As relações sociais, por si mesmas, alteram a percepção do espaço e do tempo em “uma estrutura comum, universalmente válida, da atividade inconsciente” que é “o fundamento da intersubjetividade, termo mediador numa comunicação” (Bonomi, 1974BONOMI, Andrea. 1974. Fenomenologia e estruturalismo. São Paulo: Perspectiva., pp. 120-122). O descentramento pode ser definido, em síntese, como a passagem do indivíduo ao sujeito por meio do grande Outro no tempo. O indivíduo tende a assenhorar-se de si na relação com o outro, como sujeito, porque é impelido por uma ausência que cabe na distância entre ele e o outro quando a distância se estabelece. O indivíduo acabado e completo seria, portanto, um não sujeito,18 18 O psicótico seria aquele incapaz de realizar esse movimento para si por meio da alteridade, pois habita um Outro completo, ao qual falta a inscrição da falta. Os que acreditam estar completamente dentro da linguagem são justamente os psicóticos que confundem a “ordem das palavras” com a “ordem das coisas” (Zizek, 2016, p. 11; p. 293). estaria sempre por fazer-se na contínua conquista do inconsciente, ainda que se evada na mesma medida em que é alcançado.

O descentramento, todavia, tem sido tomado como sinônimo de fragmentação quando, a rigor, seria condição universal da constituição subjetiva. Ao contrário de uma expressão da contemporaneidade, como é a fragmentação, o descentramento se enfraquece em contextos nos quais predomina o espaço sobre o tempo, o imaginário sobre o simbólico, os significantes sobre os significados, o indivíduo sobre o sujeito. O descentramento estaria em oposição direta ao narcisismo. Lash observara que enquanto o modernismo deixava espaço aberto a uma subjetividade mais flexível, “a cultura pós-modernista tende, novamente, a gerar posições fixas de sujeito” (Lash, 1997LASH, Scott. 1997. Sociología del posmodernismo. Buenos Aires: Amorrotu Ediciones., pp. 38-39). A passagem da modernidade à condição pós-moderna corresponde à progressiva preponderância da fragmentação sobre o descentramento.

A tecnologia em geral, incluindo-se as mídias digitais, longe de ser o elemento determinante da realidade social, materializa as relações sociais e econômicas e adquire o significado de seus usos. Ela expressaria, de modo exacerbado, o “espírito do (seu) tempo”. As mídias digitais, em especial, já se instalam num contexto de fragmentação da subjetividade que elas podem acentuar ou, em tese, contribuir para reverter, pela possibilidade aberta aos encontros. Na mesma medida em que manifestam e sintetizam as características do presente (primazia da categoria espaço sobre a categoria tempo, instantaneidade, simultaneidade, onipresença, imanência, fragmentação, ausência de profundidade), guardam o potencial de transcendê-lo.

Entretanto, são as relações sociais que determinam, em última instância, as referências tempo-espaciais dos indivíduos. Se a fragmentação é um dos efeitos da primazia do espaço sobre o tempo, o descentramento subjetivo, que é sempre relacional, subordina o espaço à temporalidade. As relações sociais alteram, de diferentes maneiras, a percepção do tempo e do espaço, mesmo que os indivíduos não se desloquem espacialmente. São os sentimentos, afetos e afecções, o ponto de partida do descentramento subjetivo: a passagem das representações sensíveis do imaginário à subjetivação simbólica, através do tempo - que não é o cronológico, mas aquele referido à experiência e à reflexão.

O diálogo motivado pelo entendimento mútuo, não apenas pela imposição de uma visão de mundo sobre outra, pressupõe que os indivíduos se situem no plano transcendente da linguagem, dos conceitos, categorias e noções. Mesmo que o diálogo se inicie pelas emoções, transferências e identificações, a compreensão mútua ocorre na dimensão simbólica que é de ordem lógica, conceitual, e torna possível a comunicação. “O conceito, escrevera Durkheim, é uma representação essencialmente impessoal: é através dele que as inteligências humanas se comunicam” (Durkheim, 1989DURKHEIM, Émile. 1989. As Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Paulinas., p. 512). Os indivíduos apenas se entendem como sujeitos capazes de “ir além da experiência, de acrescentar algo ao que lhe é dado imediatamente” (Durkheim, 1989DURKHEIM, Émile. 1989. As Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Paulinas., pp. 43-44). Sem a experiência, no entanto, não haveria como superá-la.

O sujeito não está no plano do indivíduo, do eu ou do ego, mas de um outro para si mesmo; o sujeito é, portanto, um produto do descentramento. A transcendência por meio dos símbolos, contudo, apenas se realiza quando há noção de futuro, um horizonte de mudanças. “O conceito é o tempo” e o futuro é o “termo essencial ao comportamento simbólico” (Lacan, 2005LACAN, Jacques. 2005. O simbólico, o imaginário e o real. In: LACAN, Jacques. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Zahar., pp. 35-38). Pois diferente do imaginário, domínio do imediato, as estruturas simbólicas sedimentam-se no transcurso do tempo. Quando o tempo incide menos que o espaço na experiência, predomina o imaginário sobre o simbólico. Desde a sociologia durkheimiana, o “humano”, no sentido de humanidade e não de espécie, é tudo o que é conservado na duração como símbolo: “o homem faz subsistir, em uma certa permanência, tudo o que durou como humano e, antes de tudo, ele próprio” (Lacan, 2005LACAN, Jacques. 2005. O simbólico, o imaginário e o real. In: LACAN, Jacques. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Zahar., p. 36). A ordem simbólica, para Durkheim, seria a própria razão: o conjunto das categorias fundamentais, os conceitos mais gerais, independentes de qualquer indivíduo, e o ponto comum onde todos os espíritos se encontram (Durkheim, 1989DURKHEIM, Émile. 1989. As Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Paulinas., pp. 42-43). Quando a razão se fragmenta, sobrevêm as sensações, percepções e imagens que exprimem estados momentâneos da consciência particular, não superados pela comunicação.

Mesmo que toda relação seja “sempre mais ou menos marcada pelo estilo do imaginário” (Lacan, 2005LACAN, Jacques. 2005. O simbólico, o imaginário e o real. In: LACAN, Jacques. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Zahar., p. 33), e que o primeiro contato com o outro acione e transfira, inconscientemente, um leque de preconceitos negativos ou positivos, condições ideais à conversação permitiriam ultrapassar esse estágio de narcisismo por meio do descentramento. Se, contemporaneamente, com frequência se advoga em defesa dos limites do entendimento humano e da igualdade (algumas vezes, sob o argumento conservador da restituição da ordem, outras sob o discurso da diferença), reconhecer o outro como sujeito tem sido sempre, em toda a história, um gesto de ruptura das formas autoritárias e repressoras de organização da sociedade. Porém, o encontro entre as diferenças e o reconhecimento do outro como sujeito apenas ocorrem no plano simbólico - entendido como estrutura inconsciente e ordem material -, quando o indivíduo se faz sujeito para si mesmo e as relações podem ser sustentadas a certa distância. Nas relações de amor e amizade, esse reconhecimento pode ocorrer espontaneamente, mas a cada momento deve ser assegurado pelas instituições sociais para que de fato prevaleça, persista no tempo e não retroceda à força das conjunturas. Em uma palavra, não há verdadeira contestação da ordem simbólica que não se faça por meio dela e que nela não inscreva.

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  • ZIZEK, Slavoj. 2016. O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. São Paulo: Boitempo Editorial .
  • 1
    Se, antes, palavras de ordem como a “até a vitória, sempre”, de Che Guevara, mobilizavam multidões, no início do século XXI surge um lema como “um outro mundo é possível” (Fórum Social Mundial). Em vez da perspectiva de futuro (utopia), os movimentos sociais prometem um novo lugar que pode ser aqui e agora.
  • 2
    Analógico: que mensura uma grandeza ou demonstra valores de maneira contínua e linear ao exemplo do relógio de ponteiros que circulam no espaço sempre no mesmo sentido e velocidade. Digital: forma de representar informações ou grandezas físicas por meio de caracteres, números ou sinais imediatamente apreensíveis ao olhar.
  • 3
    A obra que pode demonstrar, empiricamente, essas proposições, é o recém-lançado livro de Richard Miskolci (2021MISKOLCI, Richard. 2021. Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada. São Paulo: Editora Autêntica.).
  • 4
    Talvez seja possível afirmar que a neurose se torna tema de investigação da psicanálise freudiana no mesmo momento em que a tradição começa a transformar-se em compulsão.
  • 5
    Em um seminário organizado pelo Laboratório Território e Comunicação (LABTeC/PPGCI-ECO/UFRJ), em 1998, Yann Moulier-Boutang e Antonella Corsani introduziram o conceito de “capitalismo cognitivo” em diálogo com os trabalhos do economista da inovação Enzo Rullani (Cocco, 2013COCCO, Giuseppe. 2013. Introdução à 2ª edição de Giusepe Cocco, 21 de março de 2013. In: LAZZARATO, Maurízio; NEGRI, Antonio. Trabalho Imaterial: Formas de Vida e Produção de Subjetividade. Rio de Janeiro: Ed. Lamparina., pp. 10-11).
  • 6
    Lima e Oliveira (2017LIMA, Jacob Carlos.; OLIVEIRA, Daniela Ribeiro de. 2017. Trabalhadores digitais: as novas ocupações no trabalho informacional. Revista Sociedade e Estado, v. 32, n. 1, pp. 115-143. DOI: https://doi.org/10.1590/s0102-69922017.3201006.
    https://doi.org/10.1590/s0102-69922017.3...
    ) lembram que os softwares, diferente da maquinaria do capitalismo clássico que impõe uma forma de uso, são programáveis pelo profissional, o que reduz a distância entre o saber contido na máquina e a mente do operador.
  • 7
    “No horizonte de toda ciência humana, há o projeto de reconduzir a consciência do homem às suas condições reais, de restituí-la aos conteúdos e às formas que a fizeram nascer e que nela se esquivam; é por isso que o problema do inconsciente - sua possibilidade, seu estatuto, seu modo de existência, os meios de conhecê-lo e de o trazer à luz - não é simplesmente um problema interior às ciências humanas e que elas encontrassem ao acaso de seus procedimentos; é um problema que é, afinal, coextensivo à sua própria existência. Uma sobrelevação transcendental revertida num desvelamento do não consciente é constitutiva de todas as ciências do homem. Aí talvez se encontrasse o meio de demarcá-las no que elas têm de essencial. O que manifesta, em todo caso, o específico das ciências humanas, vê-se bem que não é esse objeto privilegiado e singularmente nebuloso que é o homem. Pela simples razão de que não é o homem que as constitui e lhes oferece um domínio específico; mas, sim, é a disposição geral da epistemê que lhes dá lugar, as quer e as instaura - permitindo-lhes, assim, constituir o homem como seu objeto” (Foucault, 2016FOUCAULT, Michel. 2016. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes ., p. 504).
  • 8
    “Penso onde não existo e existo onde não penso” (Lacan, 1992LACAN, Jacques. 1992a. Escritos. São Paulo: Perspectiva ., p. 248). Seria um equívoco teórico, desse ponto de vista, entender que uma concepção pós-estruturalista da história seja, necessariamente, “sem sujeito”, quando, pelo contrário, revelaria uma outra noção de subjetividade (descentrada).
  • 9
    A psicanálise pode ser entendida como um instrumento destinado a tornar possível a conquista progressiva do Id por parte do eu, reforçar o eu tornando-o mais independente do superego, ampliar o seu campo perceptivo e aperfeiçoar a sua organização de modo a poder anexar novas zonas do Id: “uma obra de civilização como, por exemplo, o enxugamento do Zuiderzee” (Freud apudGalemberti, 2006GALEMBERTI, Umberto. 2006. Psiche e Techne: o homem na idade da técnica. São Paulo: Paulus., p. 181-182).
  • 10
    Conferência proferida por Marcel Mauss na ocasião de sua posse como presidente da Sociedade Francesa de Psicologia, em 1924.
  • 11
    Sobre os encontros e desencontros teóricos entre Freud e Durkheim, consultar o capítulo “Freudismo e Durkheimismo”, de Roger Bastide, em Sociologia e Psicanálise (São Paulo: Melhoramentos/Edusp, 1974).
  • 12
    “O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica” é uma comunicação feita ao XVI Congresso Internacional de Psicanálise, em Zurique, a 17 de julho de 1949, em que cita o texto de Lévi-Strauss, “A eficácia simbólica”, publicado no mesmo ano.
  • 13
    Tal abordagem, embora se assemelhe, distancia-se da concepção de espelho de Charles Cooley para quem o eu é também interativo, porém a socialização é uma aprendizagem consciente, pressuposto que distingue o interacionismo simbólico da psicanálise. Enquanto para Freud e Lacan, a subjetividade é o produto de processos psíquicos inconscientes, descentrados, no interacionismo simbólico e na psicologia social norte-americana, não haveria esse descentramento.
  • 14
    Assim, uma sociologia do inconsciente poderia evitar a colonização da crítica social pelas técnicas de pesquisa que tendem a reproduzir valores e visões de mundo próprios das empresas que as produziram e cujos interesses são incompatíveis com o propósito de pesquisa independente.
  • 15
    Na conversação escrita no hipertexto, capaz de registrar e fixar o diálogo no tempo, o interlocutor pode ler e reler, editar e reeditar o que escreveu de modo a retificar o sentido de uma sentença eliminando as ambiguidades e os atos falhos, aquilo que não pretendia dizer e, no entanto, disse de maneira inconsciente.
  • 16
    O pensamento independente, aquele que vai além da obediência aos comandos, decorre de uma ausência, inversão possível da fórmula cartesiana - penso, logo não estou.
  • 17
    Há diversas formas de comunicação também onde o senso comum não admite a existência de cultura, como entre as outras espécies animais e mesmo vegetais.
  • 18
    O psicótico seria aquele incapaz de realizar esse movimento para si por meio da alteridade, pois habita um Outro completo, ao qual falta a inscrição da falta. Os que acreditam estar completamente dentro da linguagem são justamente os psicóticos que confundem a “ordem das palavras” com a “ordem das coisas” (Zizek, 2016ZIZEK, Slavoj. 2016. O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. São Paulo: Boitempo Editorial ., p. 11; p. 293).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2018
  • Aceito
    22 Fev 2022
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